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Revista Práxis Educacional

versión On-line ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.17 no.46 Vitória da Conquista jul./sept 2021  Epub 24-Dic-2021

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v17i46.8850 

Artigos

O PEDAGOGO, DE CLEMENTE DE ALEXANDRIA: TRAÇOS SINGULARES DA EDUCAÇÃO CRISTÃ NO MUNDO ANTIGO

THE PEDAGOGUE, BY CLEMENTE DE ALEXANDRIA: UNIQUE FEATURES OF CHRISTIAN EDUCATION IN THE ANCIENT WORLD

EL PEDAGOGO, DE CLEMENTE DE ALEJANDRÍA: CARACTERÍSTICAS ÚNICAS DE LA EDUCACIÓN CRISTIANA EN EL MUNDO ANTIGUO

Edmilson Menezes1 
http://orcid.org/0000-0001-7173-6208

Maria Lenilda Caetano França2 
http://orcid.org/0000-0001-8205-3795

1Universidade Federal de Sergipe - Brasil - ed.menezes@uol.com.br

2Universidade Federal de Sergipe - Brasil - lenildaufs@gmail.com


Resumo:

O artigo buscar analisar a perspectiva educacional que se gesta na antiguidade cristã, de forma a encontrar nos conceitos de pedagogo e de pedagogia um caso capaz de exemplificar a influência, mas, também, o deslocamento, do alcance do modelo pedagógico grego naquela matriz. Neste sentido, Clemente de Alexandria e sua obra O Pedagogo são estratégicos para entendermos as diretrizes inovadoras que orientaram um dos modos mais exitosos da formação do homem cristão, a saber, a pedagogia da conversão. Neste sentido, Clemente de Alexandria é, sem embargo, um capítulo relevante na história da educação cristã, pois foi um dos primeiros a conceber o cristianismo como um programa completo de formação e como um método de aprimoramento moral coroado por uma genuína concepção de pedagogia e de pedagogo.

Palavras-chave: Clemente de Alexandria; Pedagogo; Educação na antiguidade cristã.

Abstract:

The article seeks to analyze the educational perspective that emerges in Christian antiquity, in order to find in the concepts of pedagogue and pedagogy a case capable of exemplifying the influence, but also the displacement, of the reach of the Greek pedagogical model in that matrix. In this sense, Clement of Alexandria and his work The Pedagogue are strategic to understand the innovative guidelines that guided one of the most successful ways of the formation of the Christian man, namely, the pedagogy of conversion. In this sense, Clement of Alexandria is, nevertheless, a relevant chapter in the history of Christian education, as he was one of the first to conceive of Christianity as a complete training program and as a method of moral improvement crowned by a genuine conception of pedagogy and pedagogue.

Keywords: Clement of Alexandria; Pedagogue; Education in Christian antiquity.

Resumen:

El artículo busca analizar la perspectiva educativa que se genera en la antigüedad cristiana, para encontrar en los conceptos de pedagogo y pedagogía un caso capaz de ejemplificar la influencia,

pero también el desplazamiento, del alcance del modelo pedagógico griego en esa matriz. En este sentido, Clemente de Alejandría y su obra El Pedagogo son estratégicos para comprender las pautas innovadoras que orientaron uno de los caminos más exitosos de la formación del hombre cristiano, a saber, la pedagogía de la conversión. En este sentido, Clemente de Alejandría es, sin embargo, un capítulo relevante en la historia de la educación cristiana, ya que fue uno de los primeros en concebir el cristianismo como un programa completo de formación y como un método de superación moral coronado por una concepción genuina de la cultura cristiana. pedagogía y pedagoga.

Palabras clave: Clemente de Alejandría; Pedagogo; Educación en la antigüedad cristiana.

“A revelação é para o gênero humano o que a educação é para o indivíduo. A educação é a forma de revelação dada ao indivíduo; revelação é a forma de educação que foi dada ao gênero humano” (Lessing, Die Erziehung des Menschengeschlechts, 1780).

1. A necessidade de uma educação cristã: filosofia, preparo e tarefa pedagógica

Euntes ergo docete omnes gentes” (Mt 28,19)1. Essa passagem do Novo Testamento resume uma vocação intimamente atrelada ao cristianismo. Grosso modo, a teologia do Ocidente concebeu na íntegra a história como história de uma educação gerida, em todos os seus pormenores, pela providência divina. Nas palavras de Orígenes (1862, p.1195-1198), Deus “quis” a liberdade do homem; Ele só pode operar sobre a liberdade humana por meio da educação, granjear o homem, progressivamente, sob um longo período de tempo, durante gerações inteiras, e não sem infortúnio, para divinizá-lo. Outro grande pensador cristão, Eusébio de Cesareia (1857, p. 66-67), compreende a história, em suas diferentes esferas, como o processo de reparo da natureza humana decaída, como história da ação pela qual Deus se revela ao homem, o educa (e corrige), ação sabiamente adaptada ao incremento da humanidade. Com efeito, não bastasse o espírito pedagógico que anima a história concebida de forma cristã, é preciso acrescentar a esse caráter essencial o fato de o cristianismo estruturar-se a partir de uma literatura. A Igreja dos primeiros tempos possuía um sentido estrito e profundo para a fórmula educação cristã: aborda-se, essencialmente, uma educação religiosa, ou seja, iniciação dogmática (em quais verdades é imperioso crer) e formação moral (qual a conduta a ser seguida por um cristão). Enquanto sagrado e transcendente, o ensino não poderia ser ministrado na escola profana, mas na e pela Igreja, fonte de onde emanariam a participação na comunhão pela fé, a sã disciplina e a orientação exemplar inspirada nas Escrituras.

No entanto,

[...] se a educação cristã, no sentido estrito, não se enquadra no domínio da escola, jamais se deve concluir que a Igreja se desinteressa de certa cultura escolar: para poder garantir não apenas seu ensinamento, mas também o exercício litúrgico elementar, a religião cristã exige obrigatoriamente ao menos um mínimo de cultivo letrado. O cristianismo é uma religião erudita e não pode existir em um contexto de barbárie. (...) é uma religião do Livro: ela se apoia sobre uma Revelação escrita, os Livros sagrados da religião de Israel, que ela agrupa e reivindica para si e aos quais ajunta aqueles do Novo Testamento, à medida que são compostos e lhe são reconhecidos o valor canônico de Γραφή (Escritura). (MARROU, 1948 II, p. 129).

Mais avançamos na história, mais o valor da ocorrência escrita se afirma na vida ordinária da Igreja. A tradição, cuja importância só se avoluma, não é tão-somente uma simples agregação de doutrinas, de interpretações e de usos transmitidos de forma oral; ela é incorporada no feitio de uma literatura constituída por regulamentos, orientações disciplinares, mandamentos espirituais, apologias, polêmicas e dogmas. É imprescindível olhar o texto de perto, estar atento à pontuação, às divergências entre uma versão e outra, aos erros de leitura, e se inquietar a propósito do estilo apresentado pela redação. “Busquemos os modelos desses diversos estilos nesses escritores cristãos que, pela leitura dos autores sacros, adquiriram em alto grau a ciência das coisas divinas e salutares e a comunicaram à Igreja.” (AGOSTINHO, 1865, L IV, Cap.21, 45, p.111). Agostinho reconhece que Deus reservou uma palavra aos homens; ela encontra-se inteira em seu conteúdo na forma escrita e à medida que avançamos na compreensão, pelo estudo, da mensagem o horizonte se amplia revelando outros desafios. (JERPHAGNON, 2002, p. 67). Como se vê, estamos perante um trabalho no qual não existe guarida para o improviso e a espontaneidade, há que se ter empenho e conhecimento mínimo, por exemplo, no caso da apreciação dos escritos bíblicos, de línguas que extrapolam o idioma vernáculo.

O conhecimento dos signos apropriados depende principalmente daquele das línguas. Propomos aqui instruir os que falam a língua latina; diremos a eles que, ante a compreensão das Escrituras, devem conhecer mais duas outras línguas, a grega e a hebraica, para poderem usar os textos originais, todas as vezes em que a infinda variedade de intérpretes latinos gerar apenas dúvida e incerteza. Além disso, em nossos Livros Sagrados, existem certas expressões hebraicas que nunca foram traduzidas, como Amen, Alleluia, Racha, Hosanna e outras. (AGOSTINHO, 1865, L II, Cap.11, 16, p.42).

A leitura apresenta-se como explicitação e hermenêutica. Ela se explicita em movimentos sucessivos, no curso dos quais lança, recusa e ultrapassa etapas ligadas umas às outras numa ordem argumentativa. Ela ainda integra o herméneuein, o interpretar; é herméneus, arauto, intérprete; ligada à hermenêutica, constitui, originalmente, uma arte de anunciar, interpretar e esclarecer; equivale na filosofia a uma teoria geral da interpretação. A noção correta dos sinais, o reconhecimento do significado incerto e ambíguo que um texto pode oferecer (incerteza e ambiguidade do significado, nos termos ajustados, devem-se à maneira de dividi-lo na pronúncia ou ao seu duplo significado), a continuação e a sequência do escrito, a comparação entre os diferentes intérpretes, o estudo da língua da qual o documento foi traduzido, a utilização de regras que devem ser usadas para reconhecer quando uma frase é figurada e em que acepção ela deve ser entendida, são os meios para solucionar as dificuldades de uma leitura válida das Escrituras.

Assim, das exigências as mais imediatas de piedade às ambições as mais elevadas do pensamento religioso, tudo conspira para exigir dos cristãos certo tipo de cultura (e, portanto, uma educação), na qual o elemento letrado ocupará uma posição decisiva. Parece natural que os primeiros cristãos, intransigentes em sua vontade de ruptura em relação ao mundo pagão - do qual eles não cessam de denunciar os erros e as deformidades -, tenham, em consequência, criado para seu uso uma escola de inspiração religiosa distinta e rival da escola pagã do tipo clássica. O fato é notável, inédito, ao menos no âmbito da civilização helenística e romana. Portanto, criar um ensino voltado à vida religiosa e cujos programas, em particular, seriam centrados no estudo dos Livros santos não era algo inconcebível: os cristãos do Império romano traziam diante dos olhos o modelo das escolas judias que tinham acabado de se organizar. (MARROU, 1948 II, p. 130).

Entre os grandes nomes da tradição teológica da antiguidade cristã encontra-se o de Clemente de Alexandria. Tito Flávio Clemente, filho de pais gentios, nasceu provavelmente em Atenas, em meados do século II. Convertido ao cristianismo, percorreu a Grécia, a Ásia menor e a Palestina. Estudou com diversos professores, até unir-se a Panteno, em Alexandria. Após a morte do mentor, sucede-o na direção da escola catequética ali existente. De Atenas herdou o interesse pela filosofia, que teria feito dele um dos pioneiros do diálogo entre razão e fé na tradição cristã. Tempos depois, durante as perseguições dos anos 202 e 203, retira-se de Alexandria e refugia-se em Cesaréia, onde falece por volta de 215. À cidade de Alexandria, sede do cruzamento entre culturas diversas, cabe o ineditismo de haver sediado a primeira instituição cristã de ensino superior. O local reúne as condições para a formação de uma escola deste tipo.2 Um meio incomparável de intensa atividade doutrinária judia e cristã, embora só tenha conhecido uma instituição teológica distinguida no tempo de Orígenes, que centralizou o ensinamento oficial da catequese (antes desorganizada por conta das perseguições).

Na base, uma sólida formação secundária, cujo programa é sempre definido pelo ciclo das artes liberais, literárias e matemáticas; é o arremate necessário ao estudo da filosofia que preparava o caminho das investigações propriamente religiosas apoiadas sobre um estudo aprofundado das Escrituras. (MARROU, 1948 II, p. 145).

Segundo Ratzinger (2014, p.10), no seu conjunto, a catequese clementina acompanha passo a passo os caminhos do catecúmeno e do batizado para que, secundado pela razão e pela fé, alcancem um entendimento íntimo da Verdade associada ao Verbo, ao Logos de Deus. Só este conhecimento traduz a verdadeira gnose. É o edifício arquitetado pela razão sob o impulso de um princípio sobrenatural. A própria fé constrói a correta filosofia, isto é, a verdadeira conversão na via a ser percorrida durante a existência. Enganam-se os que acreditam ser a filosofia desnecessária para os cristãos com o argumento de que os pagãos são seus admiradores e aos seguidores do Cristo resta apenas o refúgio da fé. Não haveria motivo, pensam alguns, para um cristão ocupar-se de elementos ou temas estranhos à fé. Todavia, de acordo com Clemente, a filosofia como tal é boa; é um instrumento, embora parcial, para a descoberta da verdade. Ligada à sabedoria, uma faculdade suprema que nada mais é do que a ciência dos bens de Deus e do homem, a filosofia enquanto passagem para a virtude

[...] não é, portanto, obra do vício. Resta apenas remontar sua origem a Deus, cuja bondade é o sublime privilégio. Tudo o que Deus dá é dado e recebido na ordem do bem. Além disso, a filosofia não era apanágio dos ímpios; seus detentores eram os mais virtuosos e os mais ilustres entre os gregos: nova prova de que ela emana de uma divina Providência que distribui a cada um o que lhe é próprio segundo seu mérito. Foi, portanto, com profunda sabedoria que a lei brilhou para os Judeus, e a filosofia para os Gregos, até o advento do Senhor. Desde então, o chamado tem sido para todos, sem exceção. Ela convida as pessoas a se congregarem na doutrina vinda da fé; nova nação consagrada à justiça e unida sob o mesmo Deus, comum a gregos e bárbaros, verdadeiro soberano de todos os homens. (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, 1857 (b), T IX, L VI, cap.17, p. 391).

Embora a filosofia não tenha nos dado o perfeito conhecimento de Deus, ela é, no entanto, uma correção para as almas. Os filósofos gregos não conheciam o Deus a quem nomeavam, pois não Lhe prestavam a conveniente adoração, e, dessa forma, ignoravam o seu conhecimento. Ora, a ignorância caracteriza-se como uma condição na qual não há uma regra certa para medir a verdade. Por isso, não se pode achar estranho que a própria filosofia tenha sido dada pela bondade soberana a fim de servir como uma introdução à perfeição oriunda da Boa Nova; o pensamento não deve se recusar a entender o conhecimento pagão como um dos caminhos que leva à verdade. As Escrituras já nos lembraram: “sed et capilli capitis vestri omnes numerati sunt.”3

Nossos movimentos mais leves são registrados. Por que a filosofia também não deveria ter seu valor? Sansão recebeu uma força que residia em seus cabelos, a fim de convencê-lo de que as artes supérfluas, que têm por objeto a vida material e que, morrendo com o corpo, são depositadas no mesmo túmulo, após a separação da alma, não poderiam ser adquiridas sem a ajuda vinda do alto. (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, 1857 (b), T IX, L VI, cap.17, p. 383).

Assim, os filósofos, experimentados pelo espírito da inteligência, se esforçaram laboriosamente, entregaram-se não a uma parte, mas a toda a filosofia, depois de terem despojado por completo o orgulho e se deixarem guiar pelo amor da verdade, da qual testemunharam; aproveitaram-se de tudo o que as doutrinas heterodoxas possuíam do bem para chegar à compreensão dessa bondade divina e inefável que leva cada natureza, dentro dos limites do possível, ao que é melhor para ela; tiveram, então, trato com os gregos, com os bárbaros; esses filósofos passaram, em virtude desse exercício comum, para o domínio da fé e do domínio da fé para o domínio da argúcia particular. Tendo a verdade como ponto de apoio, adquiriram uma faculdade mais ampla de investigação e progresso. A partir daí, o aprendizado obtém todos os seus deleites. “Ansiosos por saber, eles andam com grandes avanços nos caminhos da salvação. É por isso que se diz nas Escrituras que o espírito de entendimento foi dado por Deus aos obreiros da arca.” (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, 1857 (b), T IX, L VI, cap.17, p. 386). A fé em Cristo, que pretende restringir o alcance da razão humana, não existiu antes do Advento, quando tínhamos apenas a Lei judaica e a filosofia grega. A Lei era, sem dúvidas, uma expressão da vontade divina. No Antigo Testamento estava a preparação do Novo, e este é o acabamento e a complementação daquele; existe, por conseguinte, uma ausência de solução de continuidade na Revelação divina. Os gregos, a despeito de todas as diferenças, encontravam-se numa situação análoga. É indiscutível: não possuíam nem a Lei nem a fé; a verdade lhes vinha tão-somente do uso da razão natural. “Cum enim gentes quæ legem non habent naturaliter quæ legis sunt faciunt ejusmodi legem non habentes ipsi sibi sunt lex4, diz São Paulo. A razão era a sua medida e os preparava para a recepção do Evangelho. Disso dão prova, sem grandes dificuldades, a leitura de Platão e dos antigos poetas. A razão natural teve também seus arautos, ou seja, os filósofos que, ao seu modo, depuseram a favor da verdade. Não eram interlocutores diretos de Deus; mas nem por isso Ele deixou de conduzi-los indiretamente pela razão - indiscutível manifestação da luz divina.

De forma que a razão era para os pagãos o que a Lei era para os judeus. Trata-se de uma consequência lógica de sua [de Clemente] convicção de que a filosofia grega exerceu a função de ‘educar’ ou preparar a humanidade para o cristianismo. (BOEHNER; GILSON, 2012, p. 36).

Clemente enxerga nos filósofos antigos uma espécie de cristãos antes do Cristo e, por consequência, o cristianismo como uma continuidade natural da filosofia grega. A história do conhecimento da verdade é comparada ao curso de duas grandes estradas. Uma nasce na Lei revelada aos judeus no Antigo Testamento, e a outra, na inteligência; seus caminhos confluem numa terceira via, a saber, a Revelação cristã: “Assim como os judeus tiveram a Lei, os gregos foram educados pela filosofia para o Cristo. A filosofia é, destarte, algo preparatório; ela abre o caminho para aquele que é chamado à perfeição por Cristo.” (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, 1857 (b), T VIII, L I, cap.5, p. 718-719). Em outra passagem, Clemente reforça o mesmo raciocínio: “Como dissemos, a filosofia grega é para a alma uma purgação preliminar e uma introdução preparatória à admissão de fé. A verdade então constrói o conhecimento sobre esses fundamentos.” (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, 1857 (b), T IX, L VII, cap.3, p. 426). A filosofia não é produto que se baste a si próprio e tenha valor em si mesmo; existe apenas por meio dos frutos retirados da ciência, porquanto a ciência das coisas descobertas pelo espírito do homem fortalece em nós a confiança de que estamos na verdade. As sementes da ciência foram escondidas de propósito e exigem um trabalho de combinação e elaboração a fim de justificarem algo maior. A sabedoria divina, para o nosso bem, revela seu poder em várias ocasiões e de várias maneiras, através das artes, através da ciência, através da fé, através da profecia. Toda sabedoria, então, vem do Senhor, e está com ele por todos os séculos.

Ut audiat sapientiam auris tua inclina cor tuum ad noscendam prudentiam; si enim sapientiam invocaveris et inclinaveris cor tuum prudentiae, si quaesieris eam quasi pecuniam et sicut thesauros effoderis illam, tunc intelleges timorem Domini et scientiam Dei invenies5,

[...] proclama o Livro dos Provérbios. Podemos, deste jeito, distinguir a sabedoria doutrinal da ciência filosófica; uma ciência que, em muitas ocasiões, aparece em termos pomposos e magníficos, contudo, se a procurarmos com cuidado, se avançarmos no conhecimento da verdadeira adoração e crescer em piedade para com Deus, dela conseguimos retirar um bem subordinado. A filosofia encontra-se dependente do atilamento que reconhece os deveres impostos pela piedade, pois aqueles a quem a filosofia esclarece encontram ajuda oculta reservada como um tesouro; é isso que os leva à verdadeira adoração e piedade para com Deus. Embora um saber submisso, a filosofia não pode ser recusada como instrumento auxiliar com grande potencial pedagógico. Antes da vinda do Cristo, a filosofia era necessária aos povos antigos para conduzi-los à justiça; agora, novamente, é útil para levá-los à verdadeira religião; serve como uma instrução preparatória para os indivíduos cujas mentes só se abrem para a fé depois de uma demonstração preliminar. Dessa forma, filosofia e pedagogia tornam-se unívocas em vista de sua importância soteriológica para a aproximação ao paganismo: “à filosofia antiga coube a tarefa pedagógica de encaminhar os gentios para Cristo.” (BOEHNER e GILSON, 2012, p.35). Mesmo que os profetas e apóstolos não conhecessem as ciências que são da responsabilidade da filosofia, não é menos verdade que o significado alegórico de muitas passagens obscuras não possa, sem a ajuda das ciências em questão, ser explicado claramente. É certo que os profetas e apóstolos tinham a inteligência das Escrituras sem a ajuda da filosofia, mas foram instruídos pelo Espírito Santo, e foi Dele que aprenderam a doutrina que nos transmitiram. Mas aqueles que não foram ensinados da mesma maneira não podem entender o significado das Escrituras tão facilmente.

Na agricultura, na medicina, somos hábeis quando estudamos as diversas ciências, cujo objetivo é aprender a melhor cultivar a terra ou a curar melhor; da mesma forma, face à religião, somos solidamente educados desde que relacionemos tudo à verdade, quando tomamos da geometria, da música, da gramática, da filosofia, o que elas têm de útil para dar suporte à fé e protegê-la de todas as armadilhas. (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, 1857 (a), T VIII, L I, cap. 9, p. 739).

A religião incipiente descobre que a sua estruturação doutrinária, sua divulgação e prosélito dependem de uma base educativa que pode e deve recorrer a um conjunto de outras manifestações da inteligência já culturalmente instaladas. Para a nova comunidade cristã existia a necessidade de uma preparação moral e intelectual; era cogente convencer seus membros da necessidade desse preparo e montar um plano para isso. Trata-se de uma pedagogia cristã que começa a delinear-se, uma pedagogia cuja grande tarefa é difundir e fixar didaticamente os novos princípios trazidos pelos Evangelhos, converter o pagão e educar o cristão iniciante. Não é difícil supor que é à filosofia grega que se deve a ideia mesmo desta pedagogia. O lugar de destaque que os filósofos gregos deram à educação, desde Sócrates, parece incontestável; eles a associaram à elucidação, à definição e difusão de ideias, ao treinamento espiritual do homem. Foi dos filósofos gregos que Clemente primeiro tomou emprestada a própria ideia de educação. Ele não deve isso ao hebraísmo do Antigo Testamento, nem ao judaísmo, nem ao cristianismo popular de sua época. Com a ideia de pedagogia superior, ele herda métodos de disciplina moral e intelectual que os filósofos gregos desenvolveram gradualmente.

A filosofia grega, de Sócrates a Plotino, teve a ambição de dar aos seus seguidores não apenas uma metafísica, ou uma explicação do cosmos, ou uma psicologia, ou um método de pensar e formular ideias, mas, ao final, propõem uma regra de vida, boa para indivíduos e sociedades, e para a aplicação desta regra um método apropriado. (DE FAYE, 1919-1920, p. 11).

Como pode o teor da revelação judaico-cristã fluir em busca da pedagogia grega? Aos olhos de Clemente, o pensamento cristão e o pensamento secular, longe de empurrar um ao outro, parece fazer um apelo mútuo e ele sente-se convocado para ser o artífice de sua interpenetração; mais exatamente e antes da letra, para estabelecer a filosofia a serviço da revelação e da longa e paciente educação da humanidade. A ideia da pedagogia divina em Clemente procede de um duplo alargamento: a extensão à humanidade daquilo que é verdadeiro para o indivíduo e a extensão aos pagãos de uma economia preparatória como aquela cujo povo beneficiado foi o judeu. As duas perspectivas são concorrentes e se unem sob o mesmo plano de Deus para conduzir todas as criaturas à salvação.

2. O pedagogo antes d’ O Pedagogo

O mundo grego é marcado, como já aludido, por um acentuado traço pedagógico capaz de lhe definir, em seu universo filosófico e cultural, um perfil de atuação e de expressão. As palavras de Isócrates quanto a isso não deixam dúvidas:

Atenas superou de tal modo outros povos pelo gênio da eloquência e da filosofia, que simples discípulos em suas terras são admitidos alhures como mestres, que fez do nome Grego, menos o nome de um povo do que o próprio sinal da inteligência, e que designamos por esse nome os homens que participam de nossa educação, ainda mais do que os homens que compartilham nossa origem. (ISOCRATES, 1862, p. 163).

A palavra grega que se traduz, na maioria das vezes, por cultura ou educação é παιδευσις, equivalente a παιδεία; ela designa um conteúdo central para a época helenística: passamos da civilização da πόλις à da παιδεία, esta não se limita apenas a instituir a técnica apropriada ao trato com a infância, porém, passa a indicar o esforço educativo que se prolonga para além dos anos escolares e adentra por toda a vida para realizar mais perfeitamente um ideal humano.

παιδεία (ou παιδευσις) passa a significar cultura, entendida não num sentido ativo, preparatório da educação, mas no sentido perfectível que a palavra tem hoje entre nós: o estado de um espírito plenamente desenvolvido, tendo expandido todas as suas potencialidades, no qual o homem se torna verdadeiramente homem; é notável constatar que quando Varrão e Cícero se propuseram a traduzir παιδεία, escolheram dizer em latim humanitas. (MARROU, 1948 I, p. 152).

Da civilização da polis à da paideia e desta à Θεόπόλις parece ser um caminho surpreendente. Com efeito, o cristianismo utilizar-se-á do aparato conceitual grego ampliando ainda mais o conceito de educação empregando-o não mais para a formação e a constituição cultural de um povo, mas de uma humanidade concebida como um ser coletivo único, em marcha constante em direção a uma perfeição da qual se aproxima sem cessar. Desse ponto de vista, a filosofia se transforma em pedagogia, isto é, toda a filosofia implica a educação de um homem que, por conta de uma corrupção estrutural advinda de um pecado original, não consegue, de imediato, reconhecer e ter acesso à Boa Nova. Clemente de Alexandria elege um nome apto para traduzir, num autêntico produto do cristianismo primevo, a formação moral afluindo para uma etapa superior, ou seja, a conversão: O Pedagogo. Eis o título de uma obra-prima do humanismo cristão nutrido pela cultura clássica a mais profunda e extensa, e, portanto, tão fidedignamente cristão quanto verdadeiramente helênico. O pensador de Alexandria move-se em torno desse rico universo conceitual de modo a selecionar cuidadosamente determinadas estruturas semânticas e delas retirar novos significados dotando-os de roupagem singular e elaborada a partir de outros parâmetros, agora exigidos pelo mundo cristão nascente.

Sigamos o raciocínio de Vallet (1999) e tomemos a raiz indo-europeia pew, paw ou pow que expressa a noção de pequenez. Ela origina, no sânscrito, a palavra putra (filho), um pequeno para um grande papel, pois, de acordo com os hindus, o filho é o único membro da família capaz de evitar o inferno para seus pais, iluminando a pira funerária. Da mesma raiz, o latim tira paucus (pouco, em pequeno número) e pauper. Desse último termo, derivam o francês “pauvre”, o inglês “poor”, o espanhol e o português “pobre”, o italiano “povero”. O grego pôlos (potro) e o latim pullus ( pequeno animal) são provavelmente oriundos dessa raiz que forneceu as palavras em francês “poulet” (frango ), “poltron” (derivado do italiano poltro, potro não domesticado), “poutre” (termo usado para designara antigamente a jovem égua que já apoia seu cavaleiro) e “pulluler” (se reproduzir como os animais jovens, pulular). Porque esses seres insignificantes têm a força dos números, esses “poucos” já são muitos. O “pusillanime” (do latim pusillus [muito pequeno, derivado do puer, criança] e animus [espírito, coragem]) é pequeno em coragem e a “pucelle” (do baixo latim pullicella [virgem pura], derivada provavelmente de pulla [fêmea pequena]) é fraca em experiência. A noção de inferioridade se encontra nas duas grandes famílias de palavras derivadas desta mesma raiz indo-europeia e formadas em torno do latim puer e do grego païs. Esses dois termos significam ora “criança”, ora “escravo”, o que quer dizer social e legalmente o mesmo, pois o descendente e o servo estavam a serviço do pai e do senhor - os únicos detentores de direitos civis e cívicos. O “garçon” do café (ou das compras) e o “boy” das colônias britânicas guardaram esse traço humilde que confina a juventude às tarefas subalternas.

Encontramos essa dupla inferioridade na parábola evangélica do centurião que pede a Jesus para curar seu escravo (doulos) na versão de Lucas6, ou seu filho (uios) na de João7, ou sua criança (païs no texto grego, puer nas traduções latinas). Tal solicitação para um subordinado de condição servil parecia suspeito para certos exegetas, alguns dos quais até imaginaram qualquer "amor grego" entre o oficial e seu servo. De fato, pouco importa que o doente seja o escravo ou filho do legionário: ele é seu inferior numa época em que falar de direitos da criança ou do escravo teria sido absurdo. (VALLET, 1999, p. 157).

O grego παιδαγωγός e o latim paedagogus fazem parte deste círculo semântico associado à subalternidade, à inferioridade e ao papel secundário. A idade dos sete anos era o marco para o ingresso na instituição escolar, onde a educação coletiva era a regra. Na época helenística só os filhos dos reis e potentados podiam receber os cuidados dos preceptores particulares. É digno de nota, entretanto, como lembra Marrou (1948 I, p.217), a persistência, mesmo diante da presença da escola, de um elemento privado: dentre aqueles que contribuíam para a formação dos mais moços encontrava-se o pedagogo. No início, o pedagogo, era o escravo ou o servo que se encarregava da criança dos sete aos dezoito anos, responsável por, cotidianamente, conduzi-la (ageïn) de sua casa à escola. Seu papel é modesto, guiava os passos do infante, partilhava seus jogos e suas conversações; transportava seu material ou a lanterna que conduzia seu trajeto e, em muitas ocasiões, podia mesmo carregar em seus braços a criança fatigada. As fusões sociais e as misturas étnicas permitiram ao pedagogo ocupar um lugar mais específico nas sociedades mediterrâneas, mesmo que isso implicasse em críticas: seu trabalho deixa algo a desejar, sua conversa seria prejudicial e a supervisão educativa não pode rivalizar com a autoridade paterna. (VALLET, 1999, p.158). Por sua condição servil e sua ascendência, amiúde, bárbara, o pedagogo, em sua origem, também era alvo de menosprezo, como prova essa passagem de Platão:

Assim falando, havia eu a intenção de provocar o debate entre alguns dos ouvintes mais velhos. Mas, nesse momento, como divindades malfazejas, intervieram os pedagogos, aquele de Lísias e aquele de Menexenes, trazendo consigo os irmãos dos dois jovens: eles os chamam e ordenam a sua volta, pois se fazia tarde. Nós tentamos, de início, com os assistentes, afastar os inoportunos. Porém, sem nenhuma deferência às nossas observações, colericamente nos insultaram em seu péssimo grego e de novo chamaram os jovens. Eles haviam bebido nos festins em louvor a Hermes e não pareciam encontrar-se em condições de escutar-nos. Cedemos, ao fim, e interrompemos a conversação. (PLATÃO, 1967, p. 340 [223b]).

No entanto, com o curso dos séculos, o pedagogo viu sua consideração aumentar na mesma proporção que a de seu desempenho, porque seu âmbito de atuação compreendia, também, encargos de ordem ética: dirigindo seu pequeno patrão, ensinava-o a se comportar, também supervisionava a formação do caráter e da moral. Se não era oficialmente um professor ou educador, seu papel educativo era inegável e devia proteger o filho da casa dos perigos da exposição exterior. O pedagogo exerce sobre seu pupilo uma supervisão contínua e, em certos momentos, opressiva. Na adolescência, o jovem grego se cansa frequentemente dessa vigilância e troca o casto pedagogo (um escravo não tinha o direito de tocar fisicamente um futuro cidadão) pelo fascinante pederasta.8

Sob o império romano, a paedagogorum custodia constitui, ao lado da ação dos pais e mestres, um dos elementos indispensáveis da educação. Ajudando a criança a fazer seus deveres ou a aprender suas lições, ele é o studiorum exactor; mas, sobre o plano da instrução propriamente dita, seu papel permanece subordinado àquele do mestre qualificado. Em Roma, sem que tivéssemos uma escola “pública”, as grandes famílias aristocráticas procuravam um meio de formar seus escravos para os diversos serviços requeridos entregando-os a um mestre. Compreende-se, sem grande esforço, que entre o expressivo número de escravos pertencentes às ricas famílias romanas do império encontravam-se, necessariamente, um considerável contingente de crianças: “elas eram agrupadas, para sua formação, em uma escola doméstica ou paedagogium: conhece-se bem aquela dos jovens escravos do imperador, instituída sob a direção de um ‘pedagogo dos (jovens) servos de César’, assessorado por pedagogos auxiliares.”(MARROU, 1948 II, p. 65) A formação que recebiam era, antes de qualquer coisa, orientada para a excelência da execução dos serviços. Treinavam-se, em particular, as boas maneiras das crianças e dos adolescentes a fim de prepará-los para cumprir seu papel de pajem, criados, serviçais, etc. Entretanto, aqueles que se destacavam eram iniciados também nas coisas do espírito: “todo grande domicílio possuía um bom número de escravos ‘letrados’ ou ‘eruditos’, que exerciam as funções de leitor ou de secretário e com os quais um senhor amigo das letras, como Plínio o Jovem, gostava de se entreter.” (MARROU, 1948 II, p. 65).

Ressalvadas certas exceções, para boa parte das crianças, no mundo romano, a escola era a regra; meninos e meninas frequentavam-na do mesmo modo, embora, para essas últimas, o preceptor doméstico também fosse utilizado. “Solução que nem sempre escapava de certo perigo: o célebre pedagogo Q. Caecilius Epirota foi, quando menos, suspeito nas suas relações com a filha de seu patrão (SUETONIUS, 1963, 16,1), que havia sido encarregado de instruir.” (MARROU, 1948 II, p. 65). Do ponto de vista moral, os perigos da rua e da escola não eram menores para meninos e meninas; assim, os romanos adotam o uso grego do escravo acompanhante, o qual conservava a mesma designação helênica de pedagogo. Quando bem sucedido e aplicado em suas funções, ele podia ascender à condição de condutor moral da criança: a ele cabe o essencial da função de educador sobre o plano moral, devido à pouca confiança que a sociedade antiga depositava, quanto a esse ponto, na escola e no seu mestre. (MARROU, 1960, p.15). O mestre escolar é incumbido de um setor especializado da instrução, equipa tecnicamente a inteligência da criança, mas não é aquele que a educa, não é o encarregado do essencial da educação, ou seja, da formação moral, do caráter, do estilo de vida. O mestre cuida apenas do aprender a ler, algo muito menos importante. A associação, hoje bastante aceitável, entre instrução primária e formação moral é, entre nós ocidentais, uma herança medieval (MARROU, 1948 I, p. 222). Da escola monástica nasce um personagem capaz de operar a síntese entre dois papéis bem distintos: o de instrutor e o de pai espiritual. Na antiguidade, o mestre escolar é alguém extremamente anódino para que a família pense em lhe delegar uma responsabilidade maior em matéria de educação.

Que desprezo, portanto, não merecem aqueles pais que, por negligência culposa, ou, pelo menos, por ignorância muito desastrosa, confiam, sem testá-los, seus filhos a mestres que de mestres só têm o nome; ainda assim, eles são menos culpados quando o fazem por ignorância. Mas, o cúmulo da loucura é que, muitas vezes, embora alertados por pessoas instruídas da inexperiência e do mau comportamento dos mestres que lhes são oferecidos, eles não param de tomá-los, cedendo aos acalantos pérfidos de seus bajuladores ou às solicitações urgentes de seus amigos. É como um paciente que, para agradar ao amigo, deixaria um médico hábil, de quem teria motivos para esperar sua recuperação, para receber outro sem experiência, em cujas mãos certamente morreria. (PLUTARCO, 1844, p. 8).

Se alguém, fora do grupo constitutivo da parentela, poderia receber uma missão semelhante, esse seria o pedagogo; um simples escravo, sem dúvida, mas pertencente à intimidade e à convivência da casa e seu exemplo, em vista da frequentação cotidiana, poderia influenciar, em todo caso, pela guarda dos preceitos e pela supervisão vigilante contribuindo, dessa maneira, com a educação e, sobretudo, com a educação moral, muito mais do que as lições puramente técnicas do mestre.

As civilizações gregas e romanas acabam por conceder que o pedagogo, não obstante seu distintivo servil e o pouco prestígio que gozava em algumas circunstâncias, estenda seu papel para além de uma vigilância negativa: ele treina a criança nas boas maneiras, ajuda a formar sua índole e a estruturar suas máximas morais.

Tanto é assim que, ao lado da instrução de ordem técnica fornecida pelos diversos mestres (e para as quais ele também costuma colaborar como repetidor, responsável por dar aulas, etc.), toda uma educação moral é confiada ao “pedagogo”, cujo papel perpetua na burguesia helenística o do “regulador” dos heróis homéricos. A língua reflete essa importância de fato: no grego helenístico παιδαγωγός frequentemente perde seu sentido etimológico de escravo “acompanhante” para assumir o significado moderno de pedagogo, educador em significação plena (no entanto, sempre permanecerá distinto de “mestre” dispensador de ciência). (MARROU, 1948 I, p. 218).

Com efeito, é para esse aspecto que Clemente de Alexandria remeterá a figura do pedagogo: o “acompanhante”, o zelador, aquele que oferece seus braços e seus cuidados, o agente capaz de orientar, reprimir e louvar atitudes formativas no plano moral.

3. O Pedagogo, de Clemente de Alexandria

O Pedagogo, de Clemente, é para Alexandria dos séculos II e III o equivalente ao que o Satyricon, de Petrônio, representa para a Itália do século I. Mais do que uma obra sobre os costumes, este trabalho nos fala sobre a cultura daquele ambiente e do seu tempo. Clemente é uma testemunha notável do helenismo, do humanismo da era imperial. Não é de surpreender que ele seja cristão: quando escreveu, já fazia mais de meio século que, com os Apologistas, representantes da elite cultivada ocupavam seu lugar dentro da Igreja; embora o próprio Clemente tenha de enfrentar certa oposição de algumas manifestações hostis à cultura clássica, é claro que ele não representa um caso isolado, uma exceção. Dirige-se, no interior da comunidade cristã, a um público rico, também muito cultivado, capaz de compreender e apreciar, mesmo em seus refinamentos mais sutis, o encanto de sua cultura. (MARROU, 1978, p. 338).

Em todo O Pedagogo, o mesmo artifício é sistematicamente aplicado: em cada ponto, sobre cada aspecto doutrinário, Clemente justapõe uma série de autoridades: fundamentos bíblicos, respaldos clássicos, Homero e poetas, filósofos e, dentre eles, especialmente Platão; tudo é feito para que essas referências emprestem o apoio e a erudição que o tema requer. Por vezes, o texto clássico vem na liderança e se vê de alguma forma ratificado pela aquiescência bíblica, ou, pelo contrário, o texto bíblico vem primeiro e recebe, se não for um complemento, pelo menos uma ilustração de algum escritor pagão, como no caso da admissão dos castigos e reprovações como instrumentos pedagógicos:

‘Tendes bom ânimo’, disse Moisés, ‘quando o Senhor vos provar; Ele se aproximou de vós para que o medo Dele possa deter-vos e vós não pequeis.’ Platão admiravelmente diz: ‘É ser bom com os culpados castigá-los, pois o castigo os corrige e os torna melhores.’ Esse pensamento de Platão prova que justiça e bondade são uma e a mesma coisa. O próprio medo é útil para nós. ‘O espírito que teme a Deus viverá.’ A esperança produz medo, o medo produz salvação. O mesmo Deus, que é o Verbo, nos pune e nos julga. É dele que o profeta Isaías disse: ‘O Senhor o entregou por nossos pecados.’ Ou seja, o Senhor o escolheu para corrigir e castigar os pecadores. Só ele tem o poder de remir nossos pecados, porque Deus o designou nosso Pedagogo; só ele pode distinguir a obediência da desobediência às suas leis. (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, 1857 (a), T VIII, L I, cap. 8, p. 331).

Desse modo, a redação ganha uma dinâmica particular devido à coexistência dialógica de dois tipos de discurso, um que visa a ser realista, evocando a vida cotidiana, suas exigências e regulações, e outro religioso que interpreta diversas realidades sobre as quais ele discorre, a fim de exercer sobre o leitor uma atração permanente com vista à sua conversão. A originalidade do texto, seu expediente principal, não é a busca, mas a comunicação, a transmissão; as fontes literárias evocadas não representam simples recursos eruditos e retóricos, mas agentes de comunicação e disseminação. Na escrita clementina se alinham o discurso realista e o discurso religioso a partir de um ponto original: o elemento pedagógico.

Esse ‘elemento pedagógico’, no sentido cogente do termo, pode ser definido como a imposição de Um significado, de Uma norma de valor absoluto, por um discurso que postula um significado último; este poderia ser a ‘realidade’, no caso do romance realista, e a vontade de Deus revelada nas Escrituras, no caso dos textos religiosos. O problema do último significado foi estudado por J. Derrida, que afirma sua origem logocêntrica e aponta sua dependência de uma ‘onto-teo-teleologia’. Isso é amplamente verificado no trabalho de Clemente. Mas deve ficar claro que este é um discurso, e não um texto no sentido dos semióticos. Aqui, tomo a palavra discurso na acepção que lhe confere Benveniste, isto é, a subjetividade e a intencionalidade do texto tal como se manifestam em todas as marcas diretas ou indiretas da instância enunciativa. Somente o discurso pode postular um significado último, e não o texto que felizmente está em revolta perpétua contra a norma que lhe impomos, daí seu interesse pelo leitor leigo. Donde, por isso mesmo, sua eficácia própria como dispositivo sistemático trabalhando para a conversão. (DAUDE, 1995, p. 44).

A singularidade da obra confere ao nosso autor uma posição destacada no cenário da literatura cristã. Com ele, a expressão literária emerge, no final do século II, de suas origens populares ou apologéticas, e, sem romper com elas, leva a cabo a tarefa de enfrentar ciosamente o pensamento helênico. O Pedagogo, sem dúvida o segundo na cronologia de seus trabalhos, segue o discurso de inspiração catequética dirigido aos pagãos para convertê-los. É apresentado como um tratado moral prático, destinado aos neófitos para curá-los de seus vícios e impulsioná-los rumo à perfeição. O ideal cristão pode ser realizado no mundo, eis o mote que impulsiona o livro. Consoante Theobald (2003, p.89), os primeiros cristãos estavam tão conscientes da "ruptura" gerada pela passagem à fé em Cristo e à experiência batismal, ao cumprimento da promessa, que espontaneamente renunciaram ao esquema da pedagogia anterior e passaram a falar sobre o que estava acontecendo com eles. O apóstolo Paulo, por exemplo, serve-se do esquema da paideia para caracterizar o período da vida, ou da história, que precede a revelação da fé. Mas, quando chega a fé, finda a pedagogia: “itaque lex pedagogus noster fuit in Christo ut ex fide justificemur, at ubi venit fides jam non sumus sub pedagogo, omnes enim filii Dei estis per fidem in Christo Jesu.”9 A cisão provocada pela revelação é tão decisiva que poucas coisas são ditas sobre as etapas ulteriores, ou sobre os limites de um crescimento ou de uma maturação da vida cristã. Não obstante, uma metáfora - a do leite e da comida sólida - nos mostra que depois do batismo esses limites ainda precisam ser ultrapassados (lac vobis potum dedi non escam nondum enim poteratis10). Apenas um texto parece retomar o esquema elaborado da pedagogia divina:

nondum usque ad sanguinem restitistis adversus peccatum repugnantes, et obliti estis consolationis quæ vobis tamquam filiis loquitur dicens fili mi noli neglegere disciplinam Domini neque fatigeris dum ab eo argueris (...) in disciplina perseverate tamquam filiis vobis offert Deus quis enim filius quem non corripit pater.11

A educação, aqui, é a característica fundamental da condição de ser filho. Supõe que o evento essencial, a revelação da filiação, já ocorreu; mas, em seguida, a educação continua.

Na interpretação do cristianismo pelos Pais da Igreja12, assistimos a uma revalorização do paradigma educativo; neste ponto, Clemente é exemplar porque torna o educador a figura central da história humana e cristã. Quem é este pedagogo?

O Logos, portanto, é justamente chamado de Pedagogo, porque nos conduz à salvação, nós que somos seus filhos. É obviamente de si mesmo que Ele fala, quando empresta estas palavras ao profeta Oséias: "Eu sou seu professor".13 A pedagogia é a instituição que ensina o culto divino e a ciência que nos conduz à verdade. É uma regra e um método de vida que nos leva ao céu. (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, 1857 (a), T VIII, L I, cap. 7, p. 314).

O Logos de Deus, enquanto Sabedoria, já fora vislumbrado pelos filósofos e educadores do mundo helenístico e agora é realinhado a partir de uma perspectiva sobrenatural anunciada pela nova religião. “In principio erat Verbum et Verbum erat apud Deum et Deus erat Verbum (...) Hoc erat in principio apud Deum (...) et Verbum caro factum est et habitavit in nobis.” 14 O Logos é o Deus vivo, não está apenas em Deus e com Deus, Ele é o próprio Deus. É o Verbo pelo qual foi feito o mundo e que se fez carne para redimi-lo. A personalidade do Logos e sua Encarnação além de constituírem escândalo para os judeus e loucura para os pagãos (“Quoniam et Judæi signa petunt et Græci sapientiam quærunt. Nos autem prædicamus Christum crucifixum Judæis quidem scandalum gentibus autem stultitiam.15), colocam as mais altas exigências à especulação cristã: os pensadores cristãos detectam um limite para a filosofia quando ela tenta encarar os mistérios expostos pelo Crucificado, a partir de então elevados a uma gravidade decisiva para os destinos da humanidade. Os Evangelhos não oferecem nem trabalham com provas lógicas ou evidências, indicam, sobretudo, o registro de fatos extraordinários e a presença de um Deus morto na cruz pela remissão dos homens imersos na corrupção do mundo. Um Deus finado, ressuscitado e elevado aos céus é uma estultícia que confunde os sistemas pagãos de pensamento. Todavia, como nos adverte Boehner e Gilson (2012, p. 19) há que também se reconhecer que se as coisas vivem no Logos, esta vida há de ser, forçosamente, de natureza espiritual e intelectual, uma via de ideias no espírito criador de Deus.

A vontade do pedagogo é agora bem clara para nós: por meio de suas palavras e de seus atos Ele nos conclama ao bem e nos desvia do seu contrário. Essa espécie de palavras, aquelas que franqueiam um ensinamento, é, evidentemente, sutil, de ordem espiritual; exige uma exatidão rigorosa. (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, 1857 (a), T VIII, L I, cap. 3, p. 259).

A contar desse reconhecimento, Clemente de Alexandria busca direcionar a elaboração de uma ciência superior que, se se mantém fiel à doutrina e aos mistérios inspirados no Logos, não despreza de todo aquilo que, enquanto produto humano e imperfeito, esforçou-se por constituir-se como fruto da inteligência, pensamento registrado na história - como é o caso da filosofia grega. Se antes a filosofia cumpriu a função de educar ou preparar a humanidade para o cristianismo, agora todos os recursos filosóficos devem ceder a primazia a outra ciência. Essa ciência elevada é a pedagogia; a sua missão é conduzir o homem à virtude.

A palavra Pedagogia é entendida em vários sentidos. É a ação de quem é dirigido e educado, assim como de quem dirige e educa. Essa palavra também é entendida no sentido de conduzir e, finalmente, compreendida como as próprias coisas que se ordena fazer, da mesma maneira que os preceitos. O que é então a Pedagogia divina? É uma direção que a própria verdade prescreve para nos conduzir à contemplação de Deus. É um modelo de atos sagrados que ela põe constantemente diante de nossos olhos para nos fazer perseverar na justiça. Como um bom general rege sabiamente sua falange e cuida da vida de cada um de seus soldados, como um sábio timoneiro dirige o leme de seu navio para salvar todos aqueles que nele estão, assim o Logos Pedagogo, cheio de preocupação, conduz os seus filhos por um caminho que deve assegurar a sua salvação. Em suma, tudo o que razoavelmente pedimos a Deus nos será concedido se obedecermos ao Pedagogo. (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, 1857 (a), T VIII, L I, cap.7, p. 314).

E para isso a pedagogia constrói um programa preciso e edificante:

Então, diligente em nos conduzir à perfeição pelos graus ascendentes da salvação, o Logos, que em tudo é amigo dos homens, executa um perfeito programa feito para nos dar uma educação eficaz: ele nos converte primeiro; em seguida nos educa como pedagogo; e, por último, nos ensina. (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, 1857 (a), T VIII, L I, cap.1, p. 251).

Nesta ocasião se apresenta uma metodologia específica com passos bem definidos: a) de início, o Pedagogo nos exorta à conversão. A exortação coloca em evidência um aspecto essencial do apelo cristão, a saber, ela não é somente instrução, mas, da mesma forma, transmissão reveladora da realidade anunciada, libertação que traz consigo a possibilidade de sua aceitação, contudo, é, também, nela mesma, exigência e dever, como uma lei que decreta pela mesma razão que dá a força para sua realização. A exortação apela à mudança de atitude, isto é, à conversão, à alteração de modos e preceitos no domínio religioso e moral e, sobretudo, à adesão radical a Deus e a seus desígnios. A conversão se dá por um ato fundamentalmente religioso, que é sempre algo ligado à experiência religiosa vivida e à certeza subjetiva ligada a esta experiência; b) em seguida, a ação se dirige ao convertido, aquele que foi alvo da exortação e escutou a Palavra. A este estágio preliminar sucede a educação propriamente dita: é imprescindível aprender a viver como cristão, e a ênfase fica colocada sobre o caráter existencial da fé no ambiente da vida cotidiana; c) por fim, o Pedagogo possui a tarefa de ensinar, concentrar-se, de modo profundo, nas verdades da fé.

Agora, dando prosseguimento à sua obra, o Logos nos fornece ao mesmo tempo remédios e preceitos; a exortação é seguida de conselhos e, sobretudo, Ele promete sanar nossas paixões. Designemo-lo, então, por um só termo, bem apropriado: o Pedagogo; pois, o pedagogo pretende educar, não ensinar; ele visa a tornar a alma melhor; não quer instruí-la, mas mostrar-lhe o caminho da sabedoria e não aquele da ciência. Entretanto, o Verbo quer também ensinar, mas não de imediato. Quando ele esclarece ou revela os pontos da doutrina, ele ensina. O Pedagogo, que se ocupa da vida prática, nos exortou, primeiramente, a estabelecer para nós próprios uma boa vida moral; agora, ainda nos convida a cumprir nosso dever: Ele edita os preceitos perfeitos e mostra às novas gerações o exemplo dos erros cometidos no passado. Esses dois métodos são muito úteis: o primeiro, a exortação, leva à obediência; o outro, que consiste em apresentar esses exemplos, tem um duplo efeito, por causa dos diferentes objetos que se relaciona. O primeiro efeito é nos levar a abraçar a virtude pela força do exemplo; o segundo é nos levar a rejeitar o vício, inspirando-nos horror por ele. (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, 1857 (a), T VIII, L I, cap.1, p. 250-251).

Temos estabelecidas as diretrizes de uma pedagogia da conversão. O ato inicial do Pedagogo é exortar para converter. É verdade que educar e ensinar, os dois passos estabelecidos na sequência metodológica, são igualmente atos decisivos e significativos, todavia, a metodologia pedagógica clementina concentra-se no primeira etapa e a partir dela deve ser entendida, porque só se vive como cristão e só se guarda a fé quando se foi convertido: “O último degrau é não permanecer no pecado, porque, para aqueles que foram chamados à conversão, é salutar retornar ao combate.” (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, 1857 (a), T VIII, L I, cap. 2, p. 254). Se uma imagem pode associar-se à conversão, sem dúvidas é a do retorno, converter-se é retornar. No plano moral conota uma mudança de orientação, uma modificação de comportamento que indica um voltar-se a Deus, ou um afastar-se do mal. Com efeito, o convertido dá-se conta de que é possível se arrepender, caso o mal já tenha sido perpetrado, ele volta sobre uma decisão ou lamenta uma escolha passada. Destarte, a conversão apresenta-se em seu sentido religioso e filosófico; trata-se então de uma mudança de ordem mental, que pode ir desde a simples modificação de uma opinião até a transformação total da personalidade. A palavra latina conversio corresponde, de fato, a duas palavras gregas com significados diversos, de um lado epistrophê que significa mudança de orientação e implica a ideia de um retorno (retorno à origem, retorno a si mesmo); de outro lado, metanóia que significa mudança de pensamento, arrependimento e implica a ideia de uma mutação e um renascimento. Existe, portanto, na noção de conversão, uma oposição interna entre a ideia de “retorno à origem” e a ideia de “renascimento”. Essa polaridade fidelidade-ruptura marcou fortemente a consciência ocidental desde o surgimento do cristianismo (Cf. HADOT, 2021).

O Pedagogo se dirige aos novos convertidos. Um leitor que der uma rápida olhada em alguns títulos de capítulos da obra pode pensar que é apenas um tratado sobre moral prática, ou mesmo apenas um manual de polidez e boas maneiras: como proceder diante de comida e bebida, pratos, móveis, perfumes, roupas, sapatos, joias, artigos de higiene, criados, banhos, exercícios físicos, sono, vida sexual, etc. Todos esses desenvolvimentos são obviamente fontes de informações para historiadores da cultura antiga e também para historiadores da literatura, pois, para lidar com cada um desses temas, Clemente acumula citações de poetas, filósofos e historiadores. Na verdade, por traz de todas essas indicações práticas, o interesse do autor volta-se para a orientação do indivíduo renovado dentro de um novo estilo de vida, a vida cristã. O cristão convertido precisa ser educado. O Pedagogo entende esse converso como uma criança que necessita de aprendizado profundo em vista do retorno ao bem que precisa ser feito. A corrupção da natureza humana inviabiliza esse retorno de forma autônoma, o cristão carece de um agente pedagógico que o conduza. O próprio Logos um dia fez-se criança; por isso mesmo, conhece aquilo de que necessita o espírito pueril em sua fragilidade e escolhe nos conduzir tal qual fazia o pedagogo grego. É importante lembrar que o Pedagogo distingue-se do mero docente (διδασκαλος): este é encarregado da instrução e sujeito a uma série de interferências filosóficas, retóricas e científicas, se incumbe do manejo intelectual técnico; o primeiro, ao contrário, assume as funções de uma espécie de governante, cuja jurisdição atém-se àquela criança específica e à sua conduta.

Não é preciso explicar que a finalidade da pedagogia é a conduta das crianças, ou seja, sua instrução; a etimologia desta palavra por si só o prova o suficiente. Mas nos resta examinar de quais crianças as Escrituras falam e colocá-las sob a direção de um Pedagogo. Essas crianças de que fala as Escrituras somos nós. (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, 1857 (a), T VIII, L I, cap.5, p. 262).

A inocência da puerícia, a inexperiência do mal, a facilidade de esquecer os insultos, tão naturais às crianças, são virtudes infinitamente agradáveis ​​a Deus; contudo, essas virtudes acabam ficando encobertas após a transformação da criança em adulto. A marca do pecado, sem dúvidas, está expressa no tempo e no seu transcorrer. As agruras do tempo são a face visível e acidental do fluxo que arrasta continuamente toda a humanidade para frente e para a morte. Envoltos no “vapor” enganoso do tempo, os homens e suas instituições são levados, por natureza, à corrupção. Isso nos indica, a nós espíritos turvados pelo pecado, o quanto de corrupção habita o mundo e, dessa maneira, o quanto estamos entregues nas mãos da condução divina, sem a qual tudo seria caos. Por isso, frente à grandeza da misericórdia de Deus, traduzida em redenção, somos todos crianças demandando orientação e quando o Pedagogo nos absorve enquanto pequeninos, a ternura e a fraqueza que a palavra inspira expressa de maneira mística e admirável o retorno, o resgate da simplicidade de nossa alma. Deste modo, se o Pedagogo e a pedagogia clementinos conservam dos gregos a função de instruir, conduzir e de zelar, o objetivo da instrução, da condução e do zelo cristãos é, decisivamente, outro:

Nós mesmos honramos a pedagogia com o que há de mais belo e precioso entre os bens deste mundo quando lhe atribuímos um nome cuja etimologia deriva da palavra criança. Chamamos de pedagogia a condução da infância, essa arte que tem por objetivo o estudo da virtude e nos ensina a praticá-la. (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, 1857 (a), T VIII, L I, cap.5, p. 267).

Para ter acesso à virtude é preciso passar por certa mimesis; imitando o Pedagogo, habitado desde a infância pela virtude, nós mesmos ganhamos ingresso à virtude. Diferente do pedagogo grego, que também é um condutor moral, a ideia de pedagogo cristão é regida por um princípio sobrenatural: converter-se por intermédio do Cristo é, definitivamente, voltar à inocência infantil, que bem pode ser comparada a uma longínqua memória da condição de proximidade de que gozava a criatura ante o Criador. O certo é que a definição de Clemente de Alexandria de pedagogia como a arte de nos conduzir da infância à virtude consagra uma perspectiva da qual somos herdeiros: a entrada do conceito de virtude na definição da finalidade do ato educativo.

4. Considerações Finais

O cristianismo, ao se tornar a religião oficial do Império Romano em 392, não eliminou a escola pagã. Religião letrada e doutrinária, ela fez uso dos modelos escolares gregos e romanos para estruturar seus padrões de formação básica. O colapso do império romano ocidental precipitou a Igreja nascente para a dianteira e para o alargamento dessa formação, antes reservada a um grupo menor de adeptos. Assim surgiu uma nova escola, que combinava instrução literária e educação religiosa. Segundo Durkheim (1984, p. 105), esse foi o verdadeiro nascimento da escola, ou seja, de um ambiente moral organizado, dedicado tanto à formação das ideias e sentimentos do aluno quanto à transmissão do conhecimento. O cristianismo enquanto agente civilizatório, isto é, como ideal cultural embutido na realidade histórica, não está apenas na origem do desenvolvimento de um complexo conjunto de concepções, ideias e princípios, mas, do mesmo modo, criou objetivos e conteúdos que geraram novos métodos de ensino e modelos pedagógicos. Neste sentido, Clemente de Alexandria é, sem embargo, um capítulo relevante na história da educação cristã, pois foi um dos primeiros a conceber o cristianismo como um programa completo de formação e como um método de aprimoramento moral coroado por uma genuína concepção de pedagogia e de pedagogo.

A filosofia grega, Clemente, a praticou completamente. Nenhum outro autor da antiga Igreja a dominou como ele. Com sua ideia de pedagogia, ele herda métodos de disciplina moral e intelectual que os filósofos gregos haviam desenvolvido gradualmente. Ideia e métodos são tão bem incorporados ao seu pensamento, que são inseparáveis dele (DE FAYE, 1919-1920, p. 10). No entanto, a genialidade de Clemente transforma esse legado de modo a conferir-lhe um traço inconfundível. Com o Cristo, uma pedagogia superior se manifesta como referência para os homens. “A escola é a Igreja” (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, 1857 (a), T VIII, L III, cap.12, p. 678), o pedagogo é o Cristo. O modelo pedagógico cristão extrapola a educação moral primeira, cuja responsabilidade principal pertencia aos círculos da parentela, e conduz o adepto por meio de uma experiência educativa moral e doutrinária, cujo manancial encontra-se no Logos divino manifesto nas Escrituras. Essa pedagogia superior pretendia-se diferente da orientação educativa pagã, embora não a rejeitasse de todo, especialmente em relação aos valores transmitidos. Era uma nova forma de conduzir os homens, uma nova pedagogia.

Embora a filosofia apenas nos ajude à distância na busca da verdade, e de fato nos ajuda, uma vez que, de maneiras diferentes, tende para a nossa ciência, que procede imediatamente da verdade, permanece o fato de que a filosofia é útil para aqueles que se esforçam para elevar-se, com a ajuda da Palavra, ao conhecimento. Além disso, a verdade grega, embora tenha o mesmo nome que a nossa, é bastante distinta dela, pela importância das coisas, pela precisão das manifestações, pela eficácia divina e por outros atributos semelhantes, que são característicos da nossa verdade; pois fomos discípulos do próprio Deus, foi o Filho de Deus quem nos ensinou essas letras e ciências verdadeiramente sagradas. Portanto, os gregos não educam as almas da mesma maneira que nós, eles usam um método e uma disciplina diferentes. (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, 1857 (b), T VIII, L I, cap. 20, p. 815).

Como o pedagogo antigo conduzia a criança da casa para a escola, o pedagogo cristão conduz o homem de sua natureza corrupta à cultura salvífica. Essa passagem difícil, especialmente na flutuação gerada pelo amor do mundo, exige uma atuação vinculada ao apelo sobrenatural. Assimilar o Cristo a um pedagogo e não a um mestre/professor é uma atitude intelectual revestida de uma enorme carga simbólica. Enquanto o professor permanece encoberto e limitado pela cátedra das altas verdades históricas e empíricas, o pedagogo, descendente das estradas, caminha com o educando inspirando-lhe confiança e amparo.

REFERÊNCIAS

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SOBRE OS AUTORES:

1 (Ide, portanto, e ensinai a todas as nações).

2Suas instituições de ensino superior eram um modelo de organização; cultivavam-se ali com raro brilho a filologia e as ciências da natureza. O Museion e o Serapion podiam glorificar-se de possuir duas das mais amplas bibliotecas da antiguidade. Ao lado destes grandes centros havia as escolas judaicas, que cultuavam a memória de Filon, bem como as escolas gnósticas, onde ensinavam Basílides e Carpócrates. Era natural que os cristãos não quisessem ficar atrás. (BOEHNER; GILSON, 2012, p.33).

3Lc 12,7 (até os cabelos de vossa cabeça estão todos contados).

4Rm 2,14 (Os pagãos, que não têm a lei, fazendo naturalmente as coisas que são da lei, embora não tenham a lei, a si mesmos servem de lei).

5Pr 2, 2-5 (Ouvindo com atenção a sabedoria e inclinando teu coração para a prudência; se tu apelares à prudência, se invocares a inteligência, buscando-a como se procura o tesouro; então, compreenderás o temor do Senhor, e descobrirás o conhecimento de Deus)

6Lc 7, 1-10.

7Jo 4, 46-54.

8No pensamento grego, um laço sólido une a pederastia à honra nacional, à independência e à liberdade; assim, o amor grego fornecerá à pedagogia clássica um dos seus ambientes e um dos seus métodos. Um amor educador por excelência: “(...) os corpos belos mais que os feios ele os acolhe (...); e se encontra uma alma bela, nobre e bem dotada, é total o seu acolhimento a ambos, e para um homem desses logo ele se enriquece de discursos sobre a virtude, sobre o que deve ser o homem bom e o que deve tratar, e tenta educá-lo.” (PLATÃO, 1987, p. 40 [209 c]). Consonante Marrou (1948 I, p.60), a pederastia é, em primeiro lugar, uma forma de sensibilidade, de sentimentalidade, um ideal de virilidade total. A ligação pederasta estabelece entre o amante e o amado “uma comunidade muito maior que a dos filhos (...) e uma amizade mais firme. (PLATÃO, 1987, p. 40 [209 c]).

9Gl 3, 24-26 (A lei se tornou pedagogo encarregado de levar-nos a Cristo, a fim de sermos justificados pela fé. Mas depois da vinda da fé, não estamos mais sujeitos a este pedagogo, porque sois todos filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo).

101Co 3,2 (Eu vos dei leite a beber, e não comida sólida que ainda não podíeis suportar).

11Heb 12, 4-7 (Vós ainda não tendes resistido até o sangue em vossa luta contra o pecado, e esqueceis da exortação que vos foi dirigida como a filhos: meu filho, não desprezes a educação do Senhor, não desanimes quando ele te reprende (... ) É para vossa educação que sofreis, é como filho que Deus vos trata. Qual é o filho a quem seu pai não corrige?).

12“O nome Pai é expressão de afeto dada aos bispos do século II, e que se estendeu no século V aos antigos escritores eclesiásticos. (...) São quatro as condições para que um escritor seja considerado Padre da Igreja: 1. Ortodoxia doutrinal; 2. Santidade de vida; 3. Aprovação da Igreja; 4. Antiguidade.” (NUNES, 2018, p. 20).

13Os 5,2 “ego eruditor omnium eorum” (Eu sou o professor de todos eles).

SOBRE OS AUTORES:

14Jo 1, 1-14 (No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus (...) Ele estava no princípio com Deus (...) E o Verbo se fez carne e habitou entre nós)

151Co 1, 22-23 (Os judeus pedem milagres, os gregos querem sabedoria. Mas nós pregamos o Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos)

Recebido: 26 de Abril de 2021; Aceito: 29 de Maio de 2021

Edmilson Menezes Doutor em Filosofia pela Unicamp. Professor Titular da Universidade Federal de Sergipe. Atua no Programa de Pós-Graduação em Educação e no Programa de Pós-Graduação em Filosofia, na mesma universidade. Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da História e Modernidade (NEPHEM/UFS).

Maria Lenilda Caetano França Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Sergipe, Brasil (PPGED/UFS/BRASIL). Participa do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da História e Modernidade (NEPHEM/UFS).

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