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Revista Práxis Educacional

versão On-line ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.17 no.47 Vitória da Conquista ago. 2021  Epub 18-Fev-2022

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v17i47.9429 

Artigos

“A PROFESSORA SEMPRE CHEGOU COM CONTEÚDO PRONTO”: UMA REFLEXÃO SOBRE O CURRÍCULO DE BIOLOGIA NA EJA E SUAS INTERFACES COM OS PRESSUPOSTOS FREIRIANOS

“THE TEACHER ALWAYS ARRIVED WITH CONTENT READY”: A REFLECTION ON EJA’S BIOLOGY CURRICULUM AND ITS INTERFACES WITH FREIRIAN ASSUMPTIONS

“EL PROFESOR SIEMPRE LLEGÓ CON EL CONTENIDO LISTO”: UNA REFLEXION SOBRE EL CURRÍCULO DE BIOLOGÍA DE EJA Y SUS INTERFACES CON LAS SUOUESTAS DE FREIRIAN

Renato Antônio Ribeiro1 
http://orcid.org/0000-0003-2883-0279

Simone Sendin Moreira  Guimarães2 
http://orcid.org/0000-0002-6559-2591

1Universidade Federal de Goiás - Brasil rhenato@gmail.com.br

2Universidade Federal de Goiás - Brasil sisendin@gmail.com


Resumo:

Tendo suporte na pedagogia freiriana e em seus pressupostos, o artigo objetivou empreender algumas reflexões em torno do movimento de “escolha” dos conteúdos de biologia trabalhados em sala, sinalizando a dinâmica da construção curricular. Essas reflexões estão amparadas em entrevistas realizadas com estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no estado de Goiás. O legado teórico de Paulo Freire demonstra a potencialidade e atualidade de sua pedagogia para pensar e construir coletivamente e dialogicamente o currículo da EJA, tendo como premissa que o sujeito educando é o centro de todo o processo de ensino aprendizagem. Dados preliminares da pesquisa apontam que a transmissão bancária de “conteúdos prontos” da biologia ainda permanece enraizada na prática pedagógica dos professores. O diálogo, quando existe, ainda se restringe à superficialidade, desviando-se do diálogo verdadeiro freiriano. Organizar um currículo para o ensino de biologia na EJA, pautando-se na pedagogia freiriana, considera que os conteúdos, embora essenciais, não são estáticos e que estes se incumbem de estar a serviço dos interesses dos estudantes, valorizando seus conhecimentos e promovendo a transição dos saberes prévios a saberes científicos sistematizados.

Palavras-chave: Currículo de Biologia; EJA; Paulo Freire

Abstract:

Based on Freire's pedagogy and its assumptions, the article aimed to undertake some reflections on the movement of “choice” of biology contents worked on in the classroom, signaling the dynamics of curriculum construction. These reflections are supported by interviews carried out with students of Youth and Adult Education (EJA) in the state of Goiás. Paulo Freire's theoretical legacy demonstrates the potential and relevance of his pedagogy to collectively and dialogically think and build the EJA curriculum, having as a premise that the student is the center of the entire teaching-learning process. Preliminary data from the research indicate that the banking transmission of “ready content” from biology is still rooted in the pedagogical practice of teachers. Dialogue, when it exists, is still restricted to superficiality, deviating from the true Freirian dialogue. Organizing a curriculum for teaching biology at EJA, based on Freirian pedagogy, considers that the contents, although essential, are not static and that they are responsible for serving the interests of students, valuing their knowledge and promoting the transition from prior knowledge to systematized scientific knowledge.

Keywords: Biology curriculum.Youth and Adult Education (EJA); Paulo Freire.

Resumen:

Apoyado en la pedagogía de Freire y sus supuestos, el artículo pretendía emprender algunas reflexiones sobre el movimiento de “elección” de los contenidos de biología trabajados en el aula, señalando la dinámica de construcción curricular. Estas reflexiones se sustentan en entrevistas realizadas a estudiantes de Educación de Jóvenes y Adultos (EJA) en el estado de Goiás. El legado teórico de Paulo Freire demuestra el potencial y la relevancia de su pedagogía para pensar y construir colectiva y dialógicamente el currículo de EJA, teniendo como premisa que el alumno es el centro de todo el proceso de enseñanza-aprendizaje. Los datos preliminares de la investigación indican que la transmisión bancaria de "contenido listo" de la biología todavía está arraigada en la práctica pedagógica de los profesores. El diálogo, cuando existe, todavía se restringe a la superficialidad, desviándose del verdadero diálogo freiriano. La organización de un plan de estudios para la enseñanza de la biología en EJA, basado en la pedagogía freiriana, considera que los contenidos, aunque esenciales, no son estáticos y que se encargan de atender los intereses de los estudiantes, valorar sus conocimientos y promover la transición de los conocimientos previos a los conocimientos científicos sistematizados.

Palabras-clave: Currículo de biología; Educación de Jóvenes y Adultos (EJA); Paulo Freire.

Introdução

Atualmente, no cenário político do país, percebemos a Educação de Jovens e Adultos (EJA) inserida num contexto de desmonte e direcionada à invisibilidade, com fortes consequências para a conquista do direito à educação da classe trabalhadora, fruto de duras lutas ao longo da trajetória histórica da modalidade, institucionalizada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Nº 9394/1996). A título de exemplo, a recente extinção da SECADI (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão) no Ministério da Educação (MEC), efetivada pelo governo de Jair Bolsonaro1 em 2019, dá sinais evidentes deste desmonte, pois a atuação desta secretaria, entre outras atribuições, permitia o desenvolvimento de ações e políticas públicas educacionais voltadas para o campo da EJA. Evidencia-se, assim, um grande retrocesso na garantia do direito educacional dos sujeitos trabalhadores, desamparando-os em sua diversidade e enfraquecendo sua inclusão no contexto da educação escolar.

A onda neoconservadora que se instala globalmente na atualidade, alinhada ao viés neoliberal, contribui significativamente para o fortalecimento da configuração local, respaldando as políticas públicas, inclusive as educacionais, no Brasil. Neste cenário, o novo governo eleito democraticamente promete expurgar a educação brasileira da ideologia de Paulo Freire, pois, segundo tal lógica, não se pode ideologizar nem permitir viés político na formação instituída pela educação escolar. Logo, o neoconservadorismo instaurado não abre espaço para a lucidez da classe trabalhadora e a formação de sua consciência crítica, inclusive via educação. A educação emancipadora proposta por Paulo Freire não é considerada sob as políticas públicas educacionais que se desenham e se instauram.

Neste ano de 2021, em que se comemora, a nível mundial, o centenário de nascimento de Paulo Freire, parece um bom momento para retomar seu legado e sua proposta de uma educação emancipadora, re-contextualizando-o frente às demandas contemporâneas. Não basta apenas resgatá-lo na memória, mas mantê-lo “vivo” a partir da “presença”, real e necessária, de seus pressupostos na atualidade. Paulo Freire é atual e tem profundidade histórica: a partir de sua “leitura” é possível pensar o presente e vislumbrar um futuro, que não é dado e pré-determinado, mas construído a partir do sonho, da esperança e da luta. Não estamos falando de “repetir” Paulo Freire, mas ressignificá-lo, pois ele mesmo alertava “que a única maneira que alguém tem de aplicar, no seu contexto, alguma das proposições que fiz é exatamente refazer-me, quer dizer, não seguir-me” (FREIRE; FAUNDEZ, 2019, p. 60). A partir da ressignificação de seus pressupostos, objetivamos neste estudo repensar o papel da EJA junto à classe trabalhadora estudante na atualidade, refletindo sobre a configuração curricular da modalidade, especialmente quanto à disciplina escolar de biologia.

Entendemos aqui que os adolescentes, jovens, adultos, idosos que se escolarizam na EJA estão unidos por um corte de classe - a trabalhadora, que ainda “luta pelo direito ao acesso e à permanência em todo o percurso formativo referente à Educação Básica pública e gratuita, em tempo regular, cuja conclusão continua, assim, a constituir um privilégio” (RUMMERT, 2007, p. 36). Estes educandos e educandas que se inserem na EJA são os que buscam sua primeira colocação no mercado, os trabalhadores assalariados empregados, desempregados, subempregados e/ou em trabalho precarizado, informais, terceirizados, aposentados, e até mesmo os desalentados2.

Analisando a conformação da classe trabalhadora no contexto do capitalismo atual, Antunes (2005, p. 31-32) indica que ela “fragmentou-se, heterogeneizou-se e complexificou-se ainda mais. Tornou-se mais qualificada em vários setores [...], mas desqualificou-se e precarizou-se em diversos ramos”. Logo, é esta classe trabalhadora fragilizada que adentra a EJA em busca de uma escolarização que lhes garanta um “lugar ao sol” no disputado mercado de trabalho. A maioria não vislumbra outro caminho que não este: submeter as finalidades educativas escolares, subordinando-as e atrelando-as aos interesses econômicos e do mercado de trabalho. Coadunamos ainda a perspectiva de Rummert (2007, p. 46) ao alertar que:

Insistir no uso da categoria classe trabalhadora ao nos referirmos àqueles que não têm assegurado o direito à educação constitui uma opção teórico -metodológica que não abdica de sublinhar o fato, hoje negado, de que a distribuição desigual de oportunidades educacionais continua a ser uma questão derivada da origem socioeconômica e das assimetrias de poder daí advindas.

Além desta reconfiguração da classe trabalhadora e dos novos rumos do mundo capitalista na contemporaneidade, encontramo-nos ainda mergulhados nos efeitos da pandemia de COVID-19 que assolou o mundo, trazendo impactos em todas as esferas e aspectos da existência humana. Cada vez mais as desigualdades sociais afloram e se evidenciam, banindo direitos fundamentais para a existência humana, quer sejam a saúde, a educação e o trabalho. E com a educação escolar não foi diferente: a escolarização foi impactada, afetando nitidamente o processo de ensino-aprendizagem. Os estudantes da EJA, que compõem a classe trabalhadora, não permaneceram imunes: longe disso - foram dolorosamente desfavorecidos3.

Mas Freire (2000, p. 61) convoca-nos para resistir e lutar: “não importa em que sociedade estejamos e a que sociedade pertençamos, urge lutar com esperança e denodo”, pois há que se compreender ainda a história como possibilidade e não como determinismo (FREIRE, 1992). Este ato de coragem, esperança e luta demanda assegurar que os sujeitos educandos e educandas inseridos na EJA constitua uma classe trabalhadora munida dos conhecimentos científicos acumulados historicamente pelo homem a fim de que este acesso contribua com o incremento de tais conhecimentos e levem a uma transformação da sociedade que os oprime. Corroborando a perspectiva freiriana, Saviani (2008, p. 45) ainda atesta que “o dominado não se liberta se ele não vier a dominar aquilo que os dominantes dominam. Então, dominar o que os dominantes dominam é condição de libertação”.

Assim, pautados por essa educação conscientizadora e transformadora da pedagogia freiriana, que tem como objetivo uma formação cidadã e política, propõe-se que educandos e educandas da EJA tenham condições, por direito assegurado, de acessar e dominar os conhecimentos/conceitos científicos historicamente acumulados, tendo por base um currículo liberto e construído na coletividade. Só assim promoveremos a justiça social e possibilitaremos a superação das desigualdades educativas às quais os sujeitos educandos da EJA estão submetidos.

Nesta perspectiva, este artigo objetiva apresentar resultados preliminares da parte empírica de uma pesquisa de doutoramento4 que se deu em instituições que oferecem prioritariamente a EJA no estado de Goiás, os CEJAs (Centros de Educação para Jovens e Adultos). Para este recorte, empreendemos algumas reflexões advindas de entrevistas realizadas com estudantes das instituições supracitadas em torno do movimento de “escolha” dos conteúdos de biologia trabalhados em sala, sinalizando a dinâmica da construção curricular ocorrida no contexto escolar. Tendo suporte na pedagogia freiriana e considerando-a como um referencial teórico legitimo e atual, acreditamos que este movimento da pesquisa pode constituir-se como um elemento de resistência frente às tentativas de enfraquecimento da modalidade EJA e a consequente desvalorização da escolarização da classe trabalhadora, especificamente quanto ao domínio dos conteúdos biológicos.

Paulo Freire e a Educação de Jovens e Adultos: entrecruzando histórias

A educação, em geral, não teve prioridade na história de nosso país, se desenvolvendo muitas vezes sob políticas públicas incertas e descontinuas. A EJA como modalidade da educação básica, está relegada a um espaço de marginalização no campo das políticas públicas educacionais no Brasil, assim como os sujeitos integrantes de tal modalidade. O foco da educação destinada a jovens e adultos sempre esteve envolto numa visão utilitarista e instrumentalizadora, onde há supremacia dos aspectos ‘temporal’ (sujeitos atrasados) e ‘supletivo’ (complementar) do processo de ensino aprendizagem, tendo o período de estudos reduzido, relacionando-o ao estritamente ao ensino profissionalizante. Ainda se subestimam as particularidades desses estudantes, suas especificidades e outros aspectos pedagógicos a serem levados em consideração na aprendizagem desses sujeitos.

Historicamente, no Brasil, a educação de adultos esteve vinculada às campanhas para redução do analfabetismo, motivo maior do atraso econômico brasileiro. A partir de 1950 a educação de adultos começou a vislumbrar novas concepções afora a lógica do atalho: um novo referencial teórico-metodológico desponta sob a visão emancipadora de Paulo Freire, defendendo uma educação dialógica em contraposição com a educação bancária e apressada dos moldes supletivos. Assim, a perspectiva da pedagogia freiriana traz uma inflexão ao propor uma formação humana mais integral.

Paulo Freire, ao defender uma educação para o povo e para a classe trabalhadora, começou um trabalho com adultos não alfabetizados a partir de um método que valoriza a escuta junto ao sujeito educando. Apesar de ser amplamente conhecido como “Método Paulo Freire”, ele mesmo jamais o propôs desta forma. Ele entendia este processo/proposta de alfabetização como algo mais amplo: uma “pedagogia” de fato ou um sistema de educação de adultos. O processo de escuta objetivava conhecer a história dos educandos e dela trazer elementos para serem discutidos/problematizados em sala de aula, as quais foram designadas de palavras/temas geradores e integrando parte do processo de alfabetização desses sujeitos. Dessa forma, a bagagem de conhecimentos trazidos era valorizada. Para Freire (1992) tais conhecimentos não são mais nem menos, mas diferentes e anseiam ser respeitados, não necessitando haver supervalorização ou dominância do saber escolarizado em detrimento do “saber de experiência feito”.

Com a proposta dessa nova “pedagogia”, Beisiegel (2010, p. 15) aponta que:

Paulo Freire tornou-se uma figura conhecida e bastante controvertida. Pelas características e pela qualidade de suas propostas, surgiu como o personagem mais conhecido no processo de envolvimento da educação de adultos analfabetos nas tensões políticas e ideológicas que agitaram essa etapa de nossa história. Com essa atuação conquistou uma grande legião de admiradores e, ao mesmo tempo, um amplo leque de adversários e inimigos.

Já para Fávero (2011, p. 7), “a pedagogia de Paulo Freire é revolucionária; é um resgate do sentido da utopia. E é exatamente sua dimensão ética que lhe confere intensa atualidade e distinguida importância”. Assim, pelo caráter político, libertador, esperançoso, problematizador, dialógico e conscientizador que a pedagogia freiriana propunha, ele foi perseguido e exilado durante o período da ditadura militar no Brasil, embora esse afastamento do país tenha trazido bons frutos.

Dialogando com Antonio Faundez em Por uma pedagogia da pergunta, Freire rememora: “foi andarilhando pelo mundo, [...] como exilado, que pude compreender melhor o meu próprio país. Foi vendo-o de longe, foi tomando distância dele que eu entendi melhor a mim mesmo” (FREIRE; FAUNDEZ, 2019, p. 32). Assim, o exílio e sua andarilhagem pelo mundo afetaram sobremaneira seus pressupostos. A convivência com diferentes cotidianos e o contato com diferentes culturas influenciaram a base de seus fundamentos, notadamente o diálogo, a tolerância e o respeito ao/com o diferente.

Oliveira (2017) afirma ainda que sua “andarilhagem” por diversos países promoveu a internacionalização de sua obra, levando contribuições e promovendo mudanças e/ou inspirações à educação de praticamente todas as regiões do mundo e os desafios enfrentados por ele fora do Brasil acabaram por enriquecer ainda mais suas produções. Enquanto isso, no Brasil a educação de adultos “colhia os frutos” da ditadura militar. Neste período, é possível perceber que a expansão do ensino supletivo, previsto na Lei de Diretrizes e Bases para o ensino de 1° e 2º graus (Lei Nº 5.692/1971), foi uma tentativa de aligeirar a escolarização, na qual o quantitativo superava o qualitativo, com o fim de certificar a população em menor tempo e servindo-se dos modelos pedagógicos utilizados na alfabetização de crianças, muitas vezes num processo de infantilização do adulto, movimento que não respeitava as especificidades destes. Além disso, essa ação era realizada por professores sem formação específica para tal feito, muitas vezes de forma quase voluntária.

Como herança histórica deste período, a EJA ainda carece de um olhar diferenciado que respeite as especificidades dos educandos; com professores munidos de formação específica, metodologias e/ou materiais didáticos próprios e, acima de tudo, de um currículo que de fato respeite essas particularidades. No cenário de aligeiramento já apresentado, muito do que é ensinado na EJA é importado do Ensino fundamental e Médio, com meras simplificações e/ou reduções em seus componentes curriculares. Mas a proposta de Freire já apontava a necessidade de trabalhar com os sujeitos da aprendizagem e não para eles (FREIRE, 1988). O que se observa é que o currículo não é construído para e nem tampouco com os sujeitos presentes na EJA. Sob essa ótica verticalizada da construção de currículos, Saul e Silva (2009, p. 225) apontam:

(A) construção e reformulação de currículos têm se reduzido a um conjunto de decisões supostamente “neutras”, tomadas nos gabinetes das secretarias estaduais e municipais de Educação, de acordo com a legislação vigente (...) chegando à escola como pacotes que devem ser aplicados pelos professores em suas salas de aula. Esse caráter prescritivo do currículo acaba se distanciando, e muito, daquilo que acontece, de fato, na sala de aula.

Na contramão desse caráter prescritivo de currículos, Freire (1988, p 47) afirma que:

Daí que, para esta concepção como prática da liberdade, a sua dialogicidade comece, não quando o educador-educando se encontra com os educandos-educadores em uma situação pedagógica, mas antes, quando aquele se pergunta em torno do que vai dialogar com estes. Esta inquietação em torno do conteúdo do diálogo é a inquietação em torno do conteúdo programático da educação. Para o “educador-bancário”, na sua antidialogicidade, a pergunta, obviamente, não é a propósito do conteúdo do diálogo, que para ele não existe, mas a respeito do programa sobre o qual dissertará a seus alunos. E a esta pergunta responderá ele mesmo, organizando seu programa.

No âmbito das políticas públicas educacionais para a EJA, Machado (1998) aponta que estas têm uma trajetória histórica de serem pautadas em ações compensatórias e/ou substituídas por atos de solidariedade a esses sujeitos trabalhadores, únicos em suas necessidades. Neste sentido, Freire (2000, p. 93) lamenta que não pode “aceitar, impassível, a política assistencialista que, anestesiando a consciência oprimida, prorroga, sine die [sem fixar uma data futura], a necessária mudança da sociedade”. Se lembrarmos de que a EJA por si só já trabalha com a diferença sobre os mais variados aspectos, sendo também atrelada ao mundo do trabalho, poderemos admitir que as singularidades de seu multifacetado público educando nem sempre podem ser atendidas pelas políticas educacionais vigentes. Em termos de qualidade, a modalidade busca reconhecer que, de fato, a diversidade nestes sujeitos educandos existe, com o encargo de ser respeitada, mas que nem por isso deixa de defender uma igualdade de direitos.

Cabe aqui salientar que não se pode delegar a EJA a função de salvar pela educação esses indivíduos por tanto tempo marginalizados na sociedade, pois estaríamos mais uma vez considerando o processo educacional como redentor de todos os males da nação, numa visão ademais otimista da educação, colocando-a como propulsora de mudanças sociais e requisito para o desenvolvimento do país. Quanto a esta perspectiva transformadora, cabe nos atentarmos para o fato de que “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda” (FREIRE, 2000, p. 77).

Neste cenário de subestimação das particularidades e/ou especificidades demandadas pelos sujeitos educandos da EJA e consequente desvirtuação da qualidade da educação que lhes é oferecida, há que se estabelecer o “diálogo” freiriano a fim de romper a submissão deste público (classe trabalhadora) frente às demandas das classes dominantes. Neste sentido, Freire (1988, p. 78) reforça:

A conquista crescente do oprimido pelo opressor aparece, pois, como um traço marcante da ação antidialógica. Por isto é que, sendo a ação libertadora dialógica em si, não pode ser o diálogo um a posteriori seu, mas um concomitante dela. Mas, como os homens estarão sempre libertando-se, o diálogo se torna uma permanente da ação libertadora.

Como materialização de políticas educacionais voltadas para a EJA temos as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos (Parecer CNE/CEB 11/2000 e Resolução CNE/CEB 1/2000), as quais atribuem à EJA três funções: a reparadora, a equalizadora e a qualificadora (ou permanente). Ventura (2013) ao discutir este documento à luz da influência de organismos internacionais, alerta que ele traz avanços para se pensar políticas públicas para a modalidade, mas pontua alguns limites, descortinando os reais significados atribuídos a tais funções. Para a autora, a função reparadora reconhece o direito à educação negado à classe trabalhadora; a função equalizadora baseia-se na igualdade formal, não garantindo reais chances de respeito às diferenças dos sujeitos educando da EJA e mascarando suas condições de desigualdade na sociedade; e a função qualificadora, a mais discutida, que traz críticas e reflexões acerca da educação ao longo da vida reafirmada pelo documento.

A partir de tais considerações, não se nota uma política pública voltada para a EJA em caráter contínuo e estruturado, mas apenas algumas estratégias isoladas e praticamente emergenciais, cujos objetivos são igualmente imediatistas convergindo com os interesses do capital. Defende-se, assim, que a EJA de fato seja vista como uma modalidade de educação, com particularidades que precisam ser consideradas de modo a atender não apenas aos interesses do mercado, mas as necessidades de formação de adolescentes, jovens, adultos e idosos que por algum motivo não puderam estudar em idade tida como apropriada.

Dessa forma, a partir da concepção da educação problematizadora e libertadora concebida por Paulo Freire, verifica-se que a educação escolar se responsabiliza com a formação global do indivíduo, sob todos os aspectos. Sob a ótica política de Freire (1988), a educação pode levar o educando a ter consciência de sua autonomia e da necessidade de sua libertação enquanto sujeito. Ele criticou o que chamava de “educação bancária”, processo pelo qual apenas se deposita conhecimento em alguém sem que esse alguém seja realmente sujeito do processo. Para Freire (1988) a construção do conhecimento se dá de forma dialógica e seria contraditório considerar o aluno jovem e adulto, assim como qualquer aluno, com um banco de informações descontextualizadas. Freire (2006, p. 16) defende uma escola para o povo, conforme segue:

Não devemos chamar o povo à escola para receber instruções, postulados, receitas, ameaças, repreensões e punições, mas para participar coletivamente da construção de um saber, que vai além do saber de pura experiência feito, que leve em conta as suas necessidades e o torne instrumento de luta, possibilitando-lhe ser sujeito de sua própria história.

Logo, podemos apontar que os sujeitos educandos da EJA possuem características próprias, sendo que a questão das diferenças de idade numa mesma sala (‘jovens’ e ‘adultos’) é apenas uma delas. Há que se reconhecer que estes educandos não são mais crianças e que necessitam de uma pedagogia diferenciada. Geralmente já estão inseridos no mundo do trabalho ou na busca por essa inserção, de modo que a escolaridade (ou a falta dela) é um aspecto valorado nesse mundo. Além disso, são sujeitos já independentes, com certa autonomia, que trazem uma vasta coleção de conhecimentos acumulados ao longo da vida, de modo que não podemos considerá-los como fracassados educacionalmente, como foi feito ao longo da história. Na contramão de tal perspectiva, a pedagogia freiriana propõe uma educação como um processo de autoria do próprio sujeito, e não de doação. Não se trata de uma pedagogia para o oprimido, mas do oprimido.

Nesta pedagogia do oprimido, a centralidade do processo de ensino aprendizagem não deve ser metodológica: o centro de todo o processo é o sujeito educando. Tomando-o como ponto de partida e considerando a bagagem de conhecimentos já acumulada (saberes prévios) espera-se buscar constantemente novas metodologias, currículos, materiais didáticos, enfim, elementos que facilitem e dinamizem o trabalho do educador em sala de aula. Isso se faz necessário no cotidiano pedagógico e é papel da escola encontrar alternativas facilitadoras da aprendizagem, de modo a contextualizar os conteúdos aprendidos em sala de aula e aproximá-los do dia a dia do aluno.

A visão de mundo de uma pessoa que retorna aos estudos depois de adulta ou mesmo daquela que inicia sua trajetória escolar nessa fase da vida, é bastante peculiar. Protagonistas de histórias reais e ricos em experiências vividas, os alunos jovens e adultos configuram tipos humanos diversos. São homens e mulheres que chegam à escola com crenças e valores já constituídos (BRASIL, 2006), embora possam avançar e vislumbrar apropriação e/ou atualização de conhecimentos historicamente acumulados. Logo, o currículo pensado para modalidade tem que articular os conhecimentos escolares com os saberes históricos desse sujeito em todas as áreas, inclusive na área de Biologia.

A organização curricular em Paulo Freire e suas conexões com o currículo de Biologia na EJA

Existe uma considerável escassez de pesquisas tendo como objeto de estudo o ensino de biologia na EJA. Segundo estudo recente de Paranhos (2017) a primeira produção científica neste contexto (uma dissertação de mestrado) foi em 2004. O autor também destaca que, nessa área, a motivação para a pesquisa parte da própria experiência profissional do pesquisador, inserido como profissional da educação na modalidade. A relevância da temática no meio acadêmico é bastante recente e necessita de novas contribuições na produção de conhecimento científico, reforçando a necessidade de fortalecimento da EJA enquanto modalidade da educação básica brasileira, ainda que esta busca por novos conhecimentos parta do profissional atuante na EJA, sinalizando para uma busca pela formação específica de profissionais da educação, uma das principais demandas na modalidade.

Quanto ao campo do currículo, Paranhos (2017) também aponta ser um foco temático pouco explorado na produção científica dos últimos anos na área de ensino de biologia na EJA. No contexto das reformas curriculares, o país implementou uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a educação básica, mas considerações/propostas acerca da organização curricular na EJA são quase nulas neste documento. Se historicamente o currículo da EJA reproduz aligeiradamente o currículo da escola “regular/normal”, como interpretar o silenciamento em relação à EJA frente à implementação de uma BNCC, especificamente o currículo de Ciências da Natureza? Não se defende aqui uma homogeneização de currículos nem tampouco uma base nacional comum para EJA. Fazemos este apontamento para destacar que mais uma vez a EJA encontra-se relegada a um contexto de subestimação e marginalização no campo das políticas educacionais. Afora este destaque, é necessário pontuar que a questão da diversidade no currículo é muito estimada para o coletivo que luta pela EJA.

Este negligenciamento e/ou subestimação quanto a documentos e/ou orientações curriculares e até mesmo de pesquisas no campo currículo sinaliza para uma necessidade de ampliação do conhecimento científico neste contexto da modalidade EJA, a fim de fortalecê-la, pois o debate gerado ao apontar a presença do diálogo freiriano (ou seu silenciamento) na construção curricular, no caso específico deste estudo, o currículo de biologia na EJA, traz direcionamentos relevantes no contraditório, tenso e conflituoso campo de disputa de poder e saberes, encenando um embate político e ideológico que se estabelece na modalidade dentro da educação escolar brasileira.

Freire (2006) ressignifica e amplia o conceito de currículo ao considerar sua construção como “um processo político-pedagógico e, [...] substancialmente democrático” (p. 24), numa perspectiva crítico-transformadora, que não se restringe ao ambiente escolar, mas atinge a sociedade na qual está inserido. E nesta concepção, é válido considerar para quê um currículo é necessário, para quem se destina e a favor de quem ele se constitui.

Essa perspectiva contra hegemônica que rejeita o enfoque tecnicista do campo curricular alinha-se à teorização crítica de currículo ao reconhecer o caráter político nas construções/reorientações curriculares. Há uma clara relação entre currículo, conhecimento e poder sob esta concepção. Autores como Michael Apple, Michael Young, Henry Giroux, Peter Maclaren, Antônio Nóvoa e Antônio Flávio Barbosa Moreira5, entre outros, se debruçam nessas discussões e coadunam com o paradigma político da pedagogia freiriana, embora seja válido reiterar que Paulo Freire não tenha desenvolvido uma teorização específica sobre currículo.

A partir destas considerações supracitadas, faremos um contraponto com o discurso de estudantes de instituições públicas que oferecem prioritariamente a EJA no estado de Goiás, os CEJAs (Centro de Educação para Jovens e Adultos). São sete instituições no estado: duas em Goiânia, uma em Anápolis, uma em Catalão, uma em Caldas Novas, uma em Iporá e uma em Aragarças. Nestas instituições foram realizadas entrevistas semiestruturadas com estudantes de turmas da Terceira Etapa, que corresponde ao Ensino Médio da educação básica, totalizando 23 educandos/educandas6. Os estudantes foram contatados via mensagem de texto/áudio pelo aplicativo Whatsapp ® e as entrevistas foram agendadas e realizadas pela plataforma Google Meet® e/ou Whatsapp® em virtude da situação de Pandemia de COVID-19 a partir de 2020 no país, o que impediu a realização das entrevistas na forma presencial7. Os participantes da pesquisa foram informados das questões éticas estabelecidas para a pesquisa científica8, tendo dado seu consentimento no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Nas entrevistas realizadas com os estudantes, foi perguntado se eles e/ou seus colegas de classe já participaram em algum momento da decisão em estudar determinado conteúdo da Biologia. A intenção neste questionamento foi investigar em que medida educandos e educandas participam do processo de construção e/ou organização curricular na EJA e se a inserção democrática dos estudantes neste movimento preconizada por Freire é considerada. Nas respostas emergiram muitos “caminhos curriculares” nos quais as aulas de biologia se constituem, apontando diálogos (ou silenciamentos) entre os sujeitos que participam deste ato de conhecimento, os quais são objetos de reflexão neste estudo e que são apresentados a seguir. Os depoentes estão identificados pela sequência das entrevistas (E01, E02...E23), seguidos da identidade de gênero (M: masculino / F: feminino), idade e ocupação profissional:

[...] chega na sala de aula coloca lá no quadro sobre o que vamos falar nesse dia, [...] ele explica, ele fala, ele desenha no quadro. E não fica só no quadro né, sempre tem as explicações no meio né e é muito bom. [...] eu acredito que o professor tá ali pra falar, pra ensinar e tirar as dúvidas dos alunos e as curiosidades também. [E01 - F - 42 - operadora de caixa]

Bom quando ele chega na sala, ele já tá com o conteúdo pronto, até porque eles têm o cronograma, esses trem assim pra passar no dia a dia dos alunos ou você vai corrigir alguma atividade ou então estudar alguma nova atividade que ele vai passar. [E02 - F - 29 - desempregada]

Geralmente os professores já chegam na sala de aula já com o conteúdo pronto né, já elaborado para ser entregue para os alunos né, então em momento algum eles perguntam para gente que conteúdo a gente queria estudar, geralmente eles mesmo que elaboravam né, conforme tinha que ser entregue e a gente aprendia. [E03 - F - 20 - desempregada]

[...] a professora chegava com a matéria já elaborada antes, programada ali e ela que falava qual o tema que nós iríamos estudar naquele determinado período. Mas nós nunca tivemos essa, essa decisão, essa oportunidade de escolher o tema que seria abordado [...]. [E04 - M - 46 - ramo imobiliário]

ela passava no quadro para a gente responder, era muito bom quando tinha as aulas presenciais porque a gente aprende muito mais, a gente aprende a decorar mais, porque o professor chegava falava sobre um pouco da matéria e escrevia no quadro e a gente ia responder, escrever, era muito melhor. [E05 - F - 70 - comerciante]

[...] ele chega um conteúdo pronto, com o conteúdo pronto e já foi explicando já. Não teve essa escolha não. Eu até preferia que fosse para escolher, eu preferia que fosse, era melhor, mas eu não sei também como é que é que eles geralmente fazem aula, não tem como você ficar querendo colocar coisas né. [E06 - F - 24 - vendas/marketing digital]

Não, eu nunca tive essa decisão do que estudar na biologia, mas tipo se eu tiver alguma dúvida e eu quiser aprofundar mais um pouco os professores são bem abertos quanto a isso, eles vão te passar a informação que você quer. [E07 - M - 24 - mecânico]

Então, já chega com conteúdo e passa para gente né, [...] então já é o conteúdo prontinho que passa para você fazer. [E08 - F - 52 - auxiliar de limpeza]

Ele traz muita coisa pronta, mas só que as vezes ele chega e não dá tempo, tem um novo conteúdo. Porque precisamos terminar os conteúdos mais antigos entendeu [...]. [E09 - M - 48 - vigilante ]

[...] o professor fala poucos dias antes qual que ia ser a nossa próxima matéria [...] depois ele começava a explicar pra gente dentro da sala de aula. [...] Mas eu não me lembro dele chegar e pedir pra gente escolher o que a gente ia ver não, ele já chegava com a matéria pronta que a gente ia estudar, bem organizadinho. [E10 - M - 35 - ajudante de pedreiro]

Ele já vinha preparado e a gente participava toda aula. Mas não tenho preferência não, eu aceitava tudo que ele explicava e com todo gosto e prazer [...] [E11 - M - 49 - pedreiro/aposentado]

[...] o EJA é muito corrido, então os professor sempre chega matéria para gente estudar, eles passam, a gente estuda, mas eles tá prontos para passar o que a gente precisa aprender porque é muito acelerado o EJA, mas ele sempre chega com as tarefas prontas para a gente estudar juntos lá, os professores e os alunos junto. [E12 - F - 49 - empregada doméstica]

[...] o professor sempre chegava com as atividades prontas; não tinha daquela dos alunos optarem o que ir estudar; ele já vinha com a atividade pronta e a gente só executava as atividades. [E13 - F - 29 - autônoma]

[...] os professor que já levava as matérias prontas, já levava os conteúdos prontos a gente nunca podia, é assim, fazer, entra numa conclusão pra conversar com os professor, pedir pra, sempre eles chegava na sala de aula com o material deles já programado pra aquela aula. [E14 - F - 34 - do lar]

a professora sempre chegou com conteúdo pronto em sala de aula. Mas ela sempre avisava no final da aula o que iríamos estudar na próxima aula [...]. E não houve essa oportunidade de nós decidirmos assim o que era que a gente tinha curiosidade e tudo mais. [...] Porém com a pandemia foi tudo muito rápido, então já as coisas ficaram tão diferentes [...] [E15 - F - 60 - modelista]

Olha eu acredito que não, não nos procurou a saber o que que nós queríamos estudar dentro da biologia, apesar da gente estar esperando que eles apresentem pra nós um conteúdo de boa qualidade como foi feito; grandes conteúdos de pessoas bem mais sábias que nós de conhecimento. Eu acredito que o conteúdo que eles nos passou foi suficiente [...] [E16 - M - 57 - servidor público]

Os professor geralmente já chega trazendo a matéria né [...] no normal eles já trazia matéria pronta daquela aula, daquele dia, já trazia pronto, mas ele deixava muito em aberto o que a gente vai estudar hoje aí os alunos ficava calado, não falava nada, então vamos estudar isso aqui. Mas ele sempre deixava aberto pra gente. [E17 - F - 54 - corretora de imóveis]

antes da pandemia, é claro que o professor já chegava com a aula dele organizada, porque você sabe que tem o plano de aula a ser desenvolvido, mas isso nunca deixou do aluno participar da aula do professor com perguntas e respostas; isso podia fugir do assunto preparado do professor, então muitas vezes a aula do professor fugia daquele assunto dele com outras perguntas [...]. [E18 - F - 68 - aposentada]

[...] ele é impressionante, a matéria dele toda, ele parece um computador, ele não usa livro ele já chega ali e a matéria toda ele vai passando no quadro. Você não vê ele com um papel na mão, você não vê ele com nada, ele já tem tudo na cabeça dele [...] [E19 - F - 55 - vendedora]

[...] ela trazia o conteúdo já pronto; ela falava sobre aquele assunto e depois debatia com nós, [...] falar qual parte você tá com mais dúvida, qual parte [...] mais gostou, assim tipo um depoimento para poder argumentar o texto, aquele conteúdo. [E20 - M - 21 - aposentado (pessoa com deficiência)]

Não, nós nunca participemos sobre isso não professor. Eu acho que íamos chegar a participar, mas devido a pandemia, não conseguimos fazer isso. [E21 - M - 19 - informal/eventual]

Não, disso eu nunca participei não, os professores sempre chegam com o conteúdo pronto; nunca escolhi o que eu ia estudar não. [E22 - M - 18 - operador de caixa]

[...]ela já chegava na sala de aula com o material pronto, tipo assim pra já passar pra gente biologia. Mas sempre ela deixava um espaço pra gente poder fazer um grupo de 3, 4 pessoas e gente fazer tipo um trabalho avaliativo sobre biologia. [...] o tempo também é muito curto e para não perder muito tempo na sala se aula, mas foi poucas vezes que a gente fez em grupo na sala de aula um trabalho de biologia. [E23 - F - 46 - empregada doméstica]

Mesmo que Paulo Freire não tenha “teorizado” a fundo sobre as questões curriculares, acreditamos que seus pressupostos possuem pertinência e se constituem como um referencial legítimo no campo do currículo, especificamente da EJA. Desta forma, é possível empreendermos algumas reflexões a partir do discurso dos estudantes entrevistados, resgatando os propósitos freirianos para delinear organizações curriculares para a modalidade. Já foi demarcada anteriormente a necessidade de se resgatar a bagagem de conhecimentos que os sujeitos educandos trazem para o processo de ensino aprendizagem. Fávero (2011, p. 6), enfatiza que tal prática é marca fundamental da pedagogia freiriana:

Na medida em que se queira, por exemplo, ainda, criar uma nova organização curricular para o ensino regular noturno e para o ainda existente ensino supletivo, ou para a educação de jovens e adultos, efetivamente tem-se de tomar como ponto de partida a experiência vivida (e sofrida) por esses jovens e adultos. Essa opção exige trabalhar, em outro nível e com auxílio de outros instrumentos, o saber provindo dessa experiência, vivido e aprendido. E exige também que os educadores se reeduquem, nesse trabalho e para este trabalho, ainda e sempre na práxis, como ação/reflexão/ação.

A organização curricular posta para a EJA que está identificada a partir do discurso dos estudantes entrevistados não parece partir de suas experiências concretas, pois os conteúdos da biologia que aprendem em sala de aula chegam “prontos”. Esta menção, inclusive, é identificada nas respostas de 14 dos 23 estudantes entrevistados. Os conteúdos da biologia são organizados, elaborados, programados e preparados pelos professores e professoras para serem “entregues” e “passados” aos educandos e educandas, corroborando a perspectiva freiriana de uma educação “bancária” e “narradora”:

a tônica da educação é preponderantemente esta - narrar, sempre narrar. [...] Nela, o educador aparece como seu indiscutível agente, como seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é “encher” os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação (FREIRE, 1988, p. 79).

A estudante E05, já idosa, naturaliza a transferência mecânica ao enfatizar que “a gente aprende a decorar mais, porque o professor chegava falava sobre um pouco da matéria e escrevia no quadro e a gente ia responder, escrever”, o que vai ao encontro de Freire (1988, p. 80): “a narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em ‘vasilhas’, em recipientes a serem ‘enchidos’ pelo educador”. Merece reflexão lembrar que Paulo Freire nos apresenta e descreve a “educação bancária” em fins da década de 1960 em sua Pedagogia do Oprimido e a partir das falas dos estudantes entrevistados constatamos que a transferência de saberes e conteúdos ainda permanecem em certa medida já em meados do século XXI.

Para Morais (2009) as pessoas nunca deixam de aprender, mesmo aquelas que deixaram seus estudos quando jovens. A ausência da educação escolar representa uma grande lacuna para o indivíduo e uma perda enorme para a cidadania e hoje a EJA se dispõe a trabalhar com essas pessoas que interromperam sua atividade escolar. Ela é uma possibilidade de garantir o direito a todos àqueles que não tiveram acesso à escola ou mesmo àqueles que não conseguiram concluir sua escolarização básica, o que está demarcado em políticas educacionais e na Constituição Federal.

Assim, permite-se que essas pessoas possam retomar seus estudos, dando garantias de uma formação humana integral, representando um novo começo que vislumbre novas perspectivas de participação e pertencimento à sociedade. Contudo, contrariando o exposto anteriormente, as propostas curriculares vigentes para a EJA são bastante compactas, dificultando a aprendizagem dos educandos “devido à sobrecarga de conteúdo em um curto espaço de tempo, principalmente nas disciplinas da área das ciências biológicas que abrangem muitas inter-relações com outras áreas do conhecimento, além de muitos termos e descrições científicas” (MORAIS, 2009, p. 1). Tal cenário impede e/ou dificulta que a educação escolar cumpra seu papel na formação desses sujeitos educandos: a apropriação/acesso dos conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos historicamente acumulados. De fato, essa perspectiva de que na EJA os estudantes e docentes são “reféns do tempo” é constatada nas falas dos educandos e educandas entrevistados: “não dá tempo” (E09); “o EJA é corrido” (E12); “não perder muito tempo” (E23). Assim, justifica-se a “transferência bancária” de conteúdos em detrimento da valorização de seus “saberes de experiência feito” e do diálogo, que são anulados em virtude do escasso “tempo” disponível.

Dentro do contexto do processo de ensino aprendizagem na EJA, especificamente na questão da construção curricular, já foram ressaltadas as diferentes concepções que norteiam seu desenvolvimento. Existe a que considera o educando jovem/adulto como um sujeito em atraso, que merece recuperação rápida de conteúdos, mediante educação bancária e às vezes solitária, no menor tempo possível, culminando com o processo de certificação e sua reinserção na sociedade como sujeito letrado e apto a posicionar-se no mercado de trabalho, mesmo que se mantenha na posição de marginalizado.

No viés dessa educação bancária, ainda presente no contexto educacional atual, Freire (1995, p. 32) assim a caracteriza: “(...) a prática educativa hoje eficaz é a que, despreocupada de esforços de desocultação de verdades, se centra no treinamento técnico ou no depósito de conteúdos nos educandos. Caberia a especialistas a seleção e organização dos conteúdos a serem ensinados nas escolas”. Podemos considerar que os professores, segundo esta perspectiva, são os executores dos currículos prescritos pelos especialistas, o que se identifica nas falas dos estudantes: “eles têm o cronograma” (E02); “eles mesmo que elaboravam” (E03); “material já programado” (E14). Aqui mais uma vez educandos e educandas, professores e professoras se tornam reféns de uma sequência pré-estabelecida de conteúdos/temas a serem trabalhados em sala de aula.

De fato, as políticas de formação de professores vigentes, que não excluem os da EJA, reduzem os profissionais docentes à condição de tarefeiros, “a quem compete realizar um conjunto de procedimentos preestabelecidos” (KUENZER, 1999, p. 182). Dentre as “tarefas”, cabe aos docentes cumprir com organizações curriculares pré-determinadas. Se for esta a conduta dos professores, cabe resgatar mais uma vez o questionamento freiriano recorrente em suas obras: “estou sendo um professor a favor de quem? Ao se perguntar a favor de quem está educando, o professor também deve perguntar-se contra quem está educando” (FREIRE; SHOR, 1987, p. 60).

Por outro lado, apresenta-se uma concepção em que há a preocupação de estabelecer relações entre o mundo escolar e o cotidiano, além de basear-se em construções coletivas do conhecimento, pautadas pelo diálogo e pela visão crítica da educação. Neste contexto, Freire (1980, p. 28) salienta que isto se dá “utilizando um método ativo de educação, um método de diálogo - crítico e que convide à crítica -, modificando o conteúdo dos programas de educação”. A partir dessa prerrogativa da interação entre sujeitos, podemos considerar que homem só se constitui em mediação com seu contexto social, histórico e cultural e todas as funções cognitivas do sujeito são produtos desta constituição histórico-social. Assim, pensando em sua formação como sujeito e no processo de sua aprendizagem, seu contexto histórico e sua cultura não devem ser ignorados, pois a concepção freiriana admite o mundo como um processo, onde o homem se insere ativamente, num movimento de vir a ser. Logo, a dimensão da coletividade e da dialogicidade em todo este processo se evidencia como fundamentalmente necessárias.

E nesta relação dialógica e coletiva da construção do conhecimento, considerando aspectos sociais, históricos e culturais dos sujeitos, Freire alerta que “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão [...] Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 2006, p. 58 e 78). Mas constata-se nas falas dos estudantes entrevistados um diálogo no nível da superficialidade e uma prática educativa centrada na individualidade: “tirar dúvidas” (E01); “os professores são abertos” [para tirar dúvidas] (E07); “mas ele deixava muito em aberto” (E17); “aluno participar com perguntas e respostas” (E18); “depois debatia com nós” (E20); “pouca vezes que a gente fez em grupo” (E23). Segundo os pressupostos freirianos, o diálogo verdadeiro supera o mero debate de ideias: “comunicar não é mero verbalismo, não é mero pingue-pongue de palavras e gestos” (FREIRE; SHOR, 1987, p. 123).

Nas entrevistas, os desafios do processo de ensino-aprendizagem enfrentados durante a pandemia de COVID-19 também afloraram: “quando tinha as aulas presenciais” (E05); “com a pandemia [...] as coisas ficaram tão diferentes” (E15); “acho que íamos chegar a participar, mas devido à pandemia não conseguimos fazer isso” (E21). A partir das falas, os estudantes parecem justificar a ausência de aulas mais dialógicas devido ao contexto pandêmico, sugerindo que “em tempos normais” o diálogo ocorreria. Mas há que se questionar se o contexto pandêmico é o único elemento que impede/impediu que o trabalho com os conteúdos em sala de aula a partir de uma dada organização curricular se efetive a partir de uma perspectiva dialógica.

Portanto, a construção do conhecimento, segundo a pedagogia freiriana, se dá de uma forma dialógica e coletiva, considerando que estes alunos da EJA já trazem conhecimentos acumulados, onde “os conteúdos do mundo deveriam ser identificados aos sujeitos da educação e então se tornariam parte dos conteúdos escolares. Dessa forma, a educação teria uma função social de ensinar a ler, escrever e, especialmente, trabalhar com a leitura do mundo, numa perspectiva de conscientização política” (SOUZA, 2011, p. 27). Além disso, fazendo aproximações da pedagogia freiriana com os pressupostos da Pedagogia Histórico-crítica (Saviani, 2011), é necessário reafirmar o papel da educação escolar: o ensino dos conhecimentos científicos historicamente construídos pela atividade humana, onde há um movimento de seleção de conteúdos clássicos, relevantes e básicos no trabalho pedagógico com os sujeitos educandos, a partir de suas práticas sociais. Este movimento também se constitui como uma ferramenta de resistência frente à onda neoconservadora que assola nossa atualidade educacional.

Porém, nas falas dos estudantes entrevistados verifica-se certa naturalização da condição de receptores passivos de conteúdo: “mas não tenho preferência não, eu aceitava tudo que ele explicava e com todo gosto e prazer (E11); “grandes conteúdos de pessoas bem mais sábias que nós de conhecimento. Eu acredito que o conteúdo que eles nos passou foi suficiente”(E16). Deste modo, legitima-se a unidirecionalidade no processo de ensino-aprendizagem, pois, segundo tal lógica “quanto mais ativo seja aquele que deposita e mais passivos e dóceis sejam aqueles que recebem os depósitos, mais conhecimento haverá” (FREIRE, 1985, p. 33).

Neste contexto de “escolhas” curriculares e seleção de conteúdos, podemos nos perguntar quais reais necessidades de aprendizagem dos alunos da EJA. Para Ramos (2011, p. 777) temos que:

Os estudantes da EJA são sujeitos de conhecimento. Suas experiências educativas - formais ou não - lhes proporcionaram aprendizagens que devem se constituir como pontos de partida para novas aprendizagens quando retornam a educação formal. Isto exige repensar tempos e espaços curriculares.

A autora supracitada discute uma dualidade educacional: formação para o trabalho ou para o mundo acadêmico? O que ensinar para a EJA? Qual seu currículo ideal? Como produzem ou produziram os de mundo que já assimilaram? Quais suas lógicas, estratégias e táticas de resolver situações e enfrentar desafios? Como articular os conhecimentos prévios (seu estar no mundo) frente aos disseminados pela cultura escolar? Como o sujeito-professor da EJA pode mediar o trabalho pedagógico neste cenário de infinitas experiências educativas e de aprendizagem (formais e não formais) trazidas pelos sujeitos-educandos da EJA?

Refletindo acerca destas questões, podemos avaliar se nossa prática como educadores se fundamenta numa abordagem tradicional, ou seja, ao aluno será depositado conhecimento, sob uma perspectiva bancária, ou numa abordagem dialógica e problematizadora, defendida por Paulo Freire. Segundo ele “precisávamos de uma Pedagogia de Comunicação, com que vencêssemos o desamor acrítico do antidiálogo. Há mais. Quem dialoga, dialoga com alguém sobre alguma coisa. Esta alguma coisa deveria ser o novo conteúdo programático da educação que defendíamos” (FREIRE, 1999, p. 108). Souza (2011, p. 115) aponta que a dialogicidade freiriana “caracteriza-se pela busca de interação entre homem e mundo, sendo o sujeito entendido como elaborador e criador de conhecimentos”. Ainda segundo a autora, nesta concepção da educação e da EJA “existe uma preocupação com o desenvolvimento da consciência política, mediante o trabalho coletivo e a valorização da prática social dos sujeitos do processo educativo”.

Para De Vargas (2006, p. 183) “a escola apresenta dificuldades no seu cotidiano para reconhecer os saberes dos educandos jovens e adultos, construídos nos espaços sociais de trabalho e para estabelecer um diálogo com esses saberes”. A autora ainda reforça que:

Os alunos dos cursos destinados aos jovens e adultos trabalhadores excluídos do sistema escolar na sua infância construíram seus conhecimentos no movimento das suas relações familiares, do mundo do trabalho, da vida social, dos grupos religiosos e políticos, entre outros, constituindo um amplo e complexo espectro de tipos de interação, onde os saberes divididos se estendem a todos os aspectos de seus modos de vida (DE VARGAS, 2006, p. 183).

Muitos autores, como Paiva (2000), criticaram a intelectualidade, peculiaridade e a originalidade da Pedagogia de Paulo Freire, “acusando-o” de propor uma pedagogia não diretiva, “curvando a vara” para os saberes prévios trazidos pelos sujeitos, com “desmerecimento” dos saberes escolares e por demasiada horizontalidade na relação professor-aluno. Como que, de fato, se estabelecem essas relações e qual o valor se atribui aos conteúdos técnicos científicos no processo de ensino aprendizagem de base freiriana? Freire talvez tenha sido mal interpretado em suas obras ou jamais lido na íntegra por seus críticos. Freire, em toda sua vasta obra, dá ênfase sim à necessidade de todo processo educativo “partir” do conhecimento prévio que este sujeito já tem. Mas isso é o ponto de partida: não se permanece apenas nesse “saber prévio”, mas é conhecendo-o que o professor terá condições de intervir e entrecruzar com outros saberes, os saberes escolares. Neste sentido, Freire (1989, p. 40) aponta:

Desde muito pequenos aprendemos a entender o mundo que nos rodeia. Por isso, antes mesmo de aprender a ler e a escrever palavras e frases, já estamos "lendo”, bem ou mal, o mundo que nos cerca. Mas este conhecimento que ganhamos de nossa prática não basta. Precisamos de ir além dele. Precisamos de conhecer melhor as coisas que já conhecemos e conhecer outras que ainda não conhecemos.

Ainda neste contexto, Freire identifica certa “cientificidade” nos saberes populares, que podem ser uteis no processo de ensino aprendizagem:

Saber como os grupos populares rurais, indígenas ou não, sabem. Como vêm organizando o seu saber, ou sua ciência agronômica, por exemplo, ou a sua medicina, para o que desenvolveram uma taxionomia amplamente sistematizada das plantas, das ervas, dos matos, dos cheiros, das raízes. E é interessante observar como matizam a exatidão taxionômica com promessas milagreiras. Raízes cujo chá cura, ao mesmo tempo, câncer e dores de amor desfeito; ervas que combatem a impotência masculina. Folhas especiais para o resguardo da parturiente, para a “espinhela caída” etc. (FREIRE, 1992, p. 69).

Em outra obra, Freire dá outro exemplo:

Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os das classes populares, chegam a ela - saberes socialmente construídos na prática comunitária - mas também, como há mais de trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos. Por que não aproveitar a experiência que têm os alunos de viver em áreas da cidade descuidadas pelo poder público para discutir, por exemplo, a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem-estar das populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde das gentes. Por que não há lixões no coração dos bairros ricos e mesmo puramente remediados dos centros urbanos? (FREIRE, 1997, p. 15).

Pensando no contexto das aulas de Biologia na EJA, tais exemplos apontados por Freire é prova de que o sujeito já traz consigo um saber da área: embora um “saber popular”, está carregado de elementos dos saberes técnicos científicos que podem ser explorados, descontruídos, sistematizados e/ou ampliados no ambiente escolar, ou seja, Freire jamais desmerece os conteúdos técnicos científicos, mas propõe entre cruzá-los constantemente com os saberes prévios que o sujeito traz consigo, a fim de que tenham sentido para os mesmos. Assim, construir-se-á um currículo de fato significativo para os sujeitos. Freire se preocupa com essa construção, tentando demarcar que ideologia está por trás disso:

[...] que conteúdos ensinar, a favor de que ensiná-los, a favor de quem, contra que, contra quem. Quem escolhe os conteúdos e como são ensinados. Que é ensinar? Que é aprender? Como se dão as relações entre ensinar e aprender? Que é o saber de experiência feito? Podemos descartá-la como impreciso, desarticulado? Como superá-la? Que é o professor? Qual seu papel? E o aluno, que é? E o seu papel? Não ser igual ao aluno significa dever ser o professor autoritário? É possível ser democrático e dialógico sem deixar de ser professor, diferente do aluno? Significa o diálogo um bate-papo inconsequente cuja atmosfera ideal seria a do “deixa como está para ver como fica”? (FREIRE, 1992, p. 69).

A partir desses profundos questionamentos, Freire demarca que a construção curricular é um campo de disputas, que pode estar a serviço da classe dominante. Silva (2004, p. 360) alerta que “um espaço democrático de construção dos saberes não se organiza com poderes centralizados, autoritarismo e clientelismos corporativistas. A gestão democrática é uma necessidade pedagógica. Caso não seja assim encarada, nossa prática de construção de cidadania estará comprometida”. Logo, possibilitar ao sujeito oprimido apropriar-se do currículo da classe dominante é fundamental, pois se constitui num instrumento de luta a fim de romper com a concepção de que tais sujeitos oprimidos não sabem nada. Estes se encontram excluídos na sociedade, pois os conteúdos “construídos” por estes sujeitos não são valorizados. Em sua proposta educativa, Freire reconsidera tais conteúdos, pois a realidade educativa não pode estar apartada da realidade social.

Muitos educadores se perguntam: ‘para que a EJA?’ Responder a essa pergunta merece uma reflexão acerca dos sujeitos educandos que a modalidade recebe. Sujeitos esses que tem ‘pressa’, anseiam por conhecimento, pois consideram que estando afastados da escola ‘perderam’ muito tempo. São pessoas invisíveis na sociedade, que por diferentes motivos retomam sua busca por conhecimento. Voltando ao ambiente escolar se deparam com uma série de desafios: diferentes idades, diferentes culturas, diferentes professores, diferentes metodologias de ensino, enfim, a escola não é mais a mesma. Mas um dos desafios na EJA é exatamente esse: trabalhar a heterogeneidade, as adversidades e diversidades a favor da construção do conhecimento, tentando humanizar o processo de ensino aprendizagem. A bagagem que estes sujeitos trazem quando à escola retornam é grande e necessita ser aproveitada e nem sempre se encontram professores capazes de valoriza-la, pois ainda estão aprisionados à educação bancária, onde, para Freire (1980, p. 41) o “professor escolhe o conteúdo do programa e os alunos - que não foram consultados - adaptam-se”. As respostas dos estudantes nas entrevistas realizadas coadunam exatamente com esta não consulta e com a adaptação passiva. Para De Vargas (2006, p. 183):

Na EJA, a construção do currículo deve ter por base o princípio dialogal, que possibilite cada vez mais a participação de coordenadores, professores, alunos, chefes de unidades operacionais e funcionários, todos os sujeitos do processo ensino-aprendizagem, que pretenda atingir o ensino de qualidade na busca da formação consciente da cidadania.

Não existem receitas prontas. Mas Freire dá pistas acerca desta possiblidade de educandos e educandas dialogarem e participarem ativamente do processo de ensino aprendizagem ao reforçar mais uma vez a necessidade de rompermos com uma organização curricular pautada na “transmissão de conhecimentos”, fruto de uma educação mecânica:

[...] Será o ato de conhecer aquele através do qual um sujeito, transformado em objeto, recebe pacientemente um conteúdo de outro? Pode este conteúdo, que é conhecimento de, ser “tratado” como se fosse algo estático? Estará ou não submetendo o conhecimento a condicionamentos histórico-sociológicos? (FREIRE, 1985, p. 15).

Assim, organizar um currículo para o ensino de Biologia na EJA, pautando-se na Pedagogia freiriana, pode considerar que os conteúdos não são estáticos e que estes se incumbem de estar a serviço dos interesses dos educandos, valorizando seus conhecimentos e promovendo a transição dos saberes prévios a saberes científicos sistematizados. Silva (2004, p. 360) afirma que “uma escola que apresente uma proposta pedagógica que atenda aos interesses de sua comunidade desencadeia um processo de reavaliação da participação comunitária nas decisões e caminhos a serem trilhados”. É necessário e urgente quebrar as grades curriculares que aprisionam os sujeitos e instalar janelas abertas, onde se vislumbre uma construção curricular coletiva e que não separe o mundo da escola do mundo da vida.

Considerações finais

Aprofundando-se na vasta obra de Paulo Freire vemos como ele apresenta uma continuidade: sua pedagogia libertadora vai se delineando aos poucos e constantemente o autor retoma seus principais pressupostos, desdobrando-se e avançando nas discussões dessa educação de caráter político e com potencial transformador dos sujeitos. Baseando-se nesta pedagogia freiriana, apresentamos ao longo deste artigo a possibilidade de utilizá-lo como um referencial teórico legítimo em pesquisas educacionais, mais especificamente no campo currículo da EJA, pois ao longo de toda sua obra percebe-se a preocupação do autor em possibilitar ao sujeito educando o protagonismo no processo de ensino aprendizagem, de modo que ele participe ativamente na construção curricular e na seleção de conteúdos que serão trabalhados, pois fica claro que esta construção necessita se dar com os sujeitos e não para os sujeitos, numa relação vertical e imposta.

Nesta construção curricular, de caráter eminentemente político e democrático, a escuta, o diálogo, a curiosidade e a problematização são elementos fundamentais, pois parte-se do pressuposto de que o sujeito já traz consigo algum “saber de experiência feito” e daí avançar rumo à sistematização de saberes escolares/científicos historicamente acumulados, função primordial da educação escolar. Assim, os sujeitos educandos, numa relação horizontal entre educando-educando e educando-educador, podem ter a sensação de “pertencimento” aos conteúdos produzidos, tendo-se em mente que o saber nunca é, mas está sendo sempre.

A partir das entrevistas com os estudantes da EJA em instituições escolares goianas foi possível identificar que a transmissão bancária de “conteúdos prontos” da biologia ainda permanece enraizada na prática pedagógica dos professores, que não são capazes de romper as amarras que os prendem à condição de tarefeiros executores de currículos prescritos. O diálogo, quando existe, ainda restringe-se à superficialidade, desviando-se do diálogo verdadeiro freiriano. Educandos e educandas parecem naturalizar a condição na qual estão imersos, quer seja a de receptores passivos de conteúdos preparados e programados por seus professores e professoras.

Além disso, reforça-se a importância de resgatar o legado freiriano e sua pedagogia como um forte elemento de resistência frente ao cenário neoconservador que se vislumbra em nossa sociedade atual, com indícios de retrocessos, perdas de conquistas e direitos sociais, notadamente na modalidade EJA, e renascimento de um período histórico opressor da classe trabalhadora, submetendo sua formação humana atrelada à qualificação de mão-de-obra, aos interesses do capital e que desmerece e/ou desqualifica seus “saberes de experiência feito”. Logo, concordando com Freire (1992), defendemos uma tensão harmoniosa entre autoridade-liberdade, na qual o professor domine os conceitos nucleares essenciais para que os estudantes “saibam mais” sobre a biologia e possam agir no mundo mediado por esses conceitos com outra subjetividade, mas sem promover o “engessamento curricular”, afastando os educandos e educandas de uma aprendizagem que valorize suas “leituras de mundo”.

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SOBRE OS(AS) AUTORES(AS)

1Presidente da república brasileira eleito para o mandato de 2019-2022

2Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), desalentados são aqueles que estão fora do mercado de trabalho, possuem força de trabalho potencial, mas desistiram de procurar trabalho por diferentes motivos. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php

3No caso específico da EJA, os impactos também foram grandes: muitos estudantes perderam seus empregos (formais ou informais) devido às medidas de isolamento social e lockdown. Quanto à questão da escolarização, se viram envoltos com ferramentas tecnológicas que pouco dominam e/ou sequer tem acesso. Os desafios para manter o vínculo destes estudantes com as instituições escolares são hercúleos e a evasão escolar (que na EJA sempre foi um entrave), avançou ainda mais.

4Considerando os pressupostos freirianos, esta pesquisa mais ampla objetiva identificar os sujeitos envolvidos na construção do currículo de biologia na EJA oferecida na rede estadual de educação do estado de Goiás, apontando o diálogo que se estabelece neste processo.

5Sugerem-se as obras: APPLE, M. W.Ideologia e currículo. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006; YOUNG, M. Knowledge and control: new directions for the sociology of education. London: Collier Macmillan, 1971; GIROUX, H. Os professores como intelectuais. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997; McLAREN, P. Rituais na escola: em direção a uma economia política de símbolos e gestos na educação. Petrópolis: Vozes, 1991; NÓVOA, A. (Org.).Profissão professor. Porto: Porto Editora, 1991; MOREIRA, A. F. e SILVA, T. T. (Orgs.) Currículo, cultura e sociedade. São Paulo: Cortez (1994), 6ª ed., 2002.

6Estes estudantes participantes da entrevista foram indicados por seus professores e professoras de biologia, os quais também foram entrevistados no movimento empírico mais amplo (pesquisa de doutorado).

7Devido à Pandemia de COVID-19, as instituições escolares públicas no estado de Goiás aderiram ao regime especial de aulas não presenciais (REANP) durante todo o ano de 2020 e início de 2021.

8Pesquisa aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa/CEP-UFG (Número do Parecer: 4.277.192).

Recebido: 11 de Julho de 2021; Aceito: 04 de Agosto de 2021

Renato Antônio Ribeiro Doutorando em Educação em Ciências e Matemática, pela Universidade Federal de Goiás (UFG); Mestrado Interdisciplinar em Educação, Linguagem e Tecnologias (UEG); Professor atuante na Educação de Jovens e Adultos no ensino de Ciências (Ensino Fundamental) e Biologia (Ensino Médio) pela SEDUCE-GO e em Instituições de Ensino Superior com disciplinas de Formação de Professores; Integrante do Grupo de Pesquisa Colligat: (re)pensando a formação de professores de Ciências e Biologia e do Fórum Goiano de Educação de Jovens e Adultos.

Simone Sendin Moreira Guimarães Doutora em Educação Escolar - Formação de Professores pela Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho" (UNESP); Atualmente é professora Associada I do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da Universidade Federal de Goiás (UFG). É coordenadora do Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas (2019/2021) e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática (PPGECM) da UFG. Coordena o Grupos de Pesquisa Colligat - (re)pensando a formação de professores de ciências na natureza.

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