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Revista Práxis Educacional

versión On-line ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.17 no.47 Vitória da Conquista ago. 2021  Epub 18-Feb-2022

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v17i47.9383 

Artigos

A BRINQUEDOTECA EM ESPAÇO DE ACOLHIMENTO HOSPITALAR: REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA FREIREANA

THE TOY LIBRARY IN HOSPITAL WELCOMING SPACE: REFLECTIONS ABOUT FREIREAN PRACTICE

LA LUDOTECA EN EL ESPACIO DE ACOGIDA HOSPITALARIO: REFLEXIONES SOBRE LA PRÁCTICA FREIREANA

Ivanilde Apoluceno de Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0002-3458-584X

Tânia Regina Lobato dos Santos2 
http://orcid.org/0000-0002-8097-0562

1Universidade do Estado do Pará - Brasil nildeapoluceno@uol.com.br

2Universidade do Estado do Pará - Brasil tania02lobato@gmail.com


Resumo:

Este artigo objetiva analisar o trabalho pedagógico desenvolvido na brinquedoteca de um Espaço de Acolhimento vinculado a um hospital, que atende crianças vítimas de escalpelamento, no estado do Pará, no período de 2018-2019, com o foco na ludicidade. As questões orientadoras do estudo são: Por que brincar no ambiente hospitalar? Em que contribui o brincar na formação das crianças no ambiente hospitalar? Trata-se de ação pedagógica desenvolvida por um núcleo de educação popular universitário, cuja referência é Paulo Freire. Para compreender a atuação pedagógica na brinquedoteca, realizaram-se pesquisa bibliográfica, observação in loco, análise das práticas desenvolvidas e conversas informais com os profissionais e usuários do espaço. Conclui-se que o brincar, como atividade lúdica, possibilita subverter e aflorar sentimentos presentes na vida das crianças e viabiliza a superação da dor e das angústias e medos gerados pela doença e internação prolongada de crianças em tratamento de saúde.

Palavras-chave: Educação Popular; Espaço de Acolhimento Hospitalar; Pedagogia Freireana

Resumen:

Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre el trabajo pedagógico desarrollado en la ludoteca de un Espacio de Acogida vinculado a un hospital, que atiende a niños que son víctimas del acidente con perdida del cuero cabelludo, en el estado del Pará, en el período de 2018-2019, con un enfoque en el lúdico. Las preguntas orientadoras del estúdio son: ¿ Por qué jugar en el ambiente hospitalario? ¿A qué contribuye jugar a la formación de los niños en el ambiente hospitalario? Se trata de una acción pedagógica desarrollada por un núcleo de educación universitária popular, cuyo referente es Paulo Freire. Para compreender el desempeño pedagógico en la ludoteca, se llevó a cabo investigación bibliográfica, observación en loco, análisis de lãs prácticas desarrolladas y conversaciones informales com profesionales y usuários del espacio. Se concluye que el juego como actividad lúdica, permite subvertir y hacer aflorar los sentimientos presentes em la vida de los niños e permite superar el dolor, la angustia y los miedos que genera la enfermedad y la hospitalización prolongada de los niños em tratamiento de salud.

Palabras clave: Educación Popular; Espacio de Acogida Hospitalario; Pedagogía Freireana

Abstract:

This article objectifies analyzing the pedagogical work developed in the toy library of a welcoming space linked to a hospital, which attend children victims of scalping accident in Pará State, in the period of 2018-2019, focusing on the ludicity. The guiding questions of the studying are: why to play in the hospital environment? How does playing contribute to the training of children in the hospital environment? It treats of Pedagogical action developed by a group of popular university education whose reference is Paulo Freire. To comprehend the pedagogical acting in the toy library, it carried out bibliographic research, observation in loco, analyzing of developed practices and informal conversations with the professionals and space users. It concludes that playing as ludic activity possibilities subverting and outcropping feelings presents in the children’s life and making the pain overcoming of anguish and fear generated by the disease and prolonged hospitalization of children in health treatment.

Keywords: Popular Education; Hospital Welcoming Space; Freirean Pedagogy

Introdução

Uma proposta de prática pedagógica diferenciada é um dos princípios que embasam as ações de um Núcleo de Educação Popular Universitário, que desenvolve um trabalho com pesquisa, ensino e extensão, cuja principal referência teórica e prática é o pensamento educacional de Paulo Freire, na perspectiva de uma educação democrática, dialógica, afetiva, amorosa, ética e de qualidade em ambientes sociais.

O Núcleo desenvolve atividades de educação popular em variados espaços sociais em uma perspectiva humanista e libertadora, envolve alunos de diferentes cursos de uma universidade pública do estado do Pará. Entre os diversos espaços de atuação encontra-se o hospitalar que é um dos locus de atuação social, atividade desenvolvida com crianças, desde 2004, por meio do projeto de extensão: Educação Básica Inclusão Social e Educacional.

Desde a sua implantação, o projeto desenvolveu atividades em diversificados locus, entre os quais: associação de pacientes em tratamento de câncer, em hospital referência de câncer; Hospital Dia para crianças, adolescentes e idosos com transtorno mental, um espaço de acolhimento de pessoas oriundas do interior e em tratamento médico; e em hospital que atende pacientes renais crônicos, em um centro de hemodiálise. No espaço de acolhimento, locus deste estudo, são realizadas atividades desde 2004.

As crianças são as participantes e o espaço das brinquedotecas, os locais privilegiados do projeto, ou seja, as atividades sempre acontecem, quando existem, nesses locais de brincadeira. De todos os citados, apenas no Hospital Dia não acontecia em uma brinquedoteca, mas em uma sala de atividades utilizada também para as crianças descansarem quando estavam sonolentas em função das medicações.

Ao longo desses anos, como assessoras das práticas realizadas por alunos da graduação vinculados ao Núcleo, aprendemos muitas coisas, e a principal delas foi desvelar e identificar que os conhecimentos e os saberes dessas crianças constituem o principal material de nosso trabalho pedagógico que se sustenta no cotidiano, na realidade de vida, sofrimento e dor por que passam essas crianças. Crianças tão pequenas e tão sofridas em virtude das inúmeras situações de adoecimento e de dor. Portanto, nossa ação docente não poderia ser outra, senão uma prática pedagógica reflexiva e dialógica. Para tal trabalho também não poderíamos deixar de beber em uma fonte fecunda de amorosidade e humanidade, que é a educação de Paulo Freire. Humanizar significa respeitar o indivíduo fragilizado, minimizar o sofrimento, com conforto, atenção, de maneira esperançosa e amorosa.

Aprendemos muito com Freire no decorrer de todo esse trabalho. Muitas vezes, quando pensávamos que não teríamos força para seguir adiante, encontrávamos em suas palavras esperançosas o caminho a seguir, até retomar direções e avaliar para continuar.

Neste artigo, analisamos o trabalho pedagógico desenvolvido na brinquedoteca de um Espaço de Acolhimento vinculado a um hospital de referência no atendimento de crianças vítimas de escalpelamento1 e seus acompanhantes, ao longo do ano de 2018-2019, no estado do Pará, tendo como foco a ludicidade.

Por que brincar nos espaços hospitalares? Em que o brincar contribui na formação das crianças no ambiente hospitalar? Essas são questões que norteiam este estudo e perpassam as ações que desenvolvemos e estão presentes no cotidiano da prática pedagógica.

A Educação Popular, como referencial para a Pedagogia Hospitalar, é uma área em construção e pouco conhecida na relação educação e saúde. Entretanto, a nosso ver, ambos são direitos legalmente constituídos às crianças, adolescentes e idosos, como ressaltam os artigos 196 e 205 da Constituição Federal de 1988 sobre direito, saúde e educação.

Art.196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido diante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para a sua promoção e recuperação.

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Há nesses artigos um chamamento à ação do Estado e da família, como legítimos responsáveis por promover e incentivar a garantia desses direitos. Vale ressaltar também o apelo à participação da sociedade, pois as garantias desses direitos fomentam o desenvolvimento biopsicossocial e cultural das crianças. Nesse contexto, abordaremos acerca das crianças em situação de adoecimento em espaços hospitalares, atendidas em brinquedotecas.

Entendemos que as brinquedotecas, principalmente aquelas em ambiente hospitalar, são espaços de garantia de direitos à infância. Estas, em muitas situações, são tanto para brincar como ambientes educativos, que ajudam na formação das crianças internadas em hospitais ou daquelas abrigadas em espaços de acolhimento para tratamento de saúde, como é o caso dessas crianças com quem desenvolvemos atividades.

Neste artigo, apresentam-se, inicialmente, a metodologia e uma breve contextualização do projeto de extensão do locus da ação, conceituando e analisando a brinquedoteca hospitalar a partir das legislações, principalmente aquelas que preconizam o atendimento em brinquedotecas hospitalares e, também, pela perspectiva de Paulo Freire, que é a principal referência do estudo e o direito ao atendimento em brinquedoteca hospitalar. Por fim, uma análise das experiências desenvolvidas na brinquedoteca do espaço de acolhimento, apontando a importância da brinquedoteca e do brincar no espaço hospitalar.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa qualitativa em que, segundo Lüdke e André (1986, p.12 e 17), “o interesse do pesquisador ao estudar determinado problema é verificar como ele se manifesta nas atividades, nos procedimentos e nas interações cotidianas”, sendo foco de atenção do pesquisador “o ‘significado’ que as pessoas dão às coisas e a sua vida”.

O locus da ação pedagógica é uma Casa de Acolhimento criada a partir de ações de um hospital público, com o objetivo de albergar pacientes vítimas de escalpelamento e outros que apresentam enfermidades diversas, oriundos do interior do estado do Pará, que precisam se ausentar por extensos períodos de sua realidade cotidiana para tratamento de longa duração e não têm condições financeiras para se manter na capital durante o tratamento. Por essa razão, é grande o impacto que a internação gera na vida das crianças e de suas famílias. A experiência de internação e o tratamento das crianças são uma situação traumática que, em geral, desencadeia o surgimento de sentimentos diversos, entre os quais a ansiedade, o medo e a baixa autoestima.

Nessa Casa de Acolhimento, tanto os pacientes como seus acompanhantes, além de hospedagem e alimentação, contam com uma equipe multiprofissional, como: coordenação pedagógica, professores, psicólogos, assistentes sociais e profissionais de apoio, que buscam atender às suas necessidades básicas essenciais, as quais estão previstas em lei.

Com relação à pessoa hospitalizada, o tratamento de saúde não envolve apenas os aspectos biológicos da tradicional assistência médica à enfermidade. A experiência de adoecimento e hospitalização implica mudar rotinas; separar-se de familiares, amigos e objetos significativos; sujeitar-se a procedimentos invasivos e dolorosos e, ainda, sofrer com a solidão e o medo da morte - uma realidade constante nos hospitais. Reorganizar a assistência hospitalar, para que dê conta desse conjunto de experiências, significa assegurar, entre outros cuidados, o acesso ao lazer, ao convívio com o meio externo, às informações sobre seu processo de adoecimento, cuidados terapêuticos e ao exercício intelectual (BRASIL, 2002, p. 10-11).

Convém assinalar que a ação de bolsistas e voluntários em ambientes hospitalares está prevista em documento denominado Classe hospitalar e atendimento pedagógico domiciliar: estratégias e orientações (BRASIL, 2002). As diretrizes desse documento indicam que esses voluntários ou bolsistas devem ser profissionais do nível médio com formação na área da educação ou estudantes universitários da área da saúde e educação. Vale ressaltar que não desenvolvemos atividades em classes hospitalares, e sim nesse espaço articulado com a Secretaria de Estado de Educação (SEDUC), responsável no âmbito educativo pelo trabalho com essa modalidade de ensino.

Assim, o Espaço Acolhimento, em articulação com o Núcleo de Educação Popular Universitário, realiza atividades com as crianças na brinquedoteca.

Para melhor compreender a atuação na brinquedoteca, realizaram-se os seguintes procedimentos metodológicos:

  1. levantamento bibliográfico de autores sobre o tema em estudo e em especial de Paulo Freire, principal referência deste estudo;

  2. observação in loco das atividades realizadas no locus de estudo no período de 2018 e 2019;

  3. realização de conversas informais com os profissionais e usuários do espaço sobre as atividades pedagógicas realizadas na brinquedoteca;

  4. análise das práticas desenvolvidas, sistematizadas por categorizações, sendo também utilizada a reflexão sobre a prática.

A ação do Projeto de Extensão Educação Básica: inclusão social eeducacional no Espaço de Acolhimento

O Projeto de Extensão Educação Básica: inclusão social e educacional é vinculado ao Núcleo de Educação Popular Universitário e tem como objetivo promover estudos e práticas na área da educação popular e infantil, articulando a Universidade às instituições públicas, comunitárias e filantrópicas

O Projeto referenciado é um espaço privilegiado de formação dos discentes de cursos de licenciatura da Universidade pública do estado do Pará e funciona em ambientes educativos que atendem crianças em tratamento de saúde especializada. Constitui-se em um laboratório de novas metodologias de ensino, de avaliação, de produção de materiais didáticos, de realização de cursos e oficinas e de assessorias a projetos e práticas pedagógicas de gestão.

O Núcleo, por meio de seus coordenadores e assessores do projeto, seleciona alunos para desenvolverem atividades como bolsistas ou voluntários, com crianças, três dias por semana, na brinquedoteca do espaço, tendo como referência a pedagogia freireana de educação.

Esse projeto de extensão desenvolve-se em locais onde a responsabilidade do poder público muitas vezes não alcança. Dessa ação participam crianças e adolescentes em atendimento de saúde, pauperizados da região e desprovidos em algumas situações do atendimento das necessidades básicas de vida e saúde.

Entendemos que a atividade de extensão desenvolvida desde 2004, por meio do Núcleo, vem contribuindo de certa forma com a melhoria da qualidade de vida da comunidade envolvida e com o ambiente em que está inserida, principalmente porque possibilita às crianças em tratamento de saúde nesse espaço desenvolverem suas capacidades de conhecer, criar, imaginar, pensar, entre outras, visando colaborar com a qualidade do tempo pelo qual ficam hospitalizadas ou em tratamento de saúde, e também por terem acesso ao processo de leitura e escrita, que é associado à leitura do mundo em que vivem.

A intenção é gerar uma compreensão maior do cotidiano da vida no sentido crítico, atenuar o período de tratamento de saúde fadigoso e prolongado que estão realizando, longe do seu espaço comunitário e familiar.

Vasconcelos (2005, p. 2) destaca que, com relação à criança:

[...] o contato com sua escolarização faz do hospital uma agência educacional para desenvolver atividades que ajudem a construir um percurso cognitivo, emocional e social para manter uma ligação com a vida familiar e a realidade no hospital.

Assim, no ambiente hospitalar, tornam-se necessárias práticas educativas humanizadoras, com intuito de superar a situação de dor e de isolamento que as crianças vivenciam no tratamento de saúde.

As instituições em que desenvolvemos a ação do projeto, em geral, recebem crianças em situação de adoecimento; em algumas situações, são crianças com deficiências e problemas de aprendizagem, e, por estarem em tratamento de saúde, precisam se ausentar da escola para realizarem seu atendimento.

Oliveira et al. (2004, p. 16-17) assinalam:

[...] nossos educandos, advindos em sua maioria do interior do Estado [...] têm que se deslocar para Belém em busca de tratamento, sendo desafiados constantemente face à triste realidade vivenciada no Hospital [...] Realidade dolorida pelos tratamentos [...] Realidade carregada por um sombrio sentimento de morte “circulando entre corredores e salas de espera”.

A identidade de ser criança é muitas vezes esquecida em uma situação de internação temporária ou de tratamento prolongado, momento em que se depara com uma realidade completamente adversa e longe de seu espaço comunitário e familiar. O ser criança acaba se escondendo nas rotinas e práticas de cuidados com a saúde que as percebem como pacientes, que merecem cuidados específicos, no caso, médicos, e a característica específica da fase da vida vivenciada fica em segundo plano.

Esse afastamento temporário de sua rotina de vida familiar e comunitária provoca nas crianças uma baixa autoestima, uma apatia, logo, as atividades realizadas em situações diversas podem servir e/ou funcionar como válvulas de escape para a de esperança diante da situação que estão vivenciando.

O Programa está organizado para atender crianças da Educação Básica, por meio de apoio pedagógico especializado, no espaço das unidades sociais. Na brinquedoteca, são desenvolvidas atividades lúdicas que propiciam alegria, socialização, bem-estar físico e emocional às crianças. Conta com um professor e/ou bolsistas voluntários da Universidade. As ações realizadas nas brinquedotecas contribuem para a ação de humanização do tratamento de saúde. A ação pedagógica no espaço qualifica o tempo de espera da criança ao participar das atividades lúdicas e pedagógicas.

Dessarte, por meio de atividades desenvolvidas na brinquedoteca do Espaço de Acolhimento, o Núcleo de Educação Popular, desde 2004, busca contribuir para assegurar esse direito às crianças, proporcionando uma educação lúdica, criativa e humanista.

Por que Paulo Freire na prática pedagógica no espaço hospitalar?

As crianças em tratamento hospitalar no espaço de acolhimento pesquisado são oriundas de classes populares, de comunidades ribeirinhas, distantes da capital. Existe, portanto, nessas crianças uma experiência de vida demarcada pela diversidade cultural.

No hospital, além do sofrimento físico, em função do escalpelamento por motor de barco, há uma dor psicológica causada pelo distanciamento de suas comunidades, de seus familiares e amigos, pelas sequelas deixadas pelo acidente e pela discriminação que sofrem em função dele.

Essas situações nos direcionam para a educação de Paulo Freire, pelo seu caráter humanista e ético-político.

A educação de Paulo Freire visa o processo de humanização, em que a pessoa em tratamento de saúde é vista como sujeito da história, ser consciente de seu estar no mundo, e não somente como corpo biológico. Ser sujeito da história implica ter autonomia, participação e ingerência no contexto histórico e social do qual o indivíduo faz parte. A autonomia, como amadurecimento do ser para si, é um processo, um vir a ser (FREIRE, 2007). Por isso, a autonomia é experiência de liberdade.

Educar na perspectiva de autonomia em Paulo Freire (2001b, p. 131) é ter o sujeito voz, que é ter “direito de perguntar, criticar, de sugerir. Ter voz é isso. Ter voz é ser presença crítica na história. Ter voz é estar presente, não ser presente”. Isso significa que no espaço hospitalar as crianças devem ser capazes de criar, pensar e imaginar, desenvolvendo sua curiosidade no processo educacional, constituindo-se em sujeitos de sua prática educativa.

A pedagogia de Paulo Freire consiste em uma educação da pessoa humana, compreendida na integralidade de seu ser como indivíduo e cidadão, ser afetivo e racional, com o objetivo de uma vivência social mais humana, justa e solidária.

Sou uma inteireza e não uma dicotomia. Não tenho uma parte esquemática, meticulosa, racionalista e outra desarticulada, imprecisa, querendo simplesmente bem ao mundo. Conheço com meu corpo todo, sentimentos, paixão. Razão também (FREIRE, 2001a, p. 18).

Assim, a criança ribeirinha, no espaço hospitalar, é vista em sua integralidade do ser, sendo consideradas tanto sua capacidade de conhecer como a de criar, imaginar, as suas alegrias, as suas dores físicas e psíquicas.

Educação engajada ética e politicamente com as classes oprimidas, o que pressupõe o reconhecimento e a valorização das experiências de vida dos educandos, bem como aponta para novos valores gestados em experiências de solidariedade e ações coletivas amorosas e dialógicas.

Portanto, o diálogo, a escuta pedagógica e a amorosidade são conceitos freireanos fundamentais no processo educacional em ambientes hospitalares. Aceitar e respeitar a diferença requer, no ato educativo, por parte do educador, segundo Freire (2007), saber escutar o outro e ter coerência entre o discurso e a ação.

Para Freire (2007, p.113):

Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta pacientemente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que, em certas condições, precise de falar a ele.

A escuta pedagógica vai além da possibilidade auditiva de cada um. “Escutar, no sentido aqui discutido, significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro” (FREIRE, 2007, p. 119).

A educação é um processo dialógico que possibilita aos sujeitos aprender e crescer juntos, respeitando as diferenças. O amor é concebido por Freire (1981, p. 29) como uma “intercomunicação íntima de duas consciências que se respeitam”. Logo, a amorosidade faz parte do processo educativo por envolver relações de intercomunicações entre sujeitos.

Para Freire (1982, p. 32), é “na intimidade das consciências, movidas pela bondade dos corações, que o mundo se refaz. E, já que a educação modela as almas e recria os corações, ela é a alavanca das mudanças sociais”.

Assim, no espaço de acolhimento, as crianças são escutadas, valorizadas em suas vivências e curiosidades, estimuladas a desenvolver ações solidárias e a respeitar as diferenças. Práticas dialógicas e amorosas que contribuem para a sua formação humanista e a sua identidade de ser criança no brincar da brinquedoteca e nos aprendizados da classe hospitalar.

O direito ao atendimento em brinquedoteca hospitalar: O que é? Para que serve?

A Constituição Federal de 1988, no artigo 6.º, refere-se à educação, à saúde e ao lazer. Ao se tratar de lazer, podemos considerar as atividades em brinquedotecas hospitalares, que, em alguns casos, é o único local que a criança utiliza para suas brincadeiras, tanto no espaço de acolhimento como no hospitalar.

A criança pode se divertir, assistindo à televisão, conversando, teclando no celular, porém a diversão na brinquedoteca parece-nos que tem sido fundamental para que se sintam mais valorizadas, pois, para elas, o brincar é uma ação inerente a sua condição de criança.

Levando em consideração essas premissas, destacamos o Estatuto da Criança e do Adolescente de 2008, no artigo 4.º, que estabelece:

[...] é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Este artigo salienta que às crianças deve ser assegurada absoluta prioridade na efetivação de direitos relativos à garantia da saúde, alimentação, educação, lazer e esporte com dignidade em espaço familiar e comunitário. Assim, ao pensar no ser humano, levamos em conta todas as suas necessidades básicas, e, por se tratar de criança, o brincar torna-se importante e essencial ao viver dos pequenos.

A Lei Federal n.º 11.104/2005 estabelece que os hospitais que demandam atendimento em pediatria em regime de internação precisam de brinquedoteca hospitalar, um espaço com brinquedos e jogos educativos para estimular a criança e seus acompanhantes a brincar (COSTA; DE PAULA, 2014). Evidentemente, é uma significativa conquista na humanização dos hospitais pediátricos e estendida aos espaços de acolhimento. Assim, tanto os profissionais da educação quanto da saúde, bem como a sociedade em geral, têm o dever de se empenhar para que esses direitos sejam assegurados às crianças.

A brinquedoteca hospitalar é atualmente uma prática bem difundida, conforme enfatizam Oliveira (2008), Cunha (2008), entre outros.

Ao falar em brinquedoteca, fazemos alusão ao ato de brincar. De fato, essa é a principal atividade executada nesse ambiente. Entretanto, há um universo de informações que necessitam ser exploradas para que haja uma compreensão da diversidade de atividades que podem ser desenvolvidas em uma brinquedoteca, ainda mais tratando-se de brinquedotecas hospitalares.

Para tanto, tomamos por base concepções de autores, tais como Azevedo (2004), Santos (2004) e Viégas (2008), para melhor esclarecer sobre esse ambiente tão desejado pelo público infantil e que instiga e possibilita a articulação com outras áreas do conhecimento, entre elas, a área da educação e saúde. Para Viégas (2008, p. 64):

A brinquedoteca é o espaço criado para favorecer a brincadeira, onde as crianças e os adultos podem brincar livremente, com todo o estímulo à manifestação de suas potencialidades e necessidades lúdicas com muitos brinquedos, jogos variados e diversos materiais que permitem a expressão da criatividade.

Ainda segundo Viégas (2008), a brinquedoteca hospitalar tem a função de propiciar um espaço aberto e livre para a criança ser o que desejar, expressando-se por meio de brincadeiras, jogos de papéis, fantasias imaginação. Desvelar seus medos, ansiedades e inseguranças gerados pela doença e internação.

Santos (2004) enfatiza que a brinquedoteca é um espaço que objetiva proporcionar estímulo para que a criança possa brincar livremente, onde ocorrem interações educacionais.

Azevedo (2004) realça que falar de brinquedoteca é referir-se à ludicidade, ou seja, possivelmente afloram o brincar espontâneo e prazeroso, as emoções, as vivências corporais, o desenvolvimento, a imaginação e a autoestima, ou seja, ajuda na preservação da saúde emocional, a dar continuidade à estimulação de seu desenvolvimento, prepara a criança para situações novas, principalmente aquelas com permanência prolongada no espaço em virtude da hospitalização, além de habilitá-la para seu retorno ao lar após um longo período de tratamento e internações.

Pode-se dizer que a brinquedoteca do espaço se trata de uma brinquedoteca hospitalar, por estar inserida em uma Casa de Acolhimento onde crianças permanecem durante o tratamento hospitalar. Entretanto, apesar de fazer parte de um ambiente hospitalar, há diferenciação e peculiaridades em relação às brinquedotecas localizadas nos próprios hospitais.

Essas peculiaridades se apresentam especificamente por atender a públicos diferenciados. As crianças recebidas nas Casas de Acolhimento estão enfermas e em tratamento, mas não estão hospitalizadas/internadas; estão longe de seu espaço cotidiano por longo tempo de tratamento médico. Por sua vez, as crianças internadas no hospital têm um espaço de convivência limitado e algumas chegam a permanecer por muito tempo acamadas e fora de seu ambiente familiar, comunitário e cultural. Então, essas brinquedotecas têm características específicas em virtude da condição de saúde das crianças e do tipo de lugar em que se encontram inseridas, no hospital ou nos espaços de acolhimento.

Conforme já evidenciado, para atender a esse público, as brinquedotecas hospitalares contam com o apoio de estudantes, que geralmente, são universitários da área da educação ou da área da saúde.

Nas classes hospitalares, o professor deve contar com um assistente de apoio, podendo o mesmo pertencer ao quadro de pessoal do serviço de saúde ou do sistema de educação. Outros profissionais de apoio, podem ser absorvidos pela criação de bolsas de pesquisa, bolsas trabalho, bolsas de extensão universitária ou convênios privados, municipais ou estaduais. Esses apoios podem ser profissionais de nível médio ou estudantes universitários das áreas da saúde e educação (BRASIL, 2002, p.23).

Apesar de a brinquedoteca hospitalar ser um espaço diferente de uma classe hospitalar, o assistente de apoio supracitado apresenta perfil para ambos os locais. Infere-se, portanto, que o atendimento nesses dois lugares deve contar com pessoas que estejam preparadas para lidar minimamente com as situações adversas. Para tanto, no âmbito do projeto de extensão, os universitários envolvidos participam semanalmente de planejamento, escutas pedagógicas e formação continuada para atender às necessidades que surgem no decorrer das atividades realizadas com as crianças.

Pela perspectiva da educação freireana, Brandão (2002, p. 347) assinala que o espaço pedagógico tem de se constituir em uma comunidade aprendente:

[...] ser o lugar da escuta do outro, antes da fala “do que eu sei”. O lugar onde, entre a professora e os seus alunos, cada um reconhece em cada outro uma fonte original e insubstituível de saberes a serem partilhados. Este é o ponto de partida de situações onde a “turma de alunos”, a “equipe de trabalho”, a “sala-de-aulas”, podem ser reconhecidas e vividas como diferentes estilos de uma coisa só: uma comunidade aprendente.

Lidar com crianças impossibilitadas de frequentar suas escolas, sua casa, seus locais prediletos, devido a seu estado de saúde, requer muito empenho, amor, dedicação, conhecimento técnico, entre outras qualidades que são indispensáveis às pessoas envolvidas e que realizam atividades nesses espaços.

O brincar no espaço hospitalar pesquisado: uma atividade necessária para as crianças hospitalizadas

A brincadeira ajuda a superar momentaneamente o tratamento doloroso, e, ao brincar, a criança tem oportunidade de revelar seus sentimentos e emoções; é uma forma de aliviar tensões, dores e sofrimentos. Infelizmente, nem todas podem explorar e vivenciar esses espaços, pois, mesmo o hospital disponibilizando esse local ou um espaço como o de acolhimento, suas condições físicas em algumas situações não lhes permitem, seja por debilidades físicas ou por necessidade de afastamento por risco de contaminação, principalmente as que passam por diversas cirurgias reparadoras, como as que habitam o espaço de acolhimento.

Entretanto, o brincar para a criança hospitalizada enferma é uma ação valiosa que oportuniza a cura psíquica e física, além de possibilitar autonomia, livre escolha e a tomada de decisões (GOLDENBERG, 2008).

As atividades realizadas na brinquedoteca do Espaço Acolhimento consistem em: organização e higienização da brinquedoteca, brincadeiras livres, jogos de mesa, músicas, contação de histórias, sessão de filmes, teatro de fantoches, exibição de vídeos educativos, oficinas de jogos pedagógicos. Antes e depois do início das atividades na brinquedoteca, são realizados diálogos com as crianças e também com seus acompanhantes, os quais, na maioria das vezes, não são os seus pais.

A organização e a higienização da brinquedoteca devem ser feitas regularmente, haja vista que as crianças que a utilizam estão em processo de tratamento e, geralmente, com baixa imunidade, e todo o cuidado deve ser tomado para o seu bem-estar. Por isso, a limpeza dos móveis, dos brinquedos, dos livros, assim como de todo o material que compõe a brinquedoteca, é indispensável para a saúde das crianças. É fundamental que todos esses elementos sejam de fácil limpeza e secagem. Conforme Cardoso (2008), existem diversos fatores de risco para infecções hospitalares, e os brinquedos e as brinquedotecas ainda são pouco avaliados.

O diálogo com as crianças e seus responsáveis nos ajuda a elaborar a proposta de trabalho, pois, ao realizarmos o levantamento do que gostam ou do gostariam de fazer, temos a orientação para a proposição das atividades e planejamento.

Por algumas vezes, as ações precisam ser modificadas ou adaptadas em razão das circunstâncias e do público que oscila constantemente em virtude das ações de atendimento médico no hospital. O diálogo antes e após as atividades tem o intuito de identificar as expectativas e avaliar o que foi realizado, mas também visa redimensionar o planejamento.

A partir das brincadeiras e do diálogo com os integrantes do grupo, observamos que alguns aspectos relativos à permanência no espaço precisavam ser trabalhados, entre os quais: higiene, hábitos alimentares, de comportamentos etc. Então, propomos atividades que, de alguma forma, contribuem positivamente para a realidade vivenciada pelas crianças no espaço e no meio físico, social e familiar.

As temáticas desenvolvidas no espaço em estudo sempre partem desse contexto, ou seja, das necessidades do cotidiano de vida e comunitário das crianças fora ou no espaço de acolhimento.

Vale destacar, como exemplo, uma atividade efetuada relativa aos hábitos alimentares. Para refletir a respeito desse tema, utilizamos um vídeo que abordava sobre alimentação saudável. Depois dessa exibição, encaminhamos uma reflexão acerca dos hábitos alimentares e uma conversa sobre a importância do cuidado com o corpo, enfatizando a higiene corporal e do ambiente, considerando que naquele momento trata-se de um assunto que demandava reflexão com as crianças.

Observamos que era necessário refletir acerca da relação familiar e, para tanto, utilizamos um filme de animação. Após a projeção, dialogamos sobre o relacionamento da criança com seus familiares e os demais integrantes do espaço. Também foi possível discutir a respeito da autoestima e do tratamento que estão realizando, principalmente as crianças vitimadas pelo escalpelamento.

Na oportunidade, avaliamos com as crianças as reclamações dos funcionários e demais usuários do espaço com relação ao comportamento de algumas delas no momento do repouso coletivo. Tal situação era provocada principalmente pelo barulho de algumas delas no momento de descanso do espaço de acolhimento. Durante a conversa sobre o conteúdo do filme, falamos acerca da importância de respeitar o direito dos outros para que nossos direitos sejam respeitados. Ademais, foi possível refletir sobre a rotina das atividades diárias no espaço que precisam ser garantidas por todos para assegurar um bom convívio social e comunitário.

Constata-se que as atividades, quando relacionadas ao contexto e às necessidades, tornam-se muito mais produtivas e proveitosas. Para Oliveira e Santos (2015, p.44), “o diálogo e a escuta pedagógica são conceitos fundamentais no processo educacional em ambientes hospitalares”. De fato, esses foram os procedimentos eficazes utilizados naquele ambiente.

A maioria das crianças é oriunda de vários municípios do Pará, e algumas não ficam por muito tempo, pois vêm apenas para consultas ou exames agendados, e de forma constante ou esporádica utilizam o espaço. Algumas passavam apenas um dia; outras, uma ou duas semanas; outras ainda, meses. Por isso, com cada criança que chega procuramos manter o diálogo, saber de onde veio, o motivo de estar ali, se era a primeira vez ou não que vinha à capital e frequentava o local, que brincadeiras gostava etc. Assim, começávamos a envolvê-la nas atividades da brinquedoteca.

A brinquedoteca do espaço, em geral, não recebe somente crianças pequenas, mas em algumas situações outras crianças em idade escolar que já estão alfabetizadas e outras que estão em processo de alfabetização.

O relato a seguir ilustra bem a presença da diversidade de crianças que frequentam o espaço. Em uma atividade denominada “autobiografia”, foi possível utilizar o brincar, o desenho e o diálogo para orientar a autorreflexão sobre o respeito às vivências e lembranças e a construção da percepção de sua identidade e história. Nessa atividade foi possível trabalhar a seguinte questão: Quem sou eu?

Na realização de uma atividade dirigida havia duas crianças presentes no espaço da brinquedoteca, ambas vítimas de escalpelamento. A criança Isabel, que se encontra em tratamento mais prolongado, e a criança Maria Hellen, que está iniciando o processo de recuperação, pois o acidente ocorreu recentemente.

Inicialmente, foi explicada a atividade proposta e foi utilizado um livro do gênero cordel, ilustrado com xilogravura: A mulher que subiu ao céu. Em um primeiro momento, realizou-se a leitura da autobiografia da autora Célia Cris Silva e do ilustrador Rogério Coelho para que compreendessem o que é uma autobiografia. Ana Isabel optou por não fazer relato escrito, mas utilizar o desenho para verbalizar sobre sua vida. Desenhou sua casa, onde explicou sua trajetória de vida com quem morava, e enfatizou que tinha um desejo: que a casa tivesse uma janela com várias flores e na frente existisse um jardim muito belo e florido.

Por sua vez, Maria Hellen decidiu escrever sua autobiografia, em que incluía sua comida favorita, seu apelido, o nome de seu pai e da mãe e no final relembrou o acidente: “sofri um acidente recentemente, mas não morri, estou viva, pronta para contar outra história radical”. E em seu rascunho desenhou uma menina de cabelos longos. Perguntou-se quem era. E Ellen respondeu que era ela mesma. A partir do relato e do desenho, enfatizou-se a imagem que tinha de si antes e depois do acidente. Ellen lembra, também, que seu irmão desenha muito bem e descreve as brincadeiras que faziam entre eles, utilizando o desenho. No momento da atividade, sua mãe apareceu na porta do espaço hospitalar para avisar que em algumas horas viajariam de volta para casa. Então, com muita disposição, pede que sua mãe prepare as malas. No entanto, logo entristece o semblante, explicando que não deseja ir, porque sempre chora quando precisa voltar para prosseguir com o tratamento.

Posteriormente, Ana Isabel desenhou a casa e o lugar onde passou a primeira infância. Ela narrou que, quando sofreu acidente de escalpelamento por motor, a primeira casa onde se divertia com seu tio - que hoje mora em Goiânia-começa a ser desmontada e no lugar está sendo construído apenas um abrigo semelhante a uma choupana para guardar os móveis e os utensílios. Depois, Ana Isabel apontou para a colega Maria Hellen que passou pelas primeiras cirurgias de reconstrução do couro cabeludo e disse: que antes estava como ela; ressalta que durante a construção da nova casa dormiu apenas uma noite nela, pois precisou vir para Belém a fim de realizar o tratamento. Nesse momento, a moradia possuía apenas o telhado e o chão e esclarece que, quando retornar após a alta do médico, a casa já estará semi-terminada e construída em alvenaria no térreo e madeira no primeiro andar.

Ressaltamos que uma atividade aparentemente simples gerou a possibilidade de reflexão, diálogo e ajuda para que as crianças compreendam que há possibilidade de retomar sua vida mesmo diante de todas as adversidades e dificuldades pelas quais momentaneamente estão passando. Constatamos que o espaço da brinquedoteca é para brincar, mas também para ajudar a criança a atravessar esse momento de sua vida de forma mais leve e coletiva. Assim, o ambiente se torna:

[...] um espaço acolhedor e multiplicador de certos gostos democráticos como o de ouvir os outros, não por puro favor, mas por dever, o de respeitá-los, o da tolerância, o do acatamento às decisões tomadas pela maioria a que não falte, contudo, o direito de quem diverge de exprimir sua contrariedade. O gosto da pergunta, da crítica, do debate (FREIRE, 1993, p. 89).

No cotidiano da brinquedoteca, há brincadeiras variadas: as atividades livres em que escolhem com o que brincar e se organizam em parceria ou não com outras crianças, e as atividades coletivas preparadas pelas educadoras, como a mencionada anteriormente. As crianças brincam, jogam, desenham, pintam, usam massa de modelar, ouvem e contam histórias. De uma forma ou de outra, as educadoras estão presentes e têm possibilidade de acompanhar as crianças. Constata-se também a existência de uma relação afetiva e amorosa entre as educadoras e as crianças, que é fundamental para se estabelecer um ambiente respeitoso, propício à aprendizagem e ao desenvolvimento das crianças.

O brincar em algumas situações é terapêutico. Uma atividade orientada, em algumas situações, ajuda a criança a compreender seu drama e a situação que está vivenciando. Não tem a intenção de negar a doença, mas propiciar à criança a também expressar sua dor e suas dúvidas, fazendo com que se sinta acolhida, com sua alegria e sofrimento.

Ao brincar, a criança não só reproduz sua realidade, como também a recria a partir das vivências, interage com outras crianças e com os adultos, por meio das histórias que ouve, demonstra sentimento, como vê a si e aos outros, representa o que lhe chega pela mídia, enfim, da leitura que tem do mundo e das coisas que a cercam.

Portanto, consideramos que as atividades lúdicas podem ser um instrumento que revela o que é de mais íntimo, a expressão verbal limitada, um desejo reprimido ou inibido.

Então, a partir das observações e conversas realizadas e acompanhadas, salientamos que a educação popular na brinquedoteca desenvolvida pelo Núcleo de Educação Popular Universitário contribui de certa forma:

  1. para a saúde da criança ribeirinha, eleva sua autoestima, constitui-se no direito da criança de brincar e atender às suas necessidades físicas, emocionais e afetivas e a prepara para retornar a seu espaço familiar e comunitário;

  2. para superar o isolamento e desconstruir as representações estigmatizadas vivenciadas pela criança no tratamento hospitalar;

  3. por meio da ludicidade, a superação da dor e angústias e medos gerados pela doença e internação prolongada.

A brincadeira indiscutivelmente é o momento quando a criança deixa de lado, ainda que momentaneamente, as dores, as saudades do aconchego de seu lar, da comida a que está acostumada e de seu contexto escolar e social.

Assim, no processo educativo na brinquedoteca, há necessidade de considerar a leitura do corpo, por meio do qual a criança expressa suas emoções, sentimentos, motivações e conhecimento. Considera Freire (1993, p. 72) que:

[...] a questão da sociabilidade, da imaginação, dos sentimentos, dos desejos, do medo, da coragem, do amor, do ódio, da pura raiva, da sexualidade, da cognoscitividade nos leva à necessidade de fazer uma “leitura do corpo” como se fosse um texto, nas inter-relações que compõem o seu todo.

Observamos no espaço de acolhimento que o brincar como atividade lúdica tem a possibilidade de subverter sentimentos presentes no pensamento e na vida das crianças. Entretanto, consideramos que os sentimentos não deixam de aflorar, mas o falar sobre ele, expressar por meio de desenhos, reflexões e diálogos contribuem de alguma maneira para serem reelaborados.

Considerações Finais

Ainda que o avanço no campo de pesquisas e projetos que acontecem diretamente em hospitais seja significativo, essa temática ainda requer estudos e práticas que viabilizem a consolidação desse trabalho nesses espaços de brincadeiras como um recurso possível para auxiliar no tratamento do adoecimento de crianças.

Realçamos como relevante a utilização do referencial teórico e prático com base nos princípios educacionais de Paulo Freire. É uma referência que dá suporte ao trabalho pedagógico realizado.

No presente texto, constata-se que o envolvimento afetivo entre as educadoras e as crianças é fundamental, propiciando a aprendizagem e o desenvolvimento, mesmo temporariamente em situação de tratamento de saúde.

Verificamos que a brinquedoteca hospitalar tem um diferencial em relação às outras brinquedotecas em função do público presente no espaço, crianças em situação de adoecimento passando por situações de sofrimento e dor. O brincar terapêutico e a brincadeira livre são possibilidades de ações nos ambientes hospitalares.

Assim, as atividades realizadas na brinquedoteca hospitalar contribuem para a melhoria da saúde da criança, da autoestima e a prepara para retornar a seu espaço de convivência. O brincar ajuda a superar a dor, as angústias e os medos gerados pela doença e internação prolongada e a enfrentar o isolamento e os estigmas vivenciados no tratamento hospitalar.

Todo trabalho de caráter educativo é desafiador. Encaramos como desafio tanto as brincadeiras propostas quanto as brincadeiras livres, geralmente sugeridas pelas crianças, o que proporciona momentos de aprendizado, amadurecimento e também de alegria.

O brincar como atividade lúdica possibilita subverter e aflorar sentimentos presentes na vida das crianças.

A brinquedoteca no espaço de acolhimento traz contribuição para a saúde da criança e qualifica sua permanência e, de certa forma, simboliza o direito da criança de brincar e atender às suas necessidades físicas, emocionais e afetivas.

Aprendemos no espaço de acolhimento que em um processo de convalescência da saúde a autoestima é importante, e o brinquedo e as brincadeiras são vitais e significativos. Nesse sentido, a brinquedoteca é um espaço, por excelência, lúdico e “terapêutico”.

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1Acidente causado por motores de embarcações de pequeno porte sem proteção que circulam nos rios da Amazônia Paraense. Esse tipo de acidente ocorre principalmente com mulheres ribeirinhas (adultas, jovens e crianças) que possuem cabelos longos. O cabelo prende no motor em movimento, acontecendo o acidente que provoca deformação principalmente no couro cabeludo.

Recebido: 25 de Abril de 2021; Aceito: 20 de Maio de 2021

Ivanilde Apoluceno de Oliveira Professora titular da Universidade do Estado do Pará. Doutora em Educação pela PUC-SP e UNAM-UAM-Iztapalapa - México. Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação e coordenadora do Núcleo de Educação Popular Paulo Freire (NEP) e da Cátedra Paulo Freire da Amazônia. Bolsista produtividade do CNPq2.

Tânia Regina Lobato dos Santos Professora titular da Universidade do Estado do Pará. Doutora em Educação pela PUC-SP e professora do curso de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGED/UEPA. Pesquisadora do Núcleo de Educação Popular Paulo Freire (NEP) CCSE/UEPA e coordenadora do Projeto de Extensão - Educação Básica: Inclusão Social e Educacional.

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