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Revista Práxis Educacional

versão On-line ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.17 no.47 Vitória da Conquista ago. 2021  Epub 18-Fev-2022

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v17i47.8698 

Artigos

AUTORITARISMO E ESPERANÇA: COSTURANDO FIOS ENTRE PAULO FREIRE E JOSÉ CARDOSO PIRES

AUTHORITARIANISM AND HOPE: SEWING THREADS BETWEEN PAULO FREIRE AND JOSÉ CARDOSO PIRES

AUTORITARISMO Y ESPERANZA: TEJIENDO HILOS ENTRE PAULO FREIRE Y JOSÉ CARDOSO PIRES

Mônica Maciel Vahl1 
http://orcid.org/0000-0002-6800-1742

Eduardo Arriada2 
http://orcid.org/0000-0001-5216-2739

Gabriela Medeiros Nogueira3 
http://orcid.org/0000-0002-6985-064X

1University of Canterbury - New Zealand monicamvahl@gmail.com

2Universidade Federal de Pelotas - Brasil earriada@me.com

3Universidade Federal do Rio Grande - Brasil gabynogueira@me.com


Resumo:

O presente artigo analisa o romance - O Delfim - do escritor português, José Cardoso Pires, a partir de Paulo Freire, considerando os conceitos: autoritarismo, esperança, situação-limite e inédito-viável. O cruzamento entre literatura, filosofia e educação tem possibilitado uma maior compreensão das relações sociais e conflitivas da sociedade, ampliando, assim, o espectro de análise e de reflexões. No romance analisado, os moradores de Gafeira - aldeia ficcional em que a história é ambientada - vivem em um estado inerte, sonolento, de tempo imóvel e, até mesmo, opressivo. A ocorrência de um crime muda os rumos da história e altera a ordem das relações sociais. Estabelecendo uma metáfora com a lagartixa, o escritor/narrador mostra a impermanência daquilo que parecia consolidado, ou seja, as relações de poder estabelecidas entre a aristocracia e o campesinato se desfazem. Operando com as categorias freireanas: consciência ingênua, opressor/oprimido, e com diversos aspectos abordados no romance, evidencia-se que a organização coletiva e a conscientização dos “desocupados” permitem a superação da condição de oprimidos. A criação da Cooperativa dos Noventa e Oito é exemplo um concreto disso. O texto demonstra que as obras de Pires e Freire, mesmo com linguagens distintas, experiências diferentes e realidades distantes, elucidam formas de opressão e estruturas de poder, desvelam as máculas, as violências e os abusos por parte das elites.

Palavras-chave: José Cardoso Pires; Paulo Freire; Situação limite

Abstract:

This article analyzes the novel “The Dolphin” (In Portuguese: O Delfim) by the Portuguese writer José Cardoso Pires, based initially on Paulo Freire, considering the concepts: authoritarianism, hope, limit situation and unprecedented viability. The intersection between literature, philosophy and education has enabled a greater understanding of the social and societal conflictive relations, thus expanding the spectrum of analysis and reflections. In the novel under analysis, the residents of Gafeira - a fictional village where the story is set - live in an inert, drowsy, immobile and even oppressive state. The occurrence of a crime changes the story’s course and the order of social relations. Establishing a metaphor with the lizard, the writer/narrator shows the impermanence of what seemed consolidated; that is, the power relations between the aristocracy and the peasantry are undone. Operating with the Freirian categories: ingenuous conscience, oppressor/oppressed, and with several aspects addressed in the novel, it is evident that the collective organization and the awareness of the “unemployed” allow overcoming the condition of the oppressed. The creation of the Cooperative of the Ninety and Eight is a concrete example of this. The text demonstrates that the works of Pires and Freire, even in different languages, different experiences and distant realities, elucidate forms of oppression and structures of power, reveal the blemishes, the violence and the abuse by the elites.

Keywords: José Cardoso Pires; Paulo Freire; Limit situation

Resumen:

El presente Artículo analiza el romance - El Delfín - del escritor portugués, José Cardoso Pires, a partir de los postulados de Paulo Freire, considerando los conceptos de: autoritarismo, esperanza, situación límite e inédito viable. El cruce entre la literatura, la filosofía y a educación ha posibilitado una mayor comprensión de las relaciones sociales y conflictivas de la sociedad, ampliando de esta manera, el espectro en los análisis y reflexiones. En el romance estudiado, los habitantes de Gafeira - aldea ficcional en la que la historia es ambientada - viven en un estado inerte, somnoliento, de tiempo inmóvil e, inclusive, opresivo. El acontecimiento de un crimen cambia los rumbos de la narración y altera el orden de las relaciones sociales. A partir de la metáfora con la lagartija, el escritor muestra la impermanencia de aquello que parecía consolidado, es decir, las relaciones de poder establecidas entre la aristocracia y los campesinos se deshace. Operando con las categorías freireanas: Consecuencia ingenua, opresor/oprimido, y con los diversos aspectos abordados en el romance, se evidencia que la organización colectiva y la concientización de los “desocupados” permiten la superación de la condición de oprimidos. La creación de la Cooperativa de los noventa y ocho, es el ejemplo más concreto sobre esto. El texto demuestra que las obras de Pires y Freire, inclusive en lenguajes distintos, experiencias diferentes y realidades distantes, esclarecen las formas de opresión y estructuras de poder, revelan las imperfecciones, las violencias y los abusos por parte de las élites.

Palabras Clave: José Cardoso Pires; Paulo Freire; Situación limite

Considerações iniciais

Este artigo analisa o romance O Delfim, de José Cardoso Pires, por meio de lentes Freireanas, em particular, a presença de uma situação autoritária e a construção de uma possibilidade de mudança. No romance, um narrador, sem nome revelado, investiga as diferentes versões de um crime na pequena e ficcional Gafeira, uma aldeia localizada no interior de Portugal. Ao longo do livro, o leitor é apresentado ao relato de testemunhas, às evidências de documentos locais, às referências intertextuais da história e da literatura, bem como às observações e anotações do narrador, compondo um retrato complexo, mas ainda assim incompleto do que teria acontecido no local.

A temática deste trabalho é motivada pela parceria e frutíferos diálogos com Peter Roberts. Professor e pesquisador neozelandês, que há mais de vinte anos tem Paulo Freire como um dos autores referência de seus trabalhos1. Roberts vem inovando em suas produções ao cruzar literatura, filosofia e educação, mais especificamente, clássicos da literatura e as ideias de Paulo Freire. Como, por exemplo, destaca-se os artigos “Freire and Dostoevsky: Uncertainty, Dialogue, and Transformation” publicado em 2005; “Conscientisation in Castalia: A Freirean Reading of Hermann Hesse’s The Glass Bead Game” (2007) e, no corrente ano, “Conscientization, compassion, and madness: Freire, Barreto, and the limits of education” (2021). Este último artigo trata sobre Paulo Freire e Lima Barreto, tendo como objeto de estudo a obra “O triste fim de Policarpo Quaresma”.

Para Roberts (2021, p. 2), “Há muito na filosofia educacional de Freire que pode ser útil em nossa leitura de uma obra de ficção; da mesma forma, no engajamento ficcional, nós podemos aprofundar nossa compreensão sobre os princípios freireanos”2. O referido autor destaca que, desde início do Século XXI, a literatura tem tido um papel significativo para a investigação filosófica e educacional, bem como um amplo reconhecimento acadêmico. Nessa direção, Roberts (2021) indica duas possibilidades de cruzamento entre esses campos do conhecimento. Uma delas tem como foco principal a construção de um “caso” para a literatura e a outra demonstra a potencialidade de um romance como objeto de reflexão, a partir das ideias de um pensador ou teórico, sendo esta a utilizada no caso deste trabalho.

Deste modo, a partir dos trabalhos desenvolvidos por Roberts, vislumbra-se a possibilidade de aventurar-se coletivamente na análise. A escolha dessa obra - O Delfim - deu-se porque ao longo do romance é retratada a violenta exploração da aristocracia agrária relativa ao campesinato português, demonstrando sobre as mais diversas formas como a elite explora, oprime e perpetua relações de dominação. Contudo, o autor aponta algumas possibilidades de superação como, por exemplo, a organização da Cooperativa dos Noventa e Oito, um espaço que se pretende socializado e democrático.

O texto está organizado em cinco seções. Inicialmente apresentamos uma breve biografia dos autores, Paulo Freire e José Cardoso Pires, localizando suas experiências e obras em relação à presença de tradições autoritárias no Brasil e em Portugal. Em seguida, analisamos a construção narrativa da Gafeira, evidenciando diferentes contextos de opressão. Na terceira seção, discutimos o crime envolvendo a família Palma Bravo e a concretização de um inédito viável com a formação da Cooperativa dos Noventa e Oito. Na quarta seção tratamos sobre o movimento da história, a partir dos preceitos de Freire sobre a capacidade do homem de promover mudança. Na última seção, curiosidade e verdade, argumentamos que para desenvolver uma compreensão crítica do mundo e de si é necessário ser curioso.

Por fim, indica-se que as aproximações e tensões entre Freire e Pires, tratadas ao longo da escrita, põem em evidência a necessidade de nutrir o pensamento de que nada é permanente, de que todo contexto é passível de mudança e de que a organização coletiva dos indivíduos em prol de uma causa pode romper com estruturas sociais consolidadas.

Paulo Freire e José Cardoso Pires: vidas marcadas por regimes autoritários

Paulo Freire nasceu em 19 de setembro de 1921, na cidade do Recife, na Estrada do Encanamento. Classe média baixa, sua iniciação educativa deu-se “à sombra das árvores do quintal” (GADOTTI, 1989, p. 20). Freire, um dos pensadores brasileiros mais reconhecido internacionalmente, desenvolveu uma teoria da educação pautada no processo de humanização, articulando método e teoria, com vistas à construção de uma consciência crítica, que busca a superação da profunda alienação em que vivem os oprimidos, a qual transcende os muros da escola e nos possibilita refletir sobre as relações que se estabelecem nos diferentes contextos. Deste modo, postula uma pedagogia da libertação mediada pela conscientização. Entre seus diversos livros publicados cita-se Educação como Prática da Liberdade (1967), Pedagogia do Oprimido (1974) e Pedagogia da Esperança (1992).

Convém destacar que a longa dominação portuguesa no Brasil gerou um modelo de sociedade aristocrático, autoritário, e com inexpressiva (ou inexistente) experiência democrática. A colonização privilegiou uma pequena minoria de senhores (nobres), defendida por militares, pequenos servidores burocratas e representantes do clero, em detrimento de uma vasta massa de escravos, índios, caboclos e camponeses. A elite, que dominava todas as esferas de poder, tinha sua estrutura de produção vinculada aos grandes latifúndios, à exportação de produtos agrícolas, bem como ao uso violento e brutal do braço escravo, durante séculos.

Os reflexos dessa longa história reverberavam nos primeiros anos do século XX, mais especificamente nos anos de 1920. Contudo, mesmo se tratando do Brasil nação, ainda eram fortes os espectros da escravidão, com uma postura discriminatória e cerceadora, herança da antiga metrópole. Parte dessa realidade é analisada por Freire em sua tese para o concurso para a Cadeira de História e Filosofia da Educação, na Escola de Belas-Artes de Pernambuco, intitulada: Educação e atualidade brasileira (1959). Nos primeiros capítulos, Freire caracteriza a formação histórica do Brasil da época, sendo que sua escrita em grande parte está baseada nos intelectuais do Instituto Superior de Educação - ISEB, particularmente, em Álvaro Vieira Pinto, Guerreiro Ramos e Hélio Jaguaribe. Esse grupo de intelectuais, a partir de uma interpretação da realidade brasileira, visava a construção de uma consciência de seu subdesenvolvimento a fim de produzir as condições para superar esse estágio por meio de uma ideologia nacional-desenvolvimentista.

Freire concentra-se na estrutura da educação brasileira, “inautêntica e “inorgânica”, no sentido da construção da consciência crítica, da transformação da massa em povo. É este gosto da verticalidade, do autoritarismo, expresso por Freire em sua tese, “enraizado em nossas matrizes culturológicas, que refletem a nossa “inexperiência democrática”, [...] mais do que tudo, neste centralismo asfixiante em que nos debatemos”. [...] (FREIRE, 2001, p. 120).

Realmente o Brasil, escreve Freire:

[...] nasceu e cresceu dentro de condições negativas às experiências democráticas. O sentido marcante de nossa colonização, fortemente predatória, à base da exploração econômica do grande domínio, em que o “poder de senhor” se alongava “das terras às gentes também” e do trabalho escravo inicialmente do nativo e posteriormente do africano, não teria criado condições necessárias ao desenvolvimento de uma mentalidade permeável, flexível, característica do clima cultural democrático, no homem brasileiro (FREIRE, 1967, p. 67).

A percepção de Freire quanto à relação altamente predatória que se estabelecia no início da colonização do Brasil pelos portugueses, a qual se mantém mesmo passado alguns séculos, é o modo operante da sociedade brasileira, naturalizada pela falta de uma consciência crítica. Em sua obra, Freire denunciou e explicitou como se engendram essas relações de poder e a exploração entre os seres humanos. Mais ainda, ele vai no âmago da questão e mostra que a logística estabelecida nessas relações podem ser revertidas por meio da conscientização e da luta de classe da população explorada e oprimida, motivo pelo qual causou tanta revolta, ojeriza e perseguição, a ponto de precisar ser exilado por anos do Brasil, como única forma de sobreviver. Mas, como um efeito inverso, Paulo Freire teve suas ideias altamente divulgadas no exterior e sua obra hoje é reconhecida mundialmente3. Em 02 de maio de 1997, em decorrência de complicações pós cirúrgica, sofre um ataque cardíaco, o que o leva a morte.

Autor do romance aqui analisado, José Cardoso Pires nasceu em 02 de outubro de 1925, na aldeia do Peso, distrito de Castelo Branco. Pelo lado paterno descende de pobres emigrantes fixados nos Estados Unidos. Pelo lado materno, a família descendia da classe média burguesa de origem rural. O autor colaborou em diversos periódicos, entre outros: o Globo e Afinidades. Nos seus primeiros escritos, percebe-se a marca do neo-realismo. No final da década de 40, publicou Os caminheiros e outros contos, O anjo ancorado, O Hóspede de Job. Em 1960, dirigiu a revista Almanaque, cujo programa era simples: ridicularizar os provincianismos culturais. Em 1968, publicou o romance O Delfim, considerado um dos grandes livros da literatura portuguesa do século XX. Em 1998, o autor vem a falecer.

Embora não tenha vivido na zona rural, Pires, em diversos momentos de sua vida, teve a oportunidade de conviver com gente provinciana, arguto observador, pode transportar para a literatura essa experiência de vida. De modo seguro, capta os nuances, os costumes, as expressões, os gestos, o modo de pensar de diversas pessoas por ele denominadas de desocupados. Pessoas humildes, destituídas de conhecimento, tendo, muitas vezes, máximas que o autor emprega para demonstrar seu universo cultural: paciência, que havemos de nós fazer; a gente tem de se habituar (CRUZ, 1972).

Esse vasto mundo sem perspectiva de futuro, como denomina Liberto Cruz, de tacanha concepção de vida, o medo ancestral da coisa política, o respeito animal à autoridade, a humilhação, os obsoletos códigos de honra e moral, a dureza das personagens aviltadas por uma vida mesquinha e sem horizontes, a aceitação tranquila e resignada da vida e das regras que a impõem e a esperança - semente que cresce oculta - são o pano de fundo de diversos contos, romances, peças teatrais, atingindo o ápice no romance O Delfim (CRUZ, 1972).

Pires também viu seu país viver sobre o regime de Antônio de Oliveira Salazar. Esse, professor de economia, deixou profundas marcas na sociedade portuguesa. Uma delas perene, a associação de seu nome a regimes totalitários. Sua trajetória ganha dimensão quando assume, no governo de Oscar Fragoso Carmona, o posto de Ministro das Finanças. Com a morte de Carmona, torna-se Presidente de Portugal, no ano de 1951, permanecendo no posto até 1968, quando sofre um grave acidente vascular cerebral. Seu modelo de governo, corporativista e autoritário, conhecido como Estado Novo, lembra os modelos fascistas de governo. Sua política para Portugal, e mais ainda para as colônias foi violenta, brutal, cerceadora, buscando sempre a manutenção da antiga estrutura de poder, procurando, em relação aos povos sob dominação lusa, impedir o nascimento de qualquer nacionalismo, ou o processo de emancipação.

A tentativa de descolonização da África não era vista com bons olhos pelo regime salazarista. Empregando os mais variados métodos de repressão, Portugal não admitia perder suas prósperas colônias da Ásia e África. A nação portuguesa negava-se a reconhecer/admitir a autonomia de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, ou outros pequenos territórios. Apesar de uma política segregacionista, em que o colonizador europeu/branco, avilta e submete o colonizado africano/negro, diversos movimentos de descolonização e emancipação eclodem em solo africano e nas antigas possessões lusitanas. Liderados por Amílcar Cabral, em Moçambique temos a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo). Em Angola, três movimentos vão disputar o domínio da região, a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), a União Nacional para Independência Total de Angola (UNITA), correntes moderadas e pró-ocidente, além do Movimento popular para libertação de Angola (MPLA, de tendência socialista revolucionária).

O imenso Portugal, como carinhosamente de forma enigmática Fernando Pessoa nominava a nação lusa, carregou ao longo do tempo uma panaceia saudosista e uma obsessão identitária. Mero discurso. O antigo império colonial luso, assim como o Estado Novo salazarista, estava eivado de “inúmeras formas de violência, exploração, intolerância e racismo” (CURTO, 2009, p. 09). Todos que se opunham, que questionavam, que apontavam outros horizontes, eram calados, silenciados, eliminados. Chamados de rebeldes, subversivos, inimigos da pátria. Essas vozes dissonantes ao longo de vários séculos foram perpetuamente tornadas mudas.

Ainda que em diferentes polos da relação colônia e metrópole, Freire como brasileiro e Pires como português, ambos experienciaram seus países submersos em tradições autoritárias, e têm em comum a imensa indignação por padrões opressores instituídos em sociedades altamente opressoras. Freire e Pires dedicam-se à escrita e denunciam por meio dela as injustiças sociais, o abuso de poder. Freire por meio de uma teoria ontológica, Pires com personagens e enredos ficcionais.

Especificamente sobre o romance aqui analisado, destaca Crosariol (2011, p. 13):

Convém lembrar que O Delfim foi escrito e publicado em plena ditadura, época em que Portugal estava vivendo um período bastante conturbado: as manifestações e protestos contra o salazarismo, no início da década de 1960, haviam intensificado as medidas repressivas; em 1965, a Constituição fora alterada, de forma a tornar a eleição presidencial indireta e entregá-la a um corpo disciplinado de eleitores; ao mesmo tempo, na África, a guerra envolvendo as colônias portuguesas perdurava, acentuando o sofrimento de toda a gente.

Mesmo neste contexto de alta censura, o autor, de uma forma habilidosa, denuncia por meio da ficção o classicismo, o machismo, o racismo, entra nos meandros da mente do opressor. Contudo, trata também sobre a possibilidade de mudança e a esperança vivida em um espaço geográfico imaginário: a Gafeira.

A Gafeira: local que tem o presente como repetição do passado

Sozinho no meu posto sobre a aldeia, sinto-me um observador de gabinete que reconstitui um condado desaparecido.

(PIRES, 1999, p. 36)

A Gafeira, um local que de acordo com a Monografia do abade Agostinho Saraiva estaria sendo castigado pela “Providência” por práticas de “paganismo”, “festins” e “orgias”, era coberta por poeira e estaria “adormecida” (PIRES, 1999, p. 21 e 31). O largo, com exceção das missas, era praticamente vazio de gente. A estrada e a muralha decadentes, com buracos. As tabernas e o comércio em estado “sonolento” (id e ibid, p. 20). A população, em sua maioria formada por camponeses, parecia igualmente apática, presa em uma monotonia, “[...] todos a repetirem um ciclo de palavras, transmitido e simplificado, de geração em geração, como o movimento da enxada” (id e ibid, p. 22).

Essa sensação de tempo quase imóvel e de uma inércia assustadora, uma terra moribunda. Terra de tédio, sufocante e pesada, a Gafeira esmaga e tolhe todos os movimentos. Como expressa o escritor: “Da janela para a cama, da cama para a janela, que outra coisa se pode fazer na Gafeira?” (PIRES, 1999, p. 76). Os moradores da Gafeira estariam em um nível de consciência ingênua (FREIRE, 1974), tendo dificuldade em desenvolver uma “percepção estrutural dos problemas” e buscando explicações para a dura realidade de suas vidas “no destino ou no castigo divino” (FREIRE, 1981, p. 28).

Não tendo consciência de sua subordinação, em razão de que as próprias situações-limites imputam padrões de comportamentos que os torna servis. Assim, “não enxergam possibilidades de romper com tudo aquilo que os torna submissos, nem tampouco percebem como poderiam responder de um outro modo às tarefas que essas situações-limites exigem” (OSOWSKI, 2008, p. 385). O fatalismo, a passividade e a percepção do presente como uma eterna repetição do passado eram parte das experiências vividas na Gafeira. Freire relaciona esse modo de ver e estar no mundo a uma desesperança, afirmando que:

Não pode haver esperança verdadeira, também, naqueles que tentam fazer do futuro a pura repetição de seu presente, nem naqueles que vêem o futuro como algo predeterminado. Têm ambos uma noção “domesticada” da História. Os primeiros, porque pretendem parar o tempo; os segundos, porque estão certos de um futuro já “conhecido”. A esperança utópica, pelo contrário, é engajamento arriscado (FREIRE, 1981, p. 48) (Grifos do Original).

Contudo, é extremamente difícil ao oprimido superar a sua condição de alienação, pois como afirma Freire, desde o início da sua inserção no mundo, normalmente e aos poucos ele vai incorporando a visão de mundo do opressor. Nas palavras do autor:

A estrutura de seu pensar se encontra condicionada pela contradição vivida na situação concreta, existencial, em que se “formam”. O seu ideal é, realmente, ser homens, mas, para eles, ser homens, na contradição em que sempre estivera e cuja superação não lhes está clara, é ser opressores (FREIRE, 1974, p. 33) (Grifos do Original).

Na perspectiva epistemológica, o oprimido está impregnado pelas categorias tomadas da situação concreta em que vive. O oprimido aloja em seu interior o opressor e seu comportamento estará sob o controle e intencionalidades dele, ou seja:

Os oprimidos, que introjetam a “sombra” dos opressores e seguem suas pautas, temem a liberdade, na medida em que esta, implicando na expulsão desta sombra, exigiria deles que “preenchessem” o “vazio” deixado pela expulsão, com outro “conteúdo” - o de sua autonomia” (FREIRE, 1974, p. 35) (Grifos do Original).

Uma possível expressão dessa “sombra” que preenche os oprimidos é visível no caso de Domingos, “mestiço” e “criado” de Tomás Manuel Palma Bravo, o Delfim e senhor da lagoa da Gafeira (PIRES, 1999, p. 10). Domingos, que havia no passado trabalhado até “conduzindo marinheiros americanos” (Id e ibid, p. 42), perdeu um dos braços e se tornou funcionário da família Palma Bravo. De acordo com o narrador, “Deus fez o operário e em seguida deu-lhe o castigo tirando-lhe o braço; o Engenheiro pegou no barro desprezado, moldou-o à sua maneira e fez o homem” (Id e ibid, p. 123). Por vezes, o “criado” era visto por outros moradores e por Tomás Manuel de forma animalizada, como mais um dos cães da casa, nesse caso, o “cão-maneta” (PIRES, 1999, p. 151).

Para Freire, o homem, em qualquer dimensão do tempo e do espaço, nasce ontologicamente inconcluso, porém carrega dentro de si a potencialidade e a capacidade de aprender a dizer a sua palavra. Ou, de outro modo, é capaz de compreender criticamente o mundo, de tornar-se um ser consciente. Isso é inerente e próprio do homem, a tomada de consciência para ler o mundo. Seu pensamento atinge o âmago da dimensão humana, buscando a superação das situações-limites, ou seja, ir além das contradições que envolvem os indivíduos, tornando-os capazes de perceberem como fatalistamente vivem.

No entanto, existem os que trabalham de forma consciente ou inconsciente para a sustentação de “situações-limites” opressoras (FREIRE, 1987, p. 22). A aristocracia local alimentava o sistema paternalista da Gafeira através de atos de caridade. Um dos personagens, por exemplo, presenteava os seus trabalhadores com “um cordão de ouro” ao nascimento de uma nova filha e com “duas acções da Companhia Agrícola J. B. de L., Herdeiros” ao nascimento de um filho, argumentando que estaria fazendo “o socialismo à minha maneira” (PIRES, 1999, p. 77). Maria das Mercês Palma Bravo, esposa do Delfim e “senhora da lagoa” (Id e ibid, p. 71), tricotava para os pobres como uma forma de descontrair, passar o tempo e quem sabe alcançar o “eterno descanso” (Id e ibid, p. 43).

O escritor-narrador do romance observa como as benesses funcionavam para manter o “equilíbrio social”, estabilizar as “hierarquias” (Id e ibid, p. 43), em um “método de controlo da dependência” (Id e ibid, p. 120). A expressão de uma “falsa generosidade” pelos fidalgos pode ser percebida como “uma das dimensões de seu sentimento de culpa” que colabora para “a manutenção de uma ordem injusta e necrófila” (FREIRE, 1987, p. 82). Além disso, atos de falsa generosidade ajudam a alimentar o mito de que as elites são intrinsecamente superiores aos trabalhadores e estão engajadas na promoção do bem-estar geral da população, logo atitudes de questionamento, rebeldia e revolta devem ser desencorajadas e o status quo preservado.

A pobreza e a desigualdade perpassam o romance, por exemplo, o escritor-narrador afirma que “Quando o pobre come galinha, diz o ditado, não há luxo nem desgoverno: um dos dois está doente” (PIRES, 1999, p. 37, Grifos do Original) e questiona sobre a “necessidade da existência dos pobres” pelas elites “para se alcançar o Reino dos Céus” (Id e ibid, p. 43, Grifos do Original). O leitor também é apresentado à teoria dos dentes de Tomás Manuel. Para ele, os “dentes são uma autêntica certidão” em que “calculo os anos de fado, calculo a proveniência social (nem sempre), calculo a idade das tipas (não estou a gozar, palavra), calculo o raio que as parta a todas e mais a mim que ainda lhes dou confiança” (Id e ibid, 1999, p. 56).

Havia um esforço consciente em manter o “princípio das exclusividades” (Id e ibid, p. 44). Tomás Manuel proclamava que “Todo o acesso é provocado pelo desejo de exclusividade” (Id e ibid, p. 44) e que enquanto “Os cemitérios são de todos, a lagoa é só minha. Adoro as exclusividades” (Id e ibid, p. 43). Além disso, o Delfim “[...] nunca fitava ninguém de frente. Fazia-o por pena, dizia ele. Receava que essa gente cegasse quando lhe sentisse o brilho do olhar” (Id e ibid, p. 28). Certos moradores e visitantes também eram identificados como “Pedigree dos bem-nascidos”, demonstrando “sinais de casta” (Id e ibid, p. 96-97). Outros, como Domingos, no entanto, tinham suas vidas regidas pelos “mandamentos” de “Vinho por medida, rédea curta e porrada na garupa” (PIRES, 1999, p. 120).

O modo evidente no romance da organização da sociedade é ressaltado por Maria Lúcia Lepecki (2020) quando em entrevista coloca “ele me mostrava um país quase que de castas, a diferença entre as classes sociais era tão grande [...] que se mostrava nos modos de tratamento, na vida cotidiana”4. O privilégio de quem tem e a desumanização de quem não tem são evidentes na Gafeira. Para Tomás Manuel, assim como para tantos, “[...] a humanização é uma “coisa” que possuem como direito exclusivo, como atributo herdado. A humanização é apenas sua. A dos outros, dos seus contrários, se apresenta como subversão” (FREIRE, 1987, p. 25). Não bastaria apenas ter e ser, mas seria preciso evitar que outros tenham e sejam também de forma livre e plena. O “princípio das exclusividades” coloca a humanização do outro como uma ameaça a si.

Um dos aspectos mais violento e brutal de uma situação opressora é quando os oprimidos começam a perceber a opressão, mas não veem a possibilidade de superá-la. Perde a esperança em sua capacidade de modificar o mundo. Nesse contexto, passa a acreditar que essa realidade é algo dado, imutável, impossível de ser transformada. Desconhece que a raiz da opressão está enraizada numa consciência ingênua, acrítica, imposta por aqueles que são os opressores. Eles devem construir um processo de conscientização, enraizado na fundamentação de uma educação libertadora. Educar será, desse modo, a crença no homem como capaz de uma permanente atitude crítica frente ao mundo que vive.

O crime da família Palma Bravo e a construção de um inédito viável com a Cooperativa dos Noventa e Oito

«Quem é que alguma vez sonharia poder ficar com a lagoa?», perguntava para longe, para o largo. (PIRES, 1999, p. 47)

Ao retornar para a temporada de caça na Gafeira, o escritor-narrador descobre que um crime teria acontecido. Maria das Mercês e Domingos haviam morrido em circunstâncias duvidosas, ela no pântano da “Urdiceira. A lagoa tinha-a filado” (PIRES, 1999, p. 67) e ele na cama do casal. Tomás Manuel havia desaparecido sem deixar explicações. Assim, com as mortes e o desaparecimento, “A aldeia desfocou-se, perdeu referências” (Id e ibid, 1999, p. 82) e “Gastaram-se rios de saliva (e horas de insónia, como se está a depreender) a discutir o que teria feito e não feito Tomás Manuel na última noite da casa da lagoa” (Id e ibid, p. 147), pois “o Infante, por tanto fornicar acabara fornicado” (Id e ibid, p. 82).

A “verdade dos factos” (Id e ibid, p. 66) é nebulosa e a exploração das diferentes versões revelam o machismo, o racismo e a homofobia presentes na Gafeira. Maria das Mercês era vista como “mulher inabitável” e “Maninha como uma mula” (Id e ibid, p. 68) por nunca ter tido um filho de Tomás Manuel nos sete anos de casamento. Capturada no tradicional papel de esposa, ela havia abandonado sua vida em Lisboa, limitando-se a cozinhar, tricotar e fumar na casa da Lagoa. Para alguns, como o cauteleiro, “a moeda foi o ciúme” dela por Domingos, “A patroa mata o criado, e o marido, roído de mágoa, mata-a por sua vez” (Id e ibid, p. 27). Domingos, “maneta e mestiço” (Id e ibid, p. 22), era responsabilizado por alguns pela própria morte, vista como “Bem feito” (Id e ibid, p. 27).

Os fantasmas, habitantes da casa depois do crime, “no aceso da contenda levantam o soalho, destelham a casa, e terminam amaldiçoando as filhas desobedientes, as esposas arrogantes e todas as mulheres em geral” (Id e ibid, p. 89). O uso e o status da Lagoa, exemplo maior do “princípio das exclusividades” de Tomás Manuel, em suspenso com a sua ausência na Gafeira. O direito de distribuir as licenças que autorizavam a caça em torno da lagoa foi colocado em leilão na praça pública. A Cooperativa dos Noventa e Oito, composta pelo regedor da freguesia, o médico, o padre, o professor e os camponeses da Gafeira, ganhou a disputa (VAHL, 2014). Conforme é descrito no romance:

«Fomos à praça em nome de noventa e oito homens...» - foi a declaração do Regedor quando o procurei na loja, depois de ter deixado a muralha e a lagartixa. E assim dava da mesma maneira a medida do tempo. Repare-se: ele, como chefe de freguesia, há muito que era autoridade. Conservava dentro de sua casa o chapéu na cabeça, tinha o estabelecimento forrado de editais e o próprio bafo que lhe saía das roupas era o mesmo de antigamente. Mas, representando no momento actual a lagoa e os noventa e oito camponeses, estava investido de novos poderes. Por isso se mostrava tão preocupado (PIRES, 1999, p. 47).

A formação da cooperativa faz com que a lagartixa se mova, ela “sacudiu-se no seu sono de pedra” (Id e ibid, p. 47), “despertou, deu um salto” (Id e ibid, p. 152), chegando até mesmo a conquistar casa de Tomás Manuel. Coelho (Id e ibid, p. 13) argumenta que “[...] temos muito que aprender com a lagartixa: também ela se dissimula até se confundir com a parede onde está, até parecer morta ou incrustada na pedra; também ela sobrevive à sua própria destruição; mas a cada passo se aventura no reduto inimigo”.

O crime possibilitou a modificação da percepção dos moradores da Gafeira sobre sua “situação-limite”, colaborando, em termos Freirianos, para a superação de seu “cansaço existencial” e de uma “anestesia histórica” (FREIRE, 1997, p. 70). O supostamente impensável e inviável, a socialização da Lagoa, foi concretizado por meio da ação coletiva. A aldeia, desperta, explora um “inédito-viável”. Na obra Pedagogia da Esperança, Ana Maria Freire em uma das suas notas esclarece que:

O “inédito-viável” é na realidade uma coisa inédita, ainda não claramente conhecida e vivida, mas sonhada e quando se torna “um percebido destacado” pelos que pensam utopicamente, esses sabem, então, que o problema não é mais um sonho, que ele pode ser tornar realidade. Assim, quando os seres conscientes querem, refletem e agem para derrubar as “situações limites que os e as deixaram a si e a quase todos e todas limitados a ser-menos o “inédito-viável” não é mais ele mesmo, mas a concretização dele no que ele tinha antes de ser inviável. (FREIRE, 1997, p. 106).

O romance termina antes do leitor saber dos possíveis impactos da criação da Cooperativa dos Noventa e Oito e dos novos dilemas enfrentados pela população da aldeia. Porém, é possível afirmar que o impensável, ou, nas palavras de Freire, o inédito-viável acontece quando a organização coletiva percebe sua força e muda o curso da história. Neste aspecto, o romance demonstra para o leitor que as ações/pensamentos individuais não levam a transformações, é preciso mais do que isso, é preciso um desejo em comum, uma disposição grupal para perseguir o inédito viável.

Além disso, de acordo com Freire (2000, p. 26):

A transformação do mundo necessita tanto do sonho quanto a indispensável autenticidade deste depende da lealdade de quem sonha às condições históricas, materiais, aos níveis de desenvolvimento tecnológico, científico do contexto do sonhador. Os sonhos são projetos pelos quais se luta. Sua realização não se verifica facilmente, sem obstáculos. Implica, pelo contrário, avanços, recuos, marchas às vezes demoradas. Implica luta.

O crime relatado no romance, que a princípio é o mote de toda a história, mostra de certa forma a habilidade e a sutileza do escritor ao transformá-lo em um acontecimento chave que fragiliza a até então inabalada aristocracia e, assim, abre uma brecha para a viabilidade do inédito, ou seja, a cooperativa dos Noventa e Oito muda o curso da história, ou, na metáfora da lagartixa utilizada por Pires, se move.

O movimento da história

Noventa e oito espingardas da Gafeira vão este ano enfeitar a lagoa em plena liberdade.

(PIRES, 1999, p. 152)

Na obra “Educação como prática da liberdade” (1967), Freire desenvolve uma interpretação sociológica de que os homens são capazes de mudar a história, tornando-se sujeitos a partir de um processo de reflexão crítica. Ele acredita na “possibilidade ontológica” de cada pessoa libertar-se. Sabedor de que o povo brasileiro começou como uma sociedade colonizada e fechada, em que o poder era exercido por aqueles que exploravam o Brasil apenas para manter em funcionamento o sistema colonial. Posteriormente, o poder era controlado pelos grandes latifundiários que administravam enormes áreas territoriais, além de imensos plantéis de escravos.

A experiência de Freire ocorre durante as suas vivências no nordeste brasileiro. Aos poucos vai se inteirando e conhecendo melhor a dura realidade das populações humildes desse imenso Brasil. As classes opressoras, reacionárias por interesse, e ideologicamente vinculadas à manutenção de uma ordem hierárquica, empregam os mais variados métodos para que tudo continue sempre assim, perpetuando as velhas e ossificadas estruturas de poder.

Isso é perceptível em diversas passagens do romance, como exemplo, apresenta-se uma em que o narrador coloca o seguinte: “Neste ponto, desenha-se-me, muito clara, uma frase de Tomás Manuel que anotei (ou não - é questão de procurar) no meu caderno: «Se até agora foi a minha família quem governou a lagoa, não hei-de ser eu quem a vai perder.»” (PIRES, 1999, p. 30). Neste excerto tem-se Tomás Manuel, um representante da classe privilegiada que não quer perder seu status de detentor do poder, colocando-se inclusive alheio à situação, sem responsabilidade alguma implicada e demonstrando uma conveniente conformidade.

Não raras vezes, observa-se que, quando os oprimidos alcançam certas capacidades para criticar o sistema são logo rotulados de revolucionários, subversivos, infratores, marginais, destruidores da ordem, da família e de Deus. Inclusive, no contexto atual do Brasil, são chamados de comunistas, ateus, seguidores de Cuba, da China, adeptos de regimes totalitários, enfim um perigo para as liberdades e para a democracia. Nas palavras de Freire (1967, p. 56):

Rotulam por isso mesmo os que se integram no dinamismo do trânsito e se fazem representantes dele de subversivos. “Subversivos”, dizem, “porque ameaçam a ordem”. Para os representantes das classes aquinhoadas pela ordem anterior5, atacá-la e tentar democraticamente sua superação era subvertê-la. Na verdade, subversão era mantê-la fora do tempo. Esta é uma das grandes subversões do Golpe militar brasileiro.

Em certo sentido, embora mediado por questões pontuais e específicas da realidade portuguesa, vê-se, no romance O Delfim, desfilar uma espécie de micromundo, onde o agrarismo, o paternalismo e o autoritarismo são heranças de longa data de um mundo colonial arcaico, aspecto que pode ser observado no seguinte excerto “«Bem feito. O Domingos não quis ser toda a vida cão do Infante? Não se comportou como tal? Pois teve o fim que merecia, nem mais.» «Morte de cão, como lhe pertencia.»” (PIRES, 1999, p. 27).

Falas que expressam desdém, raiva e até mesmo desprezo por Domingos, mestiço e serviçal da família, são evidenciados em diversos momentos do romance. Relacionando com os preceitos apresentados por Freire (2000, p. 34), é possível afirmar que:

A presença predatória do colonizador, seu incontido gosto de sobrepor-se, não apenas ao espaço físico mas ao histórico e cultural dos invadidos, seu mandonismo, seu poder avassalador sobre as terras e as gentes, sua incontida ambição de destruir a identidade cultural dos nacionais, considerados inferiores, quase bichos, nada disto pode ser esquecido quando, distanciados no tempo, corremos o risco de “amaciar” a invasão e vê-la como uma espécie de presente “civilizatório” do chamado Velho Mundo.

Freire critica visões fatalistas da história em que o futuro já seria “conhecido a priori” (2000, p. 27) e em que poderíamos apenas aguardar “a repetição do presente” e “a manutenção do “status quo” (FREIRE, 1981, p. 74). Ao contrário, ele entende que o homem não se encontra no mundo para ser alguém destituído de desejos, anseios, liberdade, mas sim, um ser em que todas as dimensões sejam valorizadas e reconhecidas. Ele, enquanto humanizado, está destinado a integrar-se ao mundo, transformá-lo, criador de cultura, cabe a ele agir sobre si mesmo e sobre o mundo.

Nas palavras de Freire (2000, p. 36)

É o saber da História como possibilidade e não como determinação. O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História mas seu sujeito igualmente. No mundo da História, da cultura, da política, constato não para me adaptar mas para mudar.

Conforme Freire destaca, a mudança ocorre se houver a consciência de que nada é estático, de que estamos em um determinado contexto não de forma estática, fixa, imutável, mas sempre como possibilidade de um vir a ser, pois enquanto seres humanos somos marcados pelo inacabamento. Da mesma forma, a mudança ocorre quando há necessidade, inconformidade, visão crítica de mundo.

Curiosidade e verdade

“Daqui, basta eu querer, posso ir dar a dezenas de raciocínios”

(PIRES, 1999, p. 74)

O narrador é curioso e busca entender o que teria acontecido com os Palma Bravo e a Gafeira, navegando entre as divergentes versões do crime e as transformações na sociedade. A escuta atenta dos relatos dos moradores de Gafeira quanto às impressões sobre os crimes, as circunstâncias em que eles ocorreram, os possíveis criminosos e ainda sobre as vítimas, permitia ao narrador conhecer também a visão de mundo de cada um. A curiosidade ia sendo saciada a cada relato, ao mesmo tempo, a ideologia, quase sempre entranhada em um modelo preconceituoso, machista, homofóbico e fortemente reacionário de sociedade ia sendo desvelada. Conforme observa-se no excerto a seguir:

[...] sempre que neste mesmo quarto me punha a coleccionar apontamentos e passagens de livros ignorados, que fazia eu senão entregar-me também a curiosidades? É certo, mas sem tranquilidade - sempre sem tranquilidade, meu lado crítico, minha voz independente (PIRES, 1999, p. 64).

Para Freire, a curiosidade seria uma atitude fundamental para desenvolver uma compreensão crítica do mundo e de si. Ele afirma que “curiosidade [...] se encontra na base do ensinar-aprender” (FREIRE, 1997, p. 42). Por meio da curiosidade, pode-se nutrir a vontade de saber mais, adotar uma distância crítica do objeto que procuramos compreender e construir leituras mais complexas e profundas da realidade. Com o tempo e através de um “rigor metódico”, a “pura opinião” ou “conjectura” ingênua vão sendo modificadas por um “projeto de mundo” (FREIRE, 2000, p. 21). Desse modo, o narrador curioso que não abandona o seu “lado crítico” e sua “voz independente” se encontraria engajado no processo de dar método a curiosidade.

Apesar dos esforços curiosos do narrador, contudo, a “verdade dos factos” (PIRES, 1999, p. 66) nunca é revelada. Reconhecendo a verdade como um dos temas chave do romance, diferentes autores analisaram a relação do livro com o conceito. Para alguns, as versões fragmentárias do crime dos Palma Bravo apresentavam uma oposição de Pires ao discurso totalizante vigente em Portugal (MONTAURY, 2000) e a busca pela verdade estaria conectada com a busca pela transformação social (CROSARIOL, 2011). Outros entendem que a experiência de incerteza gerada pelos relatos conflitantes no romance tornaria o conceito de verdade maleável (FIUZA, 2008) e que “o investigar é mais importante que o descobrir” (ROSA, 2008, p. 210). Existe também o argumento que O Delfim teria sido escrito contra possibilidade de verdade de forma geral e não exclusivamente contra a verdade oficial do Estado Salazarista (COSTA, 2009).

Em uma interpretação baseada em Freire, pode-se argumentar que ele seria contrário a imposição de uma “verdade salvadora” (FREIRE, 2000, p. 21), em que o entendimento do mundo de alguns se sobreporia ao entendimento do mundo de outros. A imposição de uma verdade pode ser inclusive conectada com uma estratégia de dominação e a percepção do outro como um objeto (FREIRE, 1987). Em um projeto humanizador, as pessoas têm o direito de dizer a sua palavra, pois “Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar” (FREIRE, 1987, p. 44). Além disso, Freire também reconhece a historicidade do conhecimento, afirmando a importância de:

[...] reconhecer o caráter histórico de minha certeza. A historicidade do conhecimento, a sua natureza de processo em permanente devir. Significa reconhecer o conhecimento como uma produção social, que resulta da ação e reflexão, da curiosidade em constante movimento de procura (FREIRE, 2001, p. 8).

Apesar de caracterizar o conhecimento como um processo histórico, Freire não é um relativista que acredita que todas as posições têm o mesmo valor (ROBERTS, 1996), destoando assim do narrador do romance. Por vezes, “o narrador de O Delfim coloca o seu leitor diante de uma polifonia, de uma pluralidade de vozes das quais ele mesmo não toma partido” (SANTANA, 2019, p. 150). Na sua falta de posicionalidade, o narrador parece ocupar uma posição de observador. Ainda que possa ser argumentado que “o posicionamento distanciado do narrador corresponderia a uma forma de produzir o estranhamento necessário à compreensão” (CROSARIOL, 2011, p. 16), aqui emerge a principal tensão entre Freire e o narrador de Pires.

Freire argumenta que não se é nunca neutro, que não estamos no mundo de luvas (FREIRE, 2002) mas com o mundo e com as pessoas. A suposta neutralidade, a não tomada de posição, traz em si uma forma de se posicionar. O silêncio fala, por vezes, tão alto quanto o esbravejo. Além disso, ser neutro não indica ser omisso, mas sim, ser cúmplice. Para Freire (1981, p. 32), “Silenciar sua opção, escondê-la no emaranhado de suas técnicas ou disfarçá-la com a proclamação de sua neutralidade não significa na verdade ser neutro, mas, ao contrário, trabalhar pela preservação do “status quo”.

Considerações Finais

“Nenhum escritor gosta de complicar seja o que for, e ainda menos de simplificar.

A certeza do golpe está nesse rigor”

(Pires, 1999, p. 57)

Este texto apresenta um exercício de reflexão pautada na curiosidade ao ir costurando ideias e buscando conexões entre o romance O Delfim e a obra de Paulo Freire. Para tanto, navegou-se pela tênue linha do “rigor” que evita simplificar o que é complexo ou complexificar o que é simples. Uma das questões centrais deste artigo é reconhecer que mesmo em espaços e tempos diferentes, Paulo Freire, com sua experiência do nordeste brasileiro, das massas trabalhadoras do Chile, dos camponeses da África, e José Cardoso Pires, com sua trajetória de jornalista, literário e escritor, conhecendo o campesinato rural de Portugal, retratado de forma literária, na imaginária Gafeira, reconhecem formas simples, mas nem por isso menos complexas, de poder e autoridade, de desigualdades e opressões, de privilégios e exclusões.

Apesar dessas arbitrariedades, heranças que vem de longe, podem momentaneamente ser situadas pelo salazarismo em Portugal, e pelo regime militar no Brasil. Sociedades autoritárias e antidemocráticas. Nas narrativas de Freire e de Pires, em seus respectivos campos de saber e formas de narrar, apontam que lutas, organizações, tomadas de consciência, possibilitam superar situações-limites, resultando o aparecimento do inédito-viável. Essa possibilidade de emancipação, de superação da opressão, da dominação, do medo à liberdade, talvez nunca seja total, mas precisa ser almejada, sonhada. A libertação é um processo inacabado, por isso mesmo, ele é parte presente sempre, de luta, de busca, de conquista. Ambos os autores/escritores tinham consciência que a educação sozinha não é suficiente para realizarmos nossas utopias, assinalando também para a necessidade de alterações profundas nas relações sociais e de produção da sociedade.

No momento em que se comemora cem anos do nascimento de Freire, a escrita deste artigo é, ao mesmo tempo, um ato de resistência e de renovação da esperança de que tudo é provisório, de que é possível encontrar, nas brechas do imutável, a possibilidade do inédito viável.

Referências

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1Mais informação ver: Paulo Freire em Aotearoa - Nova Zelândia: Uma discussão sobre a produção de Peter Roberts, acesso em https://bell.unochapeco.edu.br/revistas/index.php/pedagogica/article/view/4890

2Na versão original em inlgês: “There is much in Freire’s educational philosophy that can be helpful in our reading of a fictional work; similarly, in engaging fictional, we can deepen our understanding of key Freirean principle.”

3Sobre esse assunto veja dossiê publicado em 2017: Paulo Freire: contribuições que transcendem fronteiras no campo da educação e da alfabetização. Revista Brasileira de Alfabetização. In: http://revistaabalf.com.br/index.html/index.php/rabalf/article/view/221

4Entrevista completa pode ser assistida no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=DHN2liiajDM&t=180s

5Paulo Freire denomina de sociedade fechada. Sociedade baseada na exploração de muitos por poucos.

Recebido: 11 de Julho de 2021; Aceito: 13 de Agosto de 2021

Mônica Maciel Vahl Doutora em Educação pela University of Canterbury, Bibliotecária na Ara Institute of Canterbury, Christchurch, New Zealand. Integrante do Grupo de Estudo e Pesquisa em Alfabetização e letramento - GEALI e do Grupo de pesquisa em História da Alfabetização, Leitura, Escrita e dos Livros Escolares - HISALES/UFPEL.

Eduardo Arriada Pós-doutor University of Illinois at Urbana-Champaign - UIUC, em 2016 e na University of Canterbury - UC na Nova Zelândia, em 2019. Doutor em Educação pela Pontífice Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUC-RS, Professor na Universidade Federal de Pelotas, UFPEL, Faculdade de Educação. Integrante do Centro de Estudos e Investigação em História da Educação - CEIHE. Coordena o Centro de Documentação - CEDOC.

Gabriela Medeiros Nogueira Pós-doutora University of Illinois at Urbana-Champaign - UIUC, em 2016 e na University of Canterbury - UC na Nova Zelândia, em 2019, Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pelotas, Professora Associada na Universidade Federal do Rio Grande-FURG. Integrante do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Educação da Infância - NEPE/FURG e do Grupo de pesquisa em História da Alfabetização, Leitura, Escrita e dos Livros Escolares - HISALES/UFPEL. Coordena o Grupo de Estudo e Pesquisa em Alfabetização e letramento - GEALI.

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