Introdução
Paulo Freire não pensou ideias. Pensou a existência.
E que caminho ele tomou para pensar a existência? Materializou esse pensamento colocando-o em prática em forma de uma pedagogia, à qual chamou de Pedagogia do oprimido. De acordo com Brito e Vasconcelos (2006), há duas possibilidades para a utilização do termo Pedagogia: para referir‐se aos saberes constituintes do domínio educacional e para referir-se à “arregimentação” e à organização dos aspectos considerados no processo de construção do conhecimento, tanto para os responsáveis pelo ensino, como para os que a esses confiam o processo de aprendizagem. Essa organização ocorreria em dois pilares: que saberes privilegiar e como colocar tais saberes a serviço dos processos de ensino e de aprendizagem.
A Pedagogia de Paulo Freire abrange as duas possibilidades para esse termo, ao propor promover discussões sobre os saberes a constituírem o domínio educacional e ao trazer para o cerne da discussão os saberes a serem privilegiados e como colocar esses saberes a serviço dos processos de ensino e de aprendizagem (MOURA, 2019).
Sua proposta não teve início com as proposições para a alfabetização. Inicialmente, seus esforços apontaram na direção de se opor a uma educação domesticadora, objetivando a transformação do ser humano‐objeto em ser-humano‐sujeito.
E suas primeiras ações no sentido de provocar a participação crítica dos sujeitos ganharam vida nos encontros com os pais de alunos no Serviço Social da Indústria - SESI, quando responsável pelas questões disciplinares. Esses encontros foram transformados em Círculos de Pais e Mestres, que seriam um “antídoto” contra o estado de ignorância que os impedia de optar, de decidir. Embora reconhecesse a importância daqueles encontros para promover a democracia, pois instaurava o diálogo entre a família e a escola, Freire se queixou da fragilidade, das inconsistências daqueles momentos.
Só mais tarde, em maio de 1960, quando foi instituído o Movimento de Cultura Popular - MCP, no qual Freire se inseriu como responsável pelo Projeto de Educação de Adultos, foram por ele criados os Centros e os Círculos de Cultura, espaços-bases para a implementação do Projeto de Educação de Adultos, à frente do qual estaria.
Os Centros abrigariam os Círculos de Cultura, dos quais os sujeitos, fossem ou não alfabetizados, participariam voluntariamente, de debates acerca de problemas reais de seu entorno. A instauração dos Centros e dos Círculos era fundamentada na concepção de que a democracia, mais do que uma mentalidade, deveria ser um sistema de vida. Os Círculos “abrigavam” os encontros para o exercício da democracia, uma contraposição ao tradicionalismo. (FREIRE, 2001).
No Prefácio ao livro Educação como Prática da Liberdade (2008), Weffort afirma que as atividades nesses espaços eram organizadas em grupos de trabalho, tendo na linguagem o interesse central. A essa estrutura estava subjacente a concepção da linguagem como constituinte da interação entre os sujeitos, entre estes e sua circunstância. Os resultados foram tão surpreendentes que o levaram a pensar em uma alfabetização conduzida na mesma perspectiva, cujo objetivo fosse transformar a ingenuidade em criticidade.
Nesse contexto, tiveram início as proposições de Paulo Freire no sentido de proporcionar aos sujeitos das classes populares o acesso à leitura e à escrita como bens culturais. O trabalho, antes feito sem considerar se eram ou não analfabetos os envolvidos nas discussões, deveria ser organizado em duas perspectivas: para os analfabetos e para os alfabetizados; ou seja, seriam sistematizadas atividades com a leitura e a escrita para a alfabetização e para a pós-alfabetização para os egressos dos círculos de alfabetização e/ou para os que já soubessem ler e quisessem participar dos grupos nos círculos.
Aplicada primeiramente em Angicos, no ano de 1962, antes do exílio, a proposta direcionada à alfabetização foi sistematizada e conhecida como Método Paulo Freire (FREIRE, 2008, p. 111), que neste estudo concebemos como uma Pedagogia da Leitura e cujos fundamentos filosóficos, linguísticos e cognitivos são objetos de nossa discussão.
Os sentidos da leitura em Freire: leituras do mundo pelas palavras
De tudo que Paulo Freire escreveu, a assertiva mais conhecida, mais repetida em quase todos os estudos sobre leitura é “a leitura do mundo precede a leitura da palavra e uma não prescinde da outra”. O mestre também a pronunciava com outras palavras: “a leitura do mundo se alonga na inteligência da palavra”.
Embora essa assertiva só apareça assim formulada no livro A Importância do Ato de Ler, ela estava implícita na base da proposta de Freire pensada para os Círculos de Cultura e que depois foi utilizada na fase inicial da aprendizagem da leitura, a alfabetização, bem como para o que chamava de pós-alfabetização.
Paulo Freire se referia às dimensões do ato de ler, à sua complexidade. E o que significa isso na prática? O que fundamenta a concepção freiriana do ato de ler? À afirmação da imanente relação entre a leitura do mundo e a leitura da palavra no terceiro parágrafo do ensaio A importância do ato de ler, segue-se outra que a traduz, evidenciando a concepção de linguagem que emana de sua prática pedagógica: “Linguagem e realidade se prendem dinamicamente” (2008, p. 11).
Freire concebe a leitura como um ato social sem perder de vista sua dimensão cognitiva. Por isso, propõe que o ponto de partida para a organização do ensino deve ser o mesmo de onde parte a cognição: a recognição, o reconhecimento, “ato fundamental da mente” por meio do qual se constroem os significados.
Quando lemos, ativamos, mobilizamos sistemas de conhecimento que são de três tipos: o Conhecimento Linguístico; o Conhecimento Enciclopédico ou do Mundo; o Conhecimento Sociointeracional.
1) O Conhecimento Linguístico é o responsável pela organização dos meios que a língua coloca à disposição do usuário: os conhecimentos gramaticais e os lexicais, os quais nos permitem fazer a escolha vocabular.
2) O Conhecimento Enciclopédico é o conhecimento de mundo, que pode ser adquirido formal ou informalmente, abrangendo desde o domínio de um conhecimento específico, ao mais simples conhecimento sobre coisas ou fatos da realidade. Pode ser classificado em dois tipos:
do tipo declarativo, constituído pelas afirmações a respeito do mundo.
do tipo episódico, composto pelo conjunto de modelos cognitivos socioculturalmente determinados e adquiridos pela experiência.
Essa perspectiva aponta para a assertiva de Kleiman (1995, p. 10) sobre o processamento da leitura: “o leitor utiliza na leitura o que ele já sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida”. Isso significa que o(s) sentido(s) do texto se constrói por meio da interação dos diversos tipos/níveis de conhecimento: o linguístico, o textual, o conhecimento de mundo. E nessa interação estão envolvidas operações cognitivas: o reconhecimento, a identificação e a classificação da informação; a elaboração de hipóteses; a avaliação da compreensão e a monitoração. Sem essa interação, sem a mobilização, o engajamento do conhecimento prévio do leitor, não haverá compreensão. Não haverá, portanto, aprendizagem.
À proposta do levantamento vocabular como ponto de partida para a organização do ensino, está subjacente o princípio da aprendizagem, que é a recognição. Freire coloca, então, no cerne do processo de aprendizagem o conhecimento prévio, que deve ser partilhado por quem ensina e por quem aprende, princípio básico da cognição.
De sua proposta, de sua prática pedagógica emana a concepção de que “Linguagem e realidade se prendem dinamicamente” (2008, p. 11).
Isso significa que as palavras refletem e refratam a realidade, ou seja, trazem notícias da existência dos sujeitos, nas dimensões individual e coletiva. Nessa perspectiva, o levantamento vocabular permitiria aos responsáveis pelo ensino o acesso ao universo dos que estariam envolvidos na aprendizagem, partilhando-lhes o conhecimento.
As informações trazidas pelas palavras coletadas seriam transformadas em temáticas, em codificação, sendo a eles devolvidas em forma de problematização, tanto acerca de questões existenciais quanto no que se refere à aprendizagem sobre o sistema alfabético.
Está aí também implícita a questão do conhecimento partilhado, componente do conhecimento prévio, condição para que a leitura aconteça. O conhecimento prévio do vocabulário dos estudantes potencializaria ainda mais o trabalho pedagógico, considerando que seria a partir de então um conhecimento partilhado pelas partes envolvidas no processo. E, o conhecimento partilhado é um componente do conhecimento prévio nos diversos níveis de conhecimento envolvidos na leitura.
Após a “coleta” das palavras, haveria a escolha das que de fato seriam empregadas nas atividades de alfabetização; era preciso delimitar a quantidade de palavras; era o que Freire (2008) chamava de Redução. Tratava-se de uma seleção vocabular. E qual seria a base para essa seleção? Seriam tomados como base três critérios:
a riqueza fonêmica;
as dificuldades fonéticas;
o teor pragmático da palavra, ou seja, a pluralidade de seu engajamento nas dimensões social, cultural e política de determinada realidade.
Em uma ordem de importância, uma hierarquia dentre esses critérios, o teor pragmático, seria sobreposto aos demais. Então, teríamos a seguinte organização dos critérios para a delimitação das palavras após o levantamento vocabular, a serem “devolvidas” em situações de aprendizagem:
o teor pragmático da palavra, ou seja, a pluralidade de seu engajamento nas dimensões social, cultural e política de determinada realidade.
a riqueza fonêmica;
as dificuldades fonéticas.
E o que seria o teor pragmático?
Pragmático é uma palavra com origem no grego "pragmatikus" e no latim "pragmaticu", que significa ser prático. Pragmático é aquilo que contém considerações de ordem prática, realista, sem rodeios, com alvo bem definido.
No dicionário, encontramos duas acepções para essa palavra: “pragmático”: a que contém considerações de ordem prática; prático, realista, objetivo e a que é voltada para objetivos práticos; realista, objetivo. E a palavra teor? Tomemos aqui como “conteúdo”.
Em síntese, teor pragmático seria de conteúdo usual, prático, do cotidiano. Nessa perspectiva, o critério predominante na delimitação das palavras a serem utilizadas na organização do processo de ensino seria o grau de presença desses vocábulos no cotidiano do grupo envolvido na aprendizagem. Sua carga semântica.
Por isso, a escolha de palavras como “tijolo” quando os aprendizes eram pedreiros; nomes de peixes, quando se tratava de um grupo de pescadores; por exemplo, “Bonito”, presente entre os vocábulos coletados em uma aldeia de pescadores, exemplo bem conhecido nos escritos de Freire.
Pela palavra dos próprios sujeitos, Freire pretendia conhecer o modo como se relacionavam com seus pares, com os tempos e espaços seus contemporâneos. Então, não bastava elencar as palavras. O que definia a permanência ou não de determinados vocábulos no processo era a importância, os significados que lhes eram atribuídos nas diversas instâncias de atuação perpassadas durante a investigação vocabular: a família, a religião, o trabalho, sendo esta a instância da qual encontramos mais palavras nos exemplos mostrados por Freire. Oportunizar aos aprendentes a tomada da palavra possibilita aos ensinantes o acesso às linguagens, à sintaxe; aos diferentes papéis sociais desempenhados por homens e mulheres; aos modos de organização das relações.
Na concepção de Freire, a palavra permitiria o acesso às vivências dos sujeitos na esfera familiar, na religiosa, na profissional; ao modo de interagir conforme o contexto. Está aí também implícita a questão do conhecimento partilhado, componente do conhecimento prévio, condição para que a leitura aconteça. O acesso à linguagem dos estudantes, ou seja, o conhecimento linguístico comum a ambos potencializava a aprendizagem.
No cerne de sua preocupação com a complexidade do ato de ler, Paulo Freire parecia considerar as habilidades envolvidas na aprendizagem da leitura: a habilidade específica, que é o reconhecimento de palavras com compreensão, e as habilidades gerais.
E por que o reconhecimento de palavras com compreensão é uma habilidade específica da leitura? Por dois motivos:
porque os circuitos cerebrais que a sustentam são criados durante a aprendizagem da leitura e
porque não serve para nenhuma outra finalidade.
Por seu turno, as habilidades gerais são constituídas por Capacidades linguísticas e por Capacidades cognitivas.
As Capacidades Linguísticas são:
o Conhecimento lexical, ou seja, o vocabulário.
o Conhecimento da gramática da língua - a organização das frases, dos textos.
o Conhecimento semântico, que abrange os significados e os sentidos das palavras.
o Conhecimento enciclopédico, que abrange a percepção da realidade, do mundo.
Já as Capacidades cognitivas se referem à atividade mental/intelectual na construção do conhecimento e são: a atenção, a memória, o raciocínio, a capacidade de análise e síntese.
As Capacidades de compreensão e as de apreciação e réplica estavam no centro da preocupação da pedagogia de Freire. Decodificar não poderia ser mais importante do que compreender e de analisar criticamente. Com o objetivo de desenvolver tais capacidades, Paulo Freire criava estratégias para um efetivo processo de conscientização.
Nas situações vivenciadas nos Círculos de Cultura, encontramos evidências de um trabalho que tem como eixo estratégias cujo objetivo era o desenvolvimento dessas capacidades, das quais Roxane Rojo (2002) trata ao discutir o letramento e a leitura para a cidadania:
- as capacidades de decodificação, que se referem à apropriação dos conhecimentos sobre o funcionamento do sistema alfabético.
- as capacidades de compreensão, que envolvem a ativação de conhecimentos de mundo, a antecipação ou predição de conteúdos e as propriedades dos textos, a comparação de informações, a produção de inferências locais e/ou globais.
- as capacidades de apreciação e réplica, dentre as quais estão a percepção de outras linguagens, a elaboração de apreciações estéticas e/ou afetivas, a elaboração de apreciações relativas a valores éticos e/ou políticos.
Ao tratar dessas capacidades indispensáveis às diversas práticas de leitura e escrita, Rojo (2002, p. 5) afirma que “diferentes tipos de letramento, diferentes práticas de leitura, em diversas situações, vão exigir diferentes combinações de capacidades de várias ordens”.
Na pedagogia de Freire para a aprendizagem da leitura, as cenas registradas evidenciam a preocupação com essas três capacidades elencadas por Rojo (2003).
Ao propor que o ensino fosse organizado a partir do conhecimento prévio do estudante, Freire estava deslocando o foco do trabalho docente, de como se ensina, para como a aprendizagem acontece.
Em um tempo em que o ensino se pautava em textos repetitivos e desconectados com a realidade, era necessária uma revolução conceitual. E foi esse o papel de Freire. Nessa perspectiva, no centro da interação eram colocadas, prioritariamente, as estratégias que conduziam à construção das capacidades de compreensão, e das capacidades de apreciação e réplica. A habilidade geral e as habilidades específicas de leitura eram o ponto de partida e o de chegada de tais estratégias.
Nessa direção, considerando prioritariamente o aspecto pragmático dos vocábulos coletados eram propostas atividades como a formação e a transformação de palavras, o que possibilitava aos aprendizes a compreensão da natureza alfabética do nosso sistema de escrita; o domínio das relações entre grafemas e fonemas; a decodificação de palavras e textos escritos, estando na base da condução de todo o processo a recognição, o conhecimento prévio partilhado entre ensinantes e aprendentes.
E o que acontece quando essa perspectiva é desconsiderada na organização do ensino?
A seguir, descrevemos e analisamos duas cenas nas quais a interação é comprometida quando não se considera que “linguagem e realidade se prendem dinamicamente”, que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”. Na primeira cena analisada, uma turma de crianças. Na segunda, um estudante adulto.
Cena 1
Rato ou catita?
Durante uma aula com padrões silábicos Consoante/Vogal (CV), uma professora, ao trabalhar com os alunos palavras com as sílabas da “família” CA, solicitou à turma que desenhasse animais cujo nome iniciasse com a esse sílaba “ca”. Quase todos atenderam à solicitação da Professora. Sim. Quase todos, pois um aluno mostrou a ela o desenho de um rato. “Furiosa”, contou ela, espantou-se com a resposta dada pelo aluno. E perguntou-lhe então como era possível que ele trouxesse um rato! Trabalhara tanto aquela “família”! Enquanto todos tinham desenhado cavalos, cachorros, cabras, por que ele estava dando uma resposta tão absurda? Segundo depoimento da própria professora, o aluno respondeu-lhe, morrendo de vergonha e de medo: “Mas isso é uma catita, Professora”! A professora se declarou envergonhada por ter sido rude com o aluno pela resposta dada, mas deu o caso por encerrado. Segundo ela, procuraria ser mais atenta e compreensiva com as respostas dos alunos.
Fonte: Arquivo da pesquisa
A resposta do estudante à atividade proposta pela Professora aponta para a assertiva de Kleiman (1995) sobre o processamento da leitura: “o leitor utiliza na leitura o que ele já sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida”, ou seja, o conhecimento prévio. E esse princípio da cognição não é diferente na criança.
O(s) sentido(s) do texto se constroem por meio da interação dos diversos níveis de conhecimento:
Sem a mobilização dos sistemas de conhecimentos envolvidos na aprendizagem, sem o engajamento do conhecimento prévio do leitor, não haverá compreensão.
Cena 2
Dado ou Bozó?
Uma professora da EJA relatou que em uma atividade em que pretendia trabalhar a consciência fonológica, pediu ao aluno para afazer a leitura de palavras acompanhadas de ilustrações. Uma delas era a figura de um DADO, acompanhado da palavra correspondente. Um dos alunos, ainda silabando, leu soletrando: DÊ A - da; DÊ O - do: BOZÓ. A pergunta da Professora foi: Qual o significado dessa resposta? Ela não sabia o que fazer. Apenas disse ao aluno que aquilo era um dado. E prosseguiu no seu trabalho de leitura. De que maneira deveria ser conduzido o processo de aprendizagem a partir da resposta desse aluno?
Fonte: Arquivo da pesquisa
Para a palavra “Bozó”, encontramos no dicionário três acepções relacionadas ao objeto “dado”.1
Jogo de dados em que os cubos são atirados num copo ou cilindro, só se descobrindo o lance após serem feitas as apostas.
Copo usado em vários jogos de dados.
Quantia que, num jogo, os parceiros deixam de lado sempre que alguém vence, para, ao final do jogo, ser dividida entre eles.
Originalmente significava o copo de couro usado no jogo de dados ou o próprio jogo. Um exemplo desse deslizamento dos sentidos no emprego da palavra é encontrado no referido site: “jogou os bozós para ver se estava com sorte”.
Esse é o nome de um jogo de apostas, as quais são feitas a partir do lançamento dos dados e esses ficam encobertos sob um copo de couro ou de folha de flandres - folha de ferro estanhado, lata - ou outro material. Um abrasileiramento do jogo francês YAM. Trata-se de um jogo muito popular no Mato Grosso, muito utilizado nas escolas.
A resposta aparentemente confusa do estudante que chamou dado de bozó deve-se ao reconhecimento do objeto e não da palavra na hora da leitura.
Ele soletrou a palavra, associando-a à imagem do dado. Mobilizou o conhecimento de mundo ativado pela imagem, inferindo que a palavra soletrada era o nome do objeto que ele conhecia como BOZÓ, mas que para a Professora tinha outro nome. Sua leitura do mundo precedeu e se sobrepôs à compreensão da palavra. O que definiu sua compreensão foi o conhecimento enciclopédico, que incide sobre o modo de compreensão da palavra.
Considerações Finais
A Pedagogia da leitura proposta por Freire tem como eixo a problematização provocada por meio da palavra, desvelando o imanente vínculo entre linguagem e realidade, sendo esta tomada como material de leitura a ser privilegiado nas ações. Nesse movimento, o diálogo, fenômeno humano, é a única possibilidade de construção da consciência crítica, à qual o acesso só se dá por meio da linguagem, cujo material é a palavra.
Desde as primeiras sistematizações de suas ideias, Freire colocou como força motriz do processo de aprendizagem da leitura e da escrita a palavra viva, da qual apontou as principais propriedades: seu potencial gerador, sua capacidade transformadora, sua função de mediadora das relações humanas, seja a serviço da manutenção do status ou para mudanças.
Para Freire (1983), as fragilidades das relações educador\ educando, que refletiam na aprendizagem, teriam como causa a utilização da palavra desvinculada da dimensão concreta, desprovendo‐a de sua capacidade transformadora, na medida em que a sonoridade se sobrepunha à significação. As duas cenas analisadas neste estudo corroboram essa perspectiva apontada por Freire.
Quando utilizada a serviço de uma educação depositária de ideias, a palavra reitera o silenciamento, o que traduz a concepção de um saber a ser doado bondosamente aos sujeitos vazios, para os quais seria um privilégio se alimentarem de tal doação, o que Sartre (1959) chamava de concepção digestiva. Nessa perspectiva, não há espaço para reflexão, para o estabelecimento de relações, nada que coloque em risco a autoridade conferida ao detentor do saber.
Nas palavras de Berthoff (1990, p. XV‐XVI), “a pedagogia de Freire funda‐se na compreensão filosófica do poder gerador da linguagem”. Para este autor, o lugar dado ao diálogo na construção do significado “põe de parte o debate estéril a respeito do caráter natural da linguagem”, mostrando que só o movimento da situação social a torna concreta.
E como a linguagem é que torna real toda e qualquer possibilidade de relação, a cognição não é possível sem ela. Assim, as situações de aprendizagem deveriam consistir em um intercâmbio no decorrer do qual “os significados emergem e são vistos emergir”.