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Revista Práxis Educacional

versión On-line ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.17 no.46 Vitória da Conquista jul./sept 2021  Epub 24-Dic-2021

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v17i46.8392 

Artigos

CARTOGRAFIA DAS INTENSIDADES: PESQUISA E MÉTODO EM ESQUIZOANÁLISE

CARTOGRAPHY OF INTENSITIES: RESEARCH AND METHOD IN SCHIZOANALYSIS

CARTOGRAFÍA DE LAS INTENSIDADES: INVESTIGACIÓN Y MÉTODO EN ESQUIZOANÁLISIS

1Universidade Federal de Goiás - Brasil - domenicohur@hotmail.com


Resumo:

Este artigo tem como objetivo investigar a obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari, para discutir alguns conceitos da esquizoanálise que podem contribuir para a pesquisa em ciências humanas. O método realizado foi uma revisão bibliográfica e análise de toda obra publicada de Gilles Deleuze e Félix Guattari, e alguns trabalhos de comentadores e de pesquisadores brasileiros sobre a cartografia, com o intuito de buscar conceitos que possam nos fornecer pistas para a discussão sobre o método de investigação. Encontramos diversos conceitos esquizoanalíticos que podem contribuir para a pesquisa em ciências humanas e na educação. Selecionamos três para a análise: a cartografia, a perspectiva háptica e a lógica das intensidades. Concluímos que um método de pesquisa esquizoanalítico opera mais como um plano de abertura, em construção, com uma torção da sensibilidade e aberto às intensidades que irrompem, ao invés de apenas focalizar nos sistemas totalizados e os índices de frequência de aparição de determinado elemento.

Palavras-chave: esquizoanálise; filosofia da diferença; psicologia.

Abstract:

This article aims to investigate the work of Gilles Deleuze and Félix Guattari, to discuss some concepts os schizoanalysis that can contribute to research in human sciences. The method carried out was a literature review and analysis of all published work by Gilles Deleuze and Félix Guattari, and some articles and books of commentators and Brazilian researchers on cartography, in order to search for concepts that could provide clues for the discussion about the research method. We found several concepts that can contribute to research in human sciences and education. We selected three for analysis: cartography, haptic perspective, and the logic of intensities. We conclude that a schizoanalytic research method operates more like an opening plan, under construction, with a twisting of the sensitivity and the overture to the intensities that break out, instead of focusing only on totalized systems and the rates of frequency of appearance of a certain phenomenon or element.

Keywords: Schizoanalysis; Philosophy of difference; Psychology.

Resumen:

Este artículo tiene como objetivo investigar la obra de Gilles Deleuze y Félix Guattari, para discutir algunos conceptos del esquizoanálisis que pueden contribuir para la investigación en ciencias humanas. El método realizado fue una revisión bibliográfica y un análisis de toda obra publicada de Gilles Deleuze y Félix Guattari, y algunos trabajos de comentadores e investigadores brasileños sobre la cartografía, con la finalidad de buscar conceptos que puedan nos brindar pistas para la discusión sobre el método de investigación. Encontramos diversos conceptos que pueden contribuir para la investigación en ciencias humanas. Seleccionamos tres para análisis: la cartografía, la perspectiva háptica y la lógica de las intensidades. Concluimos que un método de investigación esquizoanalítico opera más como un campo de abertura, en construcción, con una torsión de la sensibilidad y una abertura a las intensidades que irrumpen, al revés de enfocar sólo en sistemas totalizados y los índices de frecuencia que aparición de determinado fenómeno o elemento.

Palabras clave: esquizoanálisis; filosofía de la diferencia; psicología.

A Esquizoanálise é um campo de saberes e práticas transdisciplinares criado pelo filósofo Gilles Deleuze e pelo analista institucional Félix Guattari após o mítico maio de 68 na França. Articula uma diversidade de conhecimentos, como a Filosofia, Psicanálise, Arte, Política, Antropologia, Biologia e opera uma série de deslocamentos metodológicos. Desta imensa trama produz novos enunciados que analisam os processos psíquicos, a subjetividade, os afetos, as relações de forças e poder, a interação com o ambiente, a sociedade, a tecnologia, entre outros. Também é conhecida como Filosofia da diferença, ou mesmo, Filosofia das multiplicidades. Uma possível definição para seu objetivo pode ser: “a análise da incidência dos agenciamentos de enunciação sobre as produções semióticas e subjetivas, em um contexto problemático dado” (GUATTARI, 1989, p. 32, tradução nossa).

O filósofo Michel Foucault (1995) afirmou na década de 1970 que possivelmente o século XX se tornasse deleuzeano, prevendo o impacto da obra de seu colega Gilles Deleuze no Ocidente. No entanto o século XX não foi deleuzeano e tampouco sabemos se o século XXI será. Entretanto percebemos que a cada ano que se passa no Brasil, há uma maior procura e interesse sobre a obra de Gilles Deleuze e a esquizoanálise por profissionais e pesquisadores/as de diversas áreas de conhecimento. Destaca-se que a esquizoanálise vem sendo adotada como uma referência teórica importante em vários campos de pesquisa das ciências humanas no país, como na Educação, na Psicologia, nas Artes, na Antropologia etc.

Deleuze e Guattari (1992) possuem um enfoque construtivista e pragmático para a análise dos processos, a tal ponto que consideram que as teorias devem ser utilizadas como uma caixa de ferramentas. Abaixo colocamos um fragmento do famoso diálogo entre Deleuze e Foucault, intitulado ‘Os intelectuais e o poder’:

Uma teoria é uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante. É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá-la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o momento ainda não chegou. Não se refaz uma teoria, fazem-se outras; há outras a serem feitas. É curioso que seja um autor que é considerado um puro intelectual, Proust, que o tenha dito tão claramente: tratem meus livros como óculos dirigidos para fora e se eles não lhe servem, consigam outros, encontrem vocês mesmos seu instrumento, que é forçosamente um instrumento de combate. A teoria não totaliza; a teoria se multiplica e multiplica. (FOUCAULT; DELEUZE, 1979, p. 71).

Esta citação expressa o enfoque pragmático deleuzeano. As teorias devem funcionar, devem agenciar-se com o fenômeno investigado. Se uma teoria, ou um conceito, não se demonstra útil para analisar determinado fenômeno, ela deve ser trocada, ou mesmo deve ser inventada uma nova teoria. E a teoria não deve totalizar os fenômenos, ou seja, não deve reduzir e formatar o real ao seu conjunto de códigos e significantes, mas sim multiplicar os sentidos advindos desse real.

Neste trabalho buscamos seguir esta mesma perspectiva pragmática deleuzeana, refletindo sobre algumas possíveis contribuições da esquizoanálise à pesquisa. Dessa forma o objetivo deste artigo é investigar a obra de Deleuze e Guattari, para discutir alguns conceitos que contribuam para a pesquisa em ciências humanas.

O método realizado foi uma revisão bibliográfica e análise de toda obra publicada de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Em nossa revisão buscamos por conceitos que pudessem nos fornecer pistas para o método de investigação. Também analisamos alguns textos de comentadores, como por exemplo Gregorio Baremblitt (1998), Suely Rolnik (1997), François Zourabichvili (2009) e a produção de pesquisadores/as brasileiros/as sobre a cartografia (ROLNIK, 1989; PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2010; PASSOS; KASTRUP; TEDESCO, 2014). Contudo, vale ressaltar que optamos por focalizar mais as passagens da obra de Deleuze e Guattari, do que nos debruçar sobre a produção acerca da cartografia dos/as pesquisadores/as brasileiros/as, na tentativa de produzir outros enunciados possíveis para o método de pesquisa.

Como resultados encontramos diversos conceitos e proposições que podem contribuir para a pesquisa em ciências humanas e na educação. Evidentemente é uma tarefa complexa transpor conceitos da filosofia ao ‘campo aplicado’ da pesquisa. Contudo, em nosso trabalho reflexivo tivemos que operar um certo contrabando, uma migração, entre fronteiras, no qual os conceitos filosóficos nos inspiraram no produzir e no lapidar de nossas ferramentas investigativas. Nesse sentido, dentre os diversos conceitos da obra de Deleuze e Guattari, selecionamos três para a análise nesse artigo: a cartografia, a perspectiva háptica e a lógica das intensidades. Dessa forma, subdividimos a discussão nestes três tópicos, que são articulados com outras proposições provenientes desse campo teórico. Ressaltamos que o trabalho empreendido a seguir foi o de refletir como esses conceitos podem proporcionar pistas para um método de análise singular para a pesquisa nas ciências humanas.

A cartografia como método

A cartografia é o método privilegiado de investigação dos trabalhos influenciados pela esquizoanálise. Há muitos livros, artigos, teses de doutorado e dissertações de mestrado, principalmente na área da Psicologia, que utilizam o método da cartografia. Dentre eles, destaca-se a coletânea ‘Pistas do método da cartografia’, organizada por Eduardo Passos, Virgínia Kastrup e Liliana da Escóssia (2010), que influenciou muitas pesquisas subsequentes. Para esses estudos, a cartografia pode ser considerada como um método de investigação e intervenção criado pela dupla Deleuze e Guattari (1980a), a partir de sua discussão sobre a lógica do rizoma. Ressaltamos que praticamente todos estes estudos aludem mais ao enfoque metodológico da cartografia, ao invés das reflexões posteriores de Guattari (1989) com suas cartografias esquizoanalíticas, nas quais traça as quatro categorias de: phylum maquínico, universos conscienciais, territórios existenciais e economia dos fluxos, componentes fundamentais para os processos de subjetivação. Neste tópico também visamos tratar a cartografia apenas como um método.

No capítulo sobre o rizoma de Deleuze e Guattari (1980a), a cartografia pode ser vista como um método. Contudo não um método que se refere à reprodução, redução, ou decalque do real. Funciona muito mais como um mapa que constitui um sistema aberto com múltiplas entradas e saídas, havendo uma conexão e entrelaçamento com o real. Um mapa aberto a seu tracejar, à construção de processos. Um sistema a-centrado, não hierárquico e assignificante. Dessa forma a cartografia é um procedimento que conecta, agencia e que compõe com o real. É um mapeamento que produz a realidade e não meramente a representa.

Para traçar essas linhas de investigação cartográfica, é necessário acompanhar os processos (ROLNIK, 1989; BARROS; KASTRUP, 2010). A cartografia realiza um movimento construtivista e pragmático, de traçar linhas com o movimento do fenômeno investigado. Dessa forma, não é restitutiva, ou regressiva, ela adota uma perspectiva construtivista, que se faz com o caminhar do investigador. Por isso que Deleuze (1993) afirma que o método da esquizoanálise abandona a interpretação, em prol da experimentação. Por exemplo, ao invés de reproduzir o tradicional método psicanalítico, interpretativo, de regressão a um passado imaginado e/ou experienciado, a cartografia é construtivista. Em vez de buscar e escavar a ‘tumba do faraó’, prefere seguir e mapear os movimentos de deriva, de deslocamento, dos continentes (DELEUZE, 1993). Desse modo não é uma tarefa arqueológica, genealógica, mas é sobretudo geológica. A cartografia não é histórica, mas é eminentemente geográfica. Não reproduz o passado, senão produz o futuro e o presente, isto é, situa-se numa coexistência paradoxal entre múltiplos planos temporais (DELEUZE, 1966). Ao invés de buscar escavar a raiz e procurar historicamente uma origem, a suposta causa do problema, segue o movimento de propagação nos canais (DELEUZE; GUATTARI, 1980a). Não busca essências idealizadas e transcendentes, mas a produção de sentidos nos fenômenos investigados. Vale destacar que, evidentemente, a cartografia não ignora a história, mas não fica apenas restrita nela e se preocupa com os movimentos e deslocamentos dos corpos no território.

Portanto, a cartografia na pesquisa é empreendida com o caminhar, o seguir, o mapear, o fenômeno investigado. Deve-se cartografar o campo, o território, seus elementos, como um agrimensor, que risca e traça contornos, limites, sendeiros e clareiras, produzindo múltiplos sentidos. O/a pesquisador/a está situado/a, implicado/a, no campo, em que suas ações influenciam os coletivos investigados, produzindo assim uma modalidade de pesquisa-intervenção (PASSOS; BARROS, 2010). Neste mapeamento do território, do fenômeno, inspiramo-nos pelo método do nomadismo, do descentramento, no qual traçamos linhas em movimento, seguindo os fluxos do território, da cidade, do fenômeno investigado. Tentamos propagar-nos tal como num movimento de rizoma (DELEUZE; GUATTARI, 1980a), sem centro, nem começo, limites ou fim. O plano de investigação é sempre um campo aberto, em variação contínua, e só é constituído quando tracejado.

Na cartografia não se visa apenas analisar a matéria, a substância entificada. Busca-se investigar a movimentação dos fluxos, suas trajetórias, coordenadas, direções e sentidos. Não focaliza apenas o que está em repouso, senão os movimentos, os vetores de forças, suas velocidades e lentidões. Não busca conhecer somente o que é estratificado e as máquinas concretas. Visa debruçar-se sobre o que está em variação contínua, as virtualidades e as máquinas abstratas. Não se atém apenas à lógica do ser, mas também a do devir (DELEUZE, 1969), ou melhor, compreende o ser como o ser do devir (BAREMBLITT, 1998), o ser enquanto duração, mudança e autoalteração (DELEUZE, 1966). Nessa perspectiva, não pesquisa somente o que aparece como semelhança, padrão, identidade e constância, mas sim a dissimilitude, desvios, diferenças, dissonâncias, variações, e principalmente o que irrompe como acontecimento.

Desse modo, a cartografia é uma espécie de diagramática (HUR, 2018). Analisa e segue os vetores, as configurações e os diagramas de forças, sempre móveis, plásticos e mutantes. Investiga os circuitos desejantes constituídos (HUR, 2020a), as forças que fazem fluir, bem como aquelas que bloqueiam, pressionam e coagem o movimento, tanto das máquinas abstratas, quanto das máquinas concretas. Desenha as redes de forças que envolvem o fenômeno investigado (BARROS; KASTRUP, 2010). Destacamos que um diagrama sempre está acompanhado por suas máquinas concretas (DELEUZE, 2014), ou seja, por suas formações atualizadas.

Mesmo sendo aberta, vale ressaltar a importância de um território de ancoragem para que a cartografia se desenvolva. É necessária uma prudência do/a pesquisador/a. Dessa forma, não consideramos que a cartografia seja uma atividade laissez-faire, que se faz de qualquer forma ao bel prazer do/a investigador/a. Como afirma Deleuze em inúmeras ocasiões, a tarefa do pensamento parte de um problema, o qual muitas vezes é necessário produzir. Então, consideramos que a atividade cartográfica é decorrente do problema de pesquisa estipulado e desenvolvido pelo/a pesquisador/a. Problema de pesquisa que produz um eixo e território para a investigação subsequente. Por isso que o/a investigador/a antes de ir a campo deve estabelecer um ‘programa cartográfico’, que é sua porção de terra firme. Evidentemente seu programa não se funda sobre um enquadramento fixo, mas pelo contrário, estrutura-se em enquadres móveis (LANS, 2003), em que é possível efetuar curvas e desvios no decorrer da pesquisa, de acordo com os acontecimentos externos.

A perspectiva háptica

Na investigação dos fenômenos a partir da esquizoanálise, o/a pesquisador/a não se atém apenas à materialidade discursiva, ao significante, à representação. Para Deleuze (1968a) o enfoque do pensamento não é apenas sobre as:

[...] figuras já mediatizadas e referidas à representação, mas, ao contrário, estados livres ou selvagens da diferença em si mesma que são capazes de levar as faculdades a seus limites respectivos. Não é a oposição qualitativa no sensível, mas um elemento que é em si mesmo diferença e cria, ao mesmo tempo, a qualidade no sensível e o exercício transcendente na sensibilidade: este elemento é a intensidade, como pura diferença em si [...] (p. 209).

Nesse sentido, a cartografia não se restringe na busca do que é representado, no significante, na materialidade discursiva. Para captar este novo elemento, as intensidades, não reduz os múltiplos dados do campo somente ao texto. O método cartográfico opera também com outras materialidades que vão além da representação, busca captar o extralinguístico e os distintos componentes da expressão (TEDESCO; SADE; CALIMAN, 2013).

Por isso que na pesquisa em esquizoanálise buscamos alterar a perspectiva do olhar do/a investigador/a, deslocando-nos de uma dimensão visual e auditiva para a dimensão háptica. Deleuze (2007) utiliza o termo háptico de Alois Rigl, um filósofo da estética, para tratar de um agenciamento entre a visão e o tato, numa forma de sensibilidade sinestésica. “A visão ótica seria a perspectiva distante, relativamente distante. Ao contrário, o exercício háptico, ou a visão háptica, é a perspectiva próxima que capta a forma e o fundo sobre o mesmo plano, igualmente próximo” (DELEUZE, 2007, p. 205, tradução nossa). Deste modo, a perspectiva háptica, esta modalidade de visão tátil, não capta apenas as sínteses, as figuras, mas também os movimentos, os esquemas, a relação entre figura e fundo, o contorno, os processos intermediários, as vibrações e ondulações moleculares (DELEUZE, 2007). Utiliza assim uma modalidade de olhar vibrátil (ROLNIK, 1997). Nesse sentido, não pretendemos codificar os processos com a perspectiva instituída de nosso olhar e escuta, com nossas imagens de pensamento instituídas, mas pelo contrário, deixar-nos ser afetados pelo que nos circunda, pelas forças e ondulações do território.

Aqui, vale destacar que Deleuze opera um movimento contrário ao cogito cartesiano. Em seu primeiro livro, o filósofo francês (DELEUZE, 1953) critica um dos alicerces da filosofia moderna ao tratar da constituição do conhecimento. Assume posição contrária ao ‘Cogito, ergo sum’, o ‘Penso, logo existo’, pois considera que tal acepção de uma anterioridade de um ser, de uma consciência, que pensa o dado, que apreende o objeto, o mundo, um equívoco. O conhecimento não deriva da atitude de um sujeito que apreende e pensa o dado para constituí-lo, senão o contrário. São as afecções do território, do dado, sobre o ser, que constituem as possibilidades de produção de conhecimento. Então não é o sujeito que constitui o objeto e a existência ao cogitá-los, ao pensá-los, senão é o inverso. É o dado que constitui o sujeito. E por dado, considera-se os fluxos, as forças e movimentos do território (DELEUZE, 1953). O território é anterior ao sujeito do conhecimento, embora sempre seja marcado, estriado, por ele nessa co-construção (ZOURABICHVILI, 2009). Não é o Eu que pensa o mundo, o objeto, senão é o campo, o território, que ‘pensa’, produz, o Eu. Deleuze (1953) abandona assim uma Filosofia do cogito, transitando para uma Filosofia das afecções, a qual é totalmente convergente com esta discussão de uma dimensão háptica.

Na perspectiva háptica, do método das múltiplas afetações, não nos fixamos apenas na busca pelo significante, na materialidade discursiva, visamos rastrear e mapear os devires, afetos e intensidades. Buscamos fazer “[...] vibrar sequências, abrir a palavra para intensidades interiores inauditas, em resumo, um uso intensivo assignificante da língua” (DELEUZE; GUATTARI, 1975, p. 34). Para tanto, também utilizamos o corpo como instrumento de coleta de dados, abrindo-o às afetações das mais distintas espécies. Afetos, sons, ruídos, cheiros, movimentos, deslocamentos e cansaços tornam-se índices investigativos do processo. É o/a pesquisador/a implicado/a e situado/a em seu campo. Assim não atualizamos somente narrativas, mas também forças e afetos, deslocamentos, velocidades e lentidões. A cartografia investiga as rotas do desejo e suas máquinas, seus circuitos desejantes constituídos. Os vetores das forças ativas e reativas (DELEUZE, 1962). Por exemplo, o porquê do desejo desejar sua repressão, ou mesmo sua auto-abolição. Que circuito desejante se constitui quando a força deseja sua própria abolição? Em uma aproximação com a análise institucional1 podemos afirmar que a cartografia na esquizoanálise acompanha os movimentos instituintes e instituídos, num processo de autoanálise que busca a autogestão (BAREMBLITT, 1986).

Nessa modalidade investigativa também buscamos não nos fixar em nosso campo consciencial. Como afirma Espinosa, a consciência pode ser um lugar da ilusão (DELEUZE, 1981), que muitas vezes reduz e formata as potências do corpo e suas composições. Desse modo, visamos destotalizar a consciência, compreendendo que ela é uma resultante dos processos, da tensão e composição das forças do corpo, e não o contrário. E também destacamos o supracitado, de que não há um primado da consciência, do cogito, sobre o dado (DELEUZE, 1953). Por isso visamos deslocar-nos do Eu, para outras perspectivas, outros ângulos de análise, numa espécie de descentramento do Eu. Nessa tentativa de deslocalização visa-se descentrar-se do Eu para ascender a uma experiência do contorno, de bordas que sempre se esticam, difundem-se, tal como no filme Sonhos de Akira Kurosawa (1990). Contemplar o quadro de Van Gogh, mas quando percebemos, estamos dentro dele. E ao olhar as bordas, para retornar ao nosso lócus anterior, percebemos que os contornos, os limites, sempre se ampliam, acompanhando o nosso olhar, em que já somos arrebatados pelo que contemplamos. Isto é, busca-se efetuar um processo de raspagem do próprio olhar e sentir, para deslocar-se do primado da consciência. Vale destacar que a raspagem refere-se à primeira tarefa da esquizoanálise: a destrutiva (DELEUZE; GUATTARI, 1972). Também vale ressaltar que esse movimento de descentramento não tem nada a ver com uma posição de neutralidade, ou algo do tipo, mas sim a uma tentativa de aceder ao fenômeno investigado em seus diversos ângulos, e não apenas através do olhar enviesado e formatado do investigador: uma busca pela experiência dos contornos. Uma experiência de dissolução do ponto de vista do observador (PASSOS; EIRADO, 2010). Dessa forma, procuramos traçar um movimento mais impessoal do que pessoal, pré-subjetivo do que subjetivo, que articula as singularidades anônimas ao contexto material e múltiplo do fenômeno investigado, num deslocamento mais geográfico, do que temporal.

Nesse sentido, inspirados por essa conceituação de cartografia, resultam-se diversos dispositivos de investigação, como: cartografia grupal; derivas cartográficas pelo território; visitas cartográficas à comunidade e moradias; realização de eventos e oficinas; entrevistas clínicas; cartografias observacionais; esquizodrama; e os mais diversos dispositivos investigativos que o/a pesquisador/a pode vir a inventar. Evidentemente cada um desses dispositivos de pesquisa merece maior discussão, mas que aqui excederia o intuito deste artigo.

Vale ressaltar que após a realização desses dispositivos, realizamos um registro escrito, ou até mesmo gráfico, de alguns dos perceptos experienciados num diário de campo. Este registro geralmente é realizado a posteriori da pesquisa-intervenção e não se restringe às falas e opiniões das pessoas, mas também aos afetos, perceptos, sensações, tanto dos/as pesquisados/as, como do/a próprio/a pesquisador/a.

Evidentemente a cartografia faz parte das chamadas metodologias qualitativas e não das quantitativas. Mesmo que em determinada etapa da investigação possa haver a utilização de um levantamento estatístico sobre algum dos temas investigados, mantemos o desenvolvimento de uma ampla discussão e análise dos dados numa lógica das intensidades, e não da lógica mecanicista, ou positivista.

Lógica das intensidades

Após a realização da intervenção de pesquisa, da coleta cartográfica, chega-se na etapa da análise dos dados. Na análise da cartografia, apreciamos todos os dados coletados e registrados, selecionando os que estão mais relacionados ao problema da pesquisa em si e que apresentam maior intensidade.

Como não priorizamos uma análise quantitativa, não nos restringimos ao indicador ‘frequência’. Optamos por trabalhar mais com o indicador ‘intensidade’ do que com a frequência de aparição de determinado aspecto. Pois sabemos que não necessariamente o indicador ‘frequência’, importante medida quantitativa, é o mais relevante para determinada problemática de investigação. Não é porque apareceu mais vezes é que sempre será mais importante para a análise dos dados. Às vezes, inclusive, uma alta frequência de aparição pode estar relacionada a uma estereotipia, a um hábito instituído, a um discurso pressuposto, uma fala vazia, burocratizada, que parece girar em falso (GUATTARI; ROLNIK, 1986), um como se, seja dos entrevistados, ou mesmo pelo viés, ou sugestão do/a pesquisador/a. Deste modo pode não aportar novos sentidos para a problemática investigada, ficando na repetição do mesmo já conhecido e reconhecido. Evidentemente a frequência é um índice maquínico de como determinado circuito desejante está funcionando, mas que geralmente está mais relacionado à sua constância, estabilidade, do que pela sua variação e diferenciação. Talvez possa até se configurar como um buraco negro (DELEUZE; GUATTARI, 1980b), com todas suas forças centrípetas, obnubilando assim as expressões diferenciais do fenômeno investigado, em que até o/a próprio/a pesquisador/a pode ficar com seu pensamento e análise capturados pela lógica da frequência de aparição.

Já a lógica das intensidades refere-se a outros aspectos. Na obra de Deleuze e Guattari, as intensidades são aludidas praticamente em todos os seus livros, principalmente na obra decorrente da tese de doutorado de Deleuze (1968a), Diferença e repetição. Um primeiro aspecto a se ressaltar é que as intensidades não se referem ao campo do significante, do representado, mas aludem a partículas e processos assignificantes (DELEUZE; GUATTARI, 1975). Um segundo aspecto é que as intensidades não estão subjugadas pelos planos da quantidade, nem da qualidade, exprimindo uma terceira vertente.

A intensidade recebe variadas concepções em sua obra: como sinônimo de forças (DELEUZE; GUATTARI, 1977), como uma quantidade de potência, isto é, um grau de potência (1968b), e principalmente como diferença, relação diferencial. “As intensidades compreendem em si o desigual ou o diferente, cada qual já é diferença em si, tanto que todas estão compreendidas na manifestação de cada uma” (DELEUZE, 1969, p. 305). Por isso que falar em diferença de intensidade “[...] é uma tautologia. A intensidade é a forma da diferença como razão do sensível. Toda intensidade é diferencial, diferença em si mesma” (DELEUZE, 1968a, p. 314). Então, referir-se à diferença e à intensidade numa mesma expressão pode ser considerado como uma redundância. “As intensidades só exprimem e supõem relações diferenciais” (DELEUZE, 1968a, p. 353), as quais produzem disparidade, que é o estado da diferença infinitamente redobrada, os desdobramentos sucessivos da diferença.

Dessa forma, consideramos que a intensidade é um grau de força, um grau de potência, que expressa uma relação diferencial, um salto, uma espécie de ‘acento tônico’ que porta um outro processo, numa outra lógica do sentido que não se restringe à identidade, igualdade e semelhança.

Os valores tônicos e intensivos agem, ao contrário, criando desigualdades, incomensurabilidades, em durações ou espaços metricamente iguais. Eles criam pontos notáveis, instantes privilegiados que marcam sempre uma polirritmia. Ainda aí o desigual é o mais positivo. O compasso é apenas o envoltório de um ritmo, de uma relação de ritmos. A retomada de pontos de desigualdade, de pontos de flexão, de acontecimentos rítmicos, é mais profunda que a reprodução de elementos ordinários homogêneos, de tal modo que devemos sempre distinguir a repetição-compasso e a repetição-ritmo, a primeira sendo apenas a aparência ou o efeito abstrato da segunda (DELEUZE, 1968a, p. 46).

Nessa citação constata-se que a intensidade produz diferenças, desigualdades, seja em planos métricos, mensuráveis, ou no fluxo contínuo e de variação da duração. Está relacionada aos acontecimentos rítmicos, que produzem um estiramento dos processos, e não à lógica do compasso, que é uma espécie de organização do ritmo. Enquanto a intensidade e o ritmo são decorrentes e produtores dos acontecimentos, a repetição-compasso pode ser associada à lógica da frequência e de codificação.

Para Deleuze (1968a) a intensidade exprime o desigual em si, afirma a diferença e a implicação. A intensidade está implicada, envolvida, ‘embrionada’, pelas extensões, evidentemente em distintos graus de distensão e contração. Por isso que o filósofo francês afirma que as “[...] intensidades são multiplicidades implicadas, ‘implexas’, feitas de relações entre elementos assimétricos que dirigem o curso de atualização das Ideias e determinam os casos de solução para os problemas” (1968a, p. 343-344).

Mas como cartografar as intensidades no labor investigativo? Como elas aparecem em nossos dados? Como operacionalizar esse rastreio?

Deleuze afirma que devemos ler os processos em intensidade. Consideramos que ler em intensidade é o mesmo que assumir a perspectiva háptica, aludida no tópico anterior. Nesse sentido, a intensidade instaura uma nova lógica da sensibilidade. “É a intensidade, é a diferença na intensidade que constitui o limite próprio da sensibilidade. [...] Apreender a intensidade, independentemente do extenso ou antes da qualidade nos quais ela se desenvolve, é o objeto de uma distorção dos sentidos” (DELEUZE, 1968a, p. 333).

Deve haver uma torção na sensibilidade, sua própria distorção para que seja possível captar esses processos de irrupção e diferenciação. Pois a intensidade não é extensão, é o virtual do que se apresenta atualizado (HUR, 2018), na relação entre intensio e extensio (DELEUZE, 1968a). Por isso “[...] a intensidade não é sensível; ela é o ser do sensível, em que o diferente se refere ao diferente” (DELEUZE, 1968a, p. 370), é a pura diferença, a qualidade percebida, a intensidade da sensação.

Nesse sentido, nos dados investigados, devemos rastrear os indicadores intensivos ou tensores (DELEUZE; GUATTARI, 1975) do processo. As linhas de fuga, fissuras e rupturas. Deste modo a intensidade pode dizer respeito à irrupção de uma nova associação, uma nova elaboração, à emergência de uma crise, ou de um novo processo. “A intensidade, sendo já diferença em si, abre-se sobre séries disjuntas, divergentes” (DELEUZE, 1969, p. 307), desdobrando-se em novos planos e processos, produzindo disparidades.

Portanto, as intensidades são índices fundamentais, pois podem traçar fissuras e aberturas aos devires, às linhas de fuga. O intensivo, a linha de fuga, aparece como um elemento diferencial que provoca fissuras no circuito desejante instituído. Estas fendas e rachaduras podem produzir a própria ruptura da estereotipia, processos de desterritorialização e descodificação. Crise e movimentação que podem incitar a produção de linhas para a construção de um novo circuito desejante (HUR, 2020b). Podem fomentar a produção de acontecimentos, os processos de hecceidade, a singularização: possíveis eventos decorrentes da pesquisa-intervenção. Podem remeter a processos de individuação, que não se reduzem ao sujeito. “Do intensivo ao pensamento, é sempre através de uma intensidade que o pensamento nos advém” (DELEUZE, 1968a, p. 210).

Vale destacar que na esquizoanálise, o pensamento não se reduz a imagens instituídas e estanques: a imagem do pensamento (DELEUZE, 1968a). Pelo contrário, deriva de uma faísca (FOUCAULT, 1996), uma ignição, uma combustão, que produz um novo processo. Um desmoronamento (DELEUZE; GUATTARI, 1972), uma corrosão, que remete a uma vazão de fluxos, de linhas, que gera uma movimentação no e do território. O pensar é o movimento, ou o contrário da imagem do pensamento: é o pensar sem imagens. Por mais que seja óbvio, o pensar é fundamental para a produção de conhecimento. Portanto, para seu efetivo exercício, deve-se escapar das forças centrípetas, dos muros brancos e dos territórios constituídos da reprodução.

Como supracitado, a intensidade não se refere nem ao qualitativo, ou ao quantitativo, mas a um processo com elevado grau de forças, com uma pungência disruptora. É aquilo que atravessa os limiares instituídos e é determinante nos processos de atualização.

O determinante no processo de atualização é a intensidade. É a intensidade que dramatiza. É ela que se exprime imediatamente nos dinamismos espaço-temporais de base e que determina uma relação diferencial, ‘indistinta’ da Idéia, a se encamar numa qualidade distinta e num extenso distinguido (DELEUZE, 1968a, p. 345).

Buscamos assim elementos que possam portar um quantum de forças que expresse a diferença, novas linhas e uma outra configuração para o vivido no fenômeno, ou seja, a produção de acontecimentos. Muitas vezes, eles podem surgir apenas uma vez, em contraposição a outro elemento que aparece com uma frequência maior, mas mesmo assim podem ser muito mais significativos para a problemática vivida. Se traçamos alguns paralelos com autores da análise institucional e da psicologia de grupos, na terminologia de Enrique Pichon-Rivière (1982) rastrear as intensidades pode ser análogo ao mapeamento dos emergentes na cadeia associativa grupal. Tanto que para o psicólogo social argentino, esses emergentes não se referem apenas a formações discursivas, mas também a sintomas, sonhos, afetos e fantasias imaginárias. Já na terminologia de René Lourau (1975), rastrear as intensidades pode ser análogo a buscar os analisadores2.

As intensidades podem ser vistas como índices propulsores dos movimentos, dos devires, das passagens (DELEUZE; GUATTARI, 1972) e da produção de alteridades. Sua emergência pode provocar uma ondulação, a produção de uma zona de intensidades, que provoca novos processos, uma nova rotação, uma força centrífuga, que fomentam a repetição diferencial. Por isso que para Deleuze (1969), “[...] o verdadeiro sujeito do eterno retorno é a intensidade, a singularidade [...]” (p. 308), pois é ela que que tem forças para retornar e retira a repetição de sua órbita instituída, produzindo uma linha abstrata que desloca o centro de gravidade de um corpo para novas rotas. Ritornelo (DELEUZE; GUATTARI, 1980c), a repetição da diferença, a repetição da novidade.

Dessa forma, na lógica das intensidades, ao invés de reduzir os dados em categorias amplas e gerais, buscamos complexificar os fenômenos, encontrar as diferenças e não as igualdades e semelhanças, mapear as anomalias e não as normas. Trafegar nas zonas de intensidade, no contínuo de intensidades. Isto é, a proposta é rastrear as intensidades a partir da ótica do problema de pesquisa, os dados emergentes, diferenciais e as situações dilemáticas e de crise. Buscamos seguir a vazão dos fluxos, a irrupção das diferenças e a multiplicitação dos fenômenos, ou seja, captar as identidades, as estruturas, como multiplicidades. Operar não com a organização, a significação e subjetivação, senão com a desarticulação, a experimentação e o nomadismo (DELEUZE; GUATTARI, 1980b).

Na análise selecionamos os indicadores intensivos emergentes que podem produzir mais sentidos sobre o fenômeno, configurando-se assim como analisadores do processo. Recordamos que nos importa mais como determinado tema aparece como acontecimento, ao invés de quantificarmos a ocorrência de determinado assunto. Desse material difratado e aparentemente caótico passamos a produzir sentidos, entrando então na etapa de conexão e reterritorialização, fundamental para a escrita do trabalho. Após nos deslocarmos na superfície de produção, passamos a transitar na superfície de registro (BAREMBLITT, 1998). Agrupamos os diversos dados em conjuntos temáticos, como por exemplo distintas narrativas, diferentes diagramas, vetores de forças etc. Utilizando o critério de intensidade, realizamos mais um agrupamento, no qual elaboramos as categorias gerais de análise. Tais categorias evidentemente são discutidas a partir dos conceitos da teoria adotada, no nosso caso, a esquizoanálise de Gilles Deleuze e Félix Guattari.

Devido a todos esses fatores para a apreensão dos dados, vale destacar que a atividade de pesquisa também é uma atividade clínica. “O pensador é antes de tudo um clínico, decifrador do sensível e paciente dos regimes de signos produzidos pela existência, e segundo os quais ela se produz” (ZOURABICHVILI, 2009, p. 107). Mas de uma clínica não no sentido instituído da psicologia tradicional e da psiquiatria. A atividade clínica aqui não se refere ao debruçar-se sobre o leito do enfermo, mas sim a clínica como clinos e clinamen. Nessa proposição, Gregorio Baremblitt (1998), inspirado pelos filósofos atomistas, cita que a movimentação das partículas subatômicas é denominada por eles como clinos. Contudo, há um segundo movimento, quando há o encontro entre um átomo e outro, o qual provoca um desvio diferencial em suas rotas. Esse encontro, com a consequente produção de um desvio, é denominado como clinamen. Portanto, para o criador do esquizodrama, a clínica deve ser a arte dos encontros que provocam desvios, ou seja, a produção de diferenças. Por isso, Baremblitt, para se diferenciar das tradicionais acepções de clínica, prefere grafar sua clínica-política com “K”, desenvolvendo então uma série de klínicas (BAREMBLITT; AMORIM; HUR, 2020). E para nós a pesquisa também pode ser a arte dos encontros que produzem novas enunciações e sentidos diferenciais acerca do que investigamos e experienciamos em relação aos fenômenos investigados. Por tais razões, a pesquisa na lógica da cartografia das intensidades atualiza essa perspectiva do clinamen adotada por Baremblitt (1998).

Considerações finais

Neste trabalho buscamos investigar alguns conceitos da esquizoanálise que podem ser contributivos para o método de pesquisa em ciências humanas. Dentre os diversos conceitos pesquisados de Deleuze e Guattari selecionamos três para nossa discussão: a cartografia, a perspectiva háptica e a intensidade.

A cartografia é uma proposta de análise realizada por Deleuze e Guattari (1980a). Na literatura brasileira aparece bastante nos estudos metodológicos de uma psicologia inspirada pela esquizoanálise (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2010). Em síntese é prospectiva, realiza-se em seu fazer, no seu caminhar, e busca mapear e acompanhar processos. Adicionamos que a cartografia se debruça na pesquisa de elementos que não se reduzem ao significante. É um procedimento de investigação que se abre às materialidades assignificantes e aos vetores e configurações de forças.

A perspectiva háptica é uma proposição que se refere a uma mudança da sensibilidade do investigador. Há um deslocamento, uma transição, de uma perspectiva meramente visual e auditiva para uma espécie de visão tátil, que recebe o nome de dimensão háptica. É o modo de apreensão e pesquisa que se refere a uma abertura ao potencial de afecções que o campo de investigação impinge no/a pesquisador/a, implicado/a no território. É a abertura ao poder de ser afetado pelas múltiplas ondulações e vetores de forças do campo.

Já as intensidades inscrevem-se num terceiro regime de análise que se independentiza do quantitativo e do qualitativo. As intensidades atualizam a diferença, relações diferenciais, e também podem ser compreendidas como graus de potência. Por isso emergem como um novo índice investigativo, sendo um ‘registro’ totalmente diferente do índice da frequência. Podem expressar um ‘salto’, um ‘acento tônico’, um grau de potência, que irrompe novas linhas e outros sentidos para a análise do fenômeno investigado, ou seja podem produzir acontecimentos e até processos de singularização, os quais não se reduzem ao indivíduo.

Dessa forma, uma ‘metodologia de análise’ esquizoanalítica opera muito mais como um plano de abertura, em construção, com uma torção da sensibilidade e com as intensidades que irrompem, do que com sistemas totalizados e formatados e os índices de frequência de aparição de determinado elemento. A pesquisa esquizoanalítica realiza uma ampliação no modo de apreensão dos dados, em que sai da dimensão meramente visual, ou mesmo auditiva, para a dimensão háptica (DELEUZE, 2007), numa espécie de visão tátil.

Dessa teorização e entrelaçamento há algumas decorrências para a investigação inspirada pela esquizoanálise. Como as teorias são tomadas como caixas de ferramentas, os conceitos sempre são esticados, articulados com conceitos de outros campos, ou mesmo com os dados empíricos, podendo resultar em bricolagens teóricas que possivelmente geram uma espécie de um hibridismo conceitual. A pesquisa esquizoanalítica sempre será um misto de intervenção-investigação, em que não apenas a teoria transforma o dado, bem como a produção de sentidos sobre o fenômeno pode modificar as ferramentas conceituais, inclusive podendo até produzir novos conceitos. E se possível, a proposta é que o processo de intervenção e pesquisa seja sempre participativo, por exemplo num trabalho horizontal/transversal entre agentes internos e agentes externos, que possam fomentar zonas de intensidade, zonas de potência aos coletivos investigados. Nessa perspectiva, toda pesquisa é uma práxis, dramatização, intervenção, uma clínica-política, análise-ativista, pois é produção de vida e de processos de potencialização. Por isso deve-se agenciar tais ferramentas teóricas, potentíssimas, ao nosso contexto e realidades. Então temos que traduzir, ou melhor, transduzir esses conceitos à realidade brasileira.

Deste modo, o resultado do trabalho investigativo também está em variação contínua e inter-relacionado com outras pesquisas e saberes. Para concluir, consideramos que a esquizoanálise não deve ser denominada apenas como Filosofia da diferença, ou das multiplicidades, mas também como uma Filosofia das intensidades.

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SOBR O AUTOR:

1 No Brasil há uma tradição de trabalhar paralelamente conceitos da esquizoanálise e da análise institucional, por mais que tenham uma gênese conceitual distinta.

SOBR O AUTOR:

2Guattari (1989) afirma que inventou o conceito de analisadores na década de 1960 e critica a forma pelo qual foi recuperado pela análise institucional de René Lourau (1975) e Georges Lapassade (1977). Mesmo com possíveis diferenças entre ambos autores, consideramos que o conceito de analisadores empregado por Lourau se aproxima de nossa concepção para o rastreio das intensidades.

Recebido: 03 de Abril de 2021; Aceito: 20 de Maio de 2021

Domenico Uhng Hur Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia Social pela USP, com pós-doutorado na Universidad de Santiago de Compostela. Professor Associado da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (Goiânia/GO). Membro do CRISE - Núcleo de Estudos e Pesquisas Crítica, Insurgência, Subjetividade, Emancipação. Bolsista PQ-2 - CNPq.

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