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Revista Práxis Educacional

versão On-line ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.18 no.49 Vitória da Conquista  2022  Epub 20-Jun-2022

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v18i49.10532 

Artigos

AS CONCEPÇÕES DE JUSTIÇA DO PROGRAMA MAIS EDUCAÇÃO A PARTIR DA TEORIA TRIDIMENSIONAL DE NANCY FRASER

THE CONCEPTIONS OF JUSTICE OF THE MORE EDUCATION PROGRAM BASED ON THE THREE-DIMENSIONAL THEORY OF NANCY FRASER

LAS CONCEPCIONES DE JUSTICIA DEL PROGRAMA MÁS EDUCACIÓN A PARTIR DE LA TEORÍA TRIDIMENSIONAL DE NANCY FRASER

Ana Maria Clementino1 
http://orcid.org/0000-0001-7111-3369

Dalila Andrade Oliveira2 
http://orcid.org/0000-0003-4516-6883

1Universidade Federal de Minas Gerais - Belo Horizonte, MG, Brasil; anamcjs@gmail.com

2Universidade Federal de Minas Gerais - Belo Horizonte, MG, Brasil; dalilaufmg@yahoo.com.br


RESUMO:

O Programa Mais Educação, criado pelo governo Lula em 2007 com o objetivo de fomentar a educação integral dos estudantes por meio do apoio às atividades socioeducativas e ampliação da jornada educativa diária, carregava consigo diferentes concepções de justiça social e escolar. Ao observar alguns de seus pressupostos, foi possível identificar concepções alinhadas com os princípios de justiça demandados pelas políticas de reconhecimento cultural, redistribuição econômica e representação política. Dessa forma, o intuito deste artigo foi analisar as concepções de justiça que envolveram direta ou indiretamente o Programa Mais Educação a partir da perspectiva da teoria tridimensional de Nancy Fraser por meio de um levantamento documental e revisão bibliográfica.

Palavras-chave: Programa Mais Educação; justiça social; educação integral.

ABSTRACT:

The Mais Educação Program created by the Lula government in 2007 with the objective of promoting the integral education of students by supporting socio-educational activities and expanding the daily educational journey, carried with it different conceptions of social and school justice. By observing some of its assumptions, it was possible to identify conceptions aligned with the principles of justice demanded by the policies of cultural recognition, economic redistribution and political representation. Thus, the purpose of this article was to analyze the conceptions of justice that directly or indirectly involved the Mais Educação Program from the perspective of Nancy Fraser's three-dimensional theory through a documentary survey and bibliographic review.

Keywords: Mais Educação Program; social justice; integral education.

RESUMEN:

El Programa Mais Educação creado por el gobierno Lula en 2007 con el objetivo de promover la formación integral de los alumnos apoyando actividades socioeducativas y ampliando el cotidiano educativo, traía consigo diferentes concepciones de justicia social y escolar. Al observar algunos de sus presupuestos, fue posible identificar concepciones alineadas con los principios de justicia exigidos por las políticas de reconocimiento cultural, redistribución económica y representación política. Así, el propósito de este artículo fue analizar las concepciones de justicia que involucran directa o indirectamente el Programa Mais Educação desde la perspectiva de la teoría tridimensional de Nancy Fraser a través de un levantamiento documental y una revisión bibliográfica.

Palabras clave: Programa Mais Educação; justicia social; formación integral.

Introdução

As políticas de educação integral e em tempo integral observada nas últimas décadas, assumiram um importante papel como política positiva para enfrentamento das desigualdades sociais e, consequentemente, das desigualdades educacionais. O Programa Mais Educação (PME), criado no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores - PT) com o objetivo de fomentar a educação integral dos estudantes por meio do apoio às atividades socioeducativas, ampliando a jornada educativa diária, carregava consigo concepções de justiça social e escolar que apresentavam preocupações com a diversidade cultural, a proteção integral e a inclusão social dos estudantes.

Ao observar alguns de seus pressupostos, é possível identificar no PME um alinhamento com princípios de justiça demandados pelas políticas de reconhecimento cultural, redistribuição econômica e representação política apresentados na teoria tridimensional de justiça social de Nancy Fraser, apesar de sua teoria não se tratar diretamente do campo da educação1.

Com o intuito de explorar as concepções de justiça que envolveram direta ou indiretamente o processo de formulação e implementação do PME, será apresentada nesse artigo uma análise do Programa a partir da perspectiva da teoria tridimensional de justiça social de Fraser demonstrando o entrelaçamento entre diferentes noções vinculadas às dimensões econômicas, culturais e políticas.

A teoria tridimensional de justiça social de Nancy Fraser

A discussão sobre justiça social ganhou novos contornos nas últimas décadas. Para Cuenca (2012, p. 84), isso se deu pela constatação de sua pluralidade, ou seja, pelo reconhecimento de que é uma categoria que transita entre várias dimensões, sendo menos objetiva do que se pensava e aceitando várias formas de tratamento; o que, de certa forma, levou à renúncia ou ao enfraquecimento do trato normativo-jurídico que predominou por muitos anos no debate sobre o tema, dando espaço para um novo marco teórico que alinha os assuntos políticos à cultura e à economia.

Sob essa nova perspectiva, Nancy Fraser desenvolveu uma teoria sobre justiça social. No livro publicado “Escalas de justiça” (2008), a autora admite que, atualmente, a justiça social enfrenta novos problemas. É somada à dimensão econômica, que sempre esteve na base das reflexões sobre o tema, a dimensão cultural e política. De acordo com Cuenca (2012, p. 84), conceitos como reconhecimento, diferenças e identidades foram incorporados ao debate sobre justiça e igualdade no início dos anos 1990, a partir do texto de Charles Taylor (1993) ‘O multiculturalismo e a política de reconhecimento”. Fraser, assim como Axel Honneth, retrabalhou, cada um a seu modo, o tema do reconhecimento como sendo central para uma teoria crítica da sociedade contemporânea.

A teoria do reconhecimento, inicialmente desenvolvida, entende os conflitos sociais como buscas interativas pela consideração intersubjetiva de sujeitos e coletividades (MENDONÇA, 2007, p. 170). As demandas por reconhecimento fariam parte de um processo recente de evolução da sociedade capitalista caracterizada por uma nova configuração da ordem mundial globalizada e multicultural, na qual as lutas por redistribuição dão lugar paulatinamente às lutas por reconhecimento (MATTOS, 2004, p. 144).

Fraser acredita que a justiça deve ser alcançada através da realização de arranjos sociais, de modo a permitir que todos os indivíduos participem como pares na vida social. Desse modo, superar a injustiça significa desmantelar os obstáculos institucionalizados que impedem alguns sujeitos de participarem, em condições de paridade com os demais, como parceiros integrais da interação social (FRASER, 2009, p. 17). Ainda aponta duas maneiras bem genéricas para a compreensão da injustiça. A primeira delas, a injustiça econômica, radica-se na estrutura econômico-política da sociedade, podendo ser caracterizada pela:

Exploração (ser expropriado do fruto do próprio trabalho em benefício de outros); a marginalização econômica (ser obrigado a um trabalho indesejável e mal pago, como também não ter acesso a trabalho remunerado); a privação (não ter acesso a um padrão de vida material adequado), entre outros (FRASER, 2006, p.232).

Enquanto a segunda forma de injustiça é cultural ou simbólica, radicada nos padrões sociais de representação, interpretação e comunicação, como:

A dominação cultural (ser submetido a padrões de interpretação e comunicação associados a outra cultura, alheios e/ou hostis à sua própria); o ocultamento (tornar-se invisível por efeito das práticas comunicativas, interpretativas e representacionais autorizadas da própria cultura); e o desrespeito (ser difamado ou desqualificado rotineiramente nas representações culturais públicas estereotipadas e/ou nas interações da vida cotidiana) (FRASER, 2006, p.232).

Para discutir justiça, é preciso se atentar para a redistribuição e o reconhecimento, segundo Fraser (2006).

O remédio para a injustiça econômica é alguma espécie de reestruturação político-econômica. Pode envolver redistribuição de renda, reorganização da divisão do trabalho, controles democráticos do investimento ou a transformação de outras estruturas econômicas básicas. Embora esses vários remédios difiram significativamente entre si, doravante vou me referir a todo esse grupo pelo termo genérico “redistribuição”. O remédio para a injustiça cultural, em contraste, é alguma espécie de mudança cultural ou simbólica. Pode envolver a revalorização das identidades desrespeitadas e dos produtos culturais dos grupos difamados. Pode envolver, também, o reconhecimento e a valorização positiva da diversidade cultural. Mais radicalmente ainda, pode envolver uma transformação abrangente dos padrões sociais de representação, interpretação e comunicação, de modo a transformar o sentido do eu de todas as pessoas. Embora esses remédios difiram significativamente entre si, doravante vou me referir a todo esse grupo pelo termo genérico “reconhecimento” (FRASER, 2006, p. 232).

Apesar de a política de reconhecimento e de redistribuição fazerem parte da mesma noção de justiça de Fraser, a autora aponta que frequentemente elas assumem objetivos mutuamente contraditórios. A primeira chama a atenção com frequência para a especificidade de algum grupo buscando a diferenciação, ao passo que a redistribuição visa geralmente abolir os arranjos econômicos que fundamentam a especificidade do grupo, objetivando a desdiferenciação do mesmo. Desse modo, os dois tipos de luta estão em tensão, um pode interferir no outro, ou mesmo agir contra o outro (FRASER, 2006, p. 233). Entretanto, ela admite que a necessidade do entrelaçamento das duas políticas deve ser recorrente, tendo em vista que há pessoas sujeitas à injustiça cultural e à injustiça econômica, necessitando de ambas as políticas, reconhecimento e redistribuição. Por isso, o tratamento desconectado entre as duas dimensões dos conflitos sociais, a econômica e a cultural, preocupa Fraser já que estão normalmente associadas, entendendo que as distinções dos dois tipos de reivindicações, reconhecimento e redistribuição, são apenas analíticas.

O maior desafio para a autora é descobrir como conceituar reconhecimento cultural e igualdade social de maneira que uma demanda não enfraqueça a outra, o que significa teorizar sobre os modos pelos quais as desvantagens econômicas e o desrespeito cultural estão entrelaçados e apoiados um no outro (MATTOS, 2004, p. 145).

A resolução de situações como esta seria o grande dilema da sua teoria. Para tanto, propõe como medidas corretivas das injustiças que atravessam o divisor da redistribuição-reconhecimento políticas de “afirmação” e “transformação”.

Por remédios afirmativos para a injustiça, entendo os remédios voltados para corrigir efeitos desiguais de arranjos sociais sem abalar a estrutura subjacente que os engendra. Por remédios transformativos, em contraste, entendo os remédios voltados para corrigir efeitos desiguais precisamente por meio da remodelação da estrutura gerativa subjacente. O ponto crucial do contraste é efeitos terminais vs. processos que os produzem - e não mudança gradual vs. mudança apocalíptica (FRASER, 2006, p. 236)

Mais recentemente, Fraser (2013, p.750) incluiu a dimensão política à sua teoria, enraizada na constituição política da sociedade, cuja injustiça é a da má-representação ou a falta de expressão política. Tal dimensão diz respeito à natureza da jurisdição do Estado e das regras de decisão pelas quais ele estrutura as disputas sociais, além de ele fornecer o palco em que as lutas por redistribuição e reconhecimento são conduzidas. Focada em questões de pertencimento social e procedimentos que estruturam os processos políticos de contestação, essa nova dimensão diz respeito prioritariamente à representação (FRASER, 2009, p.16).

A redistribuição e o reconhecimento pareciam constituir as únicas dimensões da justiça apenas enquanto o enquadramento Keynesiano-Westfaliano era tomado como pressuposto, mas se mostraram insuficientes no mundo contemporâneo, como relata Fraser (2009):

Seja uma questão de redistribuição seja de reconhecimento, as disputas, que antes se focalizavam exclusivamente sobre o que era devido aos membros da comunidade como uma questão de justiça, agora, rapidamente, se transformam em disputas acerca de quem deve contar como um membro e qual é a comunidade relevante. Não apenas o “o que”, mas também “quem” está em disputa (FRASER, 2009, p. 16).

Portanto, a noção de justiça social de Fraser se apoia sobre a base de uma tríade composta de maneira “equitativamente proporcional” pela redistribuição, o reconhecimento e a representação. Quando alguns desses processos não conseguem se desenvolver ou se veem limitados por decisões de poder, assistimos a formas de desigualdade ou, melhor ainda, de injustiça social (CUENCA, 2012, p. 85). A perspectiva tridimensional da justiça deve, no entanto, manter-se aberta à inclusão de novas dimensões através da luta de classes (FRASER, 2013, p. 751).

A autora aponta ainda a necessidade de um princípio normativo válido capaz de dar conta de todos os gêneros de injustiça, pois, sem esse princípio de unificação, não é possível avaliar reivindicações com implicações multidimensionais. Desse modo, propõe sujeitar cada caso em todas as três dimensões ao princípio normativo inclusivo de paridade participativa.

Conforme esse princípio, a justiça requer estruturas que permitam a todos participar como iguais na vida social. Uma visão de justiça em termos de paridade participativa representa o desmantelamento de obstáculos institucionalizados que impedem que certas pessoas participem no mesmo nível com outros, como parceiros plenos, em ações sociais (FRASER, 2013, p. 752).

Ela chega ao referido princípio ao concluir que as três formas diferentes de injustiça apontadas (econômica, cultural e política) levam a um resultado comum, todas elas violam o princípio de paridade participativa: “em cada caso, alguns atores sociais são impedidos de participar de forma igual com outros em interações sociais” (FRASER, 2013, p. 752).

Assim, não é apenas a substância da justiça, mas também o enquadramento que está em disputa. O resultado, de acordo com Fraser (2009, p. 16), é um desafio maior para as teorias sobre justiça social. Essa concepção de justiça que traz no seu cerne o reconhecimento das diferenças culturais, a redistribuição econômica e a representação política também tem provocado alterações nos princípios de justiça escolar ao embasar questionamentos sobre a orientação vigente de homogeneização curricular e amparar a criação de políticas que visem à inclusão da diversidade na escola, como o PME.

O Programa Mais Educação: novos tempos, espaços e currículos

O debate em torno de um modelo educacional que ofereça uma concepção de educação integral, ou seja, uma educação com responsabilidades ampliadas que contemple as dimensões afetiva, ética, estética, social, cultural, política e cognitiva dos sujeitos não é algo recente no país. Ao longo do século passado, diversos movimentos político-filosóficos no Brasil e no mundo defenderam concepções de educação integral. Por tratar-se de um conceito abrangente, acabou comportando distintas finalidades em decorrência dos contextos que emergiram.

As políticas de educação integral e em tempo integral observada nas últimas décadas, conforme Leclerc e Moll (2012b, p. 97), teriam sido retomadas graças ao reconhecimento de seu papel como política positiva para enfrentamento das desigualdades sociais e, consequentemente, das desigualdades educacionais. O conceito atual resultaria da reavaliação do papel da instituição escolar, ou seja, relaciona-se à busca dos limites e possibilidades de atuação da instituição escolar (CAVALIERE, 2010, p. 06). Dessa forma, o tratamento dado à educação em tempo integral nos últimos anos faria parte de estratégias de combate às desigualdades sociais e escolares. Algumas evidências estariam presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e no Plano Nacional da Educação (2001-2010) ao aproximarem à educação integral e à educação em tempo integral a proteção dos alunos de camadas mais vulneráveis socialmente.

Contudo, foi a partir de providências legais do governo Lula em conjunto com o Poder Legislativo que foram dadas condições efetivas para a ampliação do tempo escolar, prevista desde a LDB/1996 (art. 34), e da oferta da educação integral. Dentre as principais medidas tomadas estava a destinação de recursos financeiros para a jornada em tempo integral dos alunos pela lei do Fundeb e a criação do PME.

O PME foi instituído por meio da Portaria Interministerial n. 17, de 24 de abril de 2007, no âmbito das ações do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), com o objetivo de fomentar a educação integral dos alunos por meio do apoio às atividades socioeducativas, ampliando a jornada educativa diária2 e articulando diferentes ações, projetos e programas nos Estados, Distrito Federal e Municípios.

De acordo com Moll (2013, p. 9), o programa foi implementado como uma estratégia do governo federal para induzir a ampliação da jornada escolar e a organização curricular, na perspectiva da educação integral, visando contribuir para a qualificação das aprendizagens escolares, a diminuição das desigualdades educacionais e a valorização da diversidade cultural brasileira. As linhas gerais do PME teriam sido pensadas pelas Secretarias do MEC, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) e Secretaria de Educação Básica (SEB), a partir das experiências desenvolvidas por Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, à luz da complexidade social contemporânea, e de práticas mais recentes vivenciadas por alguns municípios brasileiros.

A Portaria Interministerial n. 17/2007 orientava que a ampliação do tempo escolar fosse direcionada à formação integral do indivíduo.

Art. 6° O Programa Mais Educação visa fomentar, por meio de sensibilização, incentivo e apoio, projetos ou ações de articulação de políticas sociais e implementação de ações socioeducativas oferecidas gratuitamente a crianças, adolescentes e jovens e que considerem as seguintes orientações: I - contemplar a ampliação do tempo e do espaço educativo de suas redes e escolas, pautada pela noção de formação integral e emancipadora (BRASIL, 2007).

Para isso, a orientação legal convocava o conjunto das políticas públicas a convergirem suas ações para a garantia de direitos das crianças, adolescentes e jovens. A intersetorialidade estava na gênese do PME, concebida pelo Programa como:

A ação conjunta de diferentes políticas públicas, das esferas federal, estaduais e municipais, para atendimento integral das crianças e jovens, envolvendo os diversos ministérios e diferentes iniciativas da sociedade civil, como ONGs e empresas, constituindo redes socioeducativas, que serão capazes de criar outra cultura do educar-formar, usando as potencialidades educativas da comunidade e da cidade (MOLL, 2013, p.10).

Por meio dela, buscava-se construir consensos em torno de metas com as quais todos pudessem se comprometer. Logo, a construção efetiva do PME dava-se em diferentes níveis: entre os gestores dos diversos programas federais e das três esferas de governo, entre as diferentes secretarias em nível municipal e nos territórios por todos aqueles envolvidos na implementação do programa e que tinham proximidade com o cotidiano das crianças e adolescentes (BRASIL, 2009a, p. 27). Além disso, tratava-se de um programa interministerial, do qual faziam parte os Ministérios: Educação (MEC), Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Esporte (ME) e Cultura (MinC), Meio Ambiente (MMA) e a Secretaria Nacional da Juventude da Presidência da República.

O programa não se limitava apenas ao plano educacional, constituindo-se em ação estratégica para garantia da proteção e do desenvolvimento integral de crianças e adolescentes que viviam num contexto de intensas transformações (BRASIL, 2009b, p. 18). Por considerarem que a escola sozinha não conseguiria lidar com essa nova proposta educacional, o PME foi constituído principalmente por meio de redes socioeducativas, com parcerias entre a escola e os diversos setores da sociedade, amparando-se na perspectiva do Movimento das Cidades Educadoras.

Em vista de ideias como essas e reconhecendo os limites espaciais das escolas que o PME adotou o conceito território educativo entre seus princípios, visto como um lugar de vida, de relações, em que o processo educativo confunde-se com um processo amplo e multiforme de socialização. Logo, a formação dos sujeitos da educação é considerada inseparável das relações e transformações ocorridas no ambiente, a partir do entendimento do caráter territorial dos processos educacionais na escola e na cidade (BRASIL, 2010a).

O programa organizava-se dentro, quando havia espaços disponíveis, e fora das escolas, e a ampliação da jornada escolar era entendida como abertura, como aprendizado de um novo olhar sobre o tempo e suas diferentes relações com o território. Com isso, o entorno escolar era considerado pelo PME buscando ressignificar a prática educativa, associando a escola com a vida da comunidade e considerando os saberes emanados do contexto local, mas também dividindo com a comunidade e com as demais instituições próximas a responsabilidade educativa (BRASIL, 2010a, p. 17).

Com o intento de estabelecer um diálogo ampliado entre escolas e comunidades, o PME propunha uma metodologia de troca entre os saberes escolares e os saberes comunitários. O Programa partia da premissa que a educação integral não se limitava ao aumento do tempo e espaço, mas também da ideia de que os estudantes são seres portadores de uma complexa experiência social e merecem atenção diferenciada, pois são fruto de processos igualmente diferenciados (BRASIL, 2009c, p. 14).

De acordo com Moll e Leclerc (2013, p. 300), nesse contexto de encontros humanos e de encontro do território tipicamente escolar com seu entorno - sua comunidade, poderiam ser produzidas as condições para a expressão da diversidade étnica, racial, religiosa, de orientação sexual que constitui os sujeitos; o que poderia acarretar, segundo as autoras, na quebra de imagens fixas no padrão branco, masculino, letrado, urbano, industrial (ainda tão recorrentes na educação) com a entrada dos sujeitos reais com suas histórias, tradições e idiossincrasias, levando a escola a reconstituir as suas matrizes.

Diante disso, o PME propunha uma educação integral intercultural.

A educação intercultural surge no âmbito da luta contra os processos de exclusão social por meio dos diversos movimentos sociais que reconhecem o sentido e a identidade cultural de cada grupo e, ao mesmo tempo, busca constituir-se através do espaço de diálogo/conflito/negociação que possuem como desafio. A educação intercultural desenvolve-se na busca por espaços de interação de grupos diferenciados e enriquece-se neste processo (BRASIL, 2009c, p. 15).

Nessa perspectiva, o diálogo entre a diversidade dos saberes escolares, com relações diretas com o circuito acadêmico, e dos saberes comunitários, que representam o universo cultural local, era algo tido como enriquecedor, desafiando escola e comunidade a se expandirem uma em direção à outra e se completarem.

As escolas contempladas com o PME deveriam cumprir exigências pedagógicas dentro de Macrocampos estabelecidos pelo programa, como: Acompanhamento Pedagógico; Educação Ambiental; Esporte e Lazer; Direitos Humanos em Educação; Cultura e Artes; Promoção da Saúde; Comunicação e Uso de Mídias.

As oficinas do PME eram desempenhadas tanto por estudantes universitários, da EJA e do ensino médio, de acordo com suas competências, saberes e habilidades (BRASIL, 2012). Quanto por oficineiros da comunidade, sem exigência de uma formação acadêmica específica, o que era justificado pela proposta do Programa ligada ao território e aos saberes comunitários.

Como não era uma política universal, alguns critérios de priorização definiam quais as escolas eram consideradas públicos-alvo do programa, como as escolas com baixo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) localizadas em capitais, regiões metropolitanas e territórios marcados pela vulnerabilidade social, que requeriam a convergência prioritária de políticas públicas. Moll (2012, p. 134) destaca que, dessa forma, o PME afirmava o caráter de discriminação positiva e de política afirmativa de suas ações constituindo-se em estratégia coadjuvante no enfrentamento das desigualdades sociais.

As mudanças na legislação educacional brasileira e os aportes oferecidos pelo PME impulsionaram ainda o surgimento de projetos de educação em tempo integral nas redes de ensino no Brasil, acarretando também em muitos desafios para as escolas, tais como: a relação tensa dos novos sujeitos que passaram a integrar as equipes de trabalho das escolas com os docentes regulares e as condições precárias de implementação dos programas devido às condições estruturais das escolas (OLIVEIRA; SANTOS, 2018).

Em 2014 o PME alcançou 58,6 mil escolas e aproximadamente 8,3 milhões de alunos. Mas sua expansão foi prejudicada pelo grande contingenciamento de verbas observado a partir do mesmo ano, segundo mandato de Dilma Rousseff (PT), em função da crise econômica e institucional que passava o governo federal. Sendo extinto no ano 2016 após o golpe que retirou a presidenta do cargo e empossou o então vice-presidente Michel Temer (Movimento Democrático Brasileiro - MDB). Em seu lugar foi criado o Programa Novo Mais Educação, através da Portaria MEC n. 1.144, de 10 de outubro, que colocou fim à política de educação integral vigente ao ter seu objetivo deslocado para a melhoria da aprendizagem em Língua Portuguesa e Matemática no ensino fundamental. Proposta alinhada as políticas de avaliação e de padronização curricular, assim como a reforma do Ensino Médio por meio da lei 13.415/2017 e criação da Base Nacional Comum Curricular (Resolução CNE/CP nº 2/2017 e n. 4/2018). Processo articulado por grandes corporações/reforma empresarial para a educação, consoante com as mobilidades globais de políticas do Movimento de Reforma Educacional Global (HYPOLITO, 2021).

O PME e suas concepções de justiça

Embora a teoria tridimensional de justiça elaborada por Fraser não seja diretamente voltada para o campo da educação, por meio da análise do processo de implementação e desenvolvimento do PME foi possível identificar concepções alinhadas com os princípios de justiça demandados pelas políticas de reconhecimento, redistribuição e representação. Com o intuito de aclarar um pouco mais sobre essas noções de justiça que envolveram direta ou indiretamente o PME foi realizado um levantamento de legislações e documentos que envolviam o Programa.

A seguir estão reunidas algumas das inferências realizadas.

Redistribuição econômica

A redistribuição é categorizada por Fraser (2009) como um termo genérico que agrupa vários remédios para correção das injustiças radicadas na estrutura econômico-política da sociedade, manifestadas em diferentes formas, como a privação de um padrão de vida material adequado. Pode envolver a redistribuição de renda, a reorganização da divisão do trabalho ou mesmo a transformação de outras estruturas econômicas básicas. Nesse sentido, buscou-se identificar, neste artigo, possíveis conexões do PME, tido como uma importante política positiva no enfrentamento das desigualdades sociais e combate à pobreza, com a concepção de justiça redistributiva. Haja vista a sua organização intersetorial preocupada em focalizar o atendimento dos públicos mais vulneráveis, culminando, em 2011, com a articulação do PME com o Programa Bolsa Família, maior programa de redistribuição de renda do país, com o intuito de romper com os ciclos intergeracionais de pobreza das famílias beneficiadas.

O PME, desde sua criação em 2007 até a sua extinção em 2016, demonstrou sua preocupação com inclusão social e proteção integral dos estudantes, apresentando-se como uma política de enfrentamento das desigualdades sociais e, consequentemente, das desigualdades educacionais. Sua elaboração foi realizada considerando preceitos que expressavam essas perspectivas:

CONSIDERANDO que o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, garante às crianças e aos adolescentes a proteção integral e todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, assegurando-lhes oportunidades a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade; CONSIDERANDO a importância da articulação entre as políticas sociais para a inclusão de crianças, adolescentes, jovens e suas famílias, bem como o papel fundamental que a educação exerce nesse contexto; CONSIDERANDO o caráter intersetorial das políticas de inclusão social e formação para a cidadania, bem como a corresponsabilidade de todos os entes federados em sua implementação e a necessidade de planejamento territorial das ações intersetoriais, de modo a promover sua articulação no âmbito local; CONSIDERANDO que, segundo a Política Nacional de Assistência Social, o Estado deve prover proteção social à criança, ao adolescente e ao jovem, bem como a suas famílias, nas situações de vulnerabilidade, risco ou exclusão social, potencializando recursos individuais e coletivos capazes de contribuir para a superação de tais situações, resgate de seus direitos e alcance da autonomia; CONSIDERANDO a situação de vulnerabilidade e risco a que estão submetidas parcelas consideráveis de crianças, adolescentes e jovens e suas famílias, relacionadas à pobreza, discriminação étnico-racial, baixa escolaridade, fragilização de vínculos, trabalho infantil, exploração sexual e outras formas de violação de direitos (BRASIL, 2007).

Isso refletia na organização do Programa marcada por uma gestão intersetorial desenvolvida pela articulação entre o MEC, MinC, MDS, ME, MCT, MMA, da Secretaria Nacional da Juventude da Presidência da República. De acordo com Cunill-Grau (2005), a intersetorialidade remete à integração entre setores diferentes para solucionar problemas comuns, que geralmente não se encaixam nos limites de uma única área de política, atravessando os mandatos das organizações existentes. Dessa forma, havia um reconhecimento no PME da capacidade que cada uma das políticas públicas setoriais possuía na garantia da educação integral das crianças, adolescentes e jovens, assim como para a superação da exclusão social.

Não é demais relembrar que, do ponto de vista dos direitos das crianças e adolescentes, as políticas setoriais se alinham - pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - no compromisso que têm com a garantia da proteção e desenvolvimento integral destes cidadãos. Estes direitos fazem parte da chamada agenda dos “novos direitos sociais”, assim como o são aqueles derivados das agendas do meio ambiente, das questões raciais e étnicas, de gênero, da diversidade sexual, da cultura. Estes ‘novos’ direitos trouxeram para a agenda pública uma complexidade até poucos anos desconhecida dos gestores públicos (BRASIL, 2009b, p. 24).

Novas atribuições sociais foram direcionadas à escola que, além de instituição educadora, tornou-se também “protetora”, acompanhando a tendência das políticas educacionais desenvolvidas no Brasil a partir das reformas educacionais dos anos 1990.

Nesse duplo desafio - educação/proteção - no contexto de uma “Educação Integral em Tempo Integral”, ampliam-se as possibilidades de atendimento, cabendo à escola assumir uma abrangência que, para uns, a desfigura e, para outros, a consolida como um espaço realmente democrático. Nesse sentido, a escola pública passa a incorporar um conjunto de responsabilidades que não eram vistas como tipicamente escolares, mas que, se não estiverem garantidas, podem inviabilizar o trabalho pedagógico (BRASIL, 2009a, p. 17).

O PME, reconhecendo que a educação constitui-se em importante recurso para o rompimento dos ciclos intergeracionais de pobreza, considerava os contextos de vulnerabilidade e risco social como um de seus principais critérios de adesão.

Art. 6° O Programa Mais Educação visa fomentar, por meio de sensibilização, incentivo e apoio, projetos ou ações de articulação de políticas sociais e implementação de ações socioeducativas oferecidas gratuitamente a crianças, adolescentes e jovens e que considerem as seguintes orientações: VIII - desenvolver metodologias de planejamento das ações, que permitam a focalização da ação do Poder Público em regiões mais vulneráveis (BRASIL, 2007).

Tais contextos, marcados pelas violências simbólicas e físicas, cerceariam, segundo Leclerc e Moll (2012a, p. 22-23), as liberdades de crianças, adolescentes e jovens em uma sociedade desigual, na qual as possibilidades de acesso à ciência, à cultura e à tecnologia vinculam-se ao pertencimento de classe, étnico, gênero e orientação sexual.

A relação entre educação integral e pobreza ficou ainda mais estreita a partir de 2011 quando teve início uma articulação entre o PME e o Programa Bolsa Família (PBF). Após um mapeamento do MDS, o PME foi identificado como estratégico para o enfrentamento das situações de vulnerabilidade social das famílias, em especial no desafio da ruptura do ciclo intergeracional da pobreza. Com isso, a articulação dos programas tinha o objetivo de garantir que a qualidade proporcionada pela educação integral fosse oferecida, prioritariamente, para as crianças e adolescentes em situação de pobreza e extrema pobreza, beneficiárias do PBF (XIMENES; MOLL; MACEDO, 2014, p. 84). Articulação que passou a constar nos critérios de adesão do PME a partir de 2012.

O Programa Mais Educação estabelece os seguintes critérios para seleção das unidades escolares em 2012: • escolas contempladas com PDDE/Integral no ano de 2008, 2009, 2010 e 2011; • escolas estaduais, municipais e/ou distritais que foram contempladas com o PDE/Escola e que possuam o Ideb abaixo ou igual a 4,2 nas séries iniciais e/ou 3,8 nas séries finais; • escolas localizadas nos territórios prioritários do Plano Brasil Sem Miséria; • escolas com índices igual ou superior a 50% de estudantes participantes do Programa Bolsa Família; • escolas que participam do Programa Escola Aberta; e • escolas do campo (BRASIL, 2012).

O PBF constituiu-se durante o governo Lula como o principal programa social brasileiro caracterizado pela transferência direta de renda com condicionalidades às famílias em situação de pobreza, com o propósito de proteger e de promover socialmente essa parcela da população brasileira, em três dimensões:

A transferência de renda, que promove o alívio imediato da pobreza; as condicionalidades, que reforçam o acesso a serviços sociais básicos nas áreas de educação, saúde e assistência social; e as ações e programas complementares, que objetivam o desenvolvimento das famílias, como contribuição essencial para que os beneficiários consigam superar as diversas situações de vulnerabilidade (XIMENES; MOLL; MACEDO, 2014, p. 83).

O Programa, além de ter sido uma política de transferência de renda mínima que objetivava o alívio imediato da pobreza, apoiava-se em condicionalidades com objetivos em longo prazo que pretendiam contribuir para o rompimento intergeracional da pobreza, recaindo, desse modo, o foco sobre as crianças, os adolescentes e os jovens das famílias beneficiárias. Dentre as suas condicionalidades, encontrava-se a exigência da frequência escolar dos estudantes de 6 a 17 anos como forma de garantir o acesso e a permanência dessas crianças, adolescentes e jovens no ambiente escolar e, por consequência, contribuir para a formação e autonomia desse grupo.

A partir da parceria entre PME e PBF, ficaram estabelecidas novas possibilidades em termos de financiamento e projeto pedagógico para escolas que recebiam as famílias em situação de pobreza do país. De acordo com Ximenes, Moll e Macedo (2014, p. 89), isso teria sido possível através da identificação das escolas em que estavam matriculados os estudantes beneficiários do PBF verificada nos registros de frequência, realizados bimestralmente pelos setores responsáveis pela condicionalidade de educação do Programa. O cruzamento desse dado com o número total de estudantes por escola, a partir do Educacenso 2011, teria proporcionado a identificação do número de estudantes beneficiários por escola.

A identificação das “escolas maioria PBF” viabiliza, assim, o mapeamento das escolas e territórios onde estão aqueles em maior situação de vulnerabilidade (pobreza e extrema pobreza), pois ainda que a condição de renda seja apenas um dos indicativos de pobreza, há uma relação direta desta com demais situações de vulnerabilidade (XIMENES; MOLL; MACEDO, 2014, p. 89).

Após essa identificação, as ações do PME passaram a ser direcionadas para as escolas que contavam com a maioria de alunos integrantes de famílias beneficiárias do PBF, configurando como parâmetro central de adesão ao PME o critério “maioria PBF”, que, além de buscar promover uma educação diferenciada para os estudantes mais pobres com o objetivo de romper os ciclos intergeracionais de pobreza, acarretou em mais aportes financeiros para as escolas, carentes como seu público.

Um levantamento realizado pela Secretaria Nacional de Renda de Cidadania/MDS em 2012 identificou desigualdades de acesso de infraestruturas entre as escolas “maioria PBF” e as demais escolas públicas brasileiras, já marcadas pela precariedade de suas condições físicas. Enquanto 73% das escolas “maioria PBF” apresentavam sanitário (interno), 90% das demais escolas públicas, excluídas do grupo “maioria PBF”, possuíam sanitário (interno). Das escolas “maioria PBF” analisadas somente 40% tinham água (rede pública), 47% computadores, 14% esgoto (rede pública) e 12% quadra esportiva. Enquanto nas demais escolas públicas, 76% apresentavam água (rede pública), 76% computadores, 51% esgoto (rede pública) e 40% quadra esportiva.

Condições que apresentavam melhoras quando comparadas às escolas “maioria PBF” que participavam do PME com as escolas “maioria PBF” que não aderiram ao PME. A parceria entre os programas teria afetado positivamente nas condições físicas das escolas e fortalecido a perspectiva de atuação intersetorial, pactuação federativa e foco da área educacional, levando em consideração crianças, adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade social, resultando em 2013 na adesão de mais de 32 mil escolas “maioria PBF” no PME, contabilizando 65% do total de escolas participantes do PME (XIMENES; MOLL; MACEDO, 2014, p. 92).

Portanto, ao se vincular ao PBF, o PME assume uma concepção de justiça baseada na redistribuição econômica preocupada com a superação de quadros cíclicos de pobreza que interferem diretamente na má inclusão ou exclusão social de crianças, adolescentes e jovens. Ao aliar-se a uma política de redistribuição econômica considerada uma política corretiva de afirmação tendo em vista que o PBF não promove a transformação da estrutura econômica vigente, o PME pretendeu oportunizar experiências de vida completa para uma população acostumada com a incompletude e com a falta de oportunidades.

Reconhecimento cultural

Observou-se anteriormente que para corrigir a injustiça cultural ou simbólica, arraigada nos padrões sociais de representação e manifestada, por exemplo, pela imposição ou ocultamento de culturas, Fraser (2009) propõe o reconhecimento. O termo reconhecimento agruparia diversos remédios capazes de lidar com tal injustiça, envolvendo ora medidas de revalorização de identidades desrespeitadas, ora de valorização da diversidade cultural, ora de transformação dos padrões sociais de representação vigentes. O PME, ao adotar medidas que visavam uma formação integral que prezava a diversidade dos sujeitos implicados, incorporava a seus objetivos uma concepção de justiça pautada pelo reconhecimento.

O PME surgiu como estratégia do governo federal para induzir a ampliação da jornada escolar no país, prioritariamente dos estudantes de regiões mais vulneráveis, adotando uma perspectiva de educação integral. Através da construção de uma ação intersetorial entre as políticas públicas educacionais e sociais, buscava contribuir, desse modo, tanto para a diminuição das desigualdades educacionais, quanto para a valorização da diversidade cultural brasileira (BRASIL, 2013, p. 4).

Embora a ampliação da jornada escolar constitui-se em uma variável importante para a melhoria da qualidade da educação brasileira tendo em vista que mais tempo no convívio escolar poderia ocasionar em mais tempo de oportunidades educativas, especialmente para crianças, adolescentes e jovens pobres, isso por si só não é garantia do incremento qualitativo do ensino. Assim, o modelo de ampliação de jornada do PME foi pensado com base em sentidos mais amplos de educação com vista à qualificação desse tempo escolar e, por conseguinte, valorizar a diversidade que compõe os sujeitos envolvidos, bem como proteger e promovê-los socialmente. Com isso, pretendia-se ir além do processo de hiperescolarização caracterizado pelo aumento da jornada de trabalho escolar dos alunos em disciplinas específicas, como Matemática ou Língua Portuguesa (BRASIL, 2009a, p. 36), e sugerir uma proposta educacional que ultrapassasse as paredes da sala de aula.

A essência destas propostas que apresentamos, assim como a do PME é a da requalificação da educação, a partir da implementação da Educação Integral, da requalificação das práticas e dos tempos e espaços educativos. Tempos e espaços educativos que incluem os tempos e espaços escolares, mas não se reduzem a eles, e devem incluir, também, os demais tempos e espaços urbanos, não escolares. O direito à educação de qualidade, na atualidade brasileira, não cabe mais apenas na sala de aula (BRASIL, 2010a).

O PME propunha “a reinvenção da escola”, a partir da “reinvenção de seus tempos, espaços e relações”, para a garantia da integralidade do desenvolvimento humano, buscando se diferenciar da organização escolar que persiste no sistema escolar brasileiro e que resulta em: “um ambiente homogêneo, uniformizado que tenta resistir à pressão de diversidade trazida pelo seu público - feito de pessoas diversas, diferentes - impondo padrões idealizados para um aluno médio, padrão” (BRASIL, 2010a, p. 64).

Diante disso, Leclerc e Moll (2012a, p. 23) afirmam que a pauta da educação integral relaciona-se diretamente ao enfrentamento dessa lógica perversa e seletiva que perpassa os sistemas de ensino, estruturados em condições desiguais e participando de modo desigual na distribuição de saberes e de oportunidades, que submeteu historicamente a diversidade cultural brasileira a práticas homogeneizadoras. A construção da escola de tempo e educação integral, tal como a promovida pelo PME:

Passa, substancialmente, pela afirmação de um projeto societário democrático, de inclusão social e de ruptura com as velhas amarras coloniais, que mantêm as simbólicas hierarquias escravocratas para as quais a maioria da população é privada de bens e serviços, a fim de garantir à minoria o que de melhor a sociedade humana é capaz de produzir (MOLL; LECLERC, 2013, p. 297).

Para o PME (BRASIL, 2009a, p. 46), pensar e praticar a educação, como exercício da vida, implicava reconhecer diferentes sujeitos de diálogo presentes no universo social, superar o autoritarismo pedagógico e a homogeneidade cultural para a afirmação e constituição de sujeitos em aprendizagem, fundamento de uma educação democrática e republicana.

A tensão instituidora permanece: estar na escola até os dias de hoje pode representar a possibilidade de imbricar-se na estrutura societária e, ao mesmo tempo, na de homogeneização. Por isso mesmo, o papel da escola na proposição do projeto de Educação Integral deve se constituir a partir da luta por uma escola mais viva, de modo que se rompa, também, gradativamente, com a ideia de sacrifício, atrelada ao Ensino Formal e, por outro lado, de prazer a tudo que é proposto como alternativo ou informal em relação a esse sistema escolar (BRASIL, 2009a, p. 32).

Segundo Mendonça (2017, p. 133), o PME teria instituído um quadro conceitual que considerava a diferença e a diversidade como uma possibilidade de ser e estar na sociedade.

Art. 2oSão princípios da educação integral, no âmbito do PME: VI - a afirmação da cultura dos direitos humanos, estruturada na diversidade, na promoção da equidade étnico-racial, religiosa, cultural, territorial, geracional, de gênero, de orientação sexual, de opção política e de nacionalidade, por meio da inserção da temática dos direitos humanos na formação de professores, nos currículos e no desenvolvimento de materiais didáticos (BRASIL, 2010b).

Por pretender uma educação integral que decorresse da diversidade cultural e educacional brasileira, o PME assumia um formato aberto estruturado pelo diálogo e troca dos saberes comunitários com os saberes escolares.

Os saberes comunitários representam o universo cultural local, isto é, tudo aquilo que nossos alunos trazem para a escola, independentemente de suas condições sociais. Esses saberes são os veículos para a aprendizagem conceitual: queremos é que os alunos aprendam através das relações que possam ser construídas entre os saberes. Os alunos devem, portanto, ser estimulados a usar seus saberes e ideias a fim de formularem o saber escolar (BRASIL, 2009c, p. 37).

Quando utilizamos a expressão saberes escolares, é preciso esclarecer, nos referimos às propriedades e estratégias do fazer e do pensar, aos procedimentos passíveis de produzir uma práxis diferenciada para estudantes em formação. Aqui os saberes escolares se constituem além dos conteúdos específicos de cada disciplina escolar; são também as habilidades, procedimentos e práticas que nos tornam sujeitos formuladores de conhecimentos (BRASIL, 2009c, p. 41).

Por entender que a articulação entre os referidos saberes geraria saberes diferenciados, o PME recomendava aos educadores que reconhecessem as condições culturais da comunidade onde sua escola estava situada e as origens culturais e sociais de seus alunos para então assumir um ponto de vista relacional.

Toda escola está situada em uma comunidade com especificidades culturais, saberes, valores, práticas e crenças - o desafio é reconhecer a legitimidade das condições culturais da comunidade para estimular o diálogo constante com outras culturas. A educação é um dos ambientes da cultura marcada pela reconstrução de conhecimentos, tecnologias, saberes e práticas (BRASIL, 2009a, p. 33).

Partia-se da ideia de que todos os estudantes são dotados de diversas experiências que estão constantemente formulando conhecimento e que suas especificidades merecem atenção. Propunha-se uma educação intercultural vista como um laboratório de experiências culturais, sociais e históricas em que a realidade e o conhecimento adquirem sucessivamente novas formas (BRASIL, 2009c, p. 23).

A experiência de diálogo e construção de saberes entre escola e comunidade poderia ainda constituir uma comunidade de aprendizagem capaz de promover a superação de preconceitos, muitos deles apoiados em estereótipos de classe, raça/etnia, gênero, orientação sexual, geração, dentre outros (BRASIL, 2009a, p. 33).

Para promover um projeto de educação no qual a prática escolar ampliava-se em direção à comunidade, o PME utilizava como estratégia pedagógica a Mandala de Saberes, tentando conceber o diálogo entre diferentes disciplinas, saberes e práticas cotidianas escolares e comunitárias, e estabelecia Macrocampos que contemplavam temas da diversidade brasileira e próximos à realidade social, racial e cultural dos estudantes. Abaixo seguem algumas das atividades que constavam dentro dos Macrocampos3 que envolviam temáticas ligadas à diversidade.

4. DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA 4.2 Relações étnico-raciais EMENTA: Fortalecimento da consciência racial como forma positiva de combate ao racismo e discriminações, oferecendo conhecimento histórico, político, econômico e cultural para a identificação e o reconhecimento da participação dos negros na história, na cultura e no modo de ser e de viver dos brasileiros. 4.3 Relações no campo EMENTA: Reconhecimento do modo de vida no campo e sua diversidade (cultural, étnico-racial, produtiva, de gênero, de sexualidade e ecológica) em suas dimensões econômica, política e cultural entre o campo e a cidade, a questão agrária, a luta pela reforma agrária, movimentos sociais no campo, manifestações culturais camponesas, a economia solidária no campo e desenvolvimento sustentável. 4.4 Diversidade sexual e gênero EMENTA: Incentivo a iniciativas voltadas para a superação do sexismo e da homofobia na escola como um dos mais importantes espaços para se promover a equidade de gênero e a cultura do reconhecimento da diversidade quanto à identidade de gênero e à orientação sexual. Reconhecimento dos direitos sexuais na perspectiva dos direitos humanos. Fomento de uma percepção crítica, entre professores e estudantes, sobre processos de discriminação e estigmatização relacionados a gênero e orientação sexual que ocorrem na escola e na sociedade e que colocam em risco o direito à educação e comprometem as possibilidades de construção da cidadania. 4.6 Culturas e identidades indígenas EMENTA: Promoção do reconhecimento e do respeito à diversidade cultural dos povos indígenas brasileiros, com suas complexas dinâmicas sociais baseadas em conhecimentos ancestrais e valores tradicionais e suas relações com outros povos e a sociedade nacional (BRASIL, 2008). 7.6.7 MEMÓRIA E HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS (direcionado para as Comunidades Remanescentes de Quilombos, mas não exclusiva) Valorização da cultura local e diversidade cultural, história oral, identidade e territorialidade das matrizes africanas no Brasil, história e cultura afro-brasileira e africana, consciência política e histórica da diversidade, fortalecimento de identidade e direitos, ações educativas de combate ao racismo e às discriminações, tendo como subsídio o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para a Educação para as Relações Étnico-raciais (ERER). Apoio às práticas que promovam a afirmação da história da comunidade por meio da história oral, além de ações afirmativas que promovam a identidade da comunidade pela cooperação, socialização e superação dos preconceitos pessoais e coletivos (BRASIL, 2012).

Foi a partir dessa organização pelo diálogo entre escola e comunidade, pela compreensão dos sujeitos como seres portadores de complexas experiências sociais, pelo desejo de romper com a lógica excludente vigente que submete os heterogêneos alunos a uma cultura padronizada homogeneizante e pela valorização da diversidade (cultural, étnico-racial, social, gênero, etc.) que o PME concebia sua noção de justiça baseada no reconhecimento. É importante destacar que, apesar de analisadas separadamente, as dimensões econômicas e culturais estavam totalmente associadas nos pressupostos do PME.

Representação política

Em relação à injustiça política pela má ou falsa representação, Fraser (2009) propõe a representação. Como discutido, a autora afirma que a dimensão política, centrada em questões de pertencimento social e procedimentos que estruturam os processos políticos de contestação, diz respeito à natureza da jurisdição do Estado e das regras de decisão pelas quais ele estrutura as disputas sociais, fornecendo o palco em que as lutas por redistribuição e reconhecimento são conduzidas.

A falsa representação ocorre quando as fronteiras políticas e/ou as regras decisórias funcionam de modo a negar a algumas pessoas, erroneamente, a possibilidade de participar como um par, com os demais, na interação social - inclusive, mas não apenas, nas arenas políticas (FRASER, 2009, p. 21).

Nesse contexto, pode-se destacar o papel dos movimentos sociais na busca pela reparação das injustiças de primeira ordem, relacionadas à falsa representação da política comum, à má distribuição, ao falso reconhecimento e ou decorrentes do mau enquadramento, por meio da reconstituição do “quem” da justiça. Fraser (2009) ressalta a importância de se realizar um enquadramento correto de justiça.

O problema do mau enquadramento tem um caráter mais profundo em função da importância crucial do enquadramento para todas as questões de justiça social. Longe de ter significância marginal, o estabelecimento do enquadramento está entre as decisões políticas mais consequentes. Ao constituir tanto os membros quanto os não membros de uma única vez, essa decisão efetivamente exclui os últimos do universo daqueles a serem considerados dentro da comunidade em questões de distribuição, reconhecimento e representação política-comum. O resultado pode ser uma grave injustiça (FRASER, 2009, p. 22).

A consequência, segundo a autora, é um tipo específico de metainjustiça, em que se negam a esses sujeitos a chance de formularem reivindicações de justiça de primeira ordem em uma dada comunidade política. E assim, desprovidos da possibilidade de formular reivindicações de primeira ordem, eles se tornam não sujeitos em relação à justiça (FRASER, 2009).

Os movimentos sociais podem ainda reivindicar o direito de participar no processo de estabelecimento do enquadramento que Fraser denomina como pós-Westfaliano.

Ao rejeitar a visão corrente, que considera ser o estabelecimento do enquadramento uma prerrogativa dos Estados e elites transnacionais, eles, efetivamente, procuram democratizar o processo através do qual os enquadramentos da justiça são desenhados e revisados. Afirmando o seu direito de participar na constituição do “quem” da justiça, eles, simultaneamente, transformam o “como” - o que eu entendo corresponder aos procedimentos aceitos para determinar o “quem”. Nesse sentido, os movimentos transformativos, em sua atuação mais reflexiva e ambiciosa, demandam a criação de novas arenas democráticas para a formulação de argumentos sobre o enquadramento. Em alguns casos, além disso, eles mesmos criam tais arenas. No Fórum Social Mundial, por exemplo, alguns praticantes da política transformativa criaram uma esfera pública transnacional na qual podem participar como pares, em relação aos demais, no processo de formulação e resolução de disputas acerca do enquadramento. Desse modo, eles prefiguram a possibilidade de novas instituições da justiça democrática pós-Westfaliana (FRASER, 2009, p. 32-33).

Ao realizar um estudo sobre o PME que resultou das discussões e agendas da Secad, uma conquista da luta de movimentos sociais brasileiros, observa-se uma aproximação do Programa com a justiça por representação. Conforme verificado, o PME foi concebido dentro da Secad, que teve sua origem em 2004 a partir de compromissos históricos do PT com os movimentos sociais. Com a criação da Secad, o MEC buscou enfrentar as injustiças que persistiam na educação pública brasileira, ampliando e fortalecendo um conjunto de políticas voltadas para “os grupos sociais historicamente desfavorecidos”, considerados não beneficiados pela expansão do sistema educacional das últimas três décadas (CARREIRA, 2015, p. 153). Partindo da premissa de que as políticas universais são insuficientes para a garantia da transformação desse quadro, o MEC pretendia a conformação das agendas da política educacional por meio do intenso diálogo da Secad com os movimentos sociais.

Carreira (2015, p. 155) aponta que essa forte relação com os movimentos sociais foi afirmada em diversos documentos da Secad, como constitutiva do cerne da nova Secretaria, não devendo ela ser considerada “uma iniciativa benevolente” da gestão em exercício do governo federal, mas, sim, o resultado da forte pressão sobre o poder público pelo direito à educação por parte de organizações populares e movimentos sociais. A Secad foi responsável por dar mais visibilidade às agendas vinculadas às desigualdades sociais e que recebiam tratamento “residual” das políticas universais.

Ao organizar-se por diferentes instâncias permanentes de diálogo e participação de movimentos sociais, pode-se considerar que a Secad constituía-se como uma arena democrática para formulação de argumentos de enquadramento para as questões de justiça no campo educacional. A proposta de educação integral do PME foi construída a partir desse contexto, objetivando a superação das desigualdades e da afirmação do direito às diferenças.

O PME, ao prezar pelos saberes do território nas políticas educacionais, buscava romper com a hierarquia que marca a trajetória da educação e dos sujeitos que nela se implicam, redefinindo o enquadramento da justiça.

As riquezas cognitivas, culturais, os diferentes universos simbólicos e a riqueza da diversidade se chocam com as lógicas lineares e os saberes hierarquizados do currículo escolar. Os grupos locais, detentores de saberes não escolares, trazem a emergência da indignação, de práticas novas, desestabilizadoras porque lidam com outras formas de saberes, nem sempre tão canônicos como os saberes escolares (MENDONÇA, 2017, p. 139).

A educação integral proposta pelo PME partia do binômio educação-território, considerando a formação dos sujeitos da educação como inseparável das relações e transformações ocorridas no ambiente, a partir do entendimento do caráter territorial dos processos educacionais na escola e na cidade (BRASIL, 2010a).

Sob a perspectiva do Movimento das Cidades Educadoras, a educação integral incitava a abertura de um processo de reflexão e de debate público que conduzia ao estabelecimento de um novo contrato social na educação, com obrigações e responsabilidades dos diferentes agentes sociais que atuariam, de fato, como agentes educativos (COLL, 1999 apud BRASIL, 2009a), fazendo com que o PME se organizasse de forma a agregar diferentes instâncias e atores sociais.

Assim, a Educação Integral, em questão, não se restringe à possibilidade de ampliação do tempo que a criança ou o jovem passa na escola, mas à possibilidade de integração com outras ações educativas, culturais e lúdicas presentes no território e vinculadas ao processo formativo. Dessa forma, busca garantir a eles o direito fundamental à circulação pela cidade, como condição de acesso às oportunidades, espaços e recursos existentes, como direito à ampliação contínua do repertório sociocultural e à expressão autônoma e crítica da sociedade e como possibilidade de projeto mais generoso de nação e de país (BRASIL, 2009a, p. 47).

Ao integrar diferentes saberes, espaços educativos, pessoas da comunidade e conhecimentos, o Programa tentava construir uma educação que pressupunha uma relação da aprendizagem para a vida, uma aprendizagem significativa e cidadã (BRASIL, s/d, p.5). Assim, vinculado à educação integral havia o pressuposto do desenvolvimento local e a ideia de formar pessoas que pudessem futuramente participar de forma ativa das iniciativas capazes de transformar o seu entorno.

Ao se entrelaçar a escola à comunidade nas suas múltiplas e complexas escalas territoriais de seu modo de existir, a educação torna-se instrumento de democracia e pode efetivar a construção de condições para cidadania. Educar para a cidadania é possibilitar à criança, ao jovem e ao adulto entender a sociedade e participar das suas decisões, reconhecendo o lugar onde vive, sua escola, seu bairro e sua vizinhança como parceiros de seu desenvolvimento (BRASIL, 2009a, p. 47).

Dessa forma, promover uma formação para a cidadania e emancipadora era uma das ideias centrais do PME de modo a incentivar o engajamento dos alunos diante das questões da sociedade.

Art. 6° O Programa Mais Educação visa fomentar, por meio de sensibilização, incentivo e apoio, projetos ou ações de articulação de políticas sociais e implementação de ações socioeducativas oferecidas gratuitamente a crianças, adolescentes e jovens e que considerem as seguintes orientações: I - contemplar a ampliação do tempo e do espaço educativo de suas redes e escolas, pautada pela noção de formação integral e emancipadora; V - contribuir para a formação, a expressão e o protagonismo de crianças, adolescentes e jovens. (BRASIL, 2007).

Dentre as atividades presentes nos Macrocampos do PME, diversas destacavam em suas ementas o protagonismo juvenil e a noção de cidadania, dimensão central para futura participação dos estudantes nos processos decisórios, almejando, desde já, o engajamento dos alunos para a transformação de sua comunidade.

5. CULTURA E ARTE 5.4 Hip hop EMENTA: Valorização das expressões culturais juvenis como expressões de cidadania, identidade e enraizamento local/global, entre elas o “hip hop”. Estimular o protagonismo juvenil na concepção de projetos culturais, sociais e artísticos a serem desenvolvidos na escola ou na comunidade. 5.11 Rádio escola EMENTA: Utilização dos recursos da mídia rádio no desenvolvimento de projetos educativos dentro dos espaços escolares. Construção de propostas de cidadania engajando os alunos em projetos de colaboração para a melhoria das relações entre as pessoas, que discutam questões ligadas à construção do projeto de vida, sexualidade, saúde, meio ambiente, ao combate a todas as formas de discriminação e preconceito, entre outras (Brasil, 2008).

8. EDUCOMUNICAÇÃO (ensino fundamental e médio) 8.4. Mídias Alternativas EMENTA: Utilização das mídias alternativas em tecnologias informatizadas como tecnologias da educação para o desenvolvimento de projetos de aprendizagem por meio da reflexão crítica e da possibilidade de intervenção na escola e na comunidade. Como ferramentas os Weblogs que podem ser uma das primeiras utilizadas para a construção de um trabalho alternativo (BRASIL, 2009d).

7.6.4 EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS A Educação em Direitos Humanos compreende um conjunto de atividades educacionais que tem a finalidade de promover o respeito de todos os direitos e liberdades fundamentais, contribuindo para a prevenção e combate ao preconceito, discriminação e violências. Essas atividades devem proporcionar conhecimento, habilidades, competências e empoderamento para que os estudantes sejam protagonistas da construção e promoção de uma cultura de direitos humanos. [...] Por meio de múltiplas linguagens artísticas, entre as quais a fotografia, o vídeo, a literatura, a música e a dança, esta atividade se propõe a abordar os direitos humanos de maneira transversal e interdisciplinar, levando os estudantes a refletirem e dialogarem sobre seus direitos e responsabilidades enquanto protagonistas de uma sociedade livre, pluralista e inclusiva, a partir do contexto escolar e social no qual estão inseridos (BRASIL, 2012).

Embora não se configurasse de fato como uma política transformativa ou como garantia de representação, alguns princípios do PME demonstravam anseio por ela. Além de ser fruto de um espaço de representação nascido da luta de movimentos sociais, ao preconizar uma organização aberta que levava em consideração as diversas instâncias e atores sociais, sob uma perspectiva de formação cidadã que visava à participação ativa dos educandos nas decisões e transformações da cidade e na luta por uma sociedade pluralista e inclusiva, o Programa afirmava sua concepção de justiça por representação.

Considerações finais

Ao analisar os diferentes princípios presentes no PME, observa-se um entrelaçamento entre diferentes noções de justiça vinculadas às dimensões econômicas, culturais e políticas. Foi possível realizar uma análise das noções de justiça do PME utilizando a teoria tridimensional de justiça de Fraser, que engloba a redistribuição econômica, o reconhecimento cultural e a representação política. No que tange à correção das injustiças econômicas, as análises apontaram que o PME assume a concepção de justiça pautada na redistribuição ao focar na população mais vulnerável socialmente, articulando-se ao PBF, maior programa de redistribuição de renda do país, preocupado com a superação de quadros cíclicos de pobreza que interferem diretamente na vida de crianças, adolescentes e jovens brasileiros.

Para correção das injustiças culturais, o PME propunha o reconhecimento da diversidade dos sujeitos implicados no processo educacional, seres portadores de complexas experiências sociais e culturais. Para isso, fomentava a oferta de uma educação integral organizada pelo diálogo entre escola e comunidade, apresentando o anseio de mudar com a lógica escolar caracterizada pela difusão de uma cultura universal e homogênea.

No que concerne às injustiças políticas, identifica-se a aproximação do PME com a noção de justiça da representação no processo de constituição do Programa. Como discutido, a proposta de educação integral do PME, objetivando a superação das desigualdades e da afirmação do direito às diferenças, foi elaborada no interior da Secad, que se constituiu como uma importante arena democrática para a formulação de argumentos de enquadramento para as questões de justiça no campo educacional. Ademais, o PME afirmava sua concepção de justiça por representação, ao preconizar uma organização que possuía um formato aberto que considerava diversas instâncias e atores sociais, sob o enfoque da formação cidadã que visava à participação ativa dos estudantes nas decisões e transformações da cidade e na luta por uma sociedade plural e inclusiva.

Referências

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SOBRE AS AUTORAS

1O estudo apresentado nesse artigo integra as análises desenvolvidas na tese de doutorado “As tensões e contradições das políticas educacionais brasileiras dos governos de Lula e Dilma Rousseff: o Ideb e o Programa Mais Educação” defendida em 2019 no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMG.

2A educação básica em tempo integral era a jornada escolar com duração igual ou superior a sete horas diárias, durante todo o período letivo, compreendendo o tempo total que um mesmo aluno permanecia na escola ou em atividades escolares, observado o disposto no art. 20 do Decreto n. 6.253/2007.

3Os Macrocampos e atividades passavam por atualizações anualmente.

SOBRE AS AUTORAS

6CLEMENTINO, Ana Maria; OLIVEIRA, Dalila Andrade. As concepções de justiça do Programa Mais Educação a partir da Teoria Tridimensional de Nancy Fraser. Revista Práxis Educacional, Vitória da Conquista, v.18 n. 49, 2022. DOI: 10.22481/praxisedu.v18i49.10532

Recebido: 29 de Março de 2022; Aceito: 05 de Maio de 2022

Ana Maria Clementino. Doutora em Educação pela UFMG. Pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docen te (Gestrado/UFMG). Contribuição de autoria: Investigação e Escrita - Primeira Redação - http://lattes.cnpq.br/6163058546425740

Dalila Andrade Oliveira. Doutora em Educação pela USP. Professora Titular da Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista do CNPq/PQ1A e FAPEMIG/PPM. Contribuição de autoria: Supervisão e Escrita - Revisão e Edição - http://lattes.cnpq.br/1795516271097895

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