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Revista Práxis Educacional

versión On-line ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.17 no.48 Vitória da Conquista oct./dic 2021  Epub 25-Nov-2021

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v17i48.8946 

DOSSIÊ TEMÁTICO: Pesquisa em educação: abordagens em Portugal e Brasil

ARQUEOLOGIA COMO METODOLOGIA E BIOPOLÍTICA COMO DISCURSO

ARCHEOLOGY AS METHODOLOGY AND BIOPOLITICS AS SPEECH

ARQUEOLOGÍA COMO METODOLOGÍA Y BIOPOLÍTICA COMO DISCURSO

Guilherme Augusto Rezende Lemos1 
http://orcid.org/0000-0002-0518-6719

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil guilhermealemos@yahoo.com.br


Resumo:

Trataremos aqui do itinerário foucaultiano, associado à noção de Biopolítica, política da vida, ou de como a economia política constrói discursos que incidem diretamente sobre o campo da Educação, em itinerários de pesquisa (metodologias?) que se utilizam ou não da ótica foucaultiana. O presente artigo divide-se em três partes, a saber, (1) a arqueologia como “metodologia científica”, (2) itinerários metodológicos como discurso e (3) a biopolítica como produção discursiva. Na primeira parte, estudaremos a noção da arqueologia foucaultiana como método de pesquisa e produção discursiva. Na segunda parte, analisaremos três itinerários de pesquisa a partir de três artigos: Base Nacional Curricular Comum: novas formas de sociabilidade produzindo sentidos para educação, de Elizabeth Macedo (2014); Reformas curriculares e formação inicial: saberes e profissionalização, de Maria Manuela Alves Garcia (2015); e Os reformadores empresariais da educação e a disputa pelo controle do processo pedagógico na escola, de Luiz Carlos Freitas (2014). Por fim, analisaremos os efeitos da economia política e do mercado, através das noções homo oeconomicus e biopolítica como metodologia de produção dos discursos.

Palavras-chave: Currículo; metodologia; Foucault.

Abstract:

We will deal here with the Foucaultian itinerary, associated with the notion of Biopolitics, politics of life, or how political economy builds discourses that directly affect the field of Education, in research itineraries (methodologies?) that use or not the Foucaultian perspective. This article is divided into three parts, namely, (1) archeology as “scientific methodology”, (2) methodological itineraries as discourse and (3) biopolitics as discursive production. In the first part, we will study the notion of Foucault's archeology as a method of research and discursive production. In the second part, we will analyze three research itineraries from three articles: National Common Curriculum Base: new forms of sociability producing meanings for education, by Elizabeth Macedo (2014); Curriculum reforms and initial training: knowledge and professionalization, by Maria Manuela Alves Garcia (2015); and The business reformers of education and the dispute for control of the pedagogical process at school, by Luiz Carlos Freitas (2014). Finally, we will analyze the effects of political economy and the market, through the notions of homo oeconomicus and biopolitics as a methodology for the production of discourses.

Keywords: Curriculum; methodology; Foucault.

Resumen:

Nos ocuparemos aquí del itinerario foucaultiano, asociado a la noción de biopolítica, política de vida o cómo la economía política construye discursos que inciden directamente en el campo de la educación, en itinerarios de investigación (¿metodologías?) Que utilizan o no la perspectiva foucaultiana. Este artículo se divide en tres partes, a saber, (1) la arqueología como “metodología científica”, (2) los itinerarios metodológicos como discurso y (3) la biopolítica como producción discursiva. En la primera parte estudiaremos la noción de arqueología de Foucault como método de investigación y producción discursiva. En la segunda parte analizaremos tres itinerarios de investigación a partir de tres artículos: National Common Curriculum Base: nuevas formas de sociabilidad que producen significados para la educación, de Elizabeth Macedo (2014); Reformas curriculares y formación inicial: conocimiento y profesionalización, de Maria Manuela Alves García (2015); y Los empresarios reformadores de la educación y la disputa por el control del proceso pedagógico en la escuela, de Luiz Carlos Freitas (2014). Finalmente, analizaremos los efectos de la economía política y el mercado, a través de las nociones de homo oeconomicus y biopolítica como metodología para la producción de discursos.

Palabras clave: Currículo; metodología; Foucault

Introdução

Nos dias que correm, temos tido dificuldades em compreender o que seja e como definir “metodologia científica”. O próprio sintagma aponta sua destinação: produzir ciência, conhecimento científico; distinguindo-o do saber, do senso comum. Essa divisão entre o “saber” e o “conhecimento”, entre o senso comum (doxa) e a ciência (episteme), me parece ser o ponto central do debate, na medida em que o próprio estatuto da ciência, enquanto certeza e verdade, tem sido, reiteradamente, colocado sob suspeita. Um primeiro ponto a se constatar, ao longo do século XX, é a migração da singularidade, a Ciência, para a pluralidade, as ciências, reconhecendo múltiplos caminhos na construção do conhecimento, de modo a nos fazer entender que a metodologia da física é distinta da metodologia da história, por exemplo.

Mas não só isso, a divisão do conhecimento em áreas e subáreas, nos remete a múltiplos métodos dentro da própria particularidade de cada ciência, redesenhando o sentido do que se entende por ciência. A própria ideia de área aponta para uma geografia, uma paisagem a ser compreendida e descrita, portanto, a ciência torna-se objeto de si mesma, produzindo sentidos muito atrelados à sua utilidade e eficácia. Altamente tecnicizadas e submersas na pragmaticidade, as ciências tornaram-se uma conversa complicada entre pares ou entre áreas, desconstruindo as condições de possibilidade de uma epistemologia, como crivo de validação.

Roberto Machado (1981) define epistemologia como “a reflexão sobre a produção de conhecimentos científicos que tem por objeto avaliar a ciência do ponto de vista de sua cientificidade” (p. 9), nesse sentido, a epistemologia, um ramo da filosofia, teria por função a validação do conhecimento científico. Essa formulação, obviamente, está consoante à formação do conceito de ciência dos séculos XIX e XX. Quando falamos em metodologia científica, de certo modo, desejamos nos submeter ao tribunal da epistemologia, adotando um itinerário que garanta a cientificidade da narrativa: trajetória e resultado da pesquisa.

Lyotard (1979), investigando “a posição do saber nas sociedades mais desenvolvidas” na era dita ”pós-moderna”, constata que o que a caracteriza é a “incredulidade em relação aos metarrelatos” (p. xvi). A palavra pós-moderna, em princípio, era usada por sociólogos e críticos acerca das transformações ocorridas “nos jogos da ciência, da literatura e das artes no final do século XIX”, mas Lyotard a utiliza para se reportar às transformações relativas “à crise dos relatos”, exatamente aqueles relatos legitimados pela epistemologia, que o filósofo nomearia de “antropologia newtoniana”.

Assim, nasce uma sociedade que se baseia menos numa antropologia newtoniana (como o estruturalismo ou a teoria dos sistemas) e mais numa pragmática das partículas de linguagem. Existem muitos jogos de linguagem diferentes; trata-se da heterogeneidade dos elementos. Somente darão origem à instituição através de placas; é o determinismo local. (LYOTARD, 1979: xvi)

Com isso, constata-se uma crise na legitimação do conhecimento científico, que passa a se pautar na sua eficácia, isto é, na otimização das performances do sistema, cujo “critério de operatividade é tecnológico; ele não é pertinente para se julgar o verdadeiro e o justo” (p. xvii), como na modernidade, e torna-se um instrumento dos poderes. A hipótese de Lyotard é que, na idade das culturas pós-modernas, o saber muda de estatuto. O início dessa “idade” coincide com o fim dos anos 50 do século passado. Enfim, o saber científico torna-se uma espécie de discurso (ibidem: p. 5).

A título de exemplo, podemos tomar o texto Metodologia Científica de Aragão e Mendes Neta (2017) que se encontra disponível no portal da CAPES. Nele, os autores justificam a necessidade de uma metodologia científica:

São necessárias algumas normas e regras para tentarmos compreender e explicar o mundo (a realidade) a nossa volta sem estarmos a recorrer seguidamente à reprodução acrítica da mesmice (senso comum) ou dos lugares comuns que nos são impingidos, cotidianamente, por indivíduos, grupos e instituições sociais de todos os naipes e calibres

Assim como explicitam seu lugar de fala: “Pesquisar com método não implica ter uma atitude reprodutora, pelo contrário, é procurar cultivar um espírito crítico, reflexivo, amadurecido, contribuindo para o progresso da sociedade” (p. 10), isto é, o pensamento crítico. A partir dele constroem um sentido para o real:

Tudo que age sobre nós todos os dias da semana possivelmente tem origem numa ação calculada, isto é, intencionalmente construída para influenciar e surtir efeito sobre as crenças e opiniões das pessoas e suas relações com o ambiente a sua volta local, regional, nacional e internacional. (p. 11)

E sobre esse real definem conhecimento:

O Conhecimento científico, foco deste nosso Ebook, sendo real (factual), constitui um conhecimento contingente, com base na experiência e não apenas na razão. É sistematizado, logicamente, formando teorias (sistema de ideias). É passível de verificação na qual as hipóteses podem ser testadas. Constitui um conhecimento falível, em virtude de encontrar-se em constante possibilidade de novas descobertas e, por esse motivo, também é aproximadamente exato. (p. 16)

E definem metodologia científica:

Na difusão de um conhecimento produzido cientificamente, além de se levar em conta os procedimentos técnicos acadêmicos reconhecidos e referendados pela comunidade científica, do ponto de vista da sua universalidade, o que é óbvio, ocorrerá o que podemos denominar aqui de visibilidade e revelação do pesquisador. Os autores que sustentarão o teor acadêmico de um trabalho de pesquisa revelarão em tempo a visão de mundo do pesquisador considerando processos ideológicos que podem ser constatados no teor do seu discurso escrito. Estamos falando da identidade ideológica do autor, do seu pertencimento, da sua organicidade e do seu compromisso com o social, independente da área da pesquisa, humanas ou exatas, ou do tipo de pesquisa, se qualitativa ou quantitativa. (p. 18)

A metodologia científica, qualificada como práxis, acaba caracterizada mais como discurso ideológico do que como método seguro, e não vai aqui nenhuma crítica ao pensamento crítico, o caráter discursivo não é uma prerrogativa crítica, mas de toda e qualquer produção científica na contemporaneidade, daí a crise dos critérios de validação da ciência e as suspeitas acerca das metodologias científicas como métodos seguros.

É nesse contexto que surgem as Teorias do Discurso, destacando-se a análise do discurso, de Michel Pêcheux, e a formação discursiva, de Michel Foucault, também conhecida como arqueologia do saber. Para Pêcheux, “é pela atuação do sujeito que se constrói o discurso, e é só por meio da ideologia que se constrói o sujeito” (BARROS, 2015: 74); nesse sentido, “o discurso e sua análise correm ‘refletindo sobre a maneira como a linguagem está materializada na ideologia e como a ideologia se manifesta na língua’” (p. 76).

Foucault, por sua vez, advoga que o discurso, que é um sistema de dispersão, ou seja, é um efeito de quem o analisa, descreve e compreende aquilo que emerge do próprio discurso, a partir de um conceito histórico e ideológico.

A dupla paternidade do conceito gera, muitas vezes, uma série de confusões no que diz respeito à sua conceituação. Baronas (2011 [p. 89]) comenta essa polêmica: “Michel Pêcheux teria emprestado o sintagma - formação discursiva - de A arqueologia do saber, de Michel Foucault, para, à luz do materialismo histórico, reconfigurá-lo, relacionando-o com o conceito althusseriano de ideologia”. (BARROS, 2015: 79)

Trataremos aqui do itinerário arqueológico de Foucault, associado à noção de Biopolítica, política da vida, ou de como a economia política constrói discursos que incidem diretamente sobre o campo da Educação, em itinerários de pesquisa (metodologias?) que se utilizam ou não da ótica foucaultiana. A economia emerge como a ideologia das ideologias, pautando a própria compreensão do ato de educar e as políticas que lhe subjazem. O mercado, ponto central da atual iconografia econômica, posiciona-se não mais como um lugar de troca, mas como forma do pensamento, como o lugar da veridicção a produzir sentidos para a vida e balizar o debate político.

O presente artigo divide-se em três partes, a saber, (1) a arqueologia como “metodologia científica”, (2) itinerários metodológicos como discurso e (3) a biopolítica como produção discursiva. Na primeira parte, estudaremos, à luz dos comentários de Roberto Machado (1981), a noção da arqueologia foucaultiana como método de pesquisa e produção discursiva. Na segunda parte, analisaremos três itinerários de pesquisa a partir de três artigos: um pós-estrutural - Base Nacional Curricular Comum: novas formas de sociabilidade produzindo sentidos para educação, de Elizabeth Macedo (2014); um de viés foucaultiano - Reformas curriculares e formação inicial: saberes e profissionalização, de Maria Manuela Alves Garcia (2015); e um de pensamento crítico - Os reformadores empresariais da educação e a disputa pelo controle do processo pedagógico na escola, de Luiz Carlos Freitas (2014). Por fim, analisaremos os efeitos da economia política e do mercado, através das noções homo oeconomicus e biopolítica como metodologia de produção dos discursos.

A arqueologia como “metodologia científica”

Manoel Barros da Motta, em sua apresentação da obra Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento de Michel Foucault (2008), advoga que o pensamento do filósofo “modificou nossa relação com saber e a verdade” (p. V), mudando a episteme para além do pós-estruturalismo e do pós-modernismo, onde a racionalidade e a razão não coincidem. Para Roberto Machado (1981), a questão da racionalidade é a questão fundamental que a história das ciências coloca para a filosofia. A arqueologia consistiria em fazer emergir da história das ciências, os movimentos de instauração da racionalidade, as formas do saber.

Nesse sentido, os objetivos da arqueologia seriam: “analisar a superação dos obstáculos, o desaparecimento dos preconceitos, o abandono dos mitos” (p. 9), dando, assim acesso à racionalidade de uma época. Dessa forma, o conhecimento deixa de ser uma verdade acerca do real para se conformar com o conjunto de circunstâncias discursivas que produzem um dado real ou sua racionalidade, ou seja, uma arqueologia do saber. “Para compreendermos a história arqueológica podemos partir desta constatação: todas as suas análises estão centradas na questão do homem, isto é, formam uma grande pesquisa sobre a constituição histórica das ‘ciências do homem’ na modernidade” (p. 10-11). A história arqueológica relaciona-se, mas não se confunde com uma história epistemológica.

Barros (FOUCAULT, 2008) afirma que, para Foucault, “escrever não é um ato de comunicar o que já se sabe” (p. XVII), mas de “arrancar o sujeito de si mesmo”, trata-se de uma experiência transformadora que não só produz a dissolução do sujeito, mas, precipuamente, o dessubjetiva. “Não se pode deixar de notar que o livro deve funcionar como uma experiência para quem o escreve, mas também para quem o lê” (p. XVIII). O que pode nos fazer supor que a metodologia e a produção científica não se conformam como os limites do pesquisador, mas vão além dele e ganham continuidade nos leitores ou atores do estudo. Subjetividade, experiência e verdade veem-se assim relacionadas. Na arqueologia foucaultiana, a verdade deixa de ser um alvo a ser buscado na história das ciências para tornar-se uma relação do saber com ele mesmo. Ao invés de uma história das ciências, os saberes que elas produzem e a historicidade desses saberes.

Uma experiência não é nem verdadeira nem falsa. Uma experiência é sempre uma ficção; é alguma coisa que nós próprios fabricamos, que não existe antes e que vai existir depois. Isto é a relação difícil com a verdade, a maneira pela qual esta se encontra engajada em uma experiência que não é ligada a ela e que, até certo ponto, a destrói. (FOUCAULT, 2008: XVIII)

Nesse sentido, a arqueologia, enquanto metodologia, coloca sob suspeita a ideia de pensamento ordenado, segundo o critério que lhe é externo. Em As palavras e as coisas (FOUCAULT, 2007), obra icônica da fase arqueológica, Foucault nos alerta que a ordem tanto se oferece a partir do interior das coisas e como “[d]aquilo que só existe através do crivo de um olhar” (p. XVI). O confronto das ordens empíricas das culturas e as teorias filosóficas e científicas explicitam a ordem, mas ela não é codificável, posto que “crivo de um olhar”. A experiência da ordem a qualifica como um modo de ser. “[...] nossa cultura manifestou que havia ordem e que às modalidades dessa ordem deviam as permutas suas leis, os seres vivos sua regularidade, as palavras seu encadeamento e seu valor representativo” (p. XVIII).

A função da arqueologia, ao contrário de uma metodologia que deseja o tribunal da epistemologia, é produzir um relato que faça emergir as condições de possibilidades do pensamento epistemológico de uma dada época ou ciência: “neste relato, o que deve aparecer são, no espaço do saber, as configurações que deram lugar às formas diversas do conhecimento empírico” (P. XIX). A arqueologia revela as descontinuidades epistemológicas e mina as possibilidades dos fundamentos, é nesse sentido, como dito acima, que a verdade passa ser relacional.

Para Machado (1981), as análises arqueológicas, trazem um importante deslocamento metodológico, pois estão centradas na “questão do homem”, formam um grande itinerário de pesquisa que não se pauta pela história epistemológica, mas que pretende a constituição das ciências do homem. Ouçamos a síntese de duas arqueologias na voz do próprio Michel Foucault:

A história da loucura seria a história do outro - daquilo que, para uma cultura é ao mesmo tempo interior e estranho, a ser, portanto, excluído (para conjurar-lhe o perigo interior) encerrando porém (para reduzir-lhe a alteridade); a história da ordem das coisas seria a história do Mesmo - daquilo que, para uma cultura, é ao mesmo tempo disperso e aparentado, a ser portanto distinguido por marcas e recolhido em identidades. (FOUCAULT, 2007, XXII)

Como se pode notar, as arqueologias podem produzir tanto a história do outro como a histórica do mesmo, configurando uma metodologia despreocupada com a história epistemológica das ciências; como é o caso de A história da loucura, que buscava saber em que momento nasceu a psiquiatria. Para tanto, foi preciso abandonar a história linear de uma dada ciência e encontrar uma nova metodologia, que estudava diferentes épocas e disciplinas, que não distinguia a ciência da pré-ciência, “tendo o saber como campo próprio da investigação” (MACHADO, in: FOUCAULT, 1992).

Segundo Machado, a arqueologia não se limitava ao nível do discurso, pois não pretendia descrever uma história da psiquiatria, mas dar olhos de ver a um pensamento psiquiátrico que, ao invés de descobrir a essência da loucura e libertá-la, surgiu como processo de dominação do louco, reafirmando um pensamento que lhe antecedia e que fugia à sua esfera. A psiquiatria surge como fundamentação teórica de práticas sociais que envolvia diversas instâncias como “a política, a família, a Igreja, a justiça, generalizando a análise até as causas econômicas e sociais das modificações institucionais” (MACHADO, op.cit, p. VIII).

Itinerários metodológicos como discurso

No campo da educação, metodologias análogas têm sido implementadas, para dar conta dos fenômenos contemporâneos, como a “crise” na educação e a “má” formação de professores, por exemplo. Os itinerários de pesquisa investigam múltiplos campos disciplinares, justamente para tentar compreender a conjuntura de pensamento que produz tais fenômenos. Os artigos que se seguem constituem-se como sínteses de processos de investigação e são reveladores de seus métodos. Aqui nos interessa menos o que querem dizer e mais como o dizem.

Elizabeth Macedo (2014), no artigo entitulado Base Nacional Curricular Comum: novas formas de sociabilidade produzindo sentidos para educação, tem como objetivo “identificar os agentes políticos públicos e privados que tem atuado na hegemonização de um dado sentido para esse termo [BNCC] e, consequentemente, para currículo e educação”. Articulando as teses de Ernesto Laclau e Stephen Ball faz emergir formas de sociabilidade que visam retirar da educação aquilo que nomeia como o “imponderável”.

Ao modo de certa arqueologia, não é a história da construção da BNCC que lhe interessa, mas as articulações políticas, as demandas sociais, as pressões institucionais, as argumentações econômicas que produzem saberes que justificam e fundamentam as práticas governamentais que surgem como um “bem” para todos ou uma “crise” de todos. Diz ela:

Grupos políticos distintos se constituem, no entanto, nos processos de significar tanto a qualidade da educação quanto a suposta crise do sistema. Ou seja, as diferentes demandas tornadas equivalentes na luta por uma educação de qualidade também não são unitárias, elas são constituídas e hegemonizadas em outras articulações. Há, nas políticas curriculares recentes, demandas por equidade, por representatividade de “grupos minoritários”, por universalismo epistemológico, por direito ao acesso e a permanência na escola, por profissionalização, entre muitas outras tornadas equivalentes sob o significante qualidade. Cada uma delas é a consolidação de uma pluralidade produzida no embate indecidível entre as lógicas da diferença e da equivalência. Essa mesma pluralidade pode ser identificada na atribuição de sentidos à crise que serve de exterior constitutivo às hegemonias das demandas por qualidade. (MACEDO, 2014: 1536 - 1537)

Na introdução, Macedo mapeia a arquitetura do processo investigativo, historiando, a partir dos anos 80 do século passado, a trajetória de certo “clamor” por currículos únicos. Juntando as pontas do fio de Ariadne, vai levantando os componentes que, a seu juízo (o olhar de quem analisa), foram constituindo a ilusão hegemônica. Vai elencando os atores que qualifica como importantes e escavando, a partir deles, as contribuições, críticas ou não, que compõe a trama microfísica do tecido.

Embora o artigo traga o referencial teórico logo após a introdução, é perceptível que tais referenciais foram sendo agregados ao longo da investigação. A pesquisa se desenvolve, pari passo, na associação do posicionamento político e teórico da pesquisadora, o tema de interesse que se apresenta no horizonte daqueles posicionamentos e as leituras teóricas que lhes são concomitantes. O próprio tema foi suscitando relações entre autores que não necessariamente tratam seus objetos teóricos do mesmo lugar. Podemos aferir que a trajetória - ao contrário de um caminho seguro, claro e distinto - surge com forte ingrediente ficcional. O lugar de fala da autora compreende a realidade como linguagem e não como materialidade.

Meu primeiro movimento foi tentar mapear as demandas dos sujeitos políticos “públicos” envolvidos nas políticas em curso: MEC, CNE, CONSED, UNDIME. Para a teoria do discurso, os sujeitos não preexistem às demandas, de modo que, quando optei por tais sujeitos socialmente nomeados, procurei entendê-los como constituídos no processo. Eles não possuem identidade prévia a partir da qual defendem uma posição única, são constituídos na ação política de forma específica e contingencial. (p. 1537)

Na terceira parte do texto, Macedo, associando as tramas discursivas dos muitos atores, acredita que as signifixações que ecoam na BNCC estão sob a égide do “paradigma de colaboração integrativa”, muito utilizado no campo da EaD e que, por si só, revela seu caráter instrumental. Percebe-se que os saberes que constituem certos fenômenos, como a BNCC, por exemplo, revelam mais um comportamento das articulações do que fundamentos que lhes subjazam.

Fazendo uso de uma estratégia desconstrutiva, isto é, uma desmontagem dos discursos que parecem hegemônicos e que prometem certa fantasia neoliberal de caminho seguro para a qualidade, como liberdade de empregabilidade e felicidade, conclui que a BNCC não só não vai “melhorar a educação”, como não vai “garantir desenvolvimento e melhor distribuição de renda”; vai apenas tentar controlar aquilo que a autora qualifica com “o imponderável” da Educação, isto é, o imprevisível, muito próprio de qualquer processo educativo, escolar ou não, que se revela como a produção da diferença ou o movimento em que diferimos de nós mesmos por efeito do encontro com o outro, tanto externo como interno a nós mesmos, evidenciando sua ótica pós-estrutural.

Em Reformas curriculares e formação inicial: saberes e profissionalização, de Maria Manuela Alves Garcia (2015),

Tem-se como objetivo uma leitura, na perspectiva da governamentalidade, do discurso e das políticas curriculares, sobre a questão da profissionalização docente presente nas reformas curriculares, que, desde os anos de 1990, vêm pautando o campo da formação inicial de professores no Brasil e no mundo. Mais especificamente, faz-se uma análise dos sentidos de profissionalismo e profissionalidade docente e dos saberes da formação inicial que são privilegiados pela política oficial para os currículos dos cursos de licenciatura, [...]. (Resumo)

A metodologia arqueológica aqui se faz ainda mais evidente, não só por, nomeadamente, ter Foucault como referencial teórico preponderante, mas, sobretudo, por articular mentalidades, culturas e tradições como veículos ressignificadores das políticas que tentam hegemonizar sentidos do que seja “qualidade”. Se em Macedo o mote era a BNCC, mas não sua história, em Garcia é a formação de professores que se oferece como porta de entrada do que nomeia de perspectiva investigativa.

Percebam que numa perspectiva não positivista o componente teórico preponderante não tem significação unívoca:

O conceito de governamentalidade, neste trabalho, é utilizado tanto em um sentido muito específico, tal como desenvolvido por Foucault nos cursos do Collège de France do final da década de 1970, pois trata-se, aqui, tanto do estudo de uma política educacional como de um conceito com um sentido mais geral. (GARCIA, 2015, p. 58)

Na segunda parte do texto, a tentativa é articular os “discursos educacionais” atinentes aos mais diversos setores. Desde aqueles oriundos da pedagogia, seja como teoria ou como prática, passando pela historiografia educacional, pelos de organismos locais e globais, pelos discursos da globalização e das políticas educacionais e curriculares. É possível perceber o roteiro investigativo que vai aos poucos sendo acrescido ao modo de “uma coisa leva a outra”, o que denota certa voz própria da pesquisa. O estudo ao se desenvolver vai levantando questões, visto que há certa imprevisibilidade na trajetória de projeto, por mais “amarrado” que esteja.

Na terceira parte do texto, que trata dos caminhos percorridos pela “profissionalização docente”, percebe-se o quanto a investigação acerca de um campo vai reverberando sobre outros que acabam sendo adicionados à pesquisa: movimentos sociais, cursos de graduação e pós-graduação, políticas de estágio supervisionado, bolsas de iniciação científica. O aprofundamento da pesquisa vai revelando que uma reivindicação de constituição de um campo profissional desemboca em inúmeras ações no seio da sociedade. Isso nos mostra, para além do imprevisível, as redes que compõem o tecido social, levando o processo investigativo a caminhos infinitos.

Mais uma vez, a despeito de uma verdade ou concretude factual, o que se conclui é a constituição de um sistema de pensamento em cujo interior “se pode situar a sedução que o discurso pedagógico de nosso tempo sofre pelo ideal do desenvolvimento profissional de um docente autônomo e autorreflexivo” (Idem. p. 66). Os significantes da conclusão ao invés de nos levar a um porto seguro, uma saída ou uma resposta, nos remetem a um vazio, prenhe de significações que impulsionarão outras pesquisas, num moto contínuo sem paradeiro.

Em Os reformadores empresariais da educação e a disputa pelo controle do processo pedagógico na escola, de Luiz Carlos Freitas (2014), autor de forte viés crítico, a arquitetura do discurso segue um rumo distinto dos dois textos anteriores, estes analisaram suas questões do ponto de vista micro, elencando atores muito precisos e nomeados, bem como a composição discursiva desses atores e seus efeitos, construindo uma perspectiva, um olhar sobre o problema, complexificando as possibilidades de análise, abrindo-a a mais questões. Mais importa pensar sobre do que encontrar efetivamente uma resposta. O artigo de Freire percorre uma análise de cunho macroestrutural, pautada na crítica ao modo de produção capitalista e começa por fixar uma hipótese a ser demonstrada:

Partindo de dois núcleos conceituais constitutivos da organização do trabalho pedagógico (objetivos/avaliação e conteúdos/métodos) examinam-se as implicações dos avanços das propostas dos reformadores empresariais para a educação, evidenciando as conexões entre as avaliações de larga escala, os processos internos de avaliação (formal e informal) nas escolas, bem como a proposta de redefinição da base nacional comum curricular em curso. Mostrase também que pelo controle do primeiro par dialético (objetivos/avaliação), os reformadores almejam chegar ao controle do segundo par dialético da organização do trabalho pedagógico (conteúdos/métodos). (FREITAS, 2014, p. 1085)

Na análise macroestrutural, como o que importa é evidenciar os mecanismos da produção da desigualdade desferida pelo capital, encontraremos um conjunto de sujeitos ocultos sustentando os pilares da argumentação: o capital, os empresários, reformadores empresariais, o governo, o trabalhador, o professor, a juventude, sem nenhum processo de diferenciação no interior dessas categorias. Não se trata de um erro, mas de uma estratégia discursiva, cujo alvo da crítica é a crise na govertamentalidade consequente da ação neoliberal.

Na luta pelo controle do processo pedagógico das escolas, o Estado é cada vez mais disputado por forças sociais liberal-conservadoras que procuram assumir, por meio de avaliações externas, o controle e o fortalecimento dos processos de avaliação internos da escola (formais e informais) e a partir destes subordinar as categorias do processo pedagógico a seus interesses, vale dizer, preservar e aumentar o controle sobre os objetivos, o conteúdo e até sobre os métodos da escola. (FREITAS, 2014, p. 1092)

Nesse sentido, a metodologia está diretamente relacionada à intencionalidade da construção discursiva, qual seja, a denúncia da lógica contraditória do capitalismo. Isso fica muito claro quando o autor afirma que “O que motiva, portanto, esta nova investida dos empresários é resolver a contradição entre a necessidade de padronizar e liberar um pouco mais de acesso ao conhecimento sem com isso perder o controle político e ideológico da escola” (p. 1091). Do meu ponto de vista, o problema é que a materialidade, tão cara o aos marxistas, é também discurso.

A profundidade da pesquisa se revela na análise dos efeitos das avaliações de larga escala sobre as avaliações formais e informais no interior da sala de aula, induzindo a relação professor-aluno e produzindo comportamentos sócio-educacionais que qualifica como perniciosos e impeditivos de uma formação capaz de criticidade e autonomia, tanto para o educando como para o educador, submerso que está na trama neoliberal.

O antídoto para tal problema, na ótica de Freitas, seria a reconfiguração do espaço escolar como “centro cultural de sua comunidade”, funcionando em tempo integral “e que investiga a vida e suas contradições sociais, que libera a energia criativa da juventude e a desenvolve em todas as suas dimensões possíveis, incluindo o domínio sólido do conhecimento das ciências e das artes” (p. 1108).

O que se observa na leitura dos três trabalhos é que todos tentam compreender a forma da govertamentalidade, seja por entendê-la como fruto de negociações políticas cotidianas, seja por configurá-la como efeito de um saber-poder, seja por denunciá-la como reprodutora/facilitadora da ideologia neoliberal. Isto nos leva a parte final deste artigo que é a compreensão de Michel Foucault (2010) acerca desse estado coisas que qualificou como biopolítica ou a política da vida.

Biopolítica como produção discursiva

Segundo Bruno Maçães, na Introdução de Nascimento da biopolítica (FOUCAULT, 2010: VII), afirma que “Se há um tema que preside a este ciclo de lições, esse tema é a relação entre economia e verdade”. Foucault, ao longo do curso proferido no Collège de France, entre janeiro e abril de 1979, além de nos fornecer uma bela retrospectiva histórico-econômica dos neoliberalismos alemão e americano, nos propõe um olhar inusitado, qual seja, a noção de mercado como lugar da veridicção, isto é, como produtor de regimes de verdade a direcionarem nossas compreensões acerca da vida.

O inventário arquivístico de Foucault inicia-se nos primórdios do mercantilismo. Como já apontado nas primeiras linhas desse trabalho, a metodologia de pesquisa de Foucault não é historiográfica ou historiológica, mas uma espécie de escavação que vai fazendo surgir regimes de verdades, ordens de saberes, estruturas de poder que ratificam a história de uma época ou o surgimento de uma disciplina. Neste caso, a economia, mais precisamente a economia política, surge como mote para dar olhos de ver àquilo que definiu como crise da governamentalidade, ou seja, de como um estado controlador e policial foi levado a encontrar formas de limitação de seu próprio poder desde o interior dele mesmo.

Explico, se na Idade Média e início da modernidade o mercado e as leis eram elementos externos que controlavam o poder do governante, a partir do século XVIII passa a funcionar como um artifício interno a que os governantes devem se submeter. Na Idade Média e nos séculos XVI e XVII, O sistemas jurídicos se formavam extrínsecos à razão de Estado, posto que o compreendiam ‘como aquilo que é exorbitante ao direito” (FOUCAULT, 2010: 34). O mercado, por sua vez, aparecia nessa época como lugar de justiça. “Investido de uma regulamentação extremamente prolífera e estrita” (p. 58), deveria assegurar a ausência de fraude. “A regulamentação do mercado tinha então por finalidade, por um lado, a distribuição tão justa quanto possível das mercadorias e, por outro, a ausência de roubo, a ausência de delitos” (p. 58).

A partir do século XVIII, o mercado começa a aparecer, de um lado, como um mecanismo “natural”, consoante àquilo que Kant determinou como condição de possibilidade de uma paz perpétua, ou seja, a natureza tal como os fisiocratas a concebiam e a que o mercado deveria se submeter. Para Kant, “A natureza quis que todo mundo e toda a superfície fosse dedicada à atividade econômica da produção e da troca” (p. 87). De outro lado, consequência desse pensamento, o mercado se torna o lugar da verdade a produzir o preço ‘natural’. “O mercado deve ser revelador de algo que seja como uma verdade” (p 59). A partir dessa premissa, se a ideia de propriedade balizaria o direito civil, a ideia de regiões com relações privilegiadas de trocas, enunciaria a noção de estado e balizaria o direito internacional (p. 88).

Um pouco mais tarde, outro ingrediente é acrescido ao debate, a questão da liberdade. Não como uma liberdade dada pelos governantes, mas como uma liberdade reivindicada. “Se uso o termo ‘liberal’ é, desde logo, porque esta prática governamental emergente não se limita a respeitar esta ou aquela liberdade, a garantir esta ou aquela liberdade. De forma mais profunda, é consumidora de liberdade” (p. 93), liberdade de mercado, de venda, de compra, de propriedade, de discussão, de expressão, etc. Nasce, assim, uma nova forma de governar baseada no interesse individual, no cálculo, no desejo de segurança. O jogo entre liberdade e segurança, faz surgir certa educação do perigo como fonte de regulação; estimula-se o perigo que se torna reivindicação de liberdade.

A partir do século XIX, assiste-se ao aparecimento da literatura policial e do interesse jornalístico pelo crime; surgem as campanhas a propósito da doença e da higiene; vejam tudo o que se passa também acerca da sexualidade e do receio da degenerescência; degenerescência do indivíduo, da família, da raça, da espécie humana. Enfim, assiste-se em toda a parte a este estímulo do medo do perigo, que, de certo modo, é a condição, o correlativo psicológico e cultural interno do liberalismo. Não há liberalismo sem a cultura do medo. (p. 97)

Esse estado de coisas, que mais parecem os dias que correm, faz surgir no final do século XIX uma espécie de “fobia ao Estado” (p. 108) que, associada aos horrores da guerra e aos regimes totalitários, construindo assim um regime de verdade, cria as condições de possibilidade do surgimento do neoliberalismo. Os regimes de verdade são construtos da temporalidade, formas de construção discursiva ratificadas por um sem número de vetores epistemológicos, teológicos e relacionais, interações políticas por assim dizer. Na ótica foucaultiana, o poder não se exerce de cima para baixo, mas possui um modo operatório que carece que sua forma de ação seja crível. As pessoas precisam acreditar que aquele exercício de poder possui uma logicidade do tipo inescapável, sem o quê não é possível a ninguém aquiescer.

Logo na primeira aula, a 10 de janeiro de 1979, Foucault aponta as condições de possibilidade da construção de seu pensamento - seu método: “supor que os universais não existem”. Os universais, mesmo que não advindos de uma teologia (transcendentes), mas acordados ou consensoados (transcendentais), agem ou como fundamento, o solo donde tudo se ergue, ou como objetivo inexorável a ser alcançado por todos, onde o determinismo é inescapável. As análises marxistas costumam “pecar” ao universalizar neoliberalismo e capitalismo, sem nuançá-los ou percebê-los plurais, desenhando uma trajetória que vai de um determinismo a outro. Essa obra de Foucault demonstra, de forma magistral, que, embora o significante seja o mesmo, nem de longe traduz uma mesmidade.

Se, de um lado, o neoliberalismo alemão (ordoliberalismo), urdido pela Escola de Friburgo sob forte influência da fenomenologia de Husserl, surge da necessidade de reconstruir uma Alemanha destroçada pela guerra, e como antídoto para o nazi fascismo, isto é, como crítica da irracionalidade do excesso de governo, parte da teoria da política de sociedade, que enquadra o mercado por um conjunto de intervenções do Estado; de outro lado, o neoliberalismo americano (anarcoliberalismo) surge de um forte desejo daquele país em tornar-se desenvolvido e poderoso, parte da teoria do capital humano, “que procura estender a racionalidade do mercado para domínios ditos não econômicos” (FOUCAULT, 2010: 406).

Aprendemos também que, na fonte, Liberalismo e Neoliberalismo não coincidem, se têm em comum a recusa da influência do Estado, enquanto o primeiro reivindica o estado de direito, o segundo compreende o mercado como equalizador das forças econômicas e sociais. Para Foucault, é equivocada a visão de que o Neolibelarismo é uma espécie de Adam Smith reativado pelo capitalismo. Talvez devêssemos retomar a preocupação do próprio Marx em compreender seu caráter contraditório, se não mais do capitalismo, do neoliberalismo em sua complexidade.

O que é então neoliberalismo? Na última aula, tentei indicar-vos pelo menos qual era o seu princípio teórico e político. Tentei mostrar-vos como, para o neoliberalismo, o problema não era o de saber, à imagem do liberalismo do tipo Adam Smith, do liberalismo do século XVIII, de que modo, no seio de uma sociedade política já existente, se podia delinear, organizar um espaço livre que seria o do mercado. O problema do neoliberalismo consiste, pelo contrário, em saber como se pode reger o exercício global do poder político segundo os princípios de uma economia de mercado. (FOUCAULT, 2010, p. 174)

O neoliberalismo se ergue a partir de regimes de verdade. Um regime de verdade caracteriza-se muito mais por sua volatilidade e fluidez, do que por um núcleo duro de determinação. Por isso ao termo verdade, Foucault prefere veridicção, uma espécie de modo operatório que caracteriza, por exemplo, a noção contemporânea de mercado. “A política e a economia que não são nem coisa que existem, nem erros, nem ilusões, nem ideologias. É algo que não existe e que, porém, está inscrito no real, decorrente de um regime de verdade que separa o verdadeiro do falso” (p. 45).

Partindo desse princípio, para Foucault, o mercado deixa de ser um lugar de troca e da justiça para configurar-se como um modo do pensamento, onde a noção de concorrência, justo por produzir desigualdades, torna-se o motor não só do próprio mercado, mas da existência de um modo geral. O mercado produz os critérios que balizam a própria governamentalidade, o “governo do eu” ou do “eu governo”, que passa a ser qualificada tanto pelos que a integram como pelos que sofrem suas ações, pela ótica do útil.

Compreender essa tecitura discursiva do real é fundamental para se entender o surgimento da “ideia do homo oeconomicus enquanto sujeito de interesse distinto do sujeito de direito, no pensamento do século XVIII, e da noção de ‘sociedade civil’, correlativa da tecnologia liberal de governo” (p. 406). Tal compreensão propõe uma trajetória metodológica de análise, posto que incide diretamente sobre a noção de governamentalidade. Se o “governo não governa demasiado”, se seu papel interventor é apenas garantir a liberdade do mercado, a economia política mais incide sobre a vida do indivíduo (biopolítica) do que sobre o governo ou a sociedade propriamente dita.

Portanto, aquilo que deveria ser estudado é a maneira como os problemas específicos da vida e da população foram formulados no interior de uma tecnologia de governo que, sem ter sido sempre liberal, longe disso, não deixou de ser perseguida desde finais do século XVIII pela questão do liberalismo. (Idem; p. 399)

Obviamente que esse pequeno conjunto de informações que compõem essa sessão não dá conta da complexidade e uma obra como Nascimento da biopolítica, cuja leitura reputo como fundamental para quem navega nos campos da agência política e econômica. Mas o que tudo isso tem a ver como metodologia científica em educação? Penso que o pando de fundo dos três artigos analisados são as condições de possibilidade da subjetividade, tema caro e central nos estudos em Educação, afinal, se educa pra quê? Nesse sentido, compreender a diferença entre sujeito de interesse, homo oeconomicus, e sujeito de direito, tomando o primeiro como ferramenta de análise discursiva faz toda diferença.

A ideia de homo oeconomicus, como ferramenta metodológica, altera nossa ótica sobre as ações governamentais. O “sujeito de interesse” não só não se contenta em limitar o poder do governante, como o reduz ao nível da incapacidade de dominar o econômico, o que altera sobremaneira o olhar sobre as ações governamentais no campo da Educação, vista também como mercado.

Com efeito, podemos dizer: se o homo oeconomicus, se a prática econômica, se a atividade econômica, se a totalidade dos processos da produção e da troca escapa ao soberano, podemos então limitar de certa forma geograficamente a soberania do soberano e fixar ao exercício de seu poder uma espécie de fronteira: o sobreano poderá tocar em tudo menos mercado. (Idem, p. 363)

Seria este o “imponderável”, apontado por Macedo? O imprevisível, levantado por Garcia? O “informal” de Freitas? O fato é que as análises confluem para pontos intocáveis do campo econômico. Como o mercado não se reduz a economia, mas conforma como um sistema de pensamento, até que ponto não estaremos imersos num sistema de veridicção onde a lógica do mercado nos conforma a todos, mesmo aos que se posicionam contra ele?

Conclusão

Tomando como ponto de partida a hipótese de que tudo é discurso, de que não existe realidade fora da linguagem. As tentativas desse artigo foram, primeiro, pensar a relação entre metodologia e produção discursiva a partir de duas categorias foucaultianas, a arqueologia e a biopolítica. Tais categorias nos isentam de um método epistemologicamente seguro, sem nos reduzir a um laissez fair. Não se trata de dizer qualquer coisa, descompromissadamente, mas de compreender que seja discurso:

O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos; e, quando tudo pode, enfim, tomar a forma do discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coisas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar à interioridade silenciosa da consciência de si. ([Foucault, 1997, p.49} Apud. BARROS, 2015, p. 77)

Em segundo lugar, pensar as relações entre discurso e economia nos dias que correm, e o quanto essa relação tem pautado pesquisas em Educação. Se oferecendo como metodologia científica, a análise discursiva aponta critérios para a pesquisa:

Examinando o enunciado, o que se descobriu foi uma função que se apoia em um conjunto de signos, que não se identifica nem com aceitabilidade gramatical, nem com a correção lógica, e que requer, para realizar, um referencial (que não é exatamente um tato, um estado de coisas, nem mesmo um objeto, mas um princípio de diferenciação); um sujeito (não a consciência que fala, não o autor da formulação, mas uma posição que pode ser ocupada, sob certas condições, por indivíduos indiferentes); um campo associado (que não é o contexto real da formulação, a situação na qual foi articulada, mas um domínio de coexistência para outros enunciados); uma materialidade (que não é apenas a substância ou o suporte da articulação, mas um status, regras de transcrição, possibilidade de uso ou de reutilização). (FOUCAULT, Apud. BARROS, 2015, p. 77)

O discurso, entendido como uma ordem em que se encontra um campo de experiência, isto é, um referencial; onde o enunciado é a materialidade desse referencial, possibilita um método de análise (BARROS, 2015). Nesse sentido, tomando como base a noção de homo oeconomicus, é possível inferir que uma análise que compreende a constituição do real, a partir de um sujeito de interesse que, por sua própria “natureza” de “governo do eu ou do eu-governo”, limita de per si as ações do governante, produzirá uma imagem do real menos subordinada, menos colonizada; onde a microestrutura dos movimentos identitários mais controla, pelo viés do útil, as ações do governo ou as escolhas dos governantes, do que se submete, de fato, a um poder inescapável.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 22 de Junho de 2021; Aceito: 09 de Agosto de 2021

Guilherme Augusto Rezende Lemos Doutor em Educação pela UERJ. É professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação - ProPEd - UERJ. FAPERJ: APQ1 (2016), ARC (2019). Vice-líder do Grupo Currículo, cultura e diferença, liderado por Elizabeth Macedo, financiamento CNPq, Capes e Faperj.

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