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Revista Práxis Educacional

versão On-line ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.17 no.48 Vitória da Conquista out./dez 2021  Epub 25-Nov-2021

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v17i48.9086 

ARTIGO

O (novo) ensino médio na visão dos alunos: rastros da racionalidade neoliberal

The (new) high school in the students' view: traces of neoliberal rationality

La (nueva) escuela secundaria en la vista de los estudiantes: huellas de racionalidad neoliberal

1Rede Estadual de Ensino do Rio Grande do Sul - Brasil gicele.weinheimer@gmail.com

2Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil fernandawanderer@gmail.com


Resumo:

O artigo examina relações entre a educação contemporânea e a racionalidade neoliberal. Em especial, analisa enunciações de discentes sobre a escola e sobre o Ensino Médio, tendo em vista a implementação do Programa Novo Ensino Médio (PNEM). O referencial teórico advém de conceitos discutidos por Michel Foucault, Masschelein e Simons e Dardot e Laval. A parte empírica realizou-se em uma instituição de ensino pública estadual de uma cidade da região metropolitana de Porto Alegre - RS, em 2018. O material escrutinado é constituído por questionários respondidos por estudantes que frequentavam o Ensino Médio. A estratégia analítica utilizada para operar sobre o material orientou-se pela análise do discurso, como compreendido por Foucault. O exame mostrou que a racionalidade neoliberal tem conduzido as condutas escolares na atualidade. Dentre os rastros captados, destaca-se: a empregabilidade posta como foco do Ensino Médio; a competitividade e a performatividade pensadas como prerrogativas à conquista dos melhores resultados e a necessidade de reforma premente, tanto institucional quanto individual. Assim, conclui-se que o jogo contemporâneo marcado pelas lógicas neoliberais produz formas de vida escolares sustentadas pelos princípios da concorrência, aperfeiçoamento e autopromoção, fazendo com que os alunos se tornem empresários responsáveis por seu sucesso ou fracasso.

Palavras chave: Racionalidade neoliberal; Escola pública; Ensino Médio

Abstract:

The article examines the relationship between contemporary education and neoliberal rationality. In particular, it analyzes students' statements about school and high school, in view of the implementation of the New High School Program (PNEM). The theoretical framework comes from concepts discussed by Michel Foucault, Masschelein and Simons and Dardot and Laval. The empirical part took place in a state public education institution in a city in the metropolitan region of Porto Alegre - RS, in 2018. The screened material consists of questionnaires answered by students who attended high school. The analytical strategy used to operate on the material was guided by discourse analysis, as understood by Foucault. The examination showed that neoliberal rationality has led school conduct today. Among the traces captured, the following stand out: employability as the focus of high school; competitiveness and performativity thought as prerogatives to achieve the best results and the need for urgent reform, both institutional and individual. Thus, it is concluded that the contemporary game marked by neoliberal logics produces school life forms supported by the principles of competition, improvement and self-promotion, making students become entrepreneurs responsible for their success or failure.

Keywords: Neoliberal rationality; Public school; High school.

Resumen:

El artículo examina la relación entre la educación contemporánea y la racionalidad neoliberal. En particular, analiza las enunciaciones de los estudiantes sobre la escuela y sobre la enseñanza media, en vista de la implementación del Programa Nuevo Bachillerato (PNEM). El marco teórico proviene de conceptos discutidos por Michel Foucault, Masschelein y Simons y Dardot y Laval. La parte empírica tuvo lugar en una institución estatal de educación pública en una ciudad de la región metropolitana de Porto Alegre - RS, en 2018. El material analizado consta de cuestionarios respondidos por estudiantes que asistieron a la escuela secundaria. La estrategia analítica utilizada para operar sobre el material estuvo guiada por el análisis del discurso, tal como lo entendió Foucault. El examen mostró que la racionalidad neoliberal ha llevado a comportamientos escolares en la actualidad. Entre las pistas captadas, destacan las siguientes: empleabilidad colocada como foco de Bachillerato; la competitividad y la performatividad pensadas como prerrogativas para lograr los mejores resultados y la urgente necesidad de reformas, tanto institucionales como individuales. Así, se concluye que el juego contemporáneo marcado por lógicas neoliberales produce formas de vida escolar sustentadas en los principios de competencia, superación y autopromoción, haciendo que los estudiantes se conviertan en empresarios responsables de su éxito o fracaso.

Palabras clave: Racionalidad neoliberal; Escuela pública; Escuela secundaria

Introdução

O artigo problematiza relações entre a racionalidade neoliberal e a escola pública contemporânea. Em especial, apresenta resultados de uma investigação desenvolvida com o propósito de examinar sentidos atribuídos por estudantes à escola e ao Ensino Médio, sobretudo ao Programa Novo Ensino Médio (PNEM). Os aportes teóricos que sustentaram a pesquisa situam-se nas teorizações de autores como Michel Foucault, Masschelein e Simons e Dardot e Laval.

A sociedade contemporânea está fortemente marcada pelos ideais do neoliberalismo, um sistema normativo que estende a lógica do capital a praticamente todas as formas de vida, incluindo a forma de vida escolar (DARDOT; LAVAL, 2016). Considerando, então, a forte vinculação da escola com os mecanismos e táticas que conformam a sociedade neoliberal, discutir os sentidos que estamos atribuindo ao neoliberalismo é ponto de partida neste artigo. Aqui o tomamos como uma racionalidade, um modo de vida que conduz condutas e atua nos processos de subjetivação, como entendido por Foucault (2010), Ball (2014) e Dardot e Laval (2016).

Em efeito, na obra Nascimento da biopolítica, Foucault (2010) discute o neoliberalismo a partir de três pontos de vista: o econômico, o sociológico e o político. Mesmo apresentando diferentes facetas, o filósofo expõe a capacidade do neoliberalismo em instaurar relações precipuamente mercantis no âmbito social, além de constituir-se enquanto uma espécie de cobertura que pretende intervir universal e administrativamente no Estado. Foucault (2010, p.175) expressa que o neoliberalismo consiste “em saber como se pode reger o exercício global do poder político segundo os princípios de uma economia de mercado”.

Na esteira de Foucault, Ball (2014) associa o neoliberalismo a um processo metamorfoseante tomando-o em sua amplidão, vagueza e complexidade. Todavia, “na sua forma mais visceral e íntima, o neoliberalismo envolve a transformação das relações sociais em calculabilidades e intercâmbios, isto é, na forma de mercado, e, portanto, a mercantilização da prática educacional” (BALL, 2014, p. 64). Tendo esse prisma em vista, podemos dizer que Ball aponta para um espraiamento do neoliberalismo no ambiente escolar, tornando a educação uma mercantilização, um comércio que transforma as relações pessoais em meras trocas calculáveis.

Seguindo os autores, Dardot e Laval (2016) afirmam que o neoliberalismo tem sido posto em ação a partir de múltiplos processos, influenciado por efeitos heterogêneos de diferentes vertentes do pensamento e não engendrado por um único acontecimento histórico. Defendem a tese de que o neoliberalismo é uma racionalidade que “tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modo de subjetivação” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 17). Podemos ainda mencionar que alguns dos efeitos produzidos pelas lógicas neoliberais evidenciam a produção de indivíduos que passam a se comportar como empresas; um alinhamento das relações sociais segundo o modelo do mercado; um grande enfraquecimento da ação coletiva, uma vez que os sujeitos estão cada vez mais submetidos a um regime de concorrência e a geração de maneiras novas de conduzir as condutas, as escolhas e as práticas dos indivíduos. Na área da educação, essas formas de condução manifestam-se, por exemplo, na necessidade de professores serem avaliados pelo desempenho dos alunos, nos mecanismos de endividamento por toda vida (o qual faz com que sempre tenhamos que nos atualizar e nos capacitar) e na constituição do sujeito como capital humano que deve crescer indefinidamente - um valor que valorizar-se cada vez mais (DARDOL; LAVAL, 2016).

Esses princípios se fazem presentes nos projetos e reformas que marcam a educação contemporânea no Brasil, como o Programa Novo Ensino Médio (PNEM), implementado pela Medida Provisória 746\2016 que, posteriormente, foi sancionada na Lei 13.415\2017, instituindo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) enquanto uma normativa a ser seguida pelas escolas do país. De acordo com as diretrizes do Programa, o currículo do Ensino Médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e pelos itinerários formativos, organizados de acordo com as características das culturas locais e possibilidades das instituições escolares em atender e trabalhar os seguintes eixos: linguagens e suas tecnologias; matemática e suas tecnologias; ciências da natureza e suas tecnologias; ciências humanas e sociais aplicadas e formação técnica e profissional (BRASIL, 2017).

A proposta do PNEM é permitir o protagonismo do jovem, dando-lhe liberdade de escolher o itinerário formativo segundo sua própria vocação. As escolas não precisam oferecer os cinco itinerários, pois dependerá do interesse das redes e dos seus respectivos públicos a oferta de determinados eixos. Várias implicações decorrem dessa normativa, como a necessidade de organizar uma nova grade curricular, estabelecer formas mais harmônicas e sistemáticas de reunir professores e processos de formação continuada aos docentes e gestores para atender as novas demandas. Essas demandas incluem: ampliação progressiva das horas de trabalho nas escolas, passando de 800 para 1.400 horas no ano; retirada das disciplinas de Filosofia, Sociologia e Espanhol; ênfase maior nas disciplinas de Matemática, Português e Língua Inglesa; possibilidade de contratação de profissionais de notório saber para atuarem no itinerário “Formação Técnica e Profissional” e de profissionais graduados desde que realizam complementação pedagógica (OLIVEIRA, 2020).

Recentemente, um conjunto de estudos e problematizações sobre o Ensino Médio e o PNEM têm sido produzidos, em diferentes perspectivas teóricas e abarcando diversos materiais empíricos: legislação e os documentos oficiais, entrevistas com gestores, docentes e estudantes do Ensino Médio. Na revisão dessa literatura identificamos pesquisas enfocando as dimensões mais amplas do PNEM, como suas relações com as orientações do Banco Mundial e os arranjos estabelecidos na sua própria constituição, bem como aquelas envolvendo as concepções dos professores que atuam no Ensino Médio.

O trabalho de Oliveira (2020) evidencia o quanto a reforma do Ensino Médio articula-se ao movimento de legitimação da ordem burguesa em sua versão neoliberal. Tomando como materiais empíricos a documentação da reforma e textos dedicados ao debate sobre a mesma, o autor afirma que a reforma evidencia o desejo das elites nacionais de submissão da escola a uma lógica de produtivismo e formação de sujeitos econômicos, tendo a competitividade como principal referência. Enfatizando as articulações entre o Banco Mundial e a reforma do Ensino Médio, Nogara Junior (2019) aponta que se trata de uma política do Estado vinculada às transformações no mundo do trabalho do atual estágio do capitalismo. Ao mesmo tempo em que as propagandas do Ministério da Educação enfatizam a ideia de individualismo, vocação e escolha profissional, aproxima a escola das demandas do mercado. Além disso, o autor destaca que flexibilização do currículo contribui para a precarização da educação escolar pública e para o estabelecimento de parcerias como caminho a ser seguido.

Na mesma direção, Souza Neto (2019) examinou algumas das tensões entre a reforma do Ensino Médio e o lançamento da terceira versão da Base Nacional Comum Curricular, enfatizando os impactos na escola, numa perspectiva curricular. Tomando por material empírico um conjunto de documentos e a legislação atual, questiona a quem interessa a implementação dessa Base e mostra as tensões em torno do currículo e impactos para a formação no Ensino Médio. A pesquisa de Schutz e Cossetin (2019) também examina a Medida Provisória 746/2016 convertida em Lei 13.415 apresentando os principais desdobramentos da reforma: uma delas diz respeito a tornar a escola servil aos organismos internacionais e às demandas do mercado financeiro; a segunda refere-se a colocar sob suspeição o princípio democrático e universal da educação republicana e autorizar os adultos a se eximirem da formação das novas gerações, uma vez que transfere essa responsabilidade para os jovens do Ensino Médio. Sobre a formação docente, destacamos o estudo de Silva e Silva (2019). Os autores mostram que os desafios mais emblemáticos da implementação do PNEM encontram-se na clareza dos educadores sobre a formação insuficiente que receberam, tornando ainda mais necessários os espaços de formação continuada, o que pouco ocorreu, pelo menos até agora, com os professores que irão atuar nessa “nova” forma do Ensino Médio.

A pesquisa que realizamos, materializada na escrita desse artigo, se propõe a examinar concepções de estudantes sobre a escola e sobre o Ensino Médio, em especial sobre o PNEM. Aproxima-se dos estudos acima citados pela possibilidade de problematizar alguns dos impactos da Reforma do Ensino Médio, mas a partir da visão dos estudantes. Diferencia-se pelos referenciais teóricos usados, uma vez que em nossa análise operamos com conceitos de autores como Michel Foucault, Masschelein e Simons e Dardot e Laval.

Metodologia

A parte empírica da investigação ocorreu em uma escola pública de um município pertencente à Região Metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. O material examinado é constituído por questionários respondidos por discentes do Ensino Médio no ano de 2017. Importa destacar que antes da aplicação dos questionários, tanto a direção da escola quanto os estudantes foram consultados sobre o desejo de participar ou não do estudo. Após a concordância de todos e assinatura do Termo de Assentimento da Instituição e do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, a pesquisa pode iniciar.

O questionário impresso continha as seguintes questões dissertativas: 1) Para você, qual a função do Ensino Médio? 2) Descreva o que você pensa sobre o Ensino Médio ter como foco a formação técnica e profissionalizante. 3) Você concorda com a proposta do Governo que pretende reformar o Ensino Médio de todas as escolas do país? Por quê? 4) Escreva o que você sabe a respeito do Programa Novo Ensino Médio proposto pelo Governo Federal. 5) Você sabe o que significam os itinerários formativos? Descreva o que você sabe a esse respeito.

Em relação ao uso do questionário na pesquisa educacional, Chaer, Diniz e Ribeiro (2011, p.260) sugerem que essa estratégia investigativa é normalmente “composta por um número mais ou menos elevado de questões apresentadas por escrito às pessoas, tendo por objetivo o conhecimento de opiniões”. Embora apoiados por um viés prescritivo, dando dicas de como melhor elaborar um questionário, esses autores apontam para a possibilidade de essa técnica alcançar um grande número de pessoas, corroborando a nossa intenção de atingir o maior número possível de alunos do Ensino Médio. Contudo, uma das desvantagens em relação ao uso dessa estratégia diz respeito à inteligibilidade das palavras. Muitas vezes, o pesquisador precisa abandonar algumas respostas por não compreender o desenho das letras empregado pelos alunos. Por mais interessante que seja o escrito, se algumas palavras ficam inelegíveis, o descarte é certo.

A partir disso, fica evidenciado que as respostas produzidas pelos alunos, em um determinado contexto sócio-histórico, trazem ideias que circulam em um tempo espaço delimitado, apresentando singularidades que lhe são próprias. E são exatamente essas particularidades que nos interessavam, incitando-nos a “analisar por que aquilo é dito, daquela forma, em determinado tempo e contexto, interrogando sobre as ‘condições de existência’ do discurso” (SALES, 2014, p. 127).

Inicialmente, explicamos aos alunos os propósitos da pesquisa e lemos as questões do questionário. Na sequência, afirmamos que a participação não era obrigatória, que haveria sigilo em relação à identidade dos voluntários e que todas as respostas seriam utilizadas somente no âmbito acadêmico, indo ao encontro das sugestões de Peixoto (2017). O autor sugere que os participantes devem ter ciência do caráter voluntário da pesquisa, podendo haver recusa quanto à participação, sem que isso acarrete algum tipo de ônus. Além disso, propõe a necessidade de serem explicitadas certas informações àquele que se voluntariará, como: o objetivo do trabalho, o sigilo de sua identidade, o modo de tratamento que será dado ao material produzido e à restrição quanto ao uso exclusivo ao meio acadêmico. Seguindo os apontamentos do autor, aplicamos os questionários com os alunos do Ensino Médio, obtendo 160 documentos.

A estratégia analítica utilizada para operar sobre o material empírico é a análise do discurso na perspectiva foucaultiana. Em efeito, o discurso é um dos temas centrais das teorizações foucaultianas, sendo o método de pesquisa utilizado pelo filósofo até o final dos anos setenta (CASTRO, 2009; REVEL, 2005). O foco recai sobre o processo de constituição, sem se buscar por uma origem ou por um fato isolado que pudesse determinar o surgimento ou o desaparecimento de algo em um ponto histórico específico.

Um dos variados modos de se referir ao discurso pode ser visualizado em A arqueologia do saber, no qual ele é entendido como “um conjunto de enunciados, que se apoia em um mesmo sistema de formação” (FOUCAULT, 2009, p.122). Embora as palavras sejam proferidas por meio de uma concatenação de signos, específicos de um sistema linguístico socialmente constituído, os discursos não são tomados enquanto um arranjo de signo, “mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT, 2009, p. 55).

Se devemos nos deter no que é dito e nas suas regras de formação, precisamos compreender o caráter atributivo que o discurso doa à linguagem. Recorremos ao próprio filósofo para esclarecer essa noção, quando ele sugere que “só é possível estabelecer um sistema linguístico (se ele não é construído artificialmente) utilizando um corpus de enunciados ou uma coleção de fatos de discurso” (FOUCAULT, 2008, p, 92). Apoiado no filósofo francês, Veiga-Neto (2007) afirma que a linguagem pode ser compreendida como participante constitutiva do pensamento humano, não havendo uma correspondência entre aquilo que se pensa e a coisa pensada. Assim, o pesquisador que operará sobre seu material de pesquisa, usando a análise do discurso foucaultiana, precisa se perguntar sobre os modos de vir a ser da linguagem e das enunciações, singulares e limitadas, nunca universais ou verdadeiras.

As enunciações que obtivemos dos questionários aplicados com os alunos do Ensino Médio serão usadas como sinônimo de fala, enquanto dizeres, manifestações discursivas. Do mesmo modo que o discurso, a enunciação está imersa no contexto que a gerou. Considerando as reflexões até aqui realizadas, na próxima seção serão evidenciadas as costuras analíticas produzidas a partir do material empírico reunido e a fundamentação teórica e metodológica elegidas para subsidiar essas discussões.

Racionalidade Neoliberal vai à escola: uma personagem assídua

O exercício efetivado sobre o material empírico reunido nos permitiu observar algumas regularidades, agrupadas nas três subseções que seguem. A primeira aborda os fortes vínculos da escola com o mercado de trabalho. Na segunda, discutimos a competitividade e a performatividade como indispensáveis àqueles que desejam alcançar os melhores resultados, superando os outros e a si mesmos. Já a terceira enfatiza a necessidade de reforma como algo indispensável à vida contemporânea, uma questão naturalizada em nível institucional e individual.

Preparação para o mercado de trabalho

A primeira recorrência encontrada no material empírico diz respeito à necessidade que os estudantes percebem do Ensino Médio (e do PNEM) os preparar para o mercado de trabalho. Algumas das enunciações que recorrentemente foram encontradas nas respostas dos questionários referem-se a essa relação: “A função do Ensino Médio, para nós, alunos, é nos preparar para o futuro, nos preparar para um emprego, para nos profissionalizar”; “Eu acho que é [função da escola] nos preparar para termos um futuro melhor e entrar no mercado de trabalho, para nos tornarmos adultos”; “O Programa [PNEM] tem como propósito dar ao jovem, além do ensino “normal”, uma formação técnica, o que conta muito no mercado de trabalho”.

Analisando esses excertos, percebe-se que há uma preocupação dos discentes em relação ao seu futuro profissional. Os estudantes que participaram desse estudo acreditam que, se o foco do Ensino Médio for direcionado ao mercado de trabalho, eles estarão mais preparados e terão melhores condições de conseguir um emprego (e possivelmente uma renda). Essa ideia nos remete às discussões de Masschelein e Simons (2017) sobre o papel da escola na contemporaneidade. Ao longo de sua argumentação, os autores apontam algumas das acusações que pretensamente poderiam fazer a escola desaparecer nos nossos dias. Entre essas, está o argumento econômico que expõe a ineficiência e falta de direcionamento à empregabilidade dos alunos. Os defensores dessas lentes dizem que “a ênfase deve se apoiar diretamente sobre a produção dos resultados de aprendizagem - de preferência, competências - que os alunos possam aplicar em um ambiente de trabalho” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p.18). Ou seja, há uma crítica presente em nossa sociedade sobre o distanciamento da escola em relação à necessidade de garantir, aos estudantes, acesso e qualificação profissional. Tal crítica parece sustentar também os argumentos dos alunos que participaram deste estudo, os quais afirmam em várias respostas do questionário que essa deveria ser uma função da escola: preparar para o mercado de trabalho.

Analisando o material selecionado, observa-se que a qualificação é vista pelos alunos como imprescindível para uma trajetória profissional de sucesso, como pode-se observar nas enunciações a seguir, extraídas do questionário:

Você concorda com a proposta do Governo que pretende reformar o Ensino Médio de todas as escolas do país? Por quê? “Sim. Para estudar, para poder trabalhar e ter cursos para aprovar em alguma seleção de emprego”. Descreva o que você pensa sobre o Ensino Médio ter como foco a formação técnica e profissionalizante. “Eu penso que vai ser bom, porque vai ser mais um curso que pode ser bom pro meu futuro”.

Essas falas trazem a ideia de que quanto maior for o número de cursos, mais certificados de qualificação poderão ser apresentados no momento das entrevistas de emprego. Se o Ensino Médio tiver um viés técnico, isso poderá ser acrescentado no currículo, mostrando que o aluno tem, além do grau de escolarização, qualificação e domínio de determinadas competências. Isso nos remete às discussões de Masschelein e Simons (2017) sobre a forte associação que há na escola contemporânea entre “competência” e “qualificação”. Para eles, “competências, validadas como qualificações, são a moeda (europeia) pelo qual o aluno vitalício - que cuida, organizadamente, da coleta de competências em seu portfólio - expressa a sua empregabilidade social” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 112). Arriscaríamos dizer que elas são moedas validadas também aqui no Brasil.

Os autores sugerem que o sucesso quanto ao uso recorrente das competências na atualidade pode ser compreendido à luz da empregabilidade, pois a elas se atrela o sentido de conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes imprescindíveis para a realização de certas atividades. Desta forma, pontuam que a escola acaba reproduzindo o projeto de maximização da empregabilidade ao adotar o modelo de competência/qualificação em seu currículo escolar. Isso posto, pode-se dizer que “as competências garantem a integração na sociedade, reproduzem aquela sociedade e legitimam a ordem vigente” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 113).

Em efeito, novas racionalidades estão em curso no nosso país, pautadas em um discurso neoliberal que produz efeitos nas ações desencadeadas pelos governos, instituições e pessoas. Uma ressonância disso é a lógica empresarial que ganha cada vez mais força enquanto modelo a ser adotado por todos, incluindo a escola. Silva, Silva e Vasques (2018) corroboram essa ideia, sugerindo que há um processo prescritivo neoliberal de ajuste macroeconômico em curso, desde os anos setenta, afetando consideravelmente os países em desenvolvimento, alterando os seus modos de pensar as políticas econômicas e educacionais. Cooptados pelas prescrições neoliberais, os países se veem na necessidade de instaurarem medidas reformistas em seus sistemas institucionais. Em nome de uma possível atenuação das desigualdades sociais, acabam ampliando “o mercado mundial de consumo e o alcance do capitalismo” (SILVA; SILVA; VASQUES, 2018, p.13) a todas as formas de vida, como a forma de vida escolar.

Decorrências deste discurso neoliberal sustentam algumas das concepções dos estudantes que participaram deste estudo, como acima mostramos. Praticamente todos alunos destacam a necessidade (e urgência) da reforma proposta para o Ensino Médio que pode proporcionar vínculos mais estreitos entre a escola e o mercado de trabalho, evidenciando o quanto a lógica empresarial é convocada a estar presente nas salas de aula. Aliado a isto está outra decorrência do discurso neoliberal nas falas dos estudantes: a busca por aprendizagens, competências ou qualificações é posta, agora, como responsabilidade de cada indivíduo. Essa dimensão será discutida na próxima seção.

Competitividade: a busca pelos melhores resultados

O investimento permanente em si mesmo pode levar o indivíduo a adquirir mais competências, preparando-o para o mercado de trabalho, maximizando a sua empregabilidade. É como se este investimento fosse uma estratégia de marketing pessoal, uma gestão da vida mediante um modelo empresarial. Alguns excertos dos questionários, especialmente da questão 2, evidenciam isso:

Descreva o que você pensa sobre o Ensino Médio ter como foco a formação técnica e profissionalizante. “Acho interessante, pois iria ajudar muitos jovens que precisam e que cada um irá ter um futuro melhor, aquele que se esforçar”. “Acho bom, porque quem realmente se interessar vai ter melhores resultados quando fizer uma faculdade ou algo do tipo”.

Analisando a transformação do empregado moderno em empresário contemporâneo, Sibilia sugere que atualmente cada indivíduo tem a solução em suas próprias mãos, devendo “administrar seus conhecimentos e ‘autoajudar-se’ a aprender sem ter de recorrer a uma autoridade com investidura institucional” (SIBILIA, 2012, p.127). Se cada um deve buscar o aprimoramento pessoal por si mesmo, o sucesso ou o fracasso futuro também serão responsabilidade sua. Indo na mesma esteira, Masschelein e Simons propõem que em nossos tempos houve uma mudança de ênfase do emprego para a empregabilidade.

Com a ênfase agora mudada para a empregabilidade no contexto do ativo Estado do bem-estar social, o emprego se torna cada vez mais uma responsabilidade do indivíduo. O indivíduo é batizado como um aprendiz (ao longo da vida), a aprendizagem é um investimento no próprio capital humano do indivíduo. (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 111-112)

A discussão dos autores traz à baila um conceito que exige esclarecimentos: “capital humano”. Segundo eles, o indivíduo que investe em sua própria aprendizagem ao longo da vida está fazendo uma aplicação em seu capital humano. No curso Nascimento da biopolítica, especificamente na aula do dia 14 de março de 1979, Foucault (2010) analisa a Teoria do Capital Humano, que pode ser compreendido como tudo aquilo que é capaz de produzir algum tipo de rendimento futuro. Ao capital, conecta-se a competência, empregada no sentido de aptidão para o trabalho. Competência, atrelada ao trabalhador é “a faceta pela qual o trabalhador é uma máquina, mas uma máquina entendida no sentido positivo, já que é uma máquina que vai produzir fluxos de rendimentos” (FOUCAULT, 2010, p. 285). Ao longo de sua exposição, o filósofo chega à noção de salário, que nada mais é do que: “A remuneração, o rendimento afectado a um certo capital, capital este que se chama capital humano na medida em que, precisamente, a competência-máquina da qual é o rendimento não pode ser dissociada do indivíduo humano que é o seu portador”. (FOUCAULT, 2010, p. 287). Inspiradas nos estudos foucaultianos sobre a Teoria do Capital, podemos dizer que o investimento está atrelado diretamente ao capital humano, conquistado por meio de uma educação ao logo da vida, uma das poucas coisas que, depois se ser adquirida, não pode ser destituída.

As enunciações presentes nos questionários dos estudantes que participaram desta pesquisa, como acima mencionamos, trazem a ideia de responsabilização posta no próprio aluno, sendo o sucesso proporcional ao esforço. Se a função do Ensino Médio tem como escopo o desenvolvimento de competências, cabe ao discente se dedicar na obtenção dessas qualificações, esforçando-se a fim de obter um bom desempenho. Nesse sentido, a escola e o Ensino Médio podem ser avaliados como um meio capaz de assegurar um futuro melhor ao seu público. Todavia, dizer que a instituição escolar pode ser tratada enquanto um meio acaba por viabilizar a ideia de que, quanto melhor o desempenho dos alunos, maior seria a sua qualidade, aumentando a sua classificação no ranking performativo. Se é um meio, ela não tem a finalidade posta em si mesma, mas em algo externo, sempre com vistas em outra coisa.

Esse cenário nos remete ao imperativo hipotético kantiano, quando tudo é julgado a partir dos usos que podem ser feitos dos artefatos, intencionalmente voltados a coisas outras. Pensando nisso, arriscaríamos trazer um ponto que nos parece problemático nos nossos tempos: os seres humanos expondo-se em vitrines feito utensílios. À semelhança de artefatos, põem-se dispostos conforme o grau de eficiência, alternando-se no expositor, mantendo o vigor da mobilidade. E quanto maior a eficiência, maior será o potencial de sedução, gerando concorrência no mostruário. Produz-se, assim, um indivíduo competente e competitivo que acaba por usar a si e aos outros como um mero meio a serviço dos próprios interesses.

Corroborando essa linha de pensamento, Dardot e Laval (2016, p.333) tratam da fabricação do sujeito neoliberal como um indivíduo competente e competitivo que: “não procura apenas projetar-se no futuro e calcular ganhos e custos como o velho homem econômico, mas que procura sobretudo trabalhar a si mesmo com o intuito de transformar-se continuamente, aprimorar-se, tornar-se sempre mais eficaz”. Assim, se a pessoa não conseguiu uma vaga no mercado, é porque não investiu suficientemente em si mesma, não adquiriu competências que garantissem essa aquisição. Ao que parece, sem investimento em capital humano, não há possibilidade de sucesso profissional ou qualquer êxito econômico. A pessoa até pode querer se expor em uma vitrine, mas os compradores não ficarão suficientemente seduzidos a ponto de arrebatá-la.

Refletindo sobre esse ponto, nos remetemos ao questionamento elaborado por Foucault (2010, p.289) em o Nascimento da biopolítica: “Que significa formar capital humano, formar uma espécie de competência-máquina que vai produzir rendimento, ou que vai ser remunerada pelo rendimento?”. A resposta do filósofo sugere que o caminho está no investimento em educação, embora deva ser observado que esse tipo de ação é muito mais amplo do que o abrangido pela aprendizagem escolar ou mesmo profissional. Por isso, há que se entrar em uma busca permanente pela própria qualificação. Caso contrário, corre-se o risco de sucumbir à concorrência, tornando-se obsoleto ao não conseguir dar conta da demanda exigida pelo mercado. Há que se competir, exibir as competências e todo o investimento feito em capital humano. Há que se colocar a si mesmo e aos outros em uma vitrine, enfileirados a performatizarem, disputando a atenção alheia. Quem melhor seduz o comprador, ganha a concorrência e as premiações advindas dessa exposição. A respeito disso, Dardot e Laval (2016, p.377) pontuam que “a essência da ordem do mercado reside não na troca, mas na concorrência, definida como relação de desigualdade entre diferentes unidades de produção ou ‘empresas’”.

Isso posto, arriscaríamos dizer que a cultura da performatividade neoliberal tem se tornado uma recorrência no ambiente escolar. Estamos compreendendo aqui o termo “performatividade” à semelhança de Ball (2010, p.38), como “uma tecnologia, uma cultura e um modo de regulação, (...) sistema que implica julgamento, comparação e exposição, tomados respectivamente como formas de controle, de atrito e de mudança”. Conforme o autor, a performatividade tem por base as performances individuais ou organizacionais, empregadas enquanto parâmetros de produção nos “momentos de promoção ou inspeção” (BALL, 2010, p.38).

Com a preocupação repousando nos resultados, a escola tem se descortinado um ambiente competitivo, instaurando disputas internas e externas, tanto nos níveis discente e docente quanto institucional. A esse respeito, Masschelein e Simons (2017, p.124) sugerem que: “O imperativo ‘ser competitivo - com você mesmo e com os outros’ - é inscrito no sistema educacional. Com o advento da performatividade, o impulso competitivo torna-se um fim em si mesmo e cria uma cultura de teste e exibição e, é claro, uma corrida absoluta”. A partir disso, poderíamos dizer que, ao instaurar um sistema de competição, a escola forjaria um critério de classificação discente, produzindo relações desiguais, recompensando alguns em detrimento de outros.

Pode-se dizer que a performatividade e a competitividade não se restringem a instituições escolares privadas. Buscando pelos melhores resultados, uma boa classificação nos rankings das grandes avaliações nacionais, um novo modo de conduzir as condutas dos gestores, professores e alunos é posto em movimento nessas instituições. Essa estratégia tem sido adotada porque muitas famílias têm se preocupado em manter seus filhos em escolas bem colocadas nos rankings, garantindo uma boa preparação para o ensino superior. Tendo isso em vista, pode-se asseverar que a escola pública, não diretamente voltada à manutenção ou captação de um grande número de alunos, exatamente por não haver qualquer tipo de cobrança em relação à sua permanência, tem igualmente se deixado envolver pelas prescrições neoliberais, instaurando práticas que suscitam a performatividade e a competitividade, como esperamos ter mostrado nessa subseção.

Uma necessidade de reforma vantajosa

Como se pode inferir das discussões supracitadas, os efeitos do neoliberalismo são visíveis na escola pública atual. Cooptada por essa lógica, ela conduz a si mesma e aos outros a partir de prescrições dadas como naturais, agindo como um refletor capaz de manter o próprio sistema. A esse respeito, Dardot e Laval (2016, p.29) pontuam que a competitividade é um princípio geral de governo, espelhando o espraiamento do neoliberalismo “a todos os países, a todos os setores da ação pública, a todos os domínios da vida social”. Tem-se, dessa forma, uma tentativa de universalização de uma lógica que vem a muito tempo sendo produzida, adaptada e reformulada. Pensando nisso, elencamos abaixo alguns excertos que corroboram essa perspectiva:

Você concorda com a proposta do Governo que pretende reformar o Ensino Médio de todas as escolas do país? Por quê? “Sim, porque eu acho que está mais do que na hora do Ensino Médio receber uma reforma”. “Eu concordo, porque é importante mudar a educação de forma que beneficie os alunos do ensino médio. Pois é uma coisa boa”. “Sim. Porque isso irá beneficiar todos os jovens do país”. “Sim. Pois o governo está tomando iniciativas para o melhoramento talvez do país”. Descreva o que você pensa sobre o Ensino Médio ter como foco a formação técnica e profissionalizante. “Eu penso que pode ser uma ótima direção para o país, uma nova mudança”. “Acho que pode ser uma ótima oportunidade para os jovens, em questão de emprego”

A primeira enunciação traz a ideia de que o Ensino Médio precisa de uma reforma urgente, seguindo o posicionamento apresentado pelo governo algum tempo antes da instauração da BNCC. Esse pensamento seria sustentado pelo argumento de que estamos imersos em uma sociedade com constantes transformações e que o ser humano necessita de preparação para o mercado em plena mutação.

Em efeito, vivemos em tempos líquidos, fluidos, plásticos. Uma reverberação desse aspecto pode ser visualizada em profissionais que atuam hoje, mas que podem vir a ser obsoletos no futuro, necessitando adaptar-se às mudanças, principalmente tecnológicas, aprendendo outras competências que talvez possam utilizar mais adiante. A partir de uma lógica adaptativa, pode-se sustentar que “os homens terão de mudar de cargo e empresa, adaptar-se às novas técnicas, enfrentar a concorrência generalizada” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 92). Conforme as demandas do mercado forem sendo alteradas, os profissionais deverão investir em seu próprio capital humano, reformando a si mesmos. Caso contrário, correm o risco de ficarem na periferia do sistema econômico, tornando-se improdutivos, ineficientes e inúteis à sociedade. Pautadas em Dardot e Laval (2016), diríamos que a concorrência, uma marca da razão neoliberal, atinge a todos, até mesmo os indivíduos em sua relação consigo mesmos.

Outra questão presente nas enunciações dos alunos que participaram desta pesquisa refere-se ao fato de que a reforma proposta ao Ensino Médio não é só “urgente”, mas também “benéfica” a eles e ao país. A partir disso, nos questionamos: quais os sentidos que podemos atribuir à reforma? Em primeiro lugar, pode-se asseverar que a necessidade premente do governo em reformar todas as instituições escolares do país traz como prerrogativa a universalização da lógica neoliberal aos mais variados âmbitos da sociedade. O Estado acaba auxiliando na difusão e na manutenção desse sistema, pois “já não se destina tanto a assegurar a integração dos diferentes níveis da vida coletiva quanto a ordenar as sociedades de acordo com as exigências da concorrência mundial e das finanças globais” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 284). Estender a concorrência enquanto modelo a ser adotado pelas mais variadas sociedades do globo torna o neoliberalismo uma racionalidade não apenas econômica, mas dominante, com pretensão universal, “que invade todas as dimensões da existência humana” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 390).

Tentando aprimorar um pouco mais a discussão em torno das relações estabelecidas entre Estado e neoliberalismo, apresentamos a perspectiva desenvolvida por Ball (2014) no livro Educação Global S.A. Conforme o autor, essa lógica está dentro e fora de nós. Porquanto, com pretensão de extensão universal, ela pode ser observada sob três vieses: econômico, cultural e político. O primeiro diz respeito aos arranjos relacionais entre o capital e o Estado. O segundo, ao estabelecimento de novos valores, sensibilidades e relacionamentos. O terceiro, às formas de governar e à produção de novas subjetividades. Ball (2014, p.229) pontua que o neoliberalismo trabalha contra o Estado, mas também a seu favor: “Ele destrói algumas possibilidades para formas mais antigas de governar e cria novas possibilidades para novas formas de governar”. Seu funcionamento se dá em virtude da neoliberalização dos indivíduos, não por coação, mas por encorajamento.

Cada um acaba tomando para si essa racionalidade, interiorizando-a, conduzindo a si e aos outros de acordo com as prescrições preconizadas por ela. O Estado, nesse cenário, passa a ser o que Ball (2014, p.73) chama de “agente mercantilizador”, capaz de fazer da educação uma mercadoria, uma relação entre contratantes. Agindo dessa maneira, ele acaba “’reajustando instituições’ para torná-las homólogas à empresa e criando, dentro do setor público, as condições econômicas e extraeconômicas necessárias para que os negócios possam operar” (BALL, 2014, p.73). Nesse caso, pode-se dizer que os interesses do mercado e do Estado se coadunam.

Complementando a prerrogativa de que a reforma faz com que a lógica neoliberal se estenda à escola, apresentamos outro elemento para esta discussão: o princípio da escolha, uma vez que os estudantes poderão “escolher” uma parte de seu percurso formativo. Nesse sentido, Bujes (2012, p.169) pontua que nas sociedades neoliberais “as condutas sociais passam a ser modeladas segundo uma lógica econômica, como ações calculadas levadas a efeito a partir de uma capacidade humana vista como universal: a de escolher”. A essa escolha estaria atrelada uma apreciação dos custos e benefícios advindos de quaisquer investimentos. Essa ideia de Bujes nos permite trazer mais uma seleção de excertos que remetem a uma recorrência observada no material empírico: a pretensa liberdade de escolha posta pela reforma do Ensino Médio:

Escreva o que você sabe a respeito do Programa Novo Ensino Médio do Governo Federal. “É uma reforma na educação na qual vai dar mais liberdade de escolhas para os estudantes”. Você concorda com a Proposta do Governo que pretende reformar o Ensino Médio de todas as escolas do país? Por quê? “Sim. Porque é uma forma de atrair de volta o interesse dos alunos em estudar. Porque eu vi na televisão que tem muitos adolescentes menores de 18 anos que não estão no ensino médio”. “Sim! Pois acho que todos os alunos devem ter a oportunidade de poder escolher uma área para se aprofundar mais”. “Sim. Porque vai ser bom estudar a matéria que você se interessa mais (tem mais curiosidade)”. “Sim. Porque assim as pessoas terão mais chances de escolher o que preferem estudar e não terão motivos para faltar aula”.

As falas retiradas dos questionários apontam para uma ideia difundida pelo governo do então presidente Temer segundo a qual, após a reforma do Ensino Médio, os alunos terão mais liberdade de escolher as matérias que desejam aprofundar, dedicando-se apenas àquilo que lhes for interessante. As enunciações acima mostram que a reforma possibilitará uma liberdade maior de escolha, devendo ser estendida a todos os alunos, como uma obrigação. Ao mesmo tempo, sugerem que, quanto maior for a possibilidade de escolha, maior será o interesse do aluno, o que permitiria o seu retorno à escola.

Pode-se depreender das falas discentes que o interesse é posto como uma motivação do aluno para os estudos. Se há faltas, é porque a escola não permite que escolhas sejam feitas em relação ao conteúdo estudado. Por ter um currículo único, obrigatório para todos, não se apresenta suficientemente atrativa, permitindo a evasão de seu público. Todavia, o que os alunos ainda não compreendem, exatamente porque se mantêm em uma lógica de ação específica, é que suas falas são um reflexo do neoliberalismo. Debruçando-se sobre essa racionalidade, Dardot e Laval sugerem que a lógica neoliberal consistirá

[...] em criar o maior número possível de situações de mercado, isto é, organizar por diversos meios (privatização, criação de concorrência dos serviços públicos, “mercadorização” de escola e hospital, solvência pela dívida privada) a “obrigação de escolher” para que os indivíduos aceitem a situação de mercado tal como lhes é imposta como “realidade”, isto é, como a única “regra do jogo”, e assim incorporarem a necessidade de realizar um cálculo de interesse individual se não quiserem perder “no jogo” e, mais ainda, se quiserem valorizar seu capital pessoal num universo em que a acumulação parece ser a lei geral da vida. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 217).

Os autores franceses estabelecem, nesse excerto, uma relação de dependência entre o mercado e as capacidades de escolher e calcular. Ao mercado, cabe colocar a escolha em um patamar de dever, difundindo a ideia de que os indivíduos têm a obrigação de optar por uma coisa em detrimento de outra, seguindo os próprios interesses. O cálculo faz-se necessário, porque, por intermédio dele, o indivíduo conseguirá visualizar as melhores opções, elegendo aquelas que mais benefícios lhe trouxerem. Pelo fato de o cálculo estar apoiado em uma visão utilitarista que pretende maximizar os ganhos pessoais, a responsabilidade por possíveis perdas recai sobre o próprio indivíduo. Tendo esse entendimento em vista, poderia dizer que a lógica neoliberal percebe o ser humano a partir de suas capacidades de escolha e cálculo. Dito de outro modo, hoje a população “é percebida apenas como um ‘recurso’ à disposição das empresas, segundo uma análise em termos de custo-benefício” (DARDOT E LAVAL, 2016, p. 284). Diríamos que os estudantes que participaram desta pesquisa também estão assujeitados à essa compreensão de que a escola será um local de escolhas, dependendo apenas deles para que façam “a escolha certa”, capaz de conduzi-los a bons empregos e a um futuro promissor.

Considerações finais

Esta seção apresenta algumas implicações da pesquisa realizada para a área da Educação. Estamos cientes de que se tratam de movimentações pertinentes não para um desfecho final deste artigo, mas para a abertura de outras trilhas, de explorações suscitadas por seu ensejo. Sem procurar por resultados conclusivos ou propor verdades sobre a escola e o Ensino Médio, o que escrevemos foi apenas um direcionamento possível, tendo em vista um recorte espaço-temporal ocasionado pelos materiais empíricos produzidos ao longo da nossa inserção no campo investigado.

Uma das evidências do estudo relaciona-se ao forte vínculo entre a escola pública contemporânea e a racionalidade neoliberal, uma razão que tenta direcionar os modos de vida em todas as partes do globo, com uma pretensão universalizante. Enquanto modelo a ser seguido, as prescrições neoliberais são incorporadas a muitos Estados, ditando regras de conduta em relação a si e aos outros. A investigação apresentada mostrou que a escola não está imune àquilo que perpassa a sociedade em que se insere, ou seja, não é uma instituição dada a priori. No mundo em que vivemos, há uma entronização do modelo empresarial nos diversos setores da sociedade, como na Educação, permitindo o espraiamento da competitividade, performatividade e de uma certa necessidade da escola seguir aquilo que espera o mercado de trabalho. Uma reverberação disso pode ser visualizada na reforma do Ensino Médio que busca, justamente, desencadear os processos de competitividade e empregabilidade (de acordo com as diretrizes do mercado), fazendo com que a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso seja de cada um. A partir disso, poder-se-ia dizer que o foco da escola deixou de ser a felicidade da coletividade e passou a ser a felicidade narcísica do indivíduo.

Outra evidência da pesquisa vincula-se aos sentidos atribuídos pelos alunos ao Ensino Médio. Observando o modo como concebem as disciplinas que compõem o currículo, percebemos que elas estão sendo vistas como meios para que o sucesso profissional ou acadêmico seja atingido. Seguindo esse raciocínio, poder-se-ia dizer que os discentes estão indo para a escola pensando que as matérias lá desenvolvidas deverão terão uma aplicação direta no seu futuro, sendo útil estudá-las. Assim, percebe-se que resquícios do utilitarismo ainda vigem na atualidade.

Desta forma, a problemática kantiana nos faz refletir sobre um ponto: por que não suspender a pergunta: para que serve isso? Por que tudo precisa ter uma função, sendo útil e eficiente? Em se tratando de educação, por que a escola precisa ter uma função específica? Só porque o modelo que hoje conhecemos foi engendrado na modernidade com a finalidade específica de adestrar os jovens das classes baixas para o trabalho fabril, docilizando seus corpos por meio do moralismo e do disciplinamento não significa que essa sempre tenha sido a sua função. Talvez precisemos pensar na invenção de novas maneiras de sairmos da racionalidade neoliberal, criando alternativas viáveis, pensando uma contraconduta a partir da coletividade, abrindo mão dos nossos interesses mesquinhos em prol de uma sociedade menos desigual (DARDOT; LAVAL, 2016)

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Recebido: 13 de Julho de 2021; Aceito: 30 de Setembro de 2021

Gicele Weinheimer Mestra em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Professora da Rede Estadual de Ensino do Rio Grande do Sul - Brasil; Integrante do GIPEMS - Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Educação Matemática e Sociedade.

Fernanda Wanderer Doutora em Educação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS); Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - Brasil; Integrante do GIPEMS - Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Educação Matemática e Sociedade

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