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Revista Práxis Educacional

versión On-line ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.18 no.49 Vitória da Conquista  2022  Epub 18-Mar-2022

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v18i49.9099 

Artigos

CONSTRUÇÃO DE PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO BÁSICA EM TEMPOS DE PANDEMIA

THE CONSTRUCTION OF PEDAGOGICAL PRACTICES IN BASIC EDUCATION IN TIMES OF PANDEMIC

CONSTRUCCIÓN DE PRÁCTICAS PEDAGÓGICAS EN LA EDUCACIÓN BÁSICA EN TIEMPOS DE PANDEMIA

Ana Paula Gestoso de Souza1 
http://orcid.org/0000-0002-2015-0829

Aline Maria de Medeiros Rodrigues Reali2 
http://orcid.org/0000-0003-4915-8127

1Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil; anapaula@ufscar.br

2Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil; alinereali@ufscar.br


RESUMO:

Trata-se de um estudo qualitativo de caráter exploratório uma vez que busca maior familiaridade com a problemática investigada: compreender o processo de construção práticas docentes na educação infantil e nos anos iniciais - ensino fundamental para o ensino remoto emergencial, decorrente da pandemia da Covid-19, vivido por sete professoras experientes que atuam como mentoras e as características dessas práticas. A partir da perspectiva de análise de prosa buscando investigar o significado dos dados, analisaram-se prioritariamente narrativas produzidas pelas professoras-mentoras e solicitadas pelo grupo de pesquisa no âmbito da mentoria em 2020: diários reflexivos e narrativa sobre a atuação docente na pandemia. Foram levadas em conta, de modo complementar, as conversas das reuniões com a equipe de formação/pesquisa e mensagens trocadas, via WhatsApp, entre as professoras e a equipe. A análise processual dos dados possibilitou identificar/compreender: i. um novo sentido da prática docente, ii. algumas características das condições de trabalho dessas professoras e iii. as práticas de ensino construídas para o ensino remoto.

Palavras chave: formação de professores; pandemia Covid-19; prática docente

ABSTRACT:

This article presents a qualitative study of exploratory nature since it seeks greater familiarity with the problem investigated: to understand the teaching practices characteristics and construction processes, considering the early childhood education and elementary school years, in remote education related to Covid-19 pandemic, experienced by seven experienced teachers who act as mentors. The teachers proposed activities, the meeting's conversations maintained with the research team, and the WhatsApp messages exchanged by the other mentors and research team members are analyzed. The processual analysis of the data made it possible to identify/understand: i. a new meaning of teaching practice, ii. some characteristics of the working conditions of these teachers and iii. the teaching practices built for remote teaching.

Keywords: teacher education; Covid-19 pandemia; teacher practices

RESUMEN:

Se trata de un estudio cualitativo de carácter exploratorio, ya que busca una mayor familiaridad con el problema investigado: comprender el proceso de construcción de las prácticas pedagógicas en la educación infantil y en la escuela primaria para la enseñanza a distancia, resultante de la pandemia del Covid-19, vivido por siete maestras quee actúan como mentores y las características de estas prácticas. Se analizaron principalmente las tareas producidas por las maestras-mentores en la tutoría en 2020. Se tuvieron en cuenta, de forma complementaria, las conversaciones de las reuniones con el equipo de formación/investigación y los mensajes intercambiados vía WhatsApp entre las maestras y el equipo. El análisis procesual de los datos permitió identificar/comprender: i. un nuevo sentido de la práctica docente, ii. algunas características de las condiciones de trabajo de estas maestras y iii. las prácticas docentes construidas para la enseñanza a distancia.

Palabras clave: formación de profesores; pandemia de covid-19; práctica docente

Introdução

Entre 2017 e 2020, num programa de mentoria, professores experientes (com mais de dez anos de prática docente) acompanharam online e apoiaram iniciantes (com até cinco anos de atuação) atuantes na Educação Infantil (EI), nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental (AI) e na Educação de Jovens e Adultos (EJA), auxiliando-os a ampliar sua base de conhecimentos para a docência e a fundamentar novas práticas profissionais (MIZUKAMI; REALI, 2019). Em 2020, no período da pandemia da Covid-19, o programa manteve o desenvolvimento de suas atividades modificando aspectos de sua dinâmica, como a substituição dos encontros presenciais com as mentoras por encontros síncronos online e o repensar novas formas de atuação na mentoria considerando o cenário do ensino remoto vivido pelas professoras experientes e pelas iniciantes.

Tendo em vista o contexto de pandemia que exigiu a implementação do ensino remoto de emergência em diferentes níveis de ensino e os desafios vividos pelos professores nesse processo, este estudo, de caráter exploratório, analisa as mudanças demandadas na prática profissional docente. Para melhor compreender esse impacto, analisaram-se os relatos de sete professoras experientes da educação infantil e dos anos iniciais - ensino fundamental, ao atuarem como mentoras, pois as ações relativas ao EJA foram descontinuadas no caso de seus participantes. Compreender como as experientes construíram novas práticas favoreceu o entendimento de como elas continuaram o trabalho de apoiar os iniciantes acompanhados, afinal as suas práticas docentes possivelmente são bases para a atuação como mentoras.

Considerando que o cenário do ensino remoto acarretou, por um lado, diversos desafios e restrições e, por outro, oportunidades e novas práticas que merecem ser analisadas (FLORES; MAGO, 2020), as seguintes questões nortearam a condução desta investigação: Quais foram os impactos do contexto de pandemia para a prática profissional de professoras experientes? Quais práticas foram construídas para atuarem no ensino remoto? Delimitando-se os objetivos da pesquisa: i. compreender o processo de construção das práticas para atuar no ensino remoto e ii. caracterizar as práticas construídas, esses objetivos mostraram-se relevantes tendo em vista a pesquisa mais ampla na qual essas professoras experientes atuavam como mentoras de professores em início de carreira.

Para alcançar esses objetivos, tomou-se como fonte de dados as tarefas produzidas pelas professoras-mentoras no âmbito mentoria ao longo do ano de 2020, com ênfase nas práticas docente realizadas no primeiro semestre do ano, seus relatos nas reuniões síncronas realizadas com a equipe formadora e algumas mensagens trocadas, via WhatsApp, entre as professoras-mentoras e o grupo de formação/pesquisa.

Aportes teóricos

A profissão docente implica em uma atividade socioprática (ROLDÃO, 2017), complexa, realizada com e sobre pessoas (GATTI et al, 2019), é situada (dependente do contexto de atuação), requer o domínio de uma base de conhecimentos densa e diversificada (SHULMAN, 2004) e é intencional. Tal intencionalidade considera as demandas da sociedade, perspectivas sobre o papel da escola, tendências pedagógicas, entre outros elementos, apresentados nos diferentes âmbitos do processo de construção curricular escolar.

Compreende-se que a atuação docente “envolve construir ambiências de aprendizagem e prover formação em valores, atitudes e relações interpessoais na perspectiva de criar possibilidades e potencialidades para se viver bem e de forma digna” (GATTI et al, 2019, p. 41). Na perspectiva de Pérez-Goméz (2019), na contemporaneidade (contexto complexo e de mudanças), ser professor significa ensinar o outro a como se educar, a se constituir como sujeito autônomo e singular e para tanto o saber acumulado pela humanidade é essencial. Por isso, é fundamental que o professor se atente, continuamente, aos processos de aprendizagem dos estudantes, objetivando que eles aprendam: a se autodirigir, a construir questionamentos relevantes, a lidar com problemas complexos (duvidando e investigando), a selecionar informações, a se comunicar com o outro em redes virtuais (e saber manter a privacidade e o anonimato quando necessário) e a interagir considerando interesses comuns, possibilitando o engajamento dos estudantes na construção de relações construtivas e colaborativas (PÉREZ-GÓMEZ, 2019).

A atuação docente demanda uma sólida base de conhecimento para o ensino que abarca conhecimentos pedagógicos sobre o currículo, sobre os estudantes e suas características, sobre o contexto de atuação, sobre os fins educacionais, sobre o conteúdo a ser ensinado. Este último implica compreender os conceitos, a estrutura e as formas de organização de determinada área de conhecimento e conhecer o processo de produção dos conhecimentos. Além de conhecer o conteúdo a ser ensinado é fundamental saber utilizar os diferentes modos de representação de um conceito e/ou ideia, como analogias, exemplos, explicações, ilustrações etc.; conhecer os aspectos que facilitam e/ou dificultam a compreensão de um conteúdo; compreender como os estudantes aprendem os conteúdos, as dificuldades que enfrentam nesse processo e seus conhecimentos prévios sobre os assuntos e tópicos ensinados (SHULMAN, 2004). Demanda também uma “formação cultural e humanista que lhes permita compreender e problematizar a realidade social e seu trabalho futuro” (GATTI, et al., 2019, p. 41).

O exercício da docência transpõe o momento da aula, implica em desempenhar outros papéis além do ensinar, isto é, demanda se responsabilizar em determinada situação e comprometer-se com a escola e seu contexto. Também é válido ressaltar outros aspectos que incidem na complexidade da docência, tais como: “as transformações sociais; as mudanças constantes que ocorrem nos sistemas educativos; as precárias condições de trabalho docente ofertadas por grande parte das redes de ensino brasileiras e, também, pela própria desvalorização social do magistério”. (PRÍNCIPE; ANDRÉ, 2019, p.61).

Almeja-se, assim, o desenvolvimento de uma formação de professores em uma perspectiva emancipatória:

[...] não só a formação de conhecedores, mas de seres com condição de tomar consciência de situações, fatos e contextos, saindo de visões particularistas e parciais, com capacidade de construir visões de realidade mais amplas que possibilitem elaboração de alternativas de ação e transformações de situações dadas em variadas circunstâncias, com visão integradora. (GATTI, et al, 2019, p. 35-36)

Agrega-se a essa discussão a ideia de que o desenvolvimento profissional docente é um processo contínuo de transformação e constituição docente direcionado para a “satisfação do direito à aprendizagem que os alunos e a comunidade social esperam da escola” (ROLDÃO, 2017, p. 201), implica em atividades e experiências planejadas sistematicamente (VAILLANT; MARCELO, 2012) realizadas em benefício do sujeito, do grupo e/ou da escola demandando uma postura de “indagação, de formulação de perguntas e problemas e a busca de suas soluções (VAILLANT; MARCELO, 2012, p. 169)”. Assim, professores experientes - participantes deste estudo, tendo um perfil adaptativo (MARCELO, 2009), continuam se desenvolvendo profissionalmente buscando continuamente transformar, aprofundar e ampliar suas competências e sua prática docente. O enfrentar novas e desafiantes situações resulta no surgimento de novas capacidades (MARCELO, 2009).

Em 2020 o ensino remoto emergencial (ERE) em decorrência da pandemia da Covid-19 caracterizou-se, em termos práticos, como o distanciamento geográfico de professores e estudantes e se configurou como um novo, desafiante e incerto contexto. Esse ensino remoto adotado para mitigar os efeitos da pandemia (FLORES; MAGO, 2020; MOREIRA; SCHLEMMER, 2020) representou um imperativo para a ressignificação da prática docente e um alerta para as implicações de tal cenário em termos de equidade e justiça social. O caráter novo e emergencial desse ensino ocasionou a transferência e transposição de metodologias e práticas pedagógicas do tempo e espaço presencial para o online, na maioria dos casos, em uma “perspectiva meramente instrumental, reduzindo as metodologias e as práticas a um ensino apenas transmissivo”, e se configura como uma solução temporária em um momento de crise (MOREIRA; SCHLEMMER, 2020, p. 8).

Em contato com as professoras experientes participantes deste estudo, observou-se a preocupação delas em ir além das características do ERE descritas no parágrafo anterior, especialmente ao perceberem que tal situação continuaria por mais tempo do que o previsto inicialmente. Percebeu-se que essas professoras desejavam construir práticas online que favorecessem a efetiva aprendizagem das crianças; em tal intencionalidade pôde-se observar indícios dos elementos que constituem o ser professor dispostos anteriormente com base em Shulman (2004), Gatti et al (2019) e Pérez-Gómez (2019). Entretanto, ao estarem imersas em inúmeros desafios, o medo, as dúvidas e as incertezas marcaram a busca por concretizar tal intencionalidade.

Nesse cenário, este artigo se volta para as práticas de professoras experientes da Educação Básica desenvolvidas no contexto da pandemia, no ano de 2020, compreendendo que o enfrentamento de uma nova, desafiante e incerta situação pode desestabilizar as certezas do ser e do atuar como docente, ocasionado tensões, mas também o desenvolvimento profissional, afinal, tal cenário demanda a construção de alternativas de ações que irão impactar nas capacidades cognitivas e afetivas de ordem superior dos professores.

Percurso metodológico

Trata-se de um estudo qualitativo de caráter exploratório uma vez que busca coletar informações sobre determinado objeto de investigação e, assim, possibilitar “maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito ou a construir hipóteses” (GIL, 2002, p. 41). Investigam-se as vivências de sete professoras experientes que atuam como mentoras no contexto da pandemia do Covid-19, conforme objetivos apresentados na seção introdutória deste texto.

Em termos metodológicos, aponta-se que as diferentes ações propostas no programa de mentoria apresentam caráter formativo, se configurando como espaços para aprendizagens profissionais das professoras participantes, ao mesmo tempo em que possilitam a coleta de dados, se caracterizando como ferramentas investigativas. A partir da perspectiva de análise de prosa (ANDRÉ, 1983), buscando investigar o significado dos dados, para este estudo analisaram-se prioritariamente narrativas escritas produzidas pelas professoras-mentoras e solicitadas pelo grupo de pesquisa no âmbito do programa de mentoria ao longo de 2020, a saber: diário reflexivo (com ênfase no primeiro semestre de 2020) e narrativa sobre a atuação docente no momento atual (produzida em julho). Foram levados em conta, de modo complementar, seus depoimentos registrados em vídeo em reuniões síncronas online e mensagens trocadas, via WhatsApp, entre as professoras-mentoras e o grupo de formação/pesquisa.

Na análise de prosa “os tópicos e os temas vão sendo gerados a partir do exame dos dados e de sua contextualização no estudo” (ANDRÉ, 1983, p. 67), com o decorrer da análise tais tópicos e temas são revistos, questionados e reformulados considerando os aportes teóricos do estudo. Essa proposta metodológica possibilita construir uma visão multidimensional do fenômeno estudado.

Nesta investigação, as análises realizadas ocorreram processualmente à medida que as professoras-mentoras produziam suas narrativas no programa, participavam das reuniões síncronas online e trocavam mensagens pelo WhatsApp sobre o que acontecia/aconteceria com as escolas e com a pandemia. Com a organização dos materiais indicados anteriormente realizou-se uma leitura inicial dos dados a partir de questões mais amplas e outras específicas considerando os objetivos deste estudo: O que esses dados querem dizer? Quais mensagens são reveladas sobre o ensino remoto? O que cada depoimento evidencia sobre as práticas que estão sendo desenvolvidas pelas professoras no contexto de pandemia? Quais elementos compõem essas práticas? Buscou-se, então, identificar elementos comuns e específicos nas narrativas e foi observado sentimentos de angústia, desamparo e urgência diante do cenário inesperado e incerto. Tais sentimentos estavam imersos em preocupações relacionadas ao mundo (às ações governamentais, à escola, às famílias, aos alunos, às professoras iniciantes etc.) e a si próprias. Ao mesmo tempo as professoras revelavam as práticas pedagógicas remotas que estavam sendo construídas. Um olhar mais atento aos dados culminou com a construção de alguns assuntos de análise, a saber: i. o novo sentido da própria prática, ii. algumas características das condições de trabalho dessas professoras e iii. as práticas de ensino construídas para atuar no ensino remoto na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental.

Os excertos ilustrativos dos dados foram selecionados pelo detalhamento/riqueza de informações sobre as experiências vivenciadas. Cada excerto de dado é apresentado da seguinte forma: inicial do nome da professora, tipo de texto (Tarefa - Reflexão sobre o acompanhamento das PIs, por exemplo) e a data de produção. As mensagens trocadas, via WhatsApp, são identificadas do seguinte modo: data de envio, o aplicativo e a direção do interlocutor (por exemplo, Mensagem de J. para as professoras/mentoras e as pesquisadoras).

Desafios do trabalho remoto com crianças

O programa de mentoria teve seu início em 2017 articulando atividades presenciais e online com professores experientes da educação básica acompanhando iniciantes. Em 2020, último ano de desenvolvimento do programa, a pandemia do Covid-19 exigiu que todas as atividades de mentoria e de pesquisa fossem realizadas online, alterando o modo como vinha sendo desenvolvido. Na condução dessa fase do programa a equipe de pesquisadoras começou a observar os impactos que a pandemia estava causando na vida profissional (e pessoal) das professoras experientes diante de um novo desafio profissional: é possível continuar sendo professora de crianças em um contexto de aulas não presenciais? Se sim, como?

Nos primeiros meses da pandemia verificou-se que um dos primeiros efeitos desse cenário foi o desequilíbrio da constituição da identidade profissional das professoras-mentoras1 em função do estranhamento à vivência de uma situação desconhecida e assustadora. Tal desequilíbrio foi intensificado pelo fato de que durante quase três meses a Secretaria Municipal de Educação (SME), à qual estavam vinculadas, não forneceu orientações sobre o que iria acontecer com as escolas e o ensino. O instável, mutável e multifacetado do ser docente, aspectos indicados por Rodgers e Scott (2008), foram realçados por uma situação não vivida, inesperada, assustadora e confusa, pois as premissas, compreensões e proposições prévias e até então concebidas como estáveis, foram desmanchadas. Tal cenário trouxe à tona fragilidades, inadequações e inseguranças, tornando as professoras conscientes de uma identidade fragilizada e da força modeladora dos fatos políticos, históricos e sociais vivenciados naquele momento. Mostrou-se também uma fase de frustrações e incertezas devido ao posicionamento demorado e pouco claro da SME, com ausência de orientações e direcionamentos de objetivos.

Foi no final de maio de 2020 que as professoras da rede municipal foram convocadas para uma reunião cuja pauta seria o plano de ação que estava sendo traçado pela SME, à qual eram vinculadas. No mês de julho a rede municipal iniciou o ensino remoto que gerou, naquele momento, sentimentos contraditórios: alívio - por vislumbrar a possibilidade de um retorno sistemático de interação e promoção do processo de ensino e aprendizagem, ainda que virtualmente, acompanhado de dúvidas e incertezas. As professoras se questionaram: Qual será minha função nas aulas remotas? Como alcançar todas as crianças diante da desigualdade social e exclusão digital? Como propor atividades educativas? Como propor o brincar? Como avaliar as aprendizagens das crianças?

Uma vez iniciadas as atividades escolares de forma remota, as professoras relataram os desafios do trabalho escolar remoto com crianças, a saber:

  1. Propor atividades educativas por meio de diferentes ferramentas tecnológicas que envolvam, motivem e propiciem o desenvolvimento dos alunos, de forma a contemplar as especificidades de cada um (crianças pequenas, aluno público-alvo da educação especial, diversidade de ritmos de aprendizagem etc.), e a não sobrecarregar os familiares no acompanhamento das atividades escolares.

  2. Aprender a interagir com os familiares dos alunos de forma online considerando que alguns não dominam a leitura e a escrita e outros não são letrados digitalmente.

  3. Lidar com a falta de retorno das crianças e seus familiares, muitas vezes decorrente: da falta/dificuldade de acesso à internet e/ou ao equipamento eletrônico pelos familiares, da falta de um espaço adequado em casa para realizar as atividades escolares, da sobrecarga de trabalho dos familiares que os impossibilitou de acompanhar as crianças nas atividades.

  4. Lidar com os efeitos da perda de vínculo da criança com a escola e a professora.

  5. Aprender a ensinar de forma remota ao mesmo tempo em que ensina remotamente.

  6. Lidar com as demandas administrativas colocadas pela SME para registro do ensino remoto e a frequência dos estudantes no caso do ensino fundamental, ação que aumenta a sobrecarga de trabalho.

  7. Enfrentar a perda do espaço de diálogo com seus pares. Apesar de o horário de trabalho pedagógico coletivo continuar ocorrendo nas escolas com encontros online, a dinâmica passou a priorizar palestras sobre os mais diversos assuntos - nem sempre relacionados às demandas do trabalho docente no ensino remoto, deixando de lado os momentos de diálogo e trocas de experiência entre as professoras.

Observa-se que tais desafios vão ao encontro da síntese apresentada por Carrillo e Flores (2020) ao destacarem alguns estudos internacionais e dos apontamentos de Gatti (2020) ao retratar a realidade educacional brasileira no contexto pandêmico: má infraestrutura para o ensino online, recursos e informações limitadas para todos os alunos, ambientes domiciliares complexos dificultando um apoio mais efetivo das famílias aos estudantes, falta de conhecimento e experiência docente quanto ao ensino digital (plataformas, recursos, forma de comunicação etc.). Mesquita e Cruz (2020, p. 7) também assinalam desafios que foram recorrentes nos relatos das professoras no que cabe a interação com os alunos e a relação escola-família, mais especificamente a ausência ou pouca comunicação:

As dificuldades discutidas, em geral, dizem respeito, de um lado, ao dilema enfrentado pelas famílias para conciliar as rotinas com trabalhos remotos e apoiar os seus estudantes nas tarefas on-line, trabalho até então feito presencialmente pelos professores; de outro, à falta de condições materiais dos estudantes, sobretudo, das escolas públicas, para realizar as atividades tecnologicamente digitais.

No que tange ao ensino no contexto digital, embora, permaneçam as atribuições do professor no ensino presencial, agrega-se a necessidade de “compreender as especificidades dos canais de comunicação e da comunicação online, síncrona e assíncrona” (NOBRE, et. al, 2020, p. 86-87), sendo fundamental que essa comunicação digital seja regular, assertiva, empática e atenta. Agregado a isso, o trabalho pedagógico remoto voltado para as crianças que frequentam creches e pré-escolas e àquelas em processo de alfabetização demanda a intensificação da comunicação com as famílias e se torna mais complexo ao considerar “as necessidades e condições dessas faixas etárias, e também a falta de metodologias a distância suficientemente estudadas e consolidadas para esses níveis educativos, lembrando os limites de uso por crianças pequenas de aparelhos receptores” (GATTI, 2020, p. 32).

A complexidade de construção de novas práticas em um contexto desafiador é realçada diante do fato de que, mesmo após dois/três meses do início das atividades escolares remotas, as professoras-mentoras relataram que as inseguranças sobre a proposição de aulas remotas permaneceram.

Além de revelarem os desafios vividos, as professoras expressaram as práticas que foram construindo para atuar no ensino remoto, conforme é exposto a seguir.

Práticas na educação infantil: apresentação e discussão dos dados

É válido ressaltar que antes da oficialização das atividades escolares ocorrerem de forma remota as professoras-mentoras atuantes na educação infantil haviam tomado a iniciativa de manter o contato com as crianças e seus familiares e, via de regra, optaram pelo uso do WhatsApp para fazer essa comunicação. Tal contato objetivava não perder o vínculo com as crianças, sendo que, naquele momento, havia uma expectativa de um retorno em breve das atividades presenciais. O depoimento de J. é um exemplo das práticas desenvolvidas nesse período. Ela enviava vídeos com músicas já conhecidas pelas crianças e solicitava que as crianças gravassem áudios/vídeos e enviassem para ela e os colegas. Esse relato também evidencia o aspecto provisório da prática docente, intensificado em um período desconhecido acrescido do pouco conhecimento da professora em relação aos seus alunos e famílias, em função do curto período anterior de aulas presenciais.

[...] montei um grupo de pais no WhatsApp para mantermos uma comunicação, tanto com os pais como com as crianças. Das 21 crianças 4 não tem acesso à internet. Passei a mandar vídeos com músicas que cantávamos, a incentivar que eles mandassem áudio para os amigos, a gravar pequenos vídeos para que eles observassem o calendário, buscassem em casa locais onde tivessem números, letras etc. No início fiquei empolgada, mas nas duas últimas semanas observei que apenas um grupo de cinco alunos respondiam, dos outros alunos, os pais não chegavam nem a visualizar as mensagens. Isso me causou uma angústia maior ainda, pois nem todas as crianças têm acesso a internet e com o passar do tempo até as que tinham estavam “com dificuldades” em acessá-las. Nesse período, ao encaminhar as mensagens para os pais, precisei também levar em consideração a escolaridade deles. As mensagens encaminhadas aos pais eu fazia por escrito e as encaminhadas para os alunos mandava por áudio ou vídeo e um dia recebi a mensagem particular de uma mãe dizendo que não conseguia ler minhas mensagens, porque não tinha “leitura” se eu poderia mandar sempre por áudio. (J. Diário. 22 de maio de 2020). (Grifos nossos).

No caso da educação infantil, o município optou por desenvolver um trabalho com o objetivo de não perder o vínculo com as famílias e crianças e propôs a divulgação de Vivências Lúdicas, elaboradas pelas professoras, no site da SME organizada por faixa etária. Entretanto, algumas escolas tomaram a iniciativa de também divulgar as Vivências por outros meios como um blog organizado por faixa etária e professor e grupos no WhatsApp - cada professora tem o grupo com sua turma, sendo que em um caso as professoras de Educação Física e da Educação Especial também participavam das propostas pedagógicas das professoras regentes e faziam propostas específicas para cada área. Via de regra, as famílias retornavam o contato das professoras enviando fotos das crianças realizando as Vivências propostas e/ou outras atividades. Entretanto, no caso de J. e C. o retorno continuou baixo e as justificativas das famílias eram de duas ordens: i. falta de tempo (algumas priorizavam dar atenção aos filhos mais velhos que corriam o risco de serem reprovados se não realizassem as atividades remotas), ii. problemas financeiros para manter saldo de créditos no celular. A investigação de Matos, Higuchi e Oliveira (2020) apresenta dados semelhantes sobre a baixa devolutiva e os aspectos que a ocasionam.

Neste estudo, apenas N. pontuou que conseguia interagir bem com as famílias das crianças e atribuiu isso à interação outrora estabelecida no ano de 2019, pois a turma de crianças que acompanhava era a mesma. Além disso, N., com a ajuda de um familiar de uma criança, imprimia algumas atividades e as enviava para as casas das crianças ou as disponibilizava para serem retiradas na escola. Os depoimentos apresentados a seguir descrevem alguns elementos das práticas realizadas pelas professoras-mentoras da educação infantil.

[...] estamos preparando Vivências Lúdicas, que são compartilhadas no blog da escola, que está organizado por faixa etária e professor. As devolutivas acontecem pelo grupo de WhatsApp, que no início a interação era intensa e hoje vejo que caiu consideravelmente. [...] (J. Julho de 2020. Narrativa - Atuação no momento atual). (Grifos nossos).

[...] optamos por trabalhar via WhatsApp (cada sala tem um grupo, administrado pela professora) [...] temos uma excelente interação, que penso vir do tempo e confiança que já tínhamos estabelecidos antes da pandemia. Em nossas interações, por vídeos gravados aqui em casa mesmo... conto histórias (com apoio de livro em pdf, envio histórias de contas do You Tube, etc. toco violão e outros instrumentos para mexer o corpo, cantamos e dançamos; cantamos Parabéns para os aniversariantes; fazemos calendário; sugiro brincadeiras, jogamos dados; construímos bonecos de bexiga com farinha; fazemos desafios do tipo Siga o mestre; até bolo... as crianças mandam lindas mensagens para mim e para os colegas; fizemos algumas ligações de vídeos para ‘ficar mais perto’ e estamos organizando nossa 1ª Reunião de Pais e Mestre online! As crianças postam fotos e vídeos das vivências. Não tinha calculado a participação até a direção solicitar no início deste mês [julho], minha média ficou em 84%, achei muito boa, visto que as famílias têm seus próprios desafios: organização do tempo, acesso a internet, entre outros! (...) [Para] as crianças com dificuldade para imprimir as atividades, em parceria com um pai, tenho enviado as atividades em casa ou disponibilizado para buscar na escola. (N. Julho de 2020. Narrativa - Atuação no momento atual). (Grifos nossos).

Enquanto docente me esforço para buscar por formação para o trabalho remoto, assisto muitas lives que ajudam a direcionar as orientações para as famílias, sobretudo, como levar a criança a compreender que ainda sou a professora dela, e que a distância não tira meu poder de ajudar no seu desenvolvimento. A SME nos orientou a passar sugestões pedagógicas priorizando o brincar, não quer atividades impressas, percebo que muitos colegas se sentiram incapazes de elaborar atividades sem papel, parece que não entendem que a criança aprende brincando e querem passar atividades para colorir [...]. (C. Diário. 03 de junho de 2020). (Grifos nossos).

[...] optamos por enviar as vivências lúdicas por meio do WhatsApp. [...] Em nosso grupo inserimos também as professoras de educação física, [...] optamos por cada dia uma professora postar sua vivência. A professora de educação especial também foi inserida no grupo, ela desenvolve um projeto de apoio emocional às famílias. No grupo tem 19 crianças, percebemos que todas visualizam as vivências, porém, contamos com a participação de três famílias que sempre realizam as propostas e postam fotos e vídeos das crianças, às vezes áudios das crianças. Alguns pais não realizam as vivências, mas enviam fotos das crianças ajudando a fazer bolo, outras, enviam áudios das crianças dizendo que estão com saudades. [...] Algumas mães relatam que não conseguem realizar por falta de tempo. Não tivemos devolutivas dos pais sobre possível acesso ao site da SME, orientamos no grupo, mas não sabemos se visitaram essa ferramenta. (C. Julho de 2020. Narrativa - Atuação no momento atual). (Grifos nossos).

As práticas desenvolvidas pelas professoras de educação infantil mostram como elas tentam conciliar o que lhes é solicitado pela SME com seus repertórios de conhecimento e quando não se sentem preparadas procuram por novas formas de atuação. C., J. e N. revelam saber que a criança está “sempre em relação, está sempre na interação, em busca do vínculo” (KRAMER, 2020, p. 180) e interage com o outro como objeto do conhecimento, do afeto, da ação. As professoras buscam desenvolver práticas que se conectem com os processos próprios da constituição do ser criança, como a expressão, o brincar, o movimento, a linguagem oral, o imaginário, a fantasia, o afeto, entre outros (ROCHA, 2001). Elas tentam propiciar que as crianças mantenham as relações com o meio natural e com outros sujeitos, buscam manter também a escuta e a dialogicidade como aspectos de uma pedagogia que se volte para a educação infantil (ROCHA; BUSS-SIMÃO, 2018). Há uma tentativa de manter o brincar como eixo das atividades propostas, de modo a oportunizar que as crianças estabeleçam, por meio do brincar, suas próprias relações com o mundo adulto e seu próprio mundo e assim, “vai adquirindo conhecimento, aprendendo sobre o mundo e, ao fazê-lo, interfere nesse mundo, nos modifica, nos altera” (KRAMER, 2020, p. 180).

Entretanto, percebe-se que em muitos casos o contato da criança com o outro se limitou à família da criança, e, em alguns, se estende à professora. Nos primeiros meses da implementação das atividades remotas foram escassos os relatos de práticas que buscavam manter contato com as próprias crianças da turma. J., por exemplo, tentou possibilitar essa interação solicitando que as crianças gravassem áudios ou vídeos cantando músicas para que esses materiais fossem enviados uns aos outros. C. apresentou poucos relatos nesse sentido. N. arriscou a realização de alguns encontros síncronos com as crianças e seus responsáveis. A escassez de práticas nesse sentido, possivelmente ocorre em razão das dificuldades objetivas enfrentadas pelas famílias: falta de recurso financeiro para ter uma internet de boa qualidade, falta de tempo para acompanhar a criança em uma atividade síncrona, por exemplo. E pela preocupação em não manter a criança por muito tempo em frente à tela do computador/celular.

Ao considerar que “a creche e a pré-escola têm como objeto as relações educativas travadas num espaço de convívio coletivo que tem como sujeito a criança de 0 a 6 anos de idade (ou até o momento em que entra na escola)” (ROCHA, 2001, p. 31), e assim, que a aprendizagem é parte e resultado das múltiplas relações que a criança estabelece e constrói com o meio natural, com outras crianças e com os adultos. A restrição da interação com o outro e com uma parcela do mundo físico imposta pela pandemia agregada, em alguns casos, ao cenário de exclusão digital das famílias e, em outros, à sobrecarga de trabalho dos familiares para acompanhar as atividades remotas das crianças, impede a concretização de uma das funções da educação infantil. Por outro lado, o depoimento de C. revela que as crianças estão em interação com o outro e com o mundo quando realizam outras atividades não previstas pela escola.

Ainda mobilizadas na busca pela interação da criança com o outro (crianças, professoras e famílias) observou-se que a partir do segundo semestre de 2020, as professoras, aos poucos, começaram a relatar a realização de encontros online com as crianças. Interessante notar que esses encontros se tornaram um “evento”. Inclusive foram elaborados cartazes de divulgação com a data e horário do encontro. As experiências relatadas por N. nas reuniões semanais do programa de mentoria sobre os encontros síncronos com as crianças fizeram com que J. propusesse, em um domingo, o primeiro encontro com as crianças e seus familiares. Ao constatar a pertinência desse momento síncrono, a professora J. se propôs a realizar outros. Vivências como jogo de bingo com o nome das crianças, roda de conversa sobre novidades e roda de música com violação foram algumas das práticas organizadas pelas professoras nesses encontros.

Diante do cenário pandêmico Matos, Higuchi e Oliveira (2020) ressaltam que os professores se mobilizaram para reinventar suas práticas na busca por produzir sentido na sociedade. No referido estudo é evidenciado que as professoras de educação infantil apresentaram sentimentos de realização, articulados com o desafio de aprender novas estratégias pedagógicas e com o reconhecimento das famílias e das crianças. Tal aspecto também esteve presente em J., N. e C., por meio de uma necessidade de aprender, elas se colocaram em movimento e buscaram recursos para isso. Entretanto, observou-se que, assim como em Matos, Higuchi e Oliveira (2020, p. 98140), reiteradamente, a frustração se sobrepôs a motivação em consequência “a tantos fatores socioestruturais a percepção e a visualização da discrepância entre o esforço empreendido por parte das professoras e o retorno, principalmente, das famílias da Educação Infantil”.

Ao analisar narrativas de crianças de 04 anos no ensino remoto compartilhadas via WhatsApp, Castro, Vasconcelos e Alves (2020, p. 7) observaram nesse período foi criado “um cotidiano ainda mais sensível entre escola, famílias e crianças abordando sentimentos, pensamentos, comportamentos e relacionamentos, requerendo dos professores um grande exercício de escuta [...]”. Diante desse cenário construiu-se uma

[...] pedagogia do cotidiano remoto na Educação Infantil, uma pedagogia sensível ao tempo, as relações e as transformações, uma pedagogia que mobiliza as famílias a estarem com as crianças, a viverem com elas aprendendo a superar os sentimentos de dor e saudade, proporcionando assim uma aprendizagem para conviver com as diversas situações da vida. (CASTRO, VASCONCELOS; ALVES, 2020, p. 7).

Nos relatos das professoras deste estudo fica patente a escuta sensível das docentes, o caráter acolhedor das práticas propostas, o papel da família e sua relação com a escola. As crianças precisam de um acompanhamento de um adulto (ou jovem/adolescente) para a realização das vivências propostas e participação nos encontros síncronos. Ao mesmo tempo em que essa necessidade da presença família pode ser percebida como um dificultador para a realização das atividades escolares de forma remota, há a possibilidade de enriquecer e estreitar esse vínculo com as relações educativas traçadas pela escola. Para tanto, a despeito das dificuldades elencadas, a interação com as crianças e seus familiares sinaliza a importância que a família atribui à escola, ainda que em uma situação de ensino remoto.

Práticas no ensino fundamental - anos iniciais: apresentação e discussão dos dados

Assim como ocorreu com as docentes da educação infantil, as professoras do ensino fundamental procuraram manter o contato com as crianças e seus familiares, em geral pelo WhatsApp, antes do início do período oficial de oferta do ensino remoto. Oficializado esse período, no caso do ensino fundamental foi proposto que as atividades das escolas municipais, organizadas por grupos/anos, fossem divulgadas semanalmente no site oficial da SME e no Facebook de cada escola. A rede de ensino organizou a entrega quinzenal dessas atividades impressas aos alunos e foi possibilitado que as professoras utilizassem diferentes aplicativos e recursos para as aulas. Em julho de 2020, foi instituída uma normativa que estabeleceu o acompanhamento obrigatório dessas atividades para o cômputo de frequência dos alunos.

As ações docentes para o ensino remoto foram: i. disponibilização de livros didáticos e roteiro de estudo impresso, ii. disponibilização diária de vídeos com explicação das atividades do livro, iii. realização de encontros virtuais através do Google Meet com os alunos (objetivando aumentar a frequência das interações e a participação), iv. acompanhamento por meio de um questionário no Google Forms para avaliar esse período das aulas remotas, v. planejamento das atividades com o grupo de professoras que atuam no mesmo ano de ensino, vi. distribuição das atividades por WhatsApp (objetivando alcançar mais famílias), vi. implementação de um plantão de dúvidas pelo WhatsApp (em grupo ou individualmente).

Via de regra, os alunos retornavam o contato com as professoras enviando, via WhatsApp, fotos das atividades realizadas. Os aplicativos mais utilizados pelas professoras-mentoras foram: WhatsApp, Loom, Google Meet, Google Forms e gravadores de tela.

Os depoimentos das professoras dos anos iniciais revelam, em diferentes intensidades a preocupação, com a relação interpessoal, isto é, a busca por manter os estudantes conectados entre si, com as professoras e com a escola e a preocupação com o ensino dos conteúdos escolares.

O relato de W. ilustra as diferentes estratégias utilizadas pela professora na busca pela manutenção do vínculo com as crianças - antes e durante o período oficial das aulas remotas: envio de cartas pelo correio, encontros síncronos online, envio de áudios.

No dia 01 de junho a Rede Municipal iniciou as atividades obrigatórias não presenciais. Também realizamos a entrega presencial dos livros didáticos e cronograma de estudos para o mês de junho. Mantenho interação com os alunos desde o dia 23 de março através de um grupo no WhatsApp com os familiares. Durante o período sem aulas enviei cartas individuais aos alunos através dos Correios para manter a interação. Por serem alunos de 2º ano, a comunicação na maioria das vezes é com os respectivos responsáveis, mas várias crianças me mandam áudios. Gravo vídeos diariamente utilizando a app Loom2 com a explicação das atividades do livro. Realizei 2 encontros virtuais através do Google Meet com os alunos e tenho como objetivo aumentar a frequência das interações e a participação dos alunos. Os alunos enviam fotos das atividades realizadas através do WhatsApp, porém tenho uma porcentagem inferior a 70% de retorno destas atividades. Disponibilizei um questionário no Google Forms para avaliar esse período das aulas remotas e apenas 50% dos responsáveis responderam. (W. Julho de 2020. Narrativa - Atuação no momento atual). (Grifos nossos)

Como recorda Candau (1983), o componente afetivo do processo de ensino e aprendizagem não pode ser ignorado, especialmente em um contexto marcado por incertezas e tensões como a pandemia, o ERE e o retorno às atividades presenciais. Percebe-se também que a preocupação das professoras-mentoras com a dimensão humana do processo educativo não está desvinculada das condições socioeconômicas e políticas que impregnam esse processo. Verifica-se, então, a busca das professoras pelo ensino dos conteúdos, imersas no compromisso social da profissão, refletida em suas ações para que todos os estudantes sejam incluídos.

Sobre esse aspecto, tem-se como exemplo, no depoimento a seguir, a organização proposta pela professora-mentora V. ao criar no Google Drive da escola pastas com a disponibilização de tarefas distintas considerando que em sua turma havia crianças que estavam iniciando o processo de aquisição da leitura e da escrita e outras que liam e escreviam com certa fluência. Além disso, V. colocou-se com uma postura inclusiva, já que as diferentes pastas poderiam ser abertas por todas as crianças e ela ainda propôs outras atividades para outras disciplinas e tarefas mais livres. Com essa preocupação de atender a todos, ela também enviava as atividades e materiais de estudo por WhatsApp.

Uma das preocupações maiores que tive nesse momento foi a de que a turma de terceiro ano que tenho é uma turma formada por alunos/as recém alfabetizados. [...] Diariamente eu me questionava em que condições eu atenderia mais crianças garantindo a máxima aprendizagem aos diferentes saberes. Na verdade, a sala era formada por três grupos muito distintos. [...] Decidi juntamente com outra professora, também de terceiro ano, e que tem uma sala, em condições de aprendizagem semelhante a que tenho, que organizaríamos grupos de WhatsApp com a nossa turma... Esse foi o primeiro passo.... [...] [Expliquei aos familiares que] Haveria uma pasta para as crianças que quisessem ler e escrever melhor, inclusive a nomeei como "Para ler e escrever melhor" e outra denominada "Para quem quer ficar craque na matemática". Disse que essas pastas continham atividades muito bacanas e que muitas das crianças da turma a resolveriam necessitando de ajuda. Coloquei-me à disposição para responder todo e qualquer tipo de dúvida que os pais pudessem ter na hora de auxiliar essas crianças. Aproveitei também para dizer que havia outra pasta com os conteúdos regulares e distribuídos por disciplina. Reforcei que todos poderiam abrir todas as pastas e realizá-las conforme as necessidades e dúvidas das crianças. O que eu queria era que se sentissem à vontade para transitar por todos os assuntos que estávamos trabalhando. Confesso que não tive maiores problemas. Muitos pais me procuraram no particular, atendi respeitando cada solicitação e cada tempo. No drive da escola também disponibilizei, livros e revistas em quadrinhos que as crianças pudessem ler, bem como um roteiro de estudos orientando que cada dia fosse feita uma atividade. Tive crianças que fizeram tudo de uma vez, tive crianças que, muito provavelmente, não fizeram nenhuma até hoje e nem conseguirá fazer. (V. Diário. 25 de maio de 2020).

No Município tenho um grupo de WhatsApp com a turma desde o dia 22 de abril. Disponibilizava semanalmente as atividades no drive da escola e para meu grupo printava cada atividade e postava como imagem. Só a partir de junho é que "oficialmente" iniciamos o trabalho e passamos a planejar as atividades em grupo, juntamente com as demais professoras do mesmo ano. Essas atividades são postadas no site da SME, mas toda segunda-feira disponibilizo no grupo de WhatsApp da turma. Algumas famílias recebem as atividades no formato de imagem por não conseguirem abrir arquivos. Tiro dúvidas e corrijo as devolutivas das crianças, individualmente ou no grupo. Também realizo grande parte das atividades usando o formulário do google e o gravador de tela. (V. julho de 2020. Narrativa - Atuação no momento atual).

As vivências de V. ao lançar mão de recursos tecnológicos como uso do Google Drive e do WhatsApp, apontam por um lado para o quanto essas inovações alteram as formas de comunicação, as organizações e instituições, as funções e qualificações profissionais, os comportamentos, os valores e os modos de pensar tanto do indivíduo quanto da sociedade (ALMEIDA; SILVA, 2011). Por outro lado, os desafios e dificuldades vividas pelas professoras na concretização do ERE impediram a condução de processos de ensino e aprendizagem significativos com o uso dos recursos tecnológicos. No depoimento de V., apresentado anteriormente, embora ela se mobilize para incluir todos os estudantes, o foco do ensino reside “nas informações e nas formas de transmissão dessas informações” (MOREIRA; SCHLEMMER, 2020, p. 9) e no compartilhamento das atribuições docente com as famílias.

O estabelecimento desta condição apresenta-se como paradoxal e certamente dilemática para os docentes, posto que estudantes e professores têm direito de aprender a ler as “novas” mídias - “estar conectado, saber ler, participar do mundo digital e da rede de comunicação, são condições prévias e alimentadoras da liberdade - e por ela alimentadas” (ALMEIDA; SILVA, 2011, p.8). Afinal, a digitalização apresenta oportunidades de “inovação, de integração, inclusão, flexibilização, abertura, personalização de percursos de aprendizagem, mas esta realidade exige uma mudança de paradigma” (MOREIRA; SCHLEMMER, 2020, p. 6).

O foco no ensino também pode ser observado na estratégia de organização do ERE utilizada por Na. Ela relata que a interação estabelecida com as crianças e famílias no período não oficial das aulas deu subsídios para que ela elaborasse uma nova forma de organizar esse ensino. Nesse período a professora desenvolveu a seguinte dinâmica:

[...] comecei a encaminhar as atividades planejadas para a turma, considerando o aprimoramento dos temas que estavam sendo desenvolvidos em sala. Durante os primeiros dias houve um diálogo com os pais sobre as atividades, a quantidade e a dinâmica proposta. Identifiquei uma dificuldade para concluir as tarefas, para que todos estivessem alinhados, optei por não enviar a atividade da sexta feira, propiciando um tempo para que finalizassem as atividades pendentes. Um cuidado essencial no planejamento dessas atividades era a autonomia do aluno para realizá-las, facilitando o acompanhamento dos responsáveis e principalmente a proposta de atividades que não precisassem de impressão para serem realizadas, atingindo o maior número de alunos possível. [...] Neste período, mantive o contato com alguns responsáveis, conversando sobre como as crianças estavam realizando as atividades, considerando as contribuições, resolvi mudar um pouco a dinâmica no retorno deste “recesso”, pensando em menos quantidade e mais interatividade. Até então eu seguia o horário das atividades presenciais, com uma média de 3 disciplinas por dia. (Na. Diário. 25 de maio de 2020).

No período letivo oficial, Na. fez algumas adaptações na dinâmica desenvolvida. Em cada dia da semana ela disponibilizava atividades de determinada disciplina, preocupando-se com a qualidade das situações de ensino e aprendizagem e não com a quantidade. Na. relatou que as atividades propostas eram elaboradas em conjunto com outras professoras.

Na nova proposta, passei a definir um tema gerador para a semana e enviar atividades de uma disciplina por dia. Para atrair a atenção dos alunos e matar um pouco da saudade, reiniciei o envio gravando um vídeo curto para as crianças solicitando o esforço e colaboração da turma, reconfigurando as atividades. Confesso que foram poucos segundos, mas que me deu um grande trabalho, fazer vídeo não é tão simples assim, não pela técnica ou equipamento, mas pela dificuldade na exposição deste tipo de mídia. Contudo, achava essencial essa interação. Tenho acompanhado a devolutiva das crianças e percebido que eles têm se interessado nas atividades de artes e experiências propostas para as sextas, a redução na quantidade de atividades também teve um impacto positivo no acompanhamento dos responsáveis, não sobrecarregando as famílias que estão com diversas demandas. Considero que o diálogo com os pais e o respeito às solicitações tenha melhorado ainda mais o vínculo com as famílias e a produtividade das atividades desenvolvidas em casa. Neste caso, o ditado “menos é mais” tem se confirmado. [...] proposta era manter o contato com as famílias e os alunos, enviando atividades que eles possam desenvolver com o máximo de autonomia possível, lendo e refletindo sobre alguns temas relevantes para o ano, relacionados principalmente com Português, Matemática e Ciências, deixando mais tempo para realização para não sobrecarregar as famílias e promover um aproveitamento qualitativo. [...] Umas das falhas que reconheço foi não ter dedicado mais atenção aos meus alunos da educação especial, embora na sala tivesse investido muito nas interações com eles, tive dificuldade de manter esse acompanhamento virtualmente. (Na. Diário. 25 de maio de 2020)

[...] meu grupo [de trabalho] complementa as atividades [divulgadas no site da SME] com blocos de atividades que imprimimos, encaminhamos as atividades aos pais diariamente pelo WhatsApp, tirando dúvidas e corrigindo. Também realizo encontros com os alunos da minha turma no Google Meet. (Na. Julho de 2020. Narrativa - Atuação no momento atual).

As estratégias de organização do ERE criadas pelas professoras se pautaram fortemente no contexto de atuação e reforçam que se trata de um período com o objetivo de propiciar acesso temporário ao ambiente educacional em um momento de crise, que revela o empenho individual e solitário de cada uma delas em construir formas eficientes para ensinar.

Via de regra, observou-se que as professoras dos anos iniciais consideravam importante a manutenção de encontros síncronos com os alunos (apesar de não ser uma atividade obrigatória da SEM). Havia também a preocupação com os familiares para que ajudassem as crianças na realização das atividades escolares, fato que exigiu articulação com as famílias e que ocasionou aumento do vínculo das professoras com esses familiares e do sentimento de empatia das professoras (elas tinham cuidado com a quantidade de atividades a serem enviadas e com suas características que poderiam demandar mais ou menos auxílio do adulto). Entretanto, em comparação com a Educação Infantil, nos anos iniciais por se tratar de crianças mais independentes foi possível lançar mão de estratégias mais sistematizadas e que não necessitem tanto do apoio de um adulto. Outra preocupação foi a de que todos conseguissem acessar de fato as atividades. Para isso, as professoras também disponibilizavam os materiais, via WhatsApp, e em alguns casos, em um formato (extensão) diferenciado e impressos.

A professora-mentora V. também atuava na rede estadual de ensino. Essa rede demonstrou uma gestão mais coesa diante da pandemia. No mês de março e em meados de abril de 2020, as escolas tiveram um período de férias e de recesso escolar para que a Secretaria Estadual de Educação (SEE) traçasse um plano de ação e para que o governo pudesse firmar parcerias com as companhias de telefonia móvel e assim os estudantes obtivessem isenção no uso dos dados móveis ao acessarem a plataforma educacional que seria utilizada pelo governo estadual. Constantemente, a SEE estava em contato com equipes gestoras e professores, via webconferência, para fornecer orientações.

Na rede estadual as crianças acompanhavam diariamente as aulas durante uma hora e meia por meio do Centro de Mídias do Estado de São Paulo (CMSP). Outros meios para acompanhamento das aulas eram: canal digital da TV Educação, TV Univesp, Facebook ou Youtube. A professora organizava de uma a três atividades por semana que deveriam estar em consonância com as aulas e habilidades contempladas pelo CMSP e pelo Currículo Paulista. Também foi possível usar a sala do CMSP para interação com as crianças durante o horário de aula ou o Google Classroom. As plataformas Matific3 e Dragonlearn4 também foram utilizadas.

[...]. Cada aluno dos anos iniciais recebeu quatro apostilas, além de um livro, um gibi da Turma da Mônica e uma ficha de leitura cada. Semanalmente disponibilizo um roteiro de estudos aos familiares e às crianças com os dias da semana e as atividades a serem feitas em cada dia. [...] Organizamos nosso roteiro sempre baseadas nos conteúdos e habilidades que as aulas do Centro de Mídias oferecem. [...] notamos que a cada semana estão conseguindo se organizar e disponibilizar os conteúdos adequados para cada ano com antecedência. (V. Diário. 25 de maio de 2020). (Grifos nossos).

A despeito do caráter emergencial do ERE, mas considerando que o cenário educacional brasileiro é marcado por aspectos de uma tendência educacional neotecnicista (MESQUITA; CRUZ, 2020) é passível questionar até que ponto a proposição de vídeo-aulas e atividades elaboradas por outros profissionais (como as plataformas online supracitadas) não cria o risco de consolidar uma atuação docente instrumental, limitada à aplicação e correção de atividades descontextualizadas. Até que ponto V., nestas circunstâncias, consegue garantir sua autonomia docente ao criar os roteiros de estudo? Por outro lado, nos encontros semanais da mentoria, V. revelou que se sentiu amparada e acolhida pelas ações desenvolvidas pela rede estadual e foi adquirindo confiança para atuar no ERE.

Levando em conta as práticas desenvolvidas pelas professoras, fazendo um paralelo com os dados e a teoria de Shulman (2004) sobre a base de conhecimento para o ensino e a aprendizagem da docência, pode-se destacar que o ensino dos conteúdos de modo remoto demanda:

  1. A mobilização para encontrar outros suportes para determinada forma de representar o conteúdo. Por exemplo, no caso de uma exposição oral, a maioria das professoras buscou como suporte a gravação em vídeo da tela do computador com o áudio da explicação do conteúdo e/ou orientação.

  2. A seleção de outros materiais educativos. Como sites que disponibilizam exercícios interativos.

  3. A construção de outras formas de estruturar e segmentar as aulas. Como exemplo, destacam-se as estratégias encontradas por V. (organização das atividades propostas considerando os diferentes níveis/ritmos de aprendizagem) e Na. (trabalhar com uma disciplina por dia e com poucas atividades sem perder a qualidade).

  4. A consideração da autonomia da criança para acessar as atividades e realizar as tarefas propostas e incluindo a seleção de qual atividade seria realizada, como no caso da professora V.

A avaliação do processo de ensino e aprendizagem foi um aspecto pouco destacado nos depoimentos das professoras. Ao final do ano de 2020, esse aspecto se mostrou, aos poucos, presente nos encontros síncronos do programa de mentoria quando as professoras-mentoras se questionavam: Como saber se é de fato a criança que está realizando as atividades? Como avaliar de forma remota? Quais critérios devo utilizar? Discutiram que é preciso, então, analisar qual deve ser o foco da avaliação no período de ensino remoto e que isso requer um processo coletivo e cauteloso envolvendo as redes de ensino, de análise e construção conjunta de um plano de ação.

Um novo sentido à prática docente: algumas considerações

Diante do desafio do ensino remoto emergencial as professoras-mentoras se envolveram em um processo intencional e estratégico para a construção de novas práticas, buscando ir além de meramente transpor o ensino presencial nas atividades remotas, embora em alguns casos a organização das aulas e práticas presenciais fosse a base das propostas. Muitos desafios perpassaram esse processo, mas a busca, revestida de resistência, por criar possibilidades e potencialidades para que as crianças tivessem um ensino digno em um contexto adverso, esteve presente, e revelam o compromisso das professoras com a atividade profissional.

Para ir além de práticas remotas emergenciais, pode-se fazer um paralelo com Carrillo e Flores (2020)5 quando as autoras alertam que é necessário reconhecer as particularidades do ensino e aprendizagem online e suas implicações e que sejam construídas estruturas de apoio de instituições de ensino superior em parceria com governos e organizações buscando a equidade e inclusão (CARRILLO; FLORES, 2020). No caso da Educação Básica compreende-se que além dos gestores escolares, professores e estudantes, as famílias também precisam de apoio para se adaptarem a esse contexto, afinal, trata-se de um processo que envolve tempo e etapas diversificadas.

Vale destacar que as professoras também revelam práticas de ensino remoto que não são online, como a impressão dos materiais utilizados pelos estudantes e o envio de cartas pelo correio.

No que cabe aos aspectos que propiciam a exclusão e a desigualdade do ensino online, além daqueles associados ao acesso aos recursos tecnológicos e à complexidade do ambiente familiar (no caso do ensino remoto emergencial), há fatores pedagógicos, tais como, definição de objetivos claros, propostas coerentes e flexíveis, acompanhamento e avaliação consistentes e claros, e ainda os relacionados aos diferentes níveis de interação e engajamento (CARRILLO; FLORES, 2020).

A natureza do ensino online tem especificidades, não se caracterizando em ser um espelho da aula física, portanto, em seu interior as funções e competências docentes também possuem particularidades. Nobre et al. (2021, p. 85) asseveram que “a aprendizagem digital tende a reverter os papéis habituais que cabem ao aluno e ao professor no processo educativo” e requer também, “a criação, o intercâmbio e novas formas mais interativas de produção de conhecimento”. O ensino online demanda do professor, dentre outros conhecimentos, habilidades e atitudes, a competência digital compreendida como:

[...] o conjunto de conhecimentos, habilidades, atitudes (incluindo habilidades, estratégias, valores e conscientização) que são necessários ao usar as tecnologias da informação e comunicação e as mídias digitais para executar tarefas; resolver problemas; comunicar; gerenciar informações; colaborar; criar e compartilhar conteúdo; e construir conhecimento de forma eficaz, eficiente, adequada, crítica, criativa, autônoma, flexível, ética e reflexiva para o trabalho, o lazer, a participação, a aprendizagem, a socialização, o consumo e o empoderamento (FERREIRA, 2012, p. 3-4, tradução nossa).

Nesse cenário educativo digital atribui-se ao professor “as funções de motivador, de criador de recursos digitais, de avaliador de aprendizagens e de dinamizador de grupos e interações online” (NOBRE et al., 2021, p. 85), promovendo e incentivando a construção de percursos de aprendizagem autônomos e criando um ambiente de comunicação que conecte e motive os estudantes, se constituindo como um espaço de presença docente e dos colegas.

Em um terreno pantanoso e nebuloso, como o ERE e o retorno às atividades presenciais, é necessário buscar compreender essas particularidades. Tal compreensão demanda apoio e planejamento coletivo e específico considerando as estratégias e ferramentas a serem utilizadas e reflexões críticas sobre a permanência ou não dessas novas práticas. No caso da educação infantil evidencia-se o foco na interação com a criança e o adulto tendo em vista o retorno às aulas presenciais. Nos anos iniciais as professoras, de certo modo, seguiram uma proposta pedagógica pautada nas experiências individuais. Naturalmente, a etapa de ensino influencia o desenvolvimento das práticas. As professoras de turmas de crianças com maior autonomia aparentemente conseguiram ter mais efetividade no desenvolvimento do processo de ensino e aprendizagem com um propósito mais claro.

Tendo em vista um cenário complexo, incerto, fugaz e confuso notamos um novo sentido das práticas das professoras investigadas a partir da intencionalidade dos seguintes aspectos e da promoção de características e princípios destacados, respectivamente, por Gatti et al (2019) e Pérez Gómez (2019): i. Pensamento especializado e compreensão de contextos específicos e diversidades dos alunos, levando em conta seu desenvolvimento cognitivo, social e emocional e os conteúdos a serem ensinados; ii. Utilização de meios tecnológicos de comunicação diversificados resultando em uma comunicação eficaz; iii. Valorização do trabalho coletivo e dialógico; iv. Tomada de decisões em situações de incerteza; v. Proposição de práticas alternativas e resolução de problemas em situações desconhecidas.

Conclusões

Os dados evidenciam que a natureza do ensino remoto emergencial apresentou outras atribuições ao docente referente às dimensões: i. relação escola e família: estreitar o vínculo, ampliar o conhecimento do contexto de vida das famílias, usar diferentes meios de comunicação e ferramentas online ou não para facilitar o acesso à informação e às atividades educativas, organizar uma parcela do horário de trabalho docente compatível com a disponibilidade das famílias para acompanhar as crianças, ii. inerente ao processo educativo: compartilhar a ação de mediação do processo educativo com as famílias, utilizar diferentes ferramentas tecnológicas digitais ou não digitais para propiciar diferentes níveis de interação e engajamento, lançar mão de formas não usuais de representação do conteúdo e reorganizar as situações educativas de acordo com o contexto.

Os relatos das professoras-mentoras também revelam condições de trabalho diversificadas e adversas, tais como: a falta de apoio e escassez de orientações por parte da SME, a perda de espaço coletivo de diálogo com os pares, a sobrecarga de trabalho e a necessidade de novas aprendizagens sobre ensinar.

Esse período inesperado e desafiador aponta para a relevância de análises e diálogos entre as diferentes instâncias/esferas de poder, no caso: Ministério da Educação, Secretarias de Educação Estadual e Secretarias Municipal, Direção de cada escola com seus professores e comunidade escolar para a definição de diretrizes e procedimentos para operacionalização das ações que se mostram necessárias. Afinal, é válido lembrar que, independente do contexto, soluções "únicas" não se mostram viáveis e transformar o professor em executor de tarefas significa expropriar seu papel de protagonista. Nesse processo é fundamental oferecer condições de trabalho adequadas ao ensino remoto e ao contexto de pandemia; é inadmissível aceitar um trabalho que exige a realização individual de um conjunto de tarefas desconhecidas, sem apoio e sem diálogo com os pares (aquele que sozinho grava as aulas e as edita, disponibiliza aos estudantes, aquele que sozinho planeja as tarefas e edita o ambiente virtual etc.). Além disso, é necessário respeitar os horários de trabalho, ter cuidado com o excesso de burocratização, isto é, otimizar o registro das atividades realizadas. Ademais, o contexto analisado indica que o professor não pode ser responsabilizado pelas dificuldades enfrentadas no ensino remoto e nem pelos seus resultados.

Todavia os dados também revelam que o compromisso das professoras-mentoras com seus alunos se mantém e muitas buscam trilhas paralelas para realizar o que acreditam ser importante. As ações das professoras experientes ilustram suas formas de resistência. Observou-se também que as reuniões semanais do programa de mentoria se converteram em espaços em que esses aspectos são discutidos e analisados tendo em vista a atuação dessas professoras experientes nas atividades de ensino.

Considerando os desafios vividos e as práticas pedagógicas desenvolvidas no ERE e o contexto de retorno às atividades escolares presenciais (retorno parcial no ano de 2021 e previsão de retorno integral em 2022) é imprescindível recuperar qual é a função social da escola, das interações, do ensino, do conhecimento e do trabalho docente no contexto da pandemia e no pós-pandemia (GATTI, 2020).

Kramer (2020) alerta que as escolas de educação infantil estão desadaptadas e as crianças irão desejar brincar muito e terão um novo aprendizado. “Os adultos vão ficar preocupados com os horários, as rotinas de funcionamento, tensos e querendo trabalhar com o currículo, com as Bases, Diretrizes, com os Parâmetros, e as crianças vão querer brincar [...]” (KRAMER, 2020, p. 789).

Também é essencial questionar e investigar se e como o currículo escolar alcançou todos os estudantes no período do ERE e na retomada das atividades presenciais em 2021. Conversas recentes com professoras que participaram da mentoria denunciam a desigualdade na distribuição do conhecimento decorrente do ERE e evidenciam a necessidade de acolhimento afetivo e pedagógico dos estudantes.

Diante disso é fundamental a construção de práticas escolares com vistas ao desenvolvimento de situações de ensino e aprendizagem inclusivas, investigativas, interdisciplinares e interculturais. (GATTI, 2020). Sendo necessário consolidar planejamentos flexíveis e diversificar as possibilidades de dinâmicas pedagógicas.

Por fim, ressalta-se que os dados analisados colocam um recado para a área de formação de professores: é preciso se voltar para a formação docente para momentos emergenciais. Mais especificamente, considerando a discussão realizada neste artigo, demanda-se discutir e instrumentalizar os futuros professores e os professores em exercício para o uso dos recursos tecnológicos no ensino presencial e online.

Referências

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SOBRE AS AUTORAS

1Tais análises são apresentadas em outro estudo.

2Possibilita a conversa de forma remota e a gravação de vídeos utilizando a câmera do computador, voz e tela.

3Plataforma online que disponibiliza exercícios interativos com conteúdos matemáticos.

4Plataforma online que disponibiliza exercícios interativos de diversos conteúdos.

5Carrillo e Flores (2020) discutem práticas de ensino e aprendizagem online no ensino superior, entretanto, algumas considerações das autoras podem ser importantes para se pensar sobre o ensino remoto na Educação Básica.

Recebido: 14 de Julho de 2021; Aceito: 31 de Janeiro de 2022

Ana Paula Gestoso de Souza. Doutora em Educação, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar); Universidade Federal de São Carlos - Brasil; Programa de Pós-Graduação em Educação; Grupo de Pesquisa Estudos sobre a docência: teorias e práticas. Contribuição de autoria: participação em todas as etapas do estudo e da escrita do manuscrito. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2662760426985944

Aline Maria de Medeiros Rodrigues Reali. Doutora em Psicologia, Universidade de São Paulo (SUP); Universidade Federal de São Carlos - Brasil; Programa de Pós-Graduação em Educação; Grupo de Pesquisa Formação básica e continuada de professores; Bolsista de Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2. Contribuição de autoria: participação em todas as etapas do estudo e da escrita do manuscrito. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3250195451890332

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