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Revista Práxis Educacional

versión On-line ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.17 no.46 Vitória da Conquista jul./sept 2021  Epub 24-Dic-2021

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v17i46.8921 

DOSSIÊ TEMÁTICO: Formação de Professores: Projetos em Disputa

A INSERÇÃO DA TERMINOLOGIA “DIREITO À APRENDIZAGEM” NO ARCABOUÇO LEGAL DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

THE INSERT OF THE TERMINOLOGY “RIGHT TO LEARNING” IN THE LEGAL FRAMEWORK OF TEACHER TRAINING

EL INSERTO DE LA TERMINOLOGÍA “DERECHO AL APRENDIZAJE” EN EL MARCO JURÍDICO DE LA FORMACIÓN DE PROFESORES

Andréia Nunes Militão1 
http://orcid.org/0000-0002-1494-8375

1Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - Brasil - andreiamilitao@uems.br


Resumo:

Tem-se como pressuposto que as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e o anexo denominado Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação) aportam-se em abordagem de viés economicista em consonância com o projeto ultraliberal em curso. Argumenta-se que o Parecer CNE/CP nº 22/2019 e respectiva Resolução CNE/CP n. 02/2019 e Parecer CNE/CP nº 14/2020 e Resolução CNE/CP nº 1/2020 recuperam um projeto de formação de professores ancorado na racionalidade técnica vencido política e institucionalmente no início dos anos 2000. Almeja-se desvelar em quais princípios se apoia e quais elementos caracterizam o projeto de formação docente inscrito nas ‘novas’ diretrizes. Recorre a pesquisa documental, detendo-se particularmente na análise da inserção da terminologia “direito à aprendizagem” nas novas diretrizes com vistas a desnudar as implicações para a formação inicial de professores. Almeja-se, portanto, traçar o percurso que propiciou a incorporação do termo “direito de aprendizagem” nos normativos atinentes a formação de professores. Adota o conceito de aprenderismo e tem Biesta (2012, 2013, 2017) como autor de referência para analisar o discurso legal. A substituição no texto normativo da linguagem da educação pela linguagem da aprendizagem é materializada na BNC-FI e na BNC-FC com a listagem das competências e habilidades, obliterando o lugar do conhecimento no projeto de formação de professores e, por conseguinte, na formação de estudantes na educação básica, indicando a influência de uma matriz calcada na racionalidade técnica nos processos formativos em detrimento de uma fundamentação assentada na racionalidade crítica.

Palavras chave: Formação de Professores; Diretrizes Curriculares Nacionais; Direito à Aprendizagem.

Abstract:

It is assumed that the National Curriculum Guidelines for Initial Teacher Training for Basic Education and the annex called Common National Base for Initial Basic Education Teacher Training (BNC-Training) support an economicist approach in in line with the current ultraliberal project. It is argued that Opinion CNE/CP No. 22/2019 and respective Resolution CNE/CP No. 02/2019 and CNE/CP Opinion No. 14/2020 and CNE/CP Resolution No. 1/2020 recover a teacher training project anchored in technical rationality, politically and institutionally defeated in the early 2000s. supports and which elements characterize the teacher training project inscribed in the 'new' guidelines. It resorts to documentary research, focusing particularly on the analysis of the insertion of the terminology "right to learning" in the new guidelines with a view to revealing the implications for the initial training of teachers. The aim is, therefore, to trace the path that led to the incorporation of the term “learning right”

in the regulations pertaining to teacher education. It adopts the concept of learning and has Biesta (2012, 2013, 2017) as a reference author to analyze the legal discourse. The replacement in the normative text of the language of education by the language of learning is materialized in the BNC-FI and BNC-FC with the listing of skills and abilities, obliterating the place of knowledge in the teacher education project and, therefore, in training of students in basic education, indicating the influence of a matrix based on technical rationality in training processes to the detriment of a foundation based on critical rationality.

Keywords: Teacher Education; National Curriculum Guidelines; Right to Learning.

Resumen:

Se asume que los Lineamientos Curriculares Nacionales para la Formación Docente Inicial de Educación Básica y el anexo denominado Base Nacional Común para la Formación Docente de Educación Básica Inicial (BNC-Training) apoyan un enfoque economista en línea con el actual proyecto ultraliberal. Se argumenta que la Opinión CNE / CP No. 22/2019 y la respectiva Resolución CNE / CP No. 02/2019 y la Opinión CNE / CP N ° 14/2020 y la Resolución CNE / CP N ° 1/2020 recuperan un proyecto de formación docente anclado en la racionalidad técnica, derrotado política e institucionalmente a principios de la década de 2000. Apoyos y qué elementos caracterizan la formación docente proyecto inscrito en las 'nuevas' directrices. Recurre a la investigación documental, centrándose especialmente en el análisis de la inserción de la terminología "derecho al aprendizaje" en las nuevas directrices con el fin de revelar las implicaciones para la formación inicial del profesorado. El objetivo es, por tanto, trazar el camino que condujo a la incorporación del término “derecho de aprendizaje” en la normativa de formación del profesorado. Adopta el concepto de aprendizaje y tiene a Biesta (2012, 2013, 2017) como autor de referencia para analizar el discurso jurídico. La sustitución en el texto normativo de la lengua de la educación por la lengua de aprendizaje se materializa en el BNC-FI y BNC-FC con el listado de competencias y habilidades, borrando el lugar del conocimiento en el proyecto de formación docente y, por tanto, en formación de estudiantes en educación básica, indicando la influencia de una matriz basada en la racionalidad técnica en los procesos de formación en detrimento de una base fundamentada en la racionalidad crítica.

Palabras clave: Formación de profesores; Directrices del plan de estudios nacional; Derecho al aprendizaje.

Introdução

No limiar do Golpe de 2016, Saviani (2016) caracterizava a sua natureza e ensejava os seus desdobramentos. Constata-se, após cinco anos, o acerto de ambas as previsões assinaladas pelo autor: “Na atual conjuntura, marcada pelo golpe jurídico-midiático-parlamentar, a perspectiva que se delineia é de um grande retrocesso que deverá marcar tanto a LDB como a legislação complementar da educação” (SAVIANI, 2016, p. 390). O presente texto propõe-se a analisar as alterações normativas atinentes à formação de professores - inicial e continuada - forjadas no contexto do golpe. Esse processo histórico tem sido denominado de diversas formas: “impeachment extralegal” (LEHER, 2019), “golpe jurídico, parlamentar, policial e midiático” (FRIGOTTO, 2017) e marca a investida do capital contra a educação pública.

No contexto pré-golpe, marcadamente em 2014, o Plano Nacional de Educação emerge como “epicentro das políticas de Estado para a educação brasileira” (DOURADO, 2017). Resultado de intenso processo de debates, o PNE (2014-2024) passa a ser desconfigurado, em particular, pela aprovação da Emenda Constitucional n. 95/2016 que inviabiliza o cumprimento das 20 metas propostas para o decênio.

Aguiar (2019) localiza no Governo Temer a retomada do projeto político neoliberal interrompido pela ascensão de governos progressistas que passam a ser adensadas no Governo Bolsonaro (2019-200?). As determinações da agenda econômica percorrem ambos os governos. Localiza-se como medida central do Governo Temer (2016-2018) a aprovação da Emenda Constitucional n. 95/2016 e no Governo Bolsonaro as reformas: da previdência, trabalhista, administrativa, tributária, entre outras, ainda em pauta. Tem-se, portanto, uma agenda política restritiva: “O impacto da PEC dos Gastos na educação atingiu, sobretudo, as metas do PNE 2014-2024 que requerem mais investimentos, comprometendo direitos sociais garantidos pela Constituição de 1988” (AGUIAR, 2019, p.17).

Piolli (2018, p. 101) considera que esse período se caracteriza pela “[...] tendência ao recrudescimento das liberdades democráticas e o avanço das forças liberais conservadores e do neoliberalismo radical ditado pelas forças do mercado, do grande capital, principalmente o financeiro, e do rentismo”.

Para Leher (2019, p. 04), trata-se de uma agenda regressiva materializada inicialmente pela aprovação da Emenda Constitucional nº 95/2016, pela reforma trabalhista consignada na Lei nº 13.467/2017 e por mudanças na legislação ambiental e de terras.

No campo educacional, a alteração da composição do Conselho Nacional de Educação, configurou-se como medida central no sentido de viabilizar as reformas educacionais pretendidas desde a década de 1990. A mudança da composição do CNE seria, estrategicamente, a condição para viabilizar as mudanças curriculares almejadas, elemento estrutural para as mudanças na política de formação de professores. A esse respeito, Aguiar (2019, p.06) destaca “que o maior interesse da nova gestão do MEC estava voltado à aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a educação básica”.

As definições das políticas educacionais passam a ocorrer de forma atópica, ou seja, fora das ações do Ministério da Educação estando mais ligadas aos interesses de entidades privatistas. O elo de articulação principal dessas entidades com os setores governamentais tem sido o Conselho Nacional de Educação.

A aprovação da BNCC configura-se, no tempo presente, como indutora das demais políticas educacionais, sejam aquelas destinadas à educação básica, sejam aqueles referentes ao ensino superior. Conquanto o intenso processo de reformas educativas seja apresentado de forma fragmentada, trata-se de um projeto de educação assumidamente gerencial. Depreende-se, assim, que a aprovação da BNCC institui uma “cultura basista” e articulada para todos os temas educacionais: currículo, avaliação, gestão educacional e formação dos professores.

Após 2016, esse projeto é retomado, ficando evidenciado a disputa de projetos no campo educacional. Sob a égide neoliberal, “a ênfase situa-se na padronização dos currículos escolares e nos processos formativos assentados nos princípios da flexibilização, da eficiência, da eficácia, da meritocracia e da gestão de resultados” que caracterizaram a política dos anos 1990 e é retomada no presente. No polo oposto, tem-se uma “educação emancipadora, os princípios traduzem uma formação crítica e de aperfeiçoamento contínuo do ser humano” (AGUIAR, 2019, p.16).

Confirmando o processo de reconfiguração das políticas educacionais postas no cenário nacional, temos a ascensão da BNCC como indutora da reforma educacional em curso desde o golpe jurídico-parlamentar-midiático-empresarial promovendo alterações profundas no currículo, na formação de professores, na gestão educacional e na avaliação. Aguiar e Dourado (2019, p. 34-35), ressaltam que “a formação dos professores sobressai, por ser um elemento estratégico para materializar a pretendida reforma da educação básica, atendendo aos reclamos do mercado, que pugna pela formação do sujeito produtivo e disciplinado”.

Articulam-se proposições de precarização da formação do professor, e o apostilamento e padronização das redes públicas e privadas, o que deixa os professores dependentes de materiais didáticos estruturados, retirando dos docentes a qualificação necessária para fazer adequações e análises de acordo com as necessidades de cada aluno. “Além disso, uma visão pragmatista cada vez mais se instala nas agências formadoras do professor, diminuindo sua formação aos aspectos práticos das metodologias” (FREITAS, 2014b, p. 55).

Nesse contexto, Zan e Krawczyk (2018, p. 120) destacam a centralidade da formação de professores para a materialização de “uma política de construção e consolidação de um pensamento conservador”. Ressaltam ainda que “A disputa pela formação dos professores tem se manifestado seja através da flexibilização do espaço formativo (próprio local de trabalho, nas instituições de ensino superior) seja na defesa de uma formação técnica e neutra desse profissional” (ZAN; KRAWCZYK, 2018, p. 120).

Um primeiro ataque ao campo da formação de professores está embutido na Reforma do Ensino Médio com a aprovação da Lei n. 13.415/2017, por alterar o Artigo 61 da LDB/1996 ao inserir entre os profissionais da educação aqueles “com notório saber”, inaugurando as ofensivas às instituições formadoras. Na análise de Machado e Jacomeli (2018, p. 147-148), “a legislação permite que quem não é professor possa atuar como professor. Essa mudança na LDB, conjuntamente com outras reformas feitas no governo golpista, especialmente a trabalhista, tem contribuído para o aprofundamento da precarização do trabalho na educação, principalmente o trabalho docente”.

Um segundo ataque ao campo da formação de professores está contido na aprovação da BNCC, aprovada em 2017, ao inseri-la como obrigatoriedade para o estabelecimento dos currículos da educação básica como também para o ensino superior, aspecto que, na visão dos reformadores, constitui-se na justificativa para a imposição de duas novas resoluções para a formação inicial e continuada.

[...] evidencia um ensino-aprendizagem voltado para a formação de habilidades, competências, procedimentos e formação de atitudes, em detrimento do foco em conteúdos escolares e na importância e no papel do trabalho educativo; tem o objetivo de adaptar os estudantes ao mercado de trabalho, com ênfase no empreendedorismo, e demonstra uma concepção fragmentada do conhecimento e do desenvolvimento humano, desconsiderando as diversidades e as especificidades de aprendizagem dos estudantes. (MACHADO; JACOMELI, 2018, p. 148)

Em 2017, o Governo Temer anunciou a proposição de uma Política Nacional de Formação de Professores. Ação governamental que em outro trabalho (MILITÃO, 2019) denominamos de “powerpointização das políticas educacionais”, uma vez que a referida política não estava naquele momento materializada em leis, decretos e/ou resoluções. Constituiu apenas um anúncio em forma de power point, de intenções políticas que viriam a se materializar no Governo Bolsonaro em 2019 e 2020, respectivamente com a aprovação de duas resoluções para a formação de professores.

No contexto escolar, a introdução das avaliações externas, nas décadas de 1990 e 2000, constituiu-se na via prioritária para os processos subsequentes, pois considera que “a questão da educação se resolve a partir de uma gestão eficaz das mesmas formas vigentes de organização pedagógica, associada a novas tecnologias educativas, responsabilização, meritocracia e privatização, motivando a consolidação de um neotecnicismo educacional” (FREITAS, 2014, p. 1088). Importante destacar que as avaliações, anunciadas como medida de qualidade da educação, desempenham papel relevante no contexto das políticas educacionais, associadas à políticas de responsabilização se constituem em mecanismo de contenção de avanços progressistas na organização do trabalho pedagógico em sala de aula “fortalecendo seu controle ideológico sobre toda a estrutura educacional que forma milhões de jovens, ajustando-os a um padrão cultural ‘básico’ de instrução” (FREITAS, 2014, p. 1089). As consequências desta pressão sobre o sistema escolar, baseada em responsabilização (accountability), estão suficientemente documentadas na literatura internacional e promovem, entre outras questões, o estreitamento curricular e a precarização da formação do professor (FREITAS, 2014b).

Procuramos no próximo item tratar da gênese e, principalmente do significado da incorporação do termo “direito de aprendizagem” e expressões derivadas como parte desse novo glossário presente nos normativos educacionais.

Direitos de aprendizagem: uma formulação neoliberal

Parte-se do pressuposto de que esse termo compõe um conjunto de expressões derivadas assumidas pelo ideário neoliberal na formulação das políticas educacionais. Neste sentido, inicia-se esse item com uma apresentação desse contexto mais amplo. Denominado por Freitas (2014) como “ondas” neoliberais, inicialmente se identifica a imposição das avaliações externas, na sequência o estabelecimento de matrizes de referências padronizadas e atreladas à estas avaliações. A primeira onda marcou os anos 1990 e a segunda se amplia após o Golpe de 2016. O autor sintetiza a perversidade no discurso que acompanha as reformas em busca da “qualidade” da educação:

O direito à formação ampla e contextualizada que todo ser humano deve ter é reduzido ao direito de aprender o “básico” expresso nas matrizes de referência dos exames nacionais, assumido ali como o domínio que é considerado “adequado” para uma dada série escolar nas disciplinas avaliadas - não por acaso as que estão mais diretamente ligadas às necessidades dos processos produtivos: leitura, matemática e ciências. Convém enfatizar que são as matrizes de referência dos exames e não o currículo prescrito, a base nacional comum, que definem o que será considerado como “básico”. (FREITAS, 2014, p. 1090)

Observa-se, dessa maneira, que a linguagem da aprendizagem integra o discurso dos reformadores empresariais, sendo disseminada a partir do mote “direito de aprender”, “direito à aprendizagem”. Esse “novo” objetivo das políticas educacionais obliteram as reais intenções e condições educacionais “aumentando o controle sobre a escola e ocultando as raízes sociais das desigualdades acadêmicas” (FREITAS, 2014).

É neste primeiro eixo fundante do processo pedagógico (objetivos/avaliação) que a disputa com os reformadores se encontra neste momento, face à iniciativa destes para ampliar o papel da avaliação no controle da escola (Lei 13005/2014 do Plano Nacional de Educação) e por definir os objetivos de ensino (através de uma base nacional comum, também incluída no PNE) nos termos de uma matriz formativa que preserve o formato atual da escola e trave o par dialético dos conteúdos/métodos[...]. (FREITAS, 2014, p. 1092)

Lombardi e Lima (2018, p.49) localizam a Reforma Trabalhista empreendida pelo Governo Temer e à aprovação da Lei 13.429/2017 que autoriza a terceirização de forma irrestrita como elementos centrais, nas palavras dos autores “são a base concreta para pensarmos as reformas educacionais anunciadas pelo MEC”.

Na atual fase de reestruturação flexível da base produtiva, a escola pública é convocada pelo Estado golpista para adequar a classe trabalhadora aos ditames do mercado de trabalho. Isso ocorre sustentado por grupos empresariais, articulados no interior de movimentos como o “Todos Pela Educação” e o “Escola Sem Partido”, que a pretexto de defenderem um pacto em defesa da educação e o combate à doutrinação político ideológica no âmbito escolar, combatem a reflexão crítica sobre as contradições sociais, sobretudo as contradições do mundo do trabalho e que também permeiam a vida de estudantes e professores. (LOMBARDI; LIMA, 2018, p.49)

Os autores supracitados caracterizam como “Cavalo de Tróia” a presença dos setores empresariais expressos pela Fundação Lemann e pelo TPE no interior do Governo Lula sob a égide da necessidade de criar consensos e ampliar a participação. Dessa forma, “Criada em 2006, essa articulação civil-empresarial deu origem ao “Compromisso Todos Pela Educação”, um verdadeiro “Cavalo de Troia” no interior do Plano de Desenvolvimento (PDE), institucionalizado por meio da Lei 6.094, de 24 de abril de 2007”.

Em sua ânsia por recuperar a taxa de lucro abalada pela crise estrutural, não bastou ao capital expropriar os recursos da educação, pois também é preciso controlar ideologicamente o conteúdo, pois nenhum gérmen de “educação para além do capital” pode prosperar. É no interior dessa totalidade operante que as hodiernas (contra)reformas neoliberais da educação devem ser entendidas: são mudanças educacionais para preparar para as alterações que ocorrem no mundo do trabalho, legalizados pela Lei 13.429, publicada em 31 de março de 2017, que liberou a terceirização “irrestrita”, possibilitando a contratação de terceirizados para “atividades fins” e, com isso facilitando a introdução da flexibilização de direitos; esta deu-se com a Lei 13.467, de 13 de julho de 2017, que flexibilizou os direitos trabalhistas, intentando não somente intensificar a exploração dos trabalhadores, mas inviabilizar as formas de organização da classe trabalhadora, sobretudo os sindicatos. (LOMBARDI; LIMA, 2018, p.52)

O Estado brasileiro assume como objetivo a ser alcançado “adequar o sistema educacional à formação para as múltiplas habilidades necessárias à produção”, aspecto viabilizado pela adoção de uma pedagogia tecnicista, “substrato teórico-metodológico da atual ofensiva neoliberal sobre a educação pública brasileira” (LOMBARDI; LIMA, 2018, p.53). Assim, parte-se do “pressuposto da neutralidade científica e inspirada nos princípios de racionalidade, eficiência e produtividade” para instituir uma pedagogia que “advoga a reordenação do processo educativo de maneira a torná-lo objetivo e operacional. De modo semelhante ao que ocorreu no trabalho fabril, pretende-se a objetivação do trabalho pedagógico” (SAVIANI, 2009, p. 11 apud LOMBARDI; LIMA, 2018, p.53).

Sob a denominação “pedagogia tecnicista” almeja-se delinear a educação a partir “de uma organização racional capaz de minimizar as interferências subjetivas que pudessem por em risco sua eficiência” (SAVIANI, 2009, p. 11 apud LOMBARDI; LIMA, 2018, p.53). Situa-se aí a busca pela definição de objetivos, competências e habilidades.

Emerge nos anos 1990, sob nova roupagem, esse mesmo modelo pedagógico que passa a ser nomeado neoprodutivismo e termos correlatos tais como: neoescolanovismo, neoconstrutivismo e neotecnicismo (SAVIANI, 2010, p. 425) e por “pedagogias do aprender a aprender” (DUARTE, 2003, p. 5).

Na perspectiva do “aprender a aprender”, cabe à educação proporcionar aos indivíduos a aquisição de um repertório de “habilidades e competências” para a sobrevivência em uma sociedade caracterizada pelas incertezas do mercado de trabalho. Para tanto, é preciso redefinir o papel do Estado e reorganizar as escolas, adequando-as aos ditames da reestruturação produtiva capitalista. Assim, a ênfase tecnicista nas habilidades e competências, para além da formação elementar para o processo produtivo, também cumpre um papel ideológico extremamente importante: ocultar a luta de classes que permeia o espaço escolar, impondo a ideia de consenso sobre as relações sociais de produção vigentes. (LOMBARDI; LIMA, 2018, p.54)

Corroborando esse entendimento sobre as origens das atuais reformas no ideário dos anos 1990, também é possível identificar suas peculiaridades. Se naquele momento conferiram centralidade a avaliação externa e em larga escala, no contexto atual a padronização do currículo via BNCC direciona todas as demais políticas educacionais.

Com o intuito de centrar a educação escolar na aprendizagem de conteúdos considerados indispensáveis por meio da reforma curricular da educação básica, está prevista a alteração nos currículos dos cursos de formação de professores. Isso está notadamente em sintonia com a proposta de uma base nacional comum: haverá mais ênfase a aspectos da prática docente, sob a alegação reiterada de representantes do governo central, de algumas secretarias de educação e até mesmo de alguns professores, que entendem que os cursos de licenciaturas são demasiadamente teóricos. (CÓSSIO, 2014, p. 1584)

Reformas e mudanças normativas que tem uma aparente fragmentação, porém respondem à um mesmo projeto, conforme destacam Lombardi e Lima (2018, p.54) ao apontar para a sincronia proposta pela “pedagogia das competências” para as empresas e escolas. Enquanto “nas empresas se busca substituir o conceito de qualificação pelo de competência e, nas escolas, procura-se passar do ensino centrado nas disciplinas de conhecimento para o ensino por competências referidas a situações determinadas”.

[...] o capital realiza um duplo movimento: por um lado, buscando recompor a taxa de lucro, por meio da expropriação dos recursos públicos destinados à educação; por outro, exercendo o controle ideológico no interior das escolas, desqualificando o conhecimento técnico, científico, artístico, filosófico e humanístico historicamente produzido pela humanidade e que deveria se constituir no conteúdo fundamental da formação da classe trabalhadora. (LOMBARDI; LIMA, 2018, p.55)

Se em um período tivemos o executivo federal ocupado por governos de coalização esquerda-centro contrários a este projeto, seus defensores utilizam como estratégia a atuação efetiva no Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e na União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), conforme apontado por Freitas (2014), isso viabilizou a articulação via governos locais.

Tem-se a compreensão de que a disputa de projetos se dá para além dos espaços normativos, mas dependem destas mudanças para abrir espaços para o avanço das concepções mercadológicas. A esse respeito, Santos e Malanchen (2017, p. 180) ressaltam que o projeto neoliberal assume como foco o campo da educação, buscando desconstruir a função social da escola pública. Para tanto, o estabelecimento de parcerias faz-se urgente a partir da “abertura para o mercado das grandes corporações educacionais privadas de agir na formação dos profissionais da educação, bem como junto ao Ministério da Educação através de proposições da sociedade civil organizada na forma de organizações não governamentais”.

No cenário nacional, o Movimento Todos pela Educação (TPE) tem exercido influência decisiva na definição das políticas educacionais tanto na esfera macro como micro. Tem-se colocado como órgão de assessoria do Ministério da Educação e do Conselho Nacional de Educação, sem descuidar do diálogo direto com os estados e municípios, por meio do CONSED e da UNDIME. Para Saviani (2020), esse movimento aporta-se:

[...] no neoprodutivismo com as variantes do neoescolanovismo, neoconstrutivismo e neotecnicismo que circulam na forma de supostas teorias travestidas de últimas novidades, na forma das tais “pedagogias do aprender a aprender” que aparecem em versões como “pedagogia da qualidade total”, “pedagogia das competências”, “pedagogias da inclusão”, “pedagogia multicultural”, “teoria do professor reflexivo”, “pedagogia corporativa”, “pedagogia social” e assemelhadas. (SAVIANI, 2020, p.10)

No contexto do século XXI, o neotecnicismo retoma a ênfase nas competências e nas habilidades, com uma mudança fulcral, a inserção nos normativos da educação básica e da formação de professores.

Em sintonia com o fetichismo da “sociedade do conhecimento”, tendo por base concreta a reestruturação capitalista, marcada pela desconstrução dos direitos sociais e o desemprego estrutural, caracterizados nos documentos oficiais como o “incerto, inusitado e urgente”, o currículo escolar passou a ser estruturado a partir dos fundamentos do “aprender a aprender” e da “pedagogia das competências”. (LOMBARDI; LIMA, 2018, p.59)

Se nos anos 1990 os reformadores empresariais ensaiavam a inserção na educação, notadamente na educação básica, no primeiro quartel do século XXI, ampliam suas ações para o ensino superior, com foco na formação de professores. Freitas (2014, p. 1103), alerta para a intenção de “afastar as universidades do processo formativo dos profissionais da educação, redirecionando-os para instituições cuja base teórica restrita impeça de formá-los dentro de uma perspectiva mais avançada e crítica”.

Assumindo a agenda educacional de organismos internacionais, notadamente do Banco Mundial e da OCDE, o Todos pela Educação (TPE) propõe um projeto educacional “baseada nas competências, na definição de metas de aprendizagem consubstanciadas por descritores, na avaliação externa e censitária, na intensificação tecnológica e na correspondente expropriação de conhecimentos dos docentes” (LEHER, 2019, p. 8). O autor assevera que “Os docentes são concebidos como profissionais que desempenham tarefas pedagógicas, e não como intelectuais inventivos” (LEHER, 2019, p. 9).

É possível aduzir, e estudos sobre o tema devem ser estimulados, que a ascendência dessas organizações sobre o conjunto da educação brasileira é muito maior do que a fatia do mercado por elas ocupada. De fato, as interfaces dessas corporações com a educação básica compreendem o fornecimento de material didático, a difusão dos chamados sistemas de ensino e, muito importante, a massiva formação de professores, de maneira especial a distância. (LEHER, 2019, p. 9)

Leher (2019, p. 9), também situa o maior protagonismo dos reformadores empresariais na educação a partir do surgimento do TPE em 2007, tendo como marco na definição das políticas educacionais a criação do Plano de Desenvolvimento da Educação, coincidentemente no mesmo ano de fundação do TPE (2007). As propostas/concepções educacionais do TPE foram também incorporadas no Plano Nacional de Educação de 2014, gerando o argumento normativo para a materialização das reformas que se sucederiam após o fatídico 2016.

O deslocamento da linguagem da educação para a linguagem da aprendizagem expressa nos documentos nacionais pela díade direito à educação versus direito à aprendizagem é evidenciada pela obliteração do “foco no conteúdo e o propósito da educação para questões sobre processos, como, por exemplo, na ideia agora onipresente de ‘aprender a aprender’” (GUILHERME; FREITAS, 2017, p. 77). Adiciona-se, no tempo presente, a ênfase nas competências e nas habilidades que passam a compor espaço nos normativos referentes à educação básica, mas também nas políticas de formação de professores. Conforme Guilherme e Freitas (2017, p. 76):

[...] esta linguagem facilita uma compreensão das relações educacionais como relações econômicas. Conceber o estudante como um consumidor e a educação como mercadoria distorce a função do educador que, visto como um provedor, cujo objetivo é a satisfação dos interesses do estudante, deixa de exercer sua função de ensinar. A segunda objeção é a de que conceber as relações educacionais como relações econômicas torna mais difícil propor questões acerca dos objetivos e conteúdos da educação que não sejam as propostas pelo mercado educacional, ou seja, desproblematizar os sentidos e as finalidades da educação e supervalorizar sua dimensão técnica e metodológica.

Neste cenário, emergem projetos societários díspares. De um lado, capitaneado pelos reformadores empresariais, uma proposta centrada na definição/padronização de uma matriz de referência calcada no conceito móvel/plástico de “direitos de aprendizagem”. Traduzindo essa perspectiva,

[...] os reformadores querem logo definir os objetivos de ensino, sem uma reflexão sobre os objetivos da formação humana que orientam as dimensões de uma matriz de formação que paute a amplitude da experiência formativa das crianças e jovens. Pelo lado dos reformadores, a matriz formativa proposta é restrita à dimensão do cognitivo. Cientes de sua limitação, camuflam todas as demais dimensões da formação sob o título de “habilidades socioemocionais” e, com isso, reduzem as outras dimensões a um conjunto de comportamentos novamente adaptativos. (FREITAS, 2014, p. 1107)

Numa perspectiva ampliada, no espectro progressista, defende-se “uma matriz formativa que não restrita ao cognitivo mas que inclui, além desta dimensão, a formação para a criatividade, a afetividade, o desenvolvimento corporal e as artes e se expressa em uma organização do trabalho pedagógico que inclua as dimensões do conhecimento, da diversidade da cultura, da história, do trabalho e das lutas sociais pela transformação da sociedade” (FREITAS, 2014, p. 1107).

A substituição do vocabulário educacional pela linguagem de aprendizagem vem sendo apontada por Biesta (2012) há pelo menos três décadas. Considera que “[...] a linguagem - ou as linguagens - existente para a educação influencia em grande medida o que pode ser dito e feito, e também o que não pode ser dito e feito” (BIESTA, 2013, p. 30).

Para o autor, “A ascensão do que chamei “nova linguagem de aprendizagem” se manifesta, por exemplo, na redefinição do ensino como facilitação da aprendizagem e da educação como o provimento de oportunidades de aprendizagem ou de experiências de aprendizagem” (BIESTA, 2012, p.815).

Apesar da onipresença do conceito de aprendizagem no discurso atual da educação, é importante reconhecer que a nova linguagem da aprendizagem não é resultado de um processo particular ou da expressão de uma única agenda subjacente. É sobretudo o resultado de uma combinação de tendências e desenvolvimentos diferentes e, em parte, até contraditórios. Eles incluem: 1. a ascensão de novas teorias de aprendizagem que deram ênfase ao papel ativo dos alunos na construção do conhecimento e da compreensão e ao papel mais facilitador dos professores; 2. a crítica pós-moderna à ideia que os processos educacionais podem e devem ser controlados por professores; 3. a chamada explosão silenciosa da aprendizagem como evidenciada pelo enorme crescimento da aprendizagem informal na vida das pessoas e 4. a erosão do Estado de Bem-estar e a subsequente ascensão das políticas de educação neoliberais nas quais o indivíduo é priorizado em relação a outros fatores, o que muda a responsabilidade pela aprendizagem continuada (ao longo da vida) do provedor para o consumidor, transformando a educação de um direito, em um dever. (BIESTA, 2012, p.816)

Originalmente, Biesta (2012) denomina de learnification da educação o processo que configura o foco na aprendizagem e nos aprendizes que no contexto brasileiro foi traduzida por “aprenderismo, para expressar sua compreensão acerca da exacerbação da linguagem da aprendizagem no discurso educacional contemporâneo (GUILHERME; FREITAS, 2017, p. 71). A adoção nova linguagem da aprendizagem no âmbito da política educacional traz, entre outros problemas:

[...] que aprendizagem é basicamente um conceito “individualista”. Ele se refere ao que as pessoas, como indivíduos, fazem - mesmo que fundamentado em noções como aprendizagem colaborativa ou cooperativa. Contrapõe-se assim, nitidamente, ao conceito de “educação”, que sempre implica relação: alguém educando outra pessoa e a pessoa que educa tendo uma determinada noção de qual a finalidade de suas atividades. O segundo problema é que aprendizagem é basicamente um termo de processo. Ele denota processos e atividades, mas está aberto - se não vazio - em relação ao conteúdo e aos rumos. (BIESTA, 2012, p.816-817)

Para Freitas (2014), esse processo indicia o retorno das proposições da teoria do capital humano disseminada nos anos 1970. Portanto,

[...] foram revitalizadas pela crescente posição da educação como componente das fórmulas de aumento da produtividade e de competitividade das empresas no cenário internacional atual, à medida que a mão de obra barata foi se fazendo escassa no Brasil (ARBACHE, 2011), e os ganhos salariais médios foram aumentando e produzindo impactos nas taxas de acumulação de riqueza da classe empresarial (sem crescimento significativo da produtividade), em um ambiente político de predomínio das teses liberal conservadoras que atingiu todos os setores da vida social e, por conseguinte, a educação. (FREITAS, 2014, p. 1087)

Em entrevista concedida a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (CONTEE) em julho de 2019, Fernando Cássio ao ser questionado sobre o uso recorrente da terminologia “ideologia da aprendizagem” no cenário nacional, respondeu:

Quem criou este termo - e o usou em diversas entrevistas - foi o ex-ministro da Educação Rossieli Soares da Silva, atual secretário da Educação de São Paulo. Ele usou em tom de brincadeira quando, ao ser indagado se seria a favor de excrescências reacionárias como “Escola sem Partido” e espantalhos como “ideologia de gênero”, disse que a sua única “ideologia” seria a da aprendizagem. O curioso é que esse discurso da aprendizagem é realmente ideológico.

Depreende-se que enquanto ocupou o cargo de Ministro da Educação (06/04/2018 a 31/12/2018) e no período que exerceu o cargo de secretário de Educação Básica do MEC a partir de maio de 2016, atuou fortemente para a reforma do ensino médio e na aprovação da Base Nacional Comum Curricular da Educação Infantil e Ensino Fundamental, ambas em 2017. Portanto, enquanto secretário e ministro, Rossieli Silva incorporou nos documentos emanados pelo órgão federal.

Na mesma perspectiva, Freitas (2014, p. 1109) assevera que os reformadores empresariais ao conferirem ênfase no denominado “direito de aprender”, o fazem separadamente do demais direitos, o que na prática inviabiliza a garantia à educação, pois “o direito de aprender, depende de outros direitos não disponíveis no ato da aprendizagem por boa parte dos alunos: direito à habitação, à alimentação, à cultura, à saúde etc.” (FREITAS, 2014, p. 1109).

O proclamado direito à educação vira direito à aprendizagem e nos limites da escola, para em seguida virar direito ao básico, limitado à aprendizagem de leitura e matemática. Transmutado em direito à aprendizagem, ficam igualmente de fora todas as outras dimensões da formação que não seja a cognitiva, privilegiadamente leitura e matemática, e as demais disciplinas e áreas de formação assumem formas aligeiradas (por exemplo, projetos, áreas) onde o conteúdo é secundarizado para que o aluno possa focar na aprendizagem de leitura e matemática, ou seja, as disciplinas que caem nas provas. (FREITAS, 2014b, p. 55)

A imposição da BNCC via PNE (2014-2024) por meio de mecanismos mais sofisticados de indução e pactuação, fez com que os estados, municípios e distrito federal assumissem base nacional por força de lei (FREITAS, 2014, p. 1110). No bojo, inseriu-se a concepção de “direito à aprendizagem”.

A recente inserção dos “direitos de aprendizagem” no aparato normativo educacional brasileiro integra a ação política dos “conglomerados econômicos que tomam a escola como objeto de investimento capitalista, assim como nas ações das organizações ditas não-governamentais ligadas a grandes grupos econômicos” (SAVIANI, 2020, p.10).

A adoção de algumas terminologias integra um novo glossário para a educação e está articulado ao projeto educacional dos reformadores empresariais com o objetivo de “qualificar para as novas formas de organização do trabalho produtivo” (FREITAS, 2014b). Tem-se como estratégias:

1. Enfatizar a crise da educação e a necessidade de reformar a política educacional; 2. Uma ênfase no direito à aprendizagem com dupla limitação: a) fala-se de direito à aprendizagem e não de direito à formação humana, à educação; b) e restrita ao ambiente da escola, portanto isolada de importantes ligações com a vida. (FREITAS, 2014b, p. 51, grifos meus)

Sob a nova gramática educacional, com foco no direito à aprendizagem, reafirma-se um projeto educativo dual formalizado no país sob o Governo Vargas com uma proposta díspares para a classe trabalhadora e para elite. Nesta perspectiva, Freitas (2014b) assevera:

Com o discurso do direito restrito à aprendizagem do básico, perpetua-se por um lado a exclusão dos processos de formação humana e ao mesmo tempo libera-se a conta gota o conhecimento necessário para que a juventude dê conta de atender às demandas das novas formas de organização da produção. (FREITAS, 2014b, p. 51)

A ação política passa a articular dois elementos: o foco em duas áreas disciplinares (língua portuguesa e matemática) e direito à aprendizagem.

O apelo ao básico é visto como politicamente correto, pois tem um sabor de distribuição do conhecimento básico a todos, dando a impressão de uma política de garantia de direitos para todos. Porém, ao se examinar os sistemas voltados para a aprendizagem do básico proposto pelos reformadores empresariais, o que se verifica é que tal política não garante a aprendizagem de todos e de cada um. A escola tem a sua roupagem atualizada, mas as suas funções sociais são mantidas intactas: exclusão e subordinação. (FREITAS, 2014b, p. 52)

Ao forjar a centralidade do direito à aprendizagem, almeja-se obliterar as condições necessárias para que o direito à educação, consignado nos normativos nacionais, seja garantido. A esse respeito, Freitas (2014, p. 54) enfatiza que “tenta-se apagar a importância de outros direitos que são fundamentais para o exercício do direito à educação: o direito à alimentação, o direito à habitação, ao trabalho, à moradia, à renda”.

Conquanto se assemelhem, “direito à educação” difere substancialmente de “direito à aprendizagem”. Ademais expressam projetos educacionais diametralmente opostos. A adoção de “direito à aprendizagem” provoca o que Santomé (2013 apud CÓSSIO, 2014, p. 1574) denominou de “redefinições desmobilizadoras”, portanto, deforma a acepção originária.

A apropriação da linguagem progressista, busca entre outros motivos, confundir os educadores e ao mesmo tempo instalar um projeto educacional de viés conservador.

Considerando que o projeto de educação se materializa no currículo, a definição do currículo, seja da Educação Básica, seja do Ensino Superior, adquirem centralidade. Ao padronizar o currículo via BNCC para a Educação Básica e via BNC para as licenciaturas, afronta-se a autonomia das instituições e de seus profissionais, relegando à eles o papel de executores.

Para Cóssio (2014, p. 1582), “[...] os cursos de formação de professores estão na eminência de reformulações em seus currículos como consequência das reformas curriculares na educação básica”.

Para Ximenes (2012), as abordagens economicistas incidem diretamente na “definição de qualidade e responsabilização com base predominantemente em resultados de testes, reduzindo o direito à educação, e suas dimensões coletiva, igualitária e processual, à ideia de direito à aprendizagem, de viés fortemente individualista e centrado no resultado, capaz de criar oposições entre o estudante e o sistema, compreendidos como cliente e empresa. Nesta perspectiva, o direito público à educação torna-se o direito privado do consumidor de produtos educacionais” (XIMENES, 2012, p. 360).

O risco é que novas normas venham a provocar retrocessos na concepção de direito à educação como um direito humano, consolidando a redução de seu conteúdo à noção de direito à aprendizagem. Ou, usando outros termos, que sobre o impulso das legítimas demandas populares por direito à educação imponham-se concepções privatistas, tecnicistas e autoritárias. (XIMENES, 2012, p. 372)

Para Lima (2019, p. 01) as políticas educativas contemporâneas ancoram-se nas reformas gerencialistas em curso e estão sob uma espécie de “impregnação empresarial das escolas”, expressa pelo autor como: “[...] o processo de instilação de várias dimensões institucionais e organizacionais da empresa no novo capitalismo”.

Sem a impregnação empresarial da educação, nas suas diferentes áreas e dimensões, sem a capacidade de embeber as organizações escolares dessa espécie de caldo normativo e cultural, à margem do reforço da legitimidade e do prestígio social que resulta daquela impregnação, as próprias dinâmicas de privatização lato sensu ficariam consideravelmente diminuídas, incapazes de atrair responsáveis políticos de quase todos os quadrantes ideológicos e também de despertar adesões e processos de recontextualização pedagógica das agendas gerencialistas. A organização de tipo mecanicista e as novas hierarquias, o eficientismo e o produtivismo, as parcerias e os contratos, o vocacionalismo e o empreendedorismo pedagógico, os novos processos de seleção, avaliação e atribuição de prêmios, o elogio da meritocracia e da competitividade como princípios educativos, entre outros elementos, conhecem aplicações muito diferenciadas, mas generalizadas, sob os lemas da racionalização, modernização e qualidade da educação. (LIMA, 2019, p. 02)

Implicações do “direito à aprendizagem” para a formação de professores

Um dos aspectos relevantes das proposições implementadas no Brasil é sua convergência com reformas em outras partes do mundo, característica do tempo presente, refere-se à constituição de uma agenda global para a educação, tendo a atuação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) no cenário internacional e no contexto nacional o Todos pela Educação.

A aprovação de diversas “bases” contendo competências e habilidades demarcadas para a educação básica via BNCC e para a formação docente via BNC da formação inicial e da formação continuada rompe com a autonomia docente e configura o aspecto normativo desse processo.

Um dos polos de difusão dessas ideias pelo mundo localiza-se nos documentos emanados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que atua em escala mundial. Uma série de propostas acentuam mecanismos de controle sobre a formação e atuação do professor, seja de forma direta ou de forma indireta. Esse controle inicia-se com o estabelecimento do PISA (Programme for International Student Assessment) que incentiva a padronização do conteúdo a ser ensinado atrelado ao programa ou seus congêneres em nível nacional. Por outro lado, propõe medidas de flexibilização ou precarização dos vínculos de emprego dos professores defendendo que deixem de ter estabilidade e que seus salários sejam variáveis de acordo com os resultados dos alunos em testes de proficiência. No campo da formação de professores, difundem a necessidade de mudanças com a inserção de mais conteúdos práticos e menos conteúdos teóricos, impondo um caráter pragmatista e tecnicista da formação docente. Esse processo é acompanhado pelo apostilamento e pela padronização dos conteúdos passados aos estudantes, ao mesmo tempo em que favorecem processos de privatização e abertura do “mercado educacional” ao setor privado. Existe um discurso de eterna crise educacional, que impulsiona um processo contínuo de reformas que, entretanto, nem sempre se direciona aos problemas encontrados, mas na direção pré-definida que tem um uma concepção reduzida sobre o papel da educação e da escola.

Estas agências internacionais apoiam-se na meritocracia para justificar seu projeto societário:

[...] exercitam processos meritocráticos com alunos, professores e gestores que ajudam a fixar a meritocracia como forma de progredir na vida via empreendedorismo; desmoralizam o magistério como forma de fragilizar a sua articulação política e apresentam os sindicatos como responsáveis pelo atraso da educação, defensores dos direitos dos professores e não defensores do direito de aprender do aluno; desenvolvem processos de avaliação em larga escala censitários com a finalidade de alavancar processos de responsabilização da escola ignorando os fatores sociais que dificultam a ação da escola; propõem e influenciam a elaboração de leis que responsabilizem as escolas e os gestores; financiam fortemente as suas ideias via fundações e iniciativa privada; ampliam o tempo escolar destinado a ensino à distância online nas escolas como forma de melhor estabelecer controle sobre o ensino. (FREITAS, 2014b, p. 53)

A defesa da aprendizagem e da educação ao longo da vida são expressos em vários documentos produzidos pelas agências internacionais, notadamente pela União Europeia. Conforme Lima (2010, p. 41), o “foco é a adaptação funcional dos aprendentes individuais à empregabilidade, flexibilidade e competitividade económica, no quadro da ‘sociedade da aprendizagem’ e da ‘economia do conhecimento’”.

No contexto brasileiro o modelo de “formação para a empregabilidade” passa a comparecer nos normativos a partir da Reforma do Ensino Médio calcada na premissa que os jovens poderiam escolher o itinerário formativo e mais detidamente com a aprovação da BNCC para a Educação Infantil e Ensino Fundamental. Assim, “a ideia de escolha das oportunidades de aprendizagem passou a ser central, fruto de estratégias e racionalidades individuais, típicas de clientes e de consumidores de uma ‘indústria de prestação de serviços’” (LIMA, 2010, p. 45).

[...] estamos a observar uma mudança de paradigma nas políticas educativas, baseada na transição do conceito de educação para o conceito de aprendizagem [...]. Em primeiro lugar porque o sistema económico e o sistema educativo continuam a revelar-se os principais agentes indutores da transição paradigmática, a qual não ocorre espontaneamente ou à margem de agendas políticas e objectivos de controlo, mesmo se esse controlo se apresenta, por vezes, difuso ou remoto. E isto, mesmo aceitando que o Estado-nação perdeu protagonismo e que novas formas de regulação e meta-regulação de tipo supranacional têm emergido. Em segundo lugar porque um sistema controlado individualmente pelos aprendentes pressupõe não só sujeitos autónomos, mas também dotados de racionalidade estratégica, talvez mesmo olímpica, como criticaria Herbert Simon (1957), para desenhar rotas individuais óptimas de aprendizagem, detendo os recursos indispensáveis à construção dos agora denominados “portefólios de competências”. (LIMA, 2010, p. 45)

Lima (2010) identificou há mais de uma década, no contexto europeu, o fenômeno que agora está sendo transposto para o Brasil, ou seja, a sobreposição do conceito de educação pelo conceito de aprendizagem ao longo da vida. Portanto, passa a comparecer nos normativos nacionais expressões como “direito à aprendizagem”, “qualificações”, “competências” e “habilidades”. Trata-se de uma “subordinação mecânica perante a sobredeterminação económica, hoje simbolizada pelo novo paradigma de aprendizagem ao longo da vida”.

Nesta perspectiva, “a narrativa educacional ultraliberal reduz o alcance do direito à educação, elaborando um falacioso “direito a aprender”, que reduz o trabalho do professor e a própria pedagogia” (CARA, 2019, p. 33). A dimensão econômica sobrepõe-se a dimensão educacional, expressa na formulação “Se para os ultraliberais a educação é antes um insumo econômico e, depois, pode ser uma oportunidade de negócios, para os ultrarreacionários é uma estratégia de dominação política. (CARA, 2019, p. 33-34)

Duarte (2018) defende a liberdade como princípio estruturante do currículo escolar, proposta que está em polo diametralmente oposto ao consignado na BNCC e na BNC. Em outro texto (2012), Duarte em parceria com Saviani ressaltam que “a restrição ao acesso ao conhecimento científico constituem-se em uma das principais contradições presentes na educação escolar pública”.

Para Carneiro (2019) a localização da adoção do “ideário do aprender” no campo pedagógico situa-se no início da década de 1990, estendendo-se até o tempo presente, com “políticas educacionais repentinamente apagaram toda uma compreensão relacional de ‘ensino-aprendizagem’ em nome da ‘aprendizagem’” (CARNEIRO, 2019, p. 46). O autor questiona:

[...] esse “eclipse” sobre o ensinar não apaga também os sujeitos da educação que outrora viviam em tensão produtiva com o conhecimento. Haja vista, atualmente, o professor como “reprodutor de apostilas” ou o estudante avaliado por metas curriculares alheias às dinâmicas da sala de aula. A via dupla dos processos de ensino-aprendizagem se torna via de mão única da aprendizagem e, nessa direção, questionamos também como passaram a circular as experiências e as vidas nesse corredor. O que resta do educar, quando se retira o ensinar da circulação? (CARNEIRO, 2019, p. 46-47)

Para Carneiro (2019, p. 47), a sobreposição do aprender em detrimento do educar atende os interesses econômicos, ou seja, “Em geral, são os defensores de um novo ambiente escolar, adaptado às exigências tecnológicas e à autonomia de seus estudantes”. Assevera o autor: “[...] quando a economia ultrapassa as fronteiras e começa a organizar os modos de gerenciamento de todas as esferas da vida, como a educação, imprime-se uma lógica de relações avessas ao próprio educar e aos desafios que uma cultura aberta e múltipla propicia”.

Explica-nos, o autor que a ato educativo é atravessado por uma “alteridade radical”, ou seja, é antecedida pelo “encontro daquele que sabe com o ignorante, de um mundo privado e um mundo público, e mesmo das experiências que marcam cada subjetividade atravessada pelo espaço escolar”. Igualmente, a alteridade radical faz-se presente na economia “do proprietário com o não proprietário, do produtor com o consumidor”

Carneiro, (2019) destaca que a ideia de direito à aprendizagem remete à prática econômica do contrato, em que se estabelece uma relação entre indivíduos para a prestação de um serviço. “Tais serviços prestados, inclusive, poderão ser medidos por constantes avaliações que produzem rankings e determinam o destino de docentes e escolas, seja no céu, seja no inferno" (CARNEIRO, 2019, p. 48).

Ao descolar a polaridade do ensino para uma “ideologia da aprendizagem perde-se um caráter importante da vida escolar. Se, por um lado, “na aprendizagem, reforçam-se as metas e o desempenho dirigidos diretamente ao indivíduo em processo de aprender”, por outro lado, o ensino “carrega consigo o ‘signo’ (in-signare), a ‘designação’. Movimento complementar àquele que ‘aprende’ algo, o ensino propicia a possibilidade de marcar no mundo aquilo que passaria por estranho e atentar sobre isso” (CARNEIRO, 2019, p. 51-52).

Avelar (2019) destaca que visões opostas permeiam diferentes dimensões, em uma síntese presente no embate entre politização e despolitização. Na política e na gestão isso está presente no conflito “entre a gestão democrática (como uma gestão a serviço da participação de todos e da mudança do entorno da escola) versus a gestão “técnica” ou empresarial (focalizada em processos e técnicas, voltada à eficiência e ao alcance de metas)”. Na pedagogia o mesmo conflito está presente “entre uma formação para a liberdade e a compreensão do entorno social versus uma formação centrada em habilidades e competências aplicáveis ao trabalho” (AVELAR, 2019, p. 94).

A hipótese que percorre o presente trabalho assevera que no interior do Golpe jurídico-parlamentar-empresarial-midiático foi inserida nos normativos sobre formação de professores a gramática do aprenderismo que assume a BNCC como epicentro das políticas docentes. Essa hipótese é comprovada a partir da análise dos normativos:

  1. a) Parecer CNE/CP nº 22/2019 - Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação);

  2. b) BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno. Resolução CNE/CP nº 2, de 20 de dezembro de 2019. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação);

  3. c) BRASIL. Parecer CNE/CP nº 14/2020. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica e Base Nacional Comum para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica (BNC-Formação Continuada). Aprovado em: 10/7/2020.

  4. d) BRASIL. Resolução CNE/CP nº 1, de 27 de outubro de 2020. Dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Continuada de

  5. Professores da Educação Básica (BNC-Formação Continuada).

O Parecer CNE/CP nº 22/2019 que dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação) contém 51 páginas e faz oito menções a expressões correlatas ao “direito de aprendizagem”: aprendizagens essenciais, direito de aprender dos licenciandos e direito de aprender dos ingressantes.

A BNCC inaugura uma nova era da Educação Básica em nosso país. Pela primeira vez na história, logrou-se construir, no Brasil, um consenso nacional sobre as aprendizagens essenciais, que são consideradas como direito de todos e, portanto, devem ser, ao longo de todas as etapas e modalidades, asseguradas na Educação Básica. (a) formação docente para todas as etapas e modalidades da Educação Básica como compromisso de Estado, que assegure o direito das crianças, dos jovens e adultos a uma educação de qualidade, mediante a equiparação de oportunidades que considere a necessidade de todos e de cada um dos estudantes; (c) respeito pelo direito de aprender dos licenciandos, e compromisso com a sua aprendizagem, como valor em si mesmo e como forma de propiciar experiências de aprendizagem exemplares, que o professor em formação poderá vivenciar com seus próprios estudantes no futuro; (d) reconhecimento do direito de aprender dos ingressantes, ampliando as oportunidades de desenvolver conhecimentos, habilidades, valores e atitudes indispensáveis para o bom desempenho no curso e para o futuro exercício da docência. (BRASIL, 2019a)

A análise do Parecer CNE/CP nº 22/2019 indicia, portanto, um processo que “ao reduzir relações educacionais complexas a direitos de aprendizagem, impera o contrato. Exposto a um cardápio curricular, estudantes participam da máquina de conteúdos alheios à sua vida” (CARNEIRO, 2019, p. 50). Essa espécie de relação contratual ampara-se no controle via avaliação e via controle docente:

Docentes são cobrados por desvios do roteiro e se tornam coadjuvantes na elaboração dos conteúdos e protagonistas na hora da avaliação dos resultados: como o vendedor apreciado pelos resultados do mês. Com um cardápio curricular distante da tensão ensino-aprendizagem, desencarnado de seus sujeitos escolares, a gramática da aprendizagem se realiza apenas quando reiterada nas constantes avaliações de resultados. Reduzidas à matemática e à língua portuguesa, as avaliações são verdadeiros rituais que organizam o ritmo das escolas, que sempre vivem a expectativa do próximo teste, dirigido por metas de gabinete tipicamente descoladas do dia a dia escolar. No contexto das aprendizagens, assim, as avaliações de desempenho são a única maneira de manter vivo aquilo que já é processo morto. (CARNEIRO, 2019, p. 50)

Acerca da hipótese que toma a BNCC como epicentro das políticas docentes no período pós-golpe de 2016 também encontra abrigo no Parecer CNE/CP nº 22/2019 ao explicitar no Artigo 6º “A política de formação de professores para a Educação Básica, em consonância com os marcos regulatórios, em especial com a BNCC”. Ao buscarmos neste normativo a expressão “BNCC”, encontramos 74 referências, corroborando a centralidade imposta da BNCC para a formação de professores. Assim, há uma relação estreita entre a BNCC e a linguagem da aprendizagem em todo o documento, expressa também na determinação de competências e habilidades.

No caso brasileiro, a construção de referenciais para a formação docente precisa dialogar com as dez competências gerais da BNCC, bem como com as aprendizagens essenciais que a BNCC garante aos estudantes da Educação Básica, em consonância com a Resolução CNE/CP no 2/2017. Vejamos: Na perspectiva de valorização e da sua formação inicial e continuada, as normas, os currículos dos cursos e programas a eles destinados devem adequar-se à BNCC, nos termos do § 8○ do art. 61 da LDB, devendo ser implementados no prazo de dois anos, contados da publicação da BNCC, de acordo com o art. 11 da Lei nº 13.415/2017. (BRASIL, 2019a)

O referido normativo explicita ainda que a BNCC traduz um novo paradigma para a educação básica e para a formação de professores. Entendemos que esse paradigma se assenta na linguagem da aprendizagem.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação) foram formalizadas por meio da Resolução CNE/CP nº 2, de 20 de dezembro de 2019. Este normativo tem 20 páginas e igualmente ao ParecerCNE/CP nº 22/2019 incorpora o aprenderismo, trazendo a inserção dos termos “direito à aprendizagem” e “direito de aprendizagem”.

Em consonância com o Parecer CNE/CP nº 22/2019 centra a formação de professores na BNCC, expressão mencionada 28 vezes no documento, a exemplo de: “os currículos dos cursos da formação de docentes terão por referência a Base Nacional Comum Curricular (BNCC-Educação Básica)” ao recorrer à LDB/1996 e “estabelece o prazo de 2 (dois) anos, contados da data de homologação da BNCC-Educação Básica, para que seja implementada a referida adequação curricular da formação docente”, amparando-se na Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 (Reforma do Ensino Médio).

Expressões correlatas ao descritor “aprendizagem” foram mencionadas 62 vezes na Resolução CNE/CP nº 2, de 20 de dezembro de 2019, sendo: ambientes de aprendizagem, aprendizagem dos estudantes, direito de aprender dos licenciandos, compromisso com a sua aprendizagem, experiências de aprendizagem dos professores em formação, processos progressivos de aprendizagem, aprendizagem colaborativa, direitos de aprendizagem, avaliações da aprendizagem, engajamento na aprendizagem do estudante, locais de aprendizagem, direitos de aprendizagem, aprendizagem ativa, efetivas aprendizagens.

Em 2020 foi aprovado o Parecer CNE/CP nº 14/2020 que versa sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica e Base Nacional Comum para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica. Documento composto por 37 páginas, traz em seu bojo 12 menções à BNCC e “direito à educação dos alunos” e “direito à educação de todos os alunos” em detrimento de direito à educação. A expressão aprendizagem e derivados comparece 133 vezes no texto normativo adjetivada igualmente aos normativos da formação inicial de 2019.

A Resolução CNE/CP nº 1, de 27 de outubro de 2020 dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica (BNC-Formação Continuada) tem 13 páginas e menciona 65 vezes termos correlatos à aprendizagem, notadamente, “direito à educação de todos os alunos”: zelar pela aprendizagem dos alunos; aprendizagens essenciais, processos de aprendizagem, aprendizagem significativa dos estudantes, entre outros. Elemento novo não verificado nos demais normativos, reside na inserção de um capítulo denominado “Da formação ao longo da vida”, expressa no Artigo 11 e no Artigo 12: “As políticas para a Formação ao Longo da Vida, em Serviço, implementadas pelas escolas, redes escolares ou sistemas de ensino, por si ou em parcerias com outras instituições, devem ser desenvolvidas em alinhamento com as reais necessidades dos contextos e ambientes de atuação dos professores” (BRASIL, 2020b). A esse respeito, Lima (2007, p.22) ressalta “a formação e a aprendizagem ao longo da vida chegam a ser objeto de um tão profundo processo de instrumentalização com vista à eficácia económica e à performatividade competitiva (...), pouco ou nada se assemelhando a formas e processos de educação”.

Sem a pretensão de um levantamento extenso sobre o uso desse termo, pode-se constatar no arcabouço normativo aqui apresentado que sua presença é uma constante e passou a fazer parte da nova gramática educacional brasileira.

Considerações Finais

Neste texto, procurou-se apresentar um conjunto de reformas educacionais em curso que remontam proposições implementadas na década de 1990, no bojo do avanço neoliberal sobre as polícias educacionais brasileiras.

Neste contexto mais amplo, amplamente tratado pela literatura da área, destaca-se a substituição do termo “direito à educação” pela acepção “direito à aprendizagem”, com foco especial nos normativos sobre a formação de professores aprovados com a justificativa de adequação à BNCC.

Para além da questão semântica, a troca dos termos carrega concepções diametralmente opostas sobre os objetivos educacionais e, consequentemente, sobre os projetos societários subjacentes. Configura-se, portanto, como mais uma expressão das proposições neoliberais para as políticas educacionais, materializadas nas ações dos reformadores empresariais da educação que, desde o Golpe de 2016, tem atuado de forma intensa no interior do CNE para materializar na legislação da educação um conjunto normativo articulado e coerente com o projeto de desmonte do Estado e da perspectiva de uma educação pública, estatal que garanta uma educação ampla e de qualidade, como um direito universal de todos brasileiros.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 17 de Março de 2021; Aceito: 22 de Abril de 2021

Andréia Nunes Militão

Doutora em Educação pela UNESP (2015). Professora Adjunta da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). Docente vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa Políticas Educacionais e Formação de Professores (GEPPEF). Vice-presidente da Região Centro-Oeste da Anfope (Gestão 2021-2023).

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