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Revista Práxis Educacional

versão On-line ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.18 no.49 Vitória da Conquista  2022  Epub 04-Jul-2023

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v18i49.8476 

Artigos

O REFORMISMO CAPITALISTA E OS CONTRASSENSOS ENTRE O MOVIMENTO ESCOLA NOVA E A EDUCAÇÃO SOCIALISTA

CAPITALIST REFORMISM AND THE CONTRADICTIONS BETWEEN NEW SCHOOL MOVEMENT AND SOCIALIST EDUCATION

EL REFORMISMO CAPITALISTA Y LOS DISPARATES ENTRE EL MOVIMIENTO ESCUELA NUEVA Y LA EDUCACIÓN SOCIALISTA

Adelson Ferreira da Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-9336-7922

Suzana dos Santos Gomes2 
http://orcid.org/0000-0002-8660-1741

1Universidade do Estado da Bahia - Salvador, Bahia, Brasil; ferreira.adelson@yahoo.com.br

2Universidade Federal de Minas Gerais - Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil; suzanasgomes@fae.ufmg.br


RESUMO:

A educação em face da vida em sociedade modificada pela industrialização do século XX e as implicações decorrentes da ordem social capitalista, nos ideais de trabalho e formação humana, induziram reformas no sistema educacional que perduram, ainda, no século XXI, assentadas, por um lado, na tradição do Movimento Escola Nova e, por outro, na tradição socialista. E, nesse campo de força, as reformas continuam situadas, impondo obstáculos à emancipação humana, à transformação social e à soberania popular. Nessa perspectiva, este artigo examina essa problemática tomando como base duas obras fundamentais: Introdução ao Estudo da Escola Nova, de Lourenço Filho, do século XX e Educação para Além do Capital, de István Mészáros, do século XXI. A primeira referência postula uma revisão crítica do sistema de ensino, por meio de influência de determinações do industrialismo da época; e a segunda, se caracteriza por postular uma ruptura com o tipo de educação forjada dentro da ordem social capitalista e suas determinações reprodutivas. Questiona-se a lógica da dependência, da hierarquização e da verticalização das relações de trabalho do mundo industrial transposta ao campo da educação por meio de arranjos centrados nos acordos da V Conferência Mundial da Escola Nova de 1929. Essa lógica resultou na negação dos modos elementares da vida cotidiana brasileira e, além disso, numa educação adaptada aos ditames do mercantilismo, de uma ética utilitarista e ao estado de coisificação do homem, fragilizado pela subordinação estatal frente ao sistema de produção capitalista e a tirania do autoritarismo político.

Palavras-chave: reformismo capitalista; escola nova; educação socialista

ABSTRACT:

Education in face of life in society modified by 20th century industrialization and the consequent implication of capitalist social order, in the ideals of work and human education, have induced reforms in the educational system that long, still in the 21st century, layered, on one hand, by the tradition of New School Movement, and, on the other hand, by socialist tradition. In addition, in this force field, the reforms continue placed, putting obstacles to human emancipation, to social transformation and to popular sovereignty. The present paper exams this problematics grounded in two fundamental works: Lourenço Filho’s Introdução ao Estudo da Escola Nova [Introduction to the Study of New School] from the 20th century, and István Mészáros’ Education beyond Capital, from the 21st century. It questions the logic of dependency, hierarchization and verticalizacion of work relationship from the industrial world transposed to the educational field by means of arrangement centered mainly of the agreements of the 1929 Fifth International Conference. That logic resulted in the negation of the elementary ways of daily Brazilian life, and besides, in an education adapted to mercantilism dictates, of a utilitarian ethic and to the state of thing of man, fragile by the state subordination of production system and by the tyranny of political authoritarianism.

Keywords: capitalist reformism; new school; socialist education

RESUMEN:

La educación en fase de la vida en sociedad modificada por la industrialización del siglo XX y las implicación decurrentes de la orden social capitalista, en los ideales de trajo y formación humana, han inducido reformas en lo sistema educacional que perduran aunque en el siglo XXI, asentadas por un lado, en la tradición del Movimiento Escuela Nueva, y por otro lado, en la tradición socialista. Y, en eso campo de fuerza, las reformas continúan situadas, imponiendo obstáculos a la emancipación humana, a la transformación social y a la soberanía popular. Ese artículo examina esa problemática tomando como base dos obras fundamentales: Introdução ao Estudo da Escola Nova [Introducción al estudio de la Escuela Nueva] de Lourenço Filho, en el siglo XX y La Educación más Allá del Capital, de István Mészáros, del siglo XXI. El artículo cuestiona la lógica de la dependencia, de la jerarquización y da verticalización de las relaciones de trabajo del mondo industrial transpuesta al campo de la educación por medio de arreglos centrados, básicamente, en los acuerdos de la V Oficina Internacional de las Escuelas Nuevas de 1929. Esa lógica ha resultado en la negación de los modos elementares de la vida cotidiana brasileña y, además, en una educación adaptada a las ditas del mercantilismo, de una ética utilitarista y al estado de cosificación del hombre, fragilizado por la subordinación estatal del sistema de producción y por la tiranía del autoritarismo político.

Palabras clave: reformismo capitalista; escuela nueva; educación socialista

Introdução

Como resultado dos embates sociais do mundo moderno, a “escola nova” tem aspectos elitistas e democráticos; porém, domina na literatura educacional um tipo de análise dualista e mecanicista, que não examina os aspectos contraditórios do desenvolvimento histórico da “escola nova”, tendendo a considerá-la como uma proposta reacionária e, para substituí-la, propõe-se retomar ora o modelo escolar da burguesia liberal do século XVIII, a “escola tradicional”, ora a proposta pedagógica do movimento operário do século passado, a “escola politécnica” (DORE SOARES, 1996). Com base nessa problemática, este artigo analisa alguns aspectos do reformismo capitalista situado entre o Movimento Escola Nova, do século XX e a perspectiva de Educação Socialista do século XXI, em face da vida social modificada pela industrialização. E, nesse contexto problematizam-se as implicações decorrentes da ordem economicista do sistema do capital, nos ideais de trabalho e formação humana, supondo que essas ideias, induziram reformas no sistema de educação que perduram, ainda, no século XXI, assentadas, por um lado, na tradição do Movimento Escola Nova e, por outro, na tradição socialista.

As reformas continuam situadas nesse campo de força, impondo obstáculos à emancipação humana, à transformação social e à soberania popular. Nesse sentido, objetiva-se questionar a lógica da dependência, da hierarquização e da verticalização das relações de trabalho do mundo industrial, transpostas ao campo da educação por meio de arranjos centrados, basicamente, nos acordos da V Conferência Mundial da Escola Nova, de 1929, cuja defesa se dava a partir de uma concepção de educação como ajustamento social. Essa lógica resultou na negação dos modos elementares da vida cotidiana brasileira e, além disso, numa educação adaptada aos ditames do mercantilismo, de uma ética utilitarista e ao estado de coisificação do homem, fragilizado pela subordinação estatal ao sistema de produção capitalista e a tirania do autoritarismo político. Trata-se, portanto, uma pesquisa bibliográfica que procura examinar por meio de uma abordagem histórico-epistemológica, as contribuições presentes em duas obras1 fundamentais para compreensão do pensamento educacional, no Brasil, a saber: Introdução ao Estudo da Escola Nova, de Lourenço Filho, do século XX e Educação para Além do Capital, de István Mészáros, do século XXI. A primeira vem postulando uma revisão crítica do sistema de ensino, influenciada pelas determinações do industrialismo da época; e a segunda, se trata de uma ruptura com o tipo de educação forjada dentro da ordem social capitalista e suas determinações reprodutivas.

Embora haja antecedentes históricos e legislações ainda mais remotas na História da Educação no Brasil, toma-se como ponto de partida, neste artigo, alguns dos pressupostos do Movimento Escola Nova. Trata-se de um movimento reformista a serviço do sistema do capital, que se desenhou em países europeus, asiáticos e nos Estados Unidos com os processos de industrialização do início do século XX. Naquele período, o Movimento Escola Nova procurou atender aos interesses do sistema de produção capitalista. Suas ações não conseguiram fundar os princípios de uma educação que pudesse encaminhar a emancipação política, social e econômica do povo brasileiro. As reformas consistiram, basicamente, na estruturação de um sistema formal de educação adequado para o atendimento das demandas do industrialismo.

Dore Soares (1996) argumenta que o movimento da “escola nova” consistiu em iniciativas diversas com a finalidade de solucionar a crise da hegemonia burguesa no campo da cultura, que se defrontava com a desorganização da “escola tradicional”, cujo princípio educativo humanista que estava fundado sobre a tradição greco-romana entrara em crise. Estava em curso uma reforma da sociedade, em certa medida revolucionária, porque implicava uma mudança histórica. Nesse sentido, se considerada a hipótese, segundo a qual: “[...] toda postura revolucionaria é essencialmente histórica, [na medida em que] se coloca na direção do desenvolvimento da história [...]” (SAVIANI, 2009, p. 36), a guinada da pedagogia da essência para a pedagogia da existência se dá, principalmente, no sentido de preservar a hegemônica da classe dominante. Assim, a partir de meados do século XIX, a burguesia vai estruturar os sistemas nacionais de ensino e advogar a escolarização para todos.

Escolarizar todos os homens era condição para converter os servos em cidadãos, era condição para que esses cidadãos participassem do processo político, e, participando do processo político, eles consolidariam a ordem democrática, democracia burguesa, é obvio, mas o papel político da escola estava aí muito claro. A escola era proposta como condição para a consolidação da ordem democrática (SAVIANI, 2009, p. 37).

A redefinição do papel da escola era, naquele momento, compatível com o desenvolvimento histórico que se apresentava no cenário internacional. O movimento da “escola nova” surgiu no final do século XIX, defendendo o ensino público, gratuito, laico, misto, obrigatório, único, ligado à vida e ao trabalho - princípios que foram advogados durante a Revolução Francesa -, tornando-se uma novidade ao serem retomados num outro contexto, sob grandes crises econômicas, sociais, políticas e ideológicas (DORE SOARES, 1996). É o caso, por exemplo, do Brasil. Nesse país, a educação nova ou progressista passou a ser definida como “a percepção de que a formação de todos os homens não podia obedecer aos mesmos métodos de formação de classe especial de estudiosos, eruditos, intelectuais ou cientistas” (TEIXEIRA, 2005, p. 87).

A diversificação da educação se torna necessária. Porém, que intencionalidades estão pressupostas? Considere o fato de que: “[...] a classe burguesa já não se defrontava com a aristocracia feudal e sim com o movimento operário, cujas lutas para derrocar o despotismo burguês evidenciavam que as promessas liberais e democráticas não se realizaram” (DORE SOARES, 1996, p. 4) e, então, poder-se-ia concluir que o trabalhador está no centro do processo, mesmo destituído de poder decisório.

O trabalhador é uma pessoa historicamente situada no sistema vigente de sua época. Ele é parte da sociedade, logo já está nela incluído com a educação que possui - forjada em suas experiências da vida cotidiana, na sua relação com o sistema produtivo e com as condições de autoprodução da vida material. É com essa educação que o trabalhador se fazer ser social antes mesmo que outrem possa planejar a sua inclusão naquilo que ele é parte constitutiva. A questão fundamental é o modo como esse indivíduo concreto chamado "trabalhador" foi subsumido pelo sistema social que lhe impõe uma educação que o reduz a força de trabalho (SILVA; GOMES, 2019, p. 157.

Os nexos categoriais entre reformismo capitalista, Escola Nova e Educação socialista ficam evidentes em termos de contrassensos, pois, todos aspiram liberdade, igualdade, emancipação, democracia e transformação social à própria maneira. Trata-se de uma forma de relativismo que, por sua vez, produz um comportamento que se opõe à razão numa sociedade classista, excludente e desigual, cujo pacto social tende a ser customizado segundo as características e o personalismo de classe. Nesse sentido, a hipótese de Teixeira é que: “[...] a escola chamada tradicional, com a sua organização, o seu conteúdo, os seus métodos, somente teria eficiência para um tipo muito especial de alunos a que sempre servira, isto é, aqueles [...] que se destinassem a uma vida de estudos literários ou científicos” (TEIXEIRA, 2005, p. 87). Assim, se a escola tradicional não servia à classe trabalhadora, tampouco a escola pública veio a servir para a classe dominante. A realidade do século XXI, no Brasil, nos mostra diuturnamente qual a escola que cada classe frequenta. A educação tornou-se única dentro da classe, consolidando, assim, um típico relativismo social, político e econômico determinando a formação humana.

Na educação formal, os efeitos da primeira guerra mundial chegaram ao Brasil pela via da renovação da escola, especialmente após a V Conferência Mundial da Escola Nova, reunida em Elseneur, na Dinamarca, no ano de 1929. Essa conferência, empenhada em fundar os princípios internacionais de um processo de mudança social decorrente do pós-guerra, corroborava com o postulado de que,

[...] os efeitos do grande conflito imprimiram maior intensidade e velocidade ao processo de mudança social, [dando] ao mundo a consciência de maior e necessária dependência entre os povos e nações e, sobretudo, que seria necessário rever os princípios da educação e suas instituições, para que estas, difundindo-se, visassem à preservação da paz (LOURENÇO FILHO, 1974, p. 25).

Nesse caso, havia o pressuposto de que o mundo não tinha consciência de que a dependência era condição de possibilidade de preservação da paz, parece ter sido sem ressalvas, adotado pelo Movimento Escola Nova, no Brasil. Porém, os termos de tal dependência entre os povos e nações eram muito evidentes para a lógica do capital, na medida em que, a qualidade dependente, foi imposta aos povos e nações que mais sofriam de carência socioeconômica. A sujeição daí decorrente deu base para o estado de subordinação em que se enveredou a Instituição estatal de educação brasileira, não apenas no âmbito de sua concepção formal, mas também no âmbito das políticas educacionais, ambas, submetidas à verticalização das decisões de analistas de organizações capitalistas. Não por acaso, “[...] a capacidade do capital de ordenar a multiplicidade das jornadas de trabalho em um padrão vertical/hierárquico constitui a garantia da aplicabilidade [...] e da difusão do próprio princípio organizacional inerente a ele” (MÉSZÁROS, 2011, p. 622). Essa verticalização se estende a todas as relações sociais e, dentro delas, a todas as potencialidades produtivas do sistema do capital.

O sistema do capital se articula numa rede de contradições que só se consegue administrar medianamente [...] sendo que, na raiz de todas elas encontramos o antagonismo inconciliável entre capital e trabalho, assumindo sempre e necessariamente a forma de subordinação estrutural e hierárquica do trabalho ao capital, não importando o grau de elaboração e mistificação das tentativas de camuflá-la. Para nos limitarmos apenas a algumas das principais contradições a serem enfrentadas, temos: produção e controle; produção e consumo; produção e circulação; competição e monopólio (MÉSZÁROS, 2003, p. 19).

Ora, não estariam, hoje, a educação, o conhecimento, as políticas educacionais e a escola subsumida nesta lógica? Não estaria a escola sendo concebida como instituição análoga à empresa capitalista que gerencia a produção, o controle e o consumo da educação como mercadoria? Segundo Laval (2019, p. 91): “[...] para os defensores da integração total da escola na lógica econômica, a intervenção das empresas foi possível a partir do momento em que os professores [...] compreenderam que a missão deles era adequar a oferta de mão de obra à demanda.” Trata-se da escola do idealismo empresarial que acredita que as empresar devem contribuir para a definição do conteúdo e dos métodos de ensino (LAVAL, 2019). Nesse sentido, propunha-se, então, transpor para as escolas públicas as mesmas técnicas e os mesmos métodos gerenciais que possibilitaram o êxito dos empresários nos seus negócios (SILVA; LAMOSA, 2021).

No âmbito do sistema formal da educação estatal pública, os recursos materiais e intelectuais passam a ser geridos sob a mesma lógica da verticalização - com maior precedência decisória do Estado capitalista - no entanto, com abertura aos comitês do mercado. Dentro do processo de produção gerido pelo sistema capitalista, a educação, assim como o trabalho, é controlada, e lhe pertence como mercadoria. O capital compra a educação formal e reproduz nela a sua ideologia e, sob o domínio do sistema financeiro, o trabalhador adquire a sua qualificação profissional como educação. Essa concepção reducionista de educação, como qualificação para o trabalho, deriva do fato de que: “[...] o capitalismo possui [...] os meios de produção, as matérias-primas, os instrumentos [...] e o dinheiro que pode comprar a força de trabalho, dinheiro este que o trabalhador recebe como salário com o qual compra a própria sobrevivência em sociedade” (PRADO, 2005, p. 15). Comprar a educação proposta pelo sistema capitalista é um dos ‘meios’ de sobrevivência. Esse cenário cria obstáculos quase intransponíveis à educação socialista que, não encontra aderência suficiente ao exercício do seu papel social, pois, dentro da ordem social capitalista, tudo é mensurado pelo critério de utilidade.

Uma das dificuldades da ordem social capitalista é justamente a universalização do critério de utilidade. Os processos subjetivos e de subjetivação, em que os indivíduos estão imersos na sociedade, impõem obstáculos à perspectiva de um critério total de juízo de valor centrado na qualidade ou no caráter do que é útil. A educação, por exemplo, pensada nos termos da emancipação social, da formação humana, do exercício da cidadania e da cognição destinada à aprendizagem para orientação do ser social, sendo este, por sua vez, consubstanciado na mediação - trabalho/natureza/educação/historicidade - escapa a qualquer reducionismo utilitarista, “[...] dadas as limitações e contradições da ordem social orientada para o lucro [...]” (MÉSZÁROS, 2011, p. 620).

A educação potencializa a produtividade, a capacidade de produzir mais com ganhos qualitativos e quantitativos. Mas, não é ela mesma, produção, como se fosse a expressão do resultado da eficiência de qualquer negócio. Ainda assim, “[...] o fetichismo da quantificação [que] domina completamente a dimensão qualitativa do processo de produção” (MÉSZÁROS, 2011, p. 614), avançou também sobre o sistema de ensino formal, sobretudo na gestão. O culto à quantificação, a essa inclinação para perceber e julgar tudo sob a perspectiva da mensuração e da utilidade, é o fetiche do capitalismo. O fato de que a educação possui uma grande variedade de diferenciações qualitativas, essencialmente complexas, centradas no sujeito, limita a precisão da ação linear dos cálculos e das projeções econométricas, mas não está livre da lógica probabilística que controla as circunstâncias factuais em que estão submetidas à estrutura e o funcionamento das instituições de ensino.

O movimento Escola Nova e a educação como ajustamento

De acordo com Dore Soares (1996), no final do século XIX, a atividade econômica monopolista do mercado mundial não podia mais se limitar às fronteiras dos Estados nacionais, fato que, desencadeou o crescimento das disputas entre os diferentes governos dos Estados europeus por novos mercados e fontes de aquisição de matérias-primas, iniciando, portando, uma nova divisão do mundo onde uma outra ideologia, de caráter reacionário e militarista, antiparlamentar e antidemocrático, confundiu-se com o “patriotismo” (DORE SOARES, 1996). No Brasil, aspectos dessa ideologia podem ser verificados na atualidade com a guinada neoconservadora de extrema direita representada principalmente por setores do mundo evangélico, empresarial, militarista e político simpáticos a procedimentos de tendência fascista, neoliberal e oligárquica.

A modernização conservadora consiste numa complicada aliança, por trás das ondas ininterruptas de reformas educacionais, que centraram em torno de compromissos neoliberais com o mercado e um suposto Estado fraco, ênfase neoconservadora acerca de um controle mais forte sobre currículos e valores e "novas propostas de gerenciamento" para instalar formas rigorosas de responsabilidade na escola, em todos os níveis (APPLE, 2005, p. 29. Grifos do autor).

No âmbito específico da educação pode-se destacar uma tendência de avanço dessa ideologia via empresariado. Segundo Silva e Lamosa (2021) o empresariado e suas organizações, entendidos aqui como Aparelhos Privados de Hegemonia empresariais (APHs), têm participado na formulação e difusão das políticas educacionais desde os anos de 1930, e nas últimas décadas vêm produzindo mudanças na forma de atuação por meio de parcerias público-privadas na gestão do trabalho pedagógico, controle, avaliação por resultado e a incorporação da carreira docente aos critérios do mercado. Nesse sentido,

[...] o mercantilismo e a competividade são reflexos deste modo de produção em que a minoria privilegiada pretende naturalizar para - quem sabe? - eternizar. Classificações, testes de inteligência e de aptidões [...] - tudo para estabelecer o preço, [...] não mais a dignidade de ser humano, mas o simulacro de ser simples instrumento - eis a reificação dos seres humanos refletida e legitimada pela escola (OLIVEIRA, 1994, p. 136).

Trata-se de uma escola performática se configurando para funcionar segundo os parâmetros do mercado. Performatividade é uma tecnologia, uma cultura e um modo de regulação que implica julgamento, comparação e exposição, tomados respectivamente como formas de controle, de atrito e de mudança, cujas performances - de sujeitos individuais ou organizações - servem como medidas de produtividade ou resultados (BALL, 2010). Da parte do mundo empresarial, a expectativa de seus programas é que a escola possa realizar como tarefa primordial de suas obrigações específicas, as diretrizes prescritas pelos organismos internacionais.

Não por acaso, o Banco Mundial tem também um papel intelectual no sentido de formular políticas públicas e influenciar os principais grupos e classes dos países periféricos, definindo as orientações das “reformas” realizadas no interior das agências da sociedade política, como o Ministério da Educação, o Conselho Nacional de Educação e às secretarias estaduais e municipais de ensino (SILVA; LAMOSA, 2021). Como pano de fundo do reformismo capitalista, “[...] universaliza-se a tecnificação das relações sociais, [predominando] os fins e os valores constituídos no âmbito da sociedade vista como um complexo espaço de trocas, [afirmando] o reino da racionalidade instrumental, em que também o indivíduo se revela adjetivo, subalterno” (IANNI, 2008, p. 21).

A educação como ajustamento social é um típico enquadramento das consciências nos pressupostos de uma dada hegemonia, seja ela econômica, social, política ou bélico-militar. Já o ajuste social é uma alternativa simbolicamente violenta, mas pouco perceptível aos olhares educados para sentir os efeitos sem conhecer as causas concretas de sua produção. O ajustamento pela via da educação tende a garantir as precondições e as condições de possibilidade de uma hegemonia tornar-se um fenômeno legitimado pela ação popular. A aposta do ajuste social é no inconsciente coletivo, na psicologia das massas, e na autojustificação do fracasso como simples fatalidade. A tentativa é sempre de prevenir o confronto, a pluralidade, a diversidade fora dos contornos da ordem dominante, postulando, como ideal de formação humana, a justa adaptação. Consoante os acordos da V Conferência Mundial da Escola Nova, em 1929, vale destacar, entre aqueles que assinalavam as conquistas gerais do movimento, a presença de,

[...] confronto de várias concepções filosóficas com os princípios e resultados do movimento; conceituação geral da educação como ajustamento da personalidade em face da vida social modificada pela industrialização; e, proposição de todas as formas educativas no sentido da paz, dando-se especial atenção a esse ponto também na formação da personalidade dos educadores, sem dúvida, princípio e fim de toda e qualquer reforma bem concebida (LOURENÇO FILHO, 1974, p. 26).

E essas reformas educacionais dentro da ordem social capitalista limitam a responsabilidade do sujeito na condução de sua própria vida. A cada nova reforma produz-se a falsa consciência de que não apenas o trabalho, mas também a educação dos indivíduos é um processo alheio aos seus interesses particulares e coletivos; que há uma instância superior para cuidar do trabalho e da formação das pessoas deixando-as livres dos infortúnios da vida social. Assim, a opção pela admissibilidade de que não há alternativa às crises da educação dentro de outras crises, ainda, mais avassaladoras, como as do capital, nada mais é do que uma estratégia para justificar medidas reformistas que mantêm em operação - de forma ora oculta, ora explícita - a constância das: “[...] determinações sistêmicas da ordem existente” (MÉSZÁROS, 2008, p. 64), à ordem social capitalista.

O Movimento Escola Nova, no início do século XX, no Brasil, orientou a reconstituição da antiga forma de fazer educação naquele período. Porém, os motivos da reforma não foram, propriamente, o fato de que o Brasil praticava uma educação em desacordo com as necessidades materiais, culturais, simbólicas e sociais de seu povo - embora isso também ocorresse, mas sim, porque estava em desacordo com os interesses da ordem social do pós-guerra, sob o pressuposto de que,

[...] a nação que não quiser fracassar na luta pelo êxito comercial, com tudo que isso implica para a vida nacional e para a civilização, deve cuidar que suas indústrias sejam supridas com uma oferta constante de trabalhadores adequadamente dotados, tanto em termos de inteligência geral como de treinamento técnico (MÉSZÁROS, 2008, p. 69).

Nesse sentido, a reforma, embora necessária, procurava atender demandas principalmente no terreno comercial. O que era muito natural para os agentes estatais do Brasil, dadas às condições históricas. Mas as consequências desse fenômeno reformista não podem passar à revelia da crítica posto que as instituições de educação, estatais e privadas, coexistentes no Brasil, assumiram o ideário de uma educação cuja concepção é a de que a vida social, os processos civilizatórios e de individuação precisam ser baseados no êxito comercial, minando assim, as possibilidades de uma educação emancipatória com tendência socialista. Garantir a oferta de trabalhadores para a indústria consolidou-se como o telos da educação formal. Sua tarefa recebida é garantir a formação técnica em todos os níveis. Todavia, como ficam as mediações críticas no terreno político e nos domínios de conhecimentos como a Religião, a Filosofia, as Artes e as Ciências nos níveis básicos do conhecimento racional? Como preparar a inteligência geral para o enfrentamento individual e coletivo da cotidianidade e as demandas oriundas do senso comum? Como viabilizar a independência das nações menos abastadas, frente ao imperialismo econômico-industrial com uma educação formal centrada na reprodutibilidade técnica e na reprodução da ordem social capitalista?

Os pioneiros do Movimento Escola Nova empreenderam suas análises num contexto de grande eclosão social e econômica que, talvez, no século XX, não havia, ainda, evidências concretas dos rumos da educação em países que estão fora do círculo imperialista. Isso, porque a renovação da escola sob a influência da primeira guerra mundial, ratificada na Conferência de 1929, na Dinamarca, teve sua origem com as

[...] primeiras escolas novas [surgidas] em instituições privadas da Inglaterra, França, Suíça, Polônia, Hungria e outros países, depois de 1880, [época em que] publicaram-se os trabalhos iniciais de observação experimental da aprendizagem e se fizeram os primeiros ensaios de medida das capacidades mentais e rendimento do trabalho escolar, compondo, em 1889, uma entidade de caráter internacional (LOURENÇO FILHO, 1974, p. 24).

Mas eles captavam bem o espírito de sua época, principalmente os constructos econômicos, psicológicos, sociais e pedagógicos que, sob a determinação da ordem social capitalista, foram se consolidando graças ao Movimento Escola Nova. Muitos deles, vigentes ainda no século XXI. Esses constructos, na verdade, se alinhavam com construções puramente mentais, criadas para justificar, quase que miticamente, as reformas do capitalismo enquanto uma forma de organização social universal. Naquele tempo histórico, as particularidades da educação no Brasil pouco importavam, no sentido de construir um projeto educacional centrado nas relações sociais locais. Pelo contrário, nos estudos do Movimento Escola Nova, no Brasil, ficam evidentes, na descrição analítica de Lourenço Filho, numa publicação de 1929, a renúncia da tradição histórico-filosófica do conhecimento e da educação em nome de um neopositivismo acrítico, a-histórico e imediatista a serviço da

[...] dupla necessidade no/do desenvolvimento da burguesia, a saber, valorizar e utilizar ilimitadamente todas as descobertas da ciência na economia, na vida social etc., [...] e manter historicamente ativa nas massas uma necessidade religiosa, [a fim de criar] o campo de força humano-social para autorrealização simples e linear da missão social da ordem capitalista (LUKÁCS, 2012, p. 53).

Assim, a educação no Movimento Escola Nova é objeto de uma percepção e de um pensamento social massificador, com forte tendência ao cultivo do “espírito de rebanho”, devidamente justificado por uma “ontologia eclesiástica” associada a uma psicologia comportamentalista e a uma ciência pura aplicada. Esse fenômeno é descrito por Lourenço Filho, naquela que é considerada uma das mais importantes obras de síntese do Movimento Escola Nova, a publicação de 19292. Embora o objetivo da obra, não fosse, naquele momento histórico do século XX, empreender uma reflexão crítica sobre a ordem social capitalista e sua influência na educação no Brasil, sendo, portanto, seu objetivo geral, “expor e analisar novos sistemas didáticos, experimentos em nações da Europa, nos Estados Unidos e outros países” (LOURENÇO FILHO, 1974, p. 9), ainda assim, suas análises, abrem perspectivas de investigação crítica, entre outros aspectos, devido ao consenso originário do pensamento moderno que alerta para: “[...] o perigo de admitir-se que toda educação, como ação intencional, possa permanecer questão totalmente aberta, sem qualquer núcleo definido” (LOURENÇO FILHO, 1974, p. 13). Começa a corrida para definir princípios, condições de ensino-aprendizagem, planejamento, avaliação e políticas a serem observadas pelos órgãos estatais públicos e a profissionalização do setor da educação, sua preparação para ingressar no sistema de rentabilidade do capital.

As concepções que estavam no processo de disputa, à época, não aparecem claramente na síntese da V Conferência da Escola Nova, de 1929, mas, apesar do esforço de objetividade e imparcialidade do autor, na exposição do tema, margeando a neutralidade, é possível perceber com clareza a concepção que venceu naquela época e que, vence ainda hoje, no século XXI. Vitoriosa foi a concepção de educação formal que sustentou à necessidade de: “[...] imprimir unidade à ação educativa inspirada nos dados de uma conjuntura social e política determinada” (LOURENÇO FILHO, 1974, p. 13). Ora, qual era a conjuntura social e política determinada do início do pós-guerra? Não se entrará nos pormenores desse contexto, mas está claro que, “[...] na origem e evolução do Movimento Escola Nova há, sem dúvida, algo correspondente a esse sentimento determinado pela complexidade social decorrente da industrialização3 [...]”. (LOURENÇO FILHO, 1974, p. 23). Trata-se de uma posição marcadamente cientificista, assentada no positivo, que toma a forma de uma filosofia adequada à condução da economia capitalista operada, entre outras, a partir de categorias como: valor, utilidade, aplicação, ordem, massificação, treinamento, adaptação, ajustamento etc. Os processos formativos que ocorrem fora do ambiente da escola formal, sob a ótica de uma educação orientada por bases positivistas, não têm nenhum valor social.

A educação, nesses termos, parte de uma lógica axiomática. Isto é, as bases, os sistemas e as diretrizes educacionais se impõem como leis apriorísticas descoladas, portanto, das particularidades dos contextos históricos locais. Os princípios admitidos para a formação dos indivíduos funcionam como termos logicamente dedutíveis, sem referência à cotidianidade. Trata-se de uma formação na qual predomina o pensamento lógico-causal, agindo sobre a complexidade dos fenômenos sociais sem considerar as mediações particulares e singulares dos contextos concretos de produção da vida. Algumas das consequências dessa concepção de educação, que predominou no Movimento Escola Nova, foi a difusão da ideia de que o capitalismo não seria, como pensaram os seus principais críticos, um produto das relações sociais. Tampouco, não seria, simplesmente um sistema de determinações econométricas com fins comercializáveis, como pode parecer às percepções mais superficiais; e uma concepção de educação pensada fora do antagonismo classista, sem historicidade e, além disso, a assunção do paradigma da produção industrial fabril aplicado ao fenômeno educativo, sobretudo no aspecto da organização do trabalho pedagógico.

Ademais, pode-se dizer que a educação, dentro da ordem social capitalista, foi reduzida em sua finalidade. Sua tarefa principal consiste em viabilizar - pouco importando se em condições desiguais de oportunidade - a possibilidade da emancipação material dos sujeitos pela venda da força de trabalho na empresa capitalista. A emancipação social, política, intelectual são problemas residuais, de segunda ordem, que não entram na pauta de uma formação assentada nos princípios do sistema do capital. O que importa é qualificar-se e vender a força de trabalho. Por isso, sem uma posição radical, as reformas no campo da educação, “[...] desde que a lógica do capital permaneça intacta como quadro de referências orientador da sociedade” (MÉSZÁROS, 2008, p. 45), não passaram de soluções formais de continuidade de um mesmo processo de internalização, cuja finalidade induz os sujeitos a tomar como suas, as metas do capitalismo. Assim, quando eles, enquanto indivíduos se realizarem materialmente, é a autorrealização do capital que, por extensão, está se cumprindo. Ou seja, todos se tornam agentes econômicos particulares da reprodução do sistema capitalista, com todas as contradições que este encerra, sobretudo, no campo social.

São nesses termos que Mészáros (2008, p. 44) afirma que: “[...] a questão crucial, sob o domínio do capital, é assegurar que cada indivíduo adote como suas próprias as metas de reprodução objetivamente possíveis do sistema [...]”. Isso significa que, dentro da ordem social capitalista todos são “funcionários do sistema”, não em processos de trabalho autênticos, partindo de pressupostos reais, não dogmatizados e contaminados pelo fetiche da sociedade de mercadoria, ou ainda considerando as suas condições materiais de vida, mas sim, por processos: “[...] determinados por uma lógica sistêmica de produção orientada pela acumulação que determina os fins particulares perseguidos pelos trabalhadores [resultando] em uma negação do processo de trabalho” (PRADO, 2005, p. 16). Tal negação segue-se, também, do processo de inculcação de ideologias não emancipatórias nos processos educativos formais.

A questão da internalização e a imposição de valores

A educação para ser coerente com o fim último de sua realização, isto é, a emancipação dos sujeitos, precisa superar alguns reducionismos: predileção por um “espírito científico” inclinado a reduzir todos os fenômenos humanos às leis naturais pressupondo a centralidade de realidades corpóreas; predileção por uma concepção de ciência desvinculada dos fenômenos sociais e eticamente desregulada sob o pretexto da plena liberdade de investigação dos fenômenos e experimentação; predileção pelo “culto à técnica” como um modo de produzir o conforto absoluto e a invenção de produtos comercializáveis; predileção pela supervalorização do senso comum no sentido de apropriar-se da sua linguagem usual para fins propagandísticos e de indução de uma psicologia de massa pela internalização de consensos gerais sem a devida crítica dos seus particularismos dogmáticos, relativismo, entre outros. Ou seja, a educação é desafiada a enfrentar com capacidade crítica todas as formas de absolutismo que se apresentem à consciência histórica, tendo em vista a transformação social. Também, espera-se, que a educação possa ser capaz de viabilizar o exame crítico de tudo isso, não a simples reprodução, uma vez que o ato de educar não significa opor predileções, mas sim de examinar contradições desumanizantes e exercer sobre todas elas a análise esclarecedora.

As reformas no âmbito da educação, seguindo a lógica capitalista, redundam em medidas parciais de postergação das crises eclodidas no sistema de produção do capital. A estratégia de reformar previamente ao prenúncio de anomalias agudas na esfera social sempre repercutiu nos sistemas de educação formal e nas políticas de educação. Nesse sentido, a educação formal é usada para a preparação do solo às investidas reformistas que contam com a intervenção do Estado. Intervenções estas, de natureza administrativa, política e ideológica. Por isso, “[...] seria absurdo minimizar a eficácia prática da manipulação do Estado para criar um consenso em relação às crenças ideológicas” (MÉSZÁROS, 2014, p. 144). O consenso, na verdade, pode resultar de uma posição estatal como instância reguladora e distribuidora de poderes, ou ainda, simplesmente, pelo recurso à força repressora. A educação formal, dentro da ordem social mercantilizada, é tratada, simplesmente, como uma parte subordinada enquanto um fator de produção que viabiliza, por meio de seus agentes, sobretudo os professores, as condições de possibilidade de aprimoramento técnico-científico e cultural da produção capitalista. Ademais, segundo Mészáros (2008),

A educação institucionalizada, especialmente nos últimos 150 anos, serviu - no seu todo - ao propósito de não só fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à máquina produtiva em expansão do sistema do capital, como também gerar e transmitir um quadro de valores que ‘legitima’ os interesses dominantes, como se não pudesse haver nenhuma alternativa à gestão da sociedade [...]. (MÉSZÁROS, 2008, p. 35, grifos nossos).

Diante desse contexto, questiona-se: como enfrentar o aparelhamento secular de um tipo de educação hegemônica orientada para preparar a fetichização da sociedade de mercadoria e a internalização dos valores da ordem social capitalista? Esta é uma questão que permanece no horizonte de uma educação comprometida com a formação humana para uma sociedade emancipatória, livre e democrática. Uma sociedade cuja orientação existencial seja contra todo e qualquer processo de desumanização, que prepare criticamente o sujeito para a condução de sua própria educação como um fenômeno contínuo e necessário à vida.

Pode-se afirmar que o Movimento Escola Nova, após a conferência de 1929, assumiu no Brasil a educação que era possível em face das grandes transformações que eclodiam no mundo econômico e social. O Brasil possuía poucas escolhas daquele período no cenário internacional, mas as reformas que se sucederam na educação jamais resultaram em melhorias significativas em termos de uma educação revolucionária, socialmente inclusiva e humanamente emancipatória. Pois, todas elas, tomaram como base o modo de produção capitalista e suas transformações, sugerindo “[...] a produção como finalidade da espécie humana limitada à riqueza como finalidade da produção, sempre nos termos de referência do capital” (MÉSZÁROS, 2011, p. 632). Assim, a educação é modificada em sua teleologia, passando à sua finalidade servir o sistema produtivo, substituindo o ideal de formação humana pelo treinamento e qualificação da força de trabalho.

Qualquer reforma educacional baseada no modo de produção capitalista é um contrassenso em uma educação socialista, sobretudo na questão do papel social que a educação formal deve assumir perante a sociedade e os cidadãos. Trata-se de uma contradição de princípios. A educação dentro do sistema do capital é uma preparação para viabilizar a expansão do fluxo produtivo. Contraria, por exemplo, o pressuposto de uma educação para lidar com a finitude dos recursos do mundo natural. A educação é um fenômeno fundante da sociedade humana, portanto, é considerada um processo de subjetivação coletiva dos modos de produção da vida em comunidade. Ela produz outros instrumentos, mas, ela mesma, não é um instrumento de viabilização de fins quantitativos. Concebê-la nesses termos, como faz a ordem social capitalista, significa diminui-la à condição de um simples meio para alcançar um fim determinado por algo exterior à própria educação.

Coerente com essa perspectiva, a educação é vista como formação humana, é “processo civilizatório”. Tudo o mais, dentro da ordem social, isto é, que deriva dos grandes domínios do conhecimento - da Filosofia, da Religião, das Ciências, das Artes e do Mundo da vida - são modos de viabilização de saberes e conhecimentos em prol de uma educação necessária. Se o capital controlasse a educação da sociedade, nada mais restaria senão o império do lucro sobre a consciência social pela internalização de seus pressupostos.

A educação como possibilidade de realização das potencialidades humanas

Dos potenciais da educação, o que menos interessa à ordem social capitalista é a sua capacidade de possibilitar ao sujeito as condições intelectuais para que ele possa sentir-se hábil a continuar a própria educação como transformação e emancipação de si mesmo. A educação, dentro desse sistema, resulta no instrumento de produção da “[...] incapacidade do sujeito de questionar o círculo vicioso do sistema orientado para a riqueza inalterável na vida social” (MÉSZÁROS, 2011, p. 613). O automatismo e a passividade tomam a consciência dos sujeitos com um tipo de formação centrada em modelos personificados e propagandísticos. Trata-se de uma educação como arte mimética, como reprodução, imitação e simulacro de uma realidade criada para a compilação em um único modelo de todas as variações da sociabilidade humana. Não por acaso, o Movimento Escola Nova reconhecia que “[...] o conhecimento das relações entre indivíduo e vida social [era] da maior importância para a compreensão do processo educacional, em geral, e das bases técnicas do ensino em [seu] tempo” (LOURENÇO FILHO, 1974, p. 119). Essa predileção pelo tecnicismo é ainda hoje uma das amarras da educação brasileira com grave impacto nos currículos em todos os níveis de ensino. Trata-se de uma tendência que subordina a dimensão social da vida à dimensão técnica pressupondo uma precedência da ordem lógica (a técnica), à ordem ontológica (o social). Esse fenômeno resultou na chamada tendência tecnicista, amplamente difundida na concepção de educação do Movimento Escola Nova. Nessa perspectiva, considera-se que,

por uma de suas dimensões, a educação é sem dúvida desenvolvimento, em que os condicionantes biológicos claramente se revelam; por outra, é adaptação, ajustamento imediato que essas condicionantes pressupõem; mas, numa terceira, das anteriores compreensivas, torna-se um assemelhamento dos novos indivíduos aos que formem grupos humanos já existentes. (LOURENÇO FILHO, 1974, p. 119, grifos nossos).

Constatou-se o predomínio de uma visão desenvolvimentista centrada na Psicologia, aliada à matriz biologista. Termos importantes nesses campos foram transportados para o campo da educação como: condicionantes, ajustamento e adaptação, impondo ao mundo social uma condição de verossimilhança do mundo natural. É como se o ser social fosse simplesmente programado em sua existência pela natureza da espécie, e o mundo social, a cultura, a subjetividade, as relações sociais não tivessem qualquer importância. Trata-se de uma ontologia apriorística, na qual a vida cotidiana parece não ter qualquer referência para a educação formal. Portanto, esse tipo de posição epistêmica fez-se doutrina dentro do Movimento Escola Nova, estendendo-se até os tempos atuais do século XXI, na educação formal de base capitalista. Abriu-se, também, um campo fecundo para as investidas positivistas sob a forma de ciência aplicada à educação. Todos esses reducionismos comprometem uma educação focada no ser social e nas mediações em que estão implicadas a sua formação mais ampla. Portanto,

se a ontologia quiser desempenhar um papel fundamentado no âmbito atual do conhecimento, deve aflorar da vida, da vida cotidiana das pessoas; ela jamais poderá perder essa conexão com os modos elementares da existência, caso queira permanecer apta a ser ouvida como voz crítica sóbria nas questões mais complexas e sutis do conhecimento (LUKÁCS, 2012, p. 132).

Também a cultura reformista na educação e a negação do cotidiano constituem uma lógica da epistemologia adaptadora do Movimento Escola Nova. A questão sobre como se constituem os problemas da educação e suas causas na ordem social cotidiana não parece fundamental para as perspectivas reformistas das políticas de educação. Pois, tais reformas, assumindo um olhar pretensamente superior e autoritário, não demonstram em sua ação qualquer interesse pelos problemas originários da cotidianidade. Basta observar, por exemplo, que o industrialismo, o pós-guerra e outras faticidades de grande magnitude na história social, têm sido o motivo dos ajustes na educação, tendo em vista determinações do poder econômico e da sociedade de consumo.

A estratégia reformista dentro do sistema do capital nada mais é do que um procedimento para o controle programado dos sucessivos fracassos da ordem social capitalista. Sendo o capitalismo, ele mesmo, o principal contraventor de sua própria ordem, infringindo suas leis, regulamentos e acordos - quando necessários à correção de suas anomalias, todas as suas transgressões lhes parecem legítimas. Por isso, “[...] o inevitável fracasso em revelar a verdadeira preocupação do reformismo decorre da sua incapacidade de sustentar a validade temporal da ordem política e socioeconômica estabelecida” (MÉSZÁROS, 2008, p. 63). Remover o véu da realidade concreta demonstrando-as além de suas causas formais, materiais, eficientes e finais, de forma fidedigna, à necessária transformação do real não é a preocupação das reformas educacionais no interior do sistema capitalista.

O sistema reforma apenas a si próprio, e isso se faz para a sua continuidade. O Movimento Escola Nova, naquele momento histórico, como tributário de muitos pressupostos do industrialismo reconhecia que “[...] a vida individual é necessariamente limitada no tempo [...], e que, por essa razão, o processo educacional teria de ser visto como de natureza social” (LOURENÇO FILHO, 1974, p. 119. Grifos nossos). Mas o que seria uma visão de natureza social dentro do sistema de produção capitalista? Teria o industrialismo do início do século XX, uma cosmovisão que influenciasse positivamente a educação como um fenômeno social? Pode-se afirmar, que a educação, dentro do sistema do capital, tende à preparação para viabilizar a expansão do fluxo produtivo. Causa perplexidade não apenas pelo reducionismo declarado, mas também pela aderência acrítica de setores da sociedade a um modelo que reproduz sem cessar, as mais violentas formas de injustiça social.

A cognoscibilidade dessas reformas educacionais parece estranho. Além de dificultar a compreensão objetiva dos problemas a serem resolvidos, não se dá clareza de sua origem, segue-se ainda de uma indefinição do seu ponto de chegada. As reformas aparecem como proposições validadas pelo imperialismo socioeconômico que controla a educação. Esse controle ocorre pela criação das condições de possibilidades da internalização das ideologias reformistas pela via da própria educação. As reformas educacionais amparadas no sistema do capital são, quase sempre, realizadas por imitação de modelos, na qual, preocupa-se apenas com a sua implementação. Elas aparecem, muitas vezes, desvinculadas do cotidiano da educação, resultando, forçosamente, na criação de outras realidades que, a posteriori, não possui coerência com o real.

Há princípios na vida cotidiana que, independentes da escola formal, regem a educação de fora da escola. Eles são originários, principalmente, de uma “ontologia eclesiástica” que se apresenta com mediações muitas vezes doutrinárias, sem fins emancipatórios, atuando sobre as realidades simbólicas. Outras vezes, são originários do mundo do trabalho que, ao mesmo tempo, viabiliza processos libertários ou mesmo de exploração do ser social. Há nesses princípios, pensamentos, sentidos e percepções pouco expressos em termos de um padrão, mas que se impõe pela diferença, afetando, de alguma forma, a vida particular e coletiva dos indivíduos. Eles produzem conflitos, divergências, convergências, consensos, dissensos, alteridade, dentre outros, nem sempre, examinados pela educação formal. Por isso é que, o sistema formal de educação, pensando na formação do ser social terá que se aproximar do real para conhecer as condições de sua organicidade.

A partir das possibilidades existentes na realidade, postas em sua condição primária, são oferecidas as possibilidades de conhecer suas propriedades e transformá-las. O conhecimento está na materialidade concreta, existente nas possibilidades efetivamente postas pela realidade (SOUZA-JUNIOR, 2017, p. 51).

E, isso se trata de um ponto de partida teórico-metodológico importante para a pesquisa no campo da educação. Uma posição ontognosiológica é fundamental para exercer sobre o estado do conhecimento da realidade: a descrição, a interpretação, a crítica e a análise esclarecedora. Os modos de manifestação do ser da realidade do mundo circundante, assim como os meios de conhecer as suas singularidades não podem ser reduzidos à simples perfis de coisas materiais, uma vez que a transformação da realidade social carece de atitude, de doação de sentido, que somente o sujeito engajado pode trazer à consciência as suas manifestações. A cultura reformista na educação precisa reconhecer que “[...] a vida cotidiana de uma época, [assim como a sua ciência], formam um complexo interdependente frequentemente contraditório cuja unidade muitas vezes permanece inconsciente” (LUKÁCS, 2012, p. 30). Portanto, criar as condições para a conscientização dos sujeitos acerca das contradições da realidade que se apresenta, é uma das tarefas essenciais de uma educação socialista criticamente orientada.

A cultura reformista na educação não alcança, de modo radical, o aprofundamento ontognosiológico a que estão submetidas às tensões entre cotidianidade, conhecimento, matéria, sentido, conteúdo e forma no campo da educação. Seus arranjos resultam na construção de problemas para futuros ajustamentos, cuja duração mantém a estrutura e o funcionamento da ordem social capitalista.

O fato de a investigação do cotidiano e suas relações reciprocas com a ciência [...] serem pouco aprofundadas resulta que, em virtude disso, justamente a ontologia se eleva do solo do pensamento cotidiano e nunca mais poderá torna-se eficaz caso não seja capaz de nele voltar a aterrar-se mesmo que de forma muito simplificada, vulgarizada e desfigurada (LUKÁCS, 2012, p. 30).

Nessa perspectiva, a educação, assim como o trabalho, é capaz de postulados teleológicos. Por isso, o capitalismo ao se dar conta dessa capacidade da educação, sobretudo da educação formal, se propõe a determinar os fins da educação, ou quando não totalmente possível à determinação, se propõe a intervir no curso de seu desenvolvimento estrutural. Esse telos, dentro da lógica do sistema do capital, consiste em fazer internalizar o sentimento coletivo de que, educar um sujeito é prepará-lo para vender a força de trabalho. Tão logo o indivíduo alcança uma “colocação” na empresa capitalista, assim, pode encerrar o seu ciclo formativo. A educação, uma vez determinada pelo modo de produção capitalista, torna-se fragilizada em sua capacidade de essência emancipadora, crítica e de transformação social, pois a realização plena do espírito humano no mundo passa a ter um trajeto em direção a uma única finalidade, o consumo de mercadorias. Assim, todas as reformas educacionais, desde o Movimento Escola Nova, no Brasil, determinado pela eclosão do industrialismo do século XX, resultou sempre no ajuste da educação dentro dos propósitos do capitalismo, tornando-a instrumento de qualificação para o sistema de produção do capital.

A educação contínua do sistema do capital

Embora a educação, dentro do sistema capitalista, seja reduzida a um meio de viabilizar a produção do lucro, o que, dentro desta lógica significa emancipação humana, o próprio sistema do capital não pode, sem reforma e ajustes controlados, sustentar tal perspectiva apenas sob os ditames da lógica da propriedade e uso. Pois, o fato de que: “[...] as perspectivas da emancipação humana são inseparáveis do avanço - historicamente viável - da produtividade, isto não é apenas uma questão de aumento quantitativo do volume de bens à disposição de uma sociedade particular” (MÉSZÁROS, 2011, p. 614). Pode-se afirmar que considerações qualitativas são fundamentais no curso do desenvolvimento histórico, sobretudo no avanço do processo civilizatório do qual a educação é, em certa medida, a grande responsável.

Políticas educacionais, em geral, a fim de atender uma agenda conciliatória entre o sistema do capital e uma educação com tendência à inclinação socialista tem fracassado. Tais políticas, com frequência, concebem a educação formal de modo muito ortodoxo, resultando disso, que, no confronto da primeira contradição, as políticas se desfazem. O intuito parece ser o de mostrar a inviabilidade de qualquer alternativa de um projeto de educação, trabalho e formação humana fora dos preceitos do sistema do capital. Essa investida pode ser verificada não apenas nos processos de internalização do ethos capitalista por parte de uma significativa parcela dos agentes estatais - mas também de grande parcela de indivíduos usuários do sistema público de educação que, paulatinamente, têm se convencido, graças à propagandística a serviço do capital, de que a única saída possível à qualidade da educação pública é a sua total privatização.

[Sob o comando do capital], a relação original entre o sujeito e o objeto da atividade produtiva é completamente subvertida, reduzindo o ser humano ao status desumanizado de uma mera condição material de produção. O ter domina o ser em todas as esferas da vida (MÉSZÁROS, 2011, p. 611, grifos do autor).

E, muito além da relação sujeito/objeto que constitui a essência do conhecimento, na educação, é fundamental a relação intersubjetiva, a relação sujeito/sujeito mediatizada pela realidade do mundo concreto. A prática da educação é, por natureza, humanista. Logo, qualquer tentativa contrária a esse pressuposto, é uma distorção de sua verdadeira finalidade. O ser social não pode ser produto do sistema produtivo. E seu comportamento social não pode ser forjado com uma justificativa assentada nas premissas de posse e riqueza material. A educação precisa cultivar, fundamentalmente, o espírito revolucionário. Nenhuma experiência revolucionária é possível sem que o espírito público seja cultivado. Por isso, uma questão se coloca à educação anti-imperialista: como recuperar o espírito público perdido em nosso tempo altamente competitivo e individualista? Na educação, o espírito revolucionário se perdeu, em grande medida, devido a um vácuo epistemológico na condução do pensamento e da memória, ambos, sucumbidos aos objetivos da vida cotidiana e ao imediatismo inconsequente das motivações pessoais determinadas pela ordem social capitalista. Torna-se relevante questionar: “[...] apesar de todo o seu trabalho, a pobreza da grande massa se deve ao fato de que, nada possui para vender senão a si mesma”? (MÉSZÁROS, 2008, p. 37). Em que medida esse estado de coisificação do humano constitui um obstáculo à formação do espírito revolucionário? Sobre essa questão Arendt (2011, p. 284) argumenta que,

[...] embora seja verdade que o espírito revolucionário nasceu nas revoluções, e não antes, não seria inútil examinar aqueles grandes exercícios de pensamento político, praticamente simultâneos à época moderna, com os quais os homens se prepararam para um acontecimento cuja verdadeira magnitude mal podia prever. (ARENDT, 2011, p. 284).

E, nessa perspectiva, o mundo da técnica tornou a sociedade muito previsível. Assim, a educação, na civilização tecnológica, parece caminhar a passos largos à condição de instrumento de transformação da natureza humana. O experimentum tecnológico tem adquirido centralidade confrontando a formação humana. No lugar do trabalho, a maquinaria; no lugar da educação, o treinamento; no lugar da reflexão, a inteligência artificial; e no lugar da memória histórica, o presentismo futurista. Uma educação do tipo emancipatória é desafiada a preparar o ser humano para exercer uma ação sobre si mesmo, assim como as coisas exteriores ao eu-humano. Porém, “[...] [sob o comando do capital], o eu real dos sujeitos é destruído por meio da fragmentação e da degradação do trabalho à medida que eles são subjugados” (MÉSZÁROS, 2011, p. 611). Os postulados teleológicos do trabalho são conformados às demandas da expansão do capital, tomando forma um tipo de educação que prepara os seres humanos para exercer ações sobre o outro, agir sobre outrem, como quem tem maior autoridade. Tudo isso resulta em graves conflitos sociais. Nada estranho é claro, para a normalidade de uma ordem social cujo “[...] significado mais profundo da educação contínua [...] é a imposição da crença na absoluta inalteralidade de suas determinações estruturais fundamentais” (MÉSZÁROS, 2008, p. 82).

Nesse sentido, questiona-se: em que medida uma sociedade científico-industrial permitiria ultrapassar as estruturas da opressão e criar as condições de possibilidade de associações humanas onde a educação e o trabalho possam assumir uma posição de centralidade na dinâmica da ordem social? A educação, enquanto formação humana, perdeu o seu sentido devido ao típico colapso de suas ideologias e de suas utopias revolucionárias e políticas? Que educação e que formação social propor em um mundo enquadrado, quase que totalmente, nos ditames da técnica? O tecnicismo tornou ainda mais viável à expansão do sistema do capital permitido maior eficácia no controle do trabalho e da produção, fenômeno que, em alguma medida, impacta a educação, desde a infância. Nesse sentido, o mundo da técnica pode ser definido como aquele “[...] em que tudo se transforma em matéria-prima, recurso ou reserva disponível”. (MARTINS, 2012, p. 44). A educação, na civilização tecnológica, tem sucumbido, cada vez mais, a sua tarefa humanista, emancipatória e revolucionária aos preceitos de um mundo totalmente enquadrado pela técnica. Fato este que, teoricamente surpreenderia o próprio positivismo, pois,

Comte [prefigurara] um mundo pós-industrial positivo, no qual a promoção de interesses tecno-industriais da conquista da natureza deveria dar lugar às mais altas e nobres preocupações de autotransformação dos agentes morais no sentido da perfectibilidade moral, que não industrial, da ação sobre o eu, que não sobre o mundo exterior (MARTINS, 2012, p. 44).

Conforme se sabe, não foi isso que aconteceu com a formação social positiva. Ela recebeu outras conformações radicais, não tão distantes de algumas de suas premissas, é claro, mas em proporções inimagináveis. O fetichismo da técnica induziu a educação a um vácuo, a saber, de um lado a racionalidade científica, de outro, a utilidade tecnológica. Assim, conhecimento e educação sem aplicação técnica imediata não têm validade. A ética utilitarista domina quase que completamente o imaginário social. A pergunta fundamental desse tempo é: serve para quê? Até o mais simplório senso comum a faz com ares de uma sapiente reflexão. É como as crianças aprendendo a funcionalidade dos objetos. O sistema pedagógico da civilização tecnológica pouco interage com a educação, enquanto práxis social transformadora. Sua preocupação é viabilizar o ensino da técnica sob os preceitos do determinismo da racionalidade científico-instrumental focada nas possibilidades de produzir materiais e, além disso, realidades virtuais comercializáveis.

Considerações finais

Objetivou-se com esse artigo problematizar a lógica da dependência, da hierarquização e da verticalização das relações de trabalho do mundo industrial, transposta ao campo da educação por meio de arranjos centrados, basicamente, nos acordos da V Conferência Mundial da Escola Nova, de 1929, que defendia uma concepção de educação como ajustamento social.

Esse ideário, além de ter aberto caminhos fecundos para a cultura reformista sob a égide do capital financeiro, propiciou os meios de controle da educação estatal pública usando os órgãos do próprio sistema público para viabilizar, por meio de políticas setoriais e do gerencialismo corporativo, a crença de que a qualidade da educação depende, essencialmente, de investimentos privados.

Pode-se afirmar que reformas educacionais somente têm sentido na medida em que seus objetivos reformadores visam realizar as necessidades estruturais, formativas e emancipatória da sociedade em geral. Portanto, mudanças na estrutura e no funcionamento dos sistemas de ensino não são, necessariamente, mudanças na educação. O modo como o fenômeno educativo se apresenta à consciência social e coletiva, com os seus problemas concretos, transcendem a percepção dos analistas decisórios a serviço do capital.

O fenômeno educacional reclama por transformações radicais que possam abrir caminhos seguros e comprometidos com a emancipação humana, pois, somente assim, a educação poderá cumprir a sua destinação histórica, isto é, criar as condições de possibilidade de libertação do ser social dos grilhões que aprisionam a sua consciência.

As reformas educacionais dentro do sistema do capital incidem diretamente nos sistemas de educação formal, mudando apenas o modo de fazer o mesmo tipo de educação, cuja essência permanece inalterável. As mudanças no interior do capital não surtem o efeito desejado para uma educação emancipadora, pelo contrário, suas asserções culminam quase sempre no ajuste da percepção social dos indivíduos para o mesmo problema escamoteando as suas causas originárias.

A educação, como emancipação, exige que a mesma seja elevada à condição de patrimônio comum da sociedade; que todos os sujeitos, socialmente emancipados, possam conduzir a própria educação regulada pelas necessidades comunitárias. O monopólio da educação pelo sistema do capital altera a posição de elemento fundante da sociabilidade, como sugeriu o ideário iluminista, para a posição de um treinamento de habilidades valorizadas no mercado de trabalho.

As reformas educacionais no Brasil têm-se configurado escamoteando a manutenção da ordem social estabelecida, a ordem do capital, pois nenhuma mudança significativa foi, até agora, operada no sentido de romper com a lógica de uma concepção de educação como mercadoria. Muito pelo contrário, cada vez mais, se amplia o entendimento de educação como uma simples fase da vida que, naturalmente, pode ser encerrada com a qualificação e ingresso no mercado de trabalho.

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SOBRE OS AUTORES

1As obras de Lourenço Filho e de István Mészáros serviram como delimitação do tema. O objetivo é problematizar questões derivadas de ambas que, de alguma forma, permanecem pulsantes no cenário atual das investidas neoliberais no campo da educação, no Brasil, neste início de século XXI.

2Trata-se da obra Introdução ao Estudo da Escola Nova, de Lourenço filho.

3O trabalho industrial modificou muitas regiões, deslocando do campo para as cidades consideráveis grupos de população. A tecnologia transformou o transporte, facilitando o intercâmbio comercial, promovendo melhoria na comunicação. (LOURENÇO FILHO, 1974).

SOBRE OS AUTORES

Como citar este artigo SILVA, Adelson Ferreira; GOMES, Suzana dos Santos. O reformismo capitalista e os contrassensos entre o movimento escola nova e a educação socialista. Revista Práxis Educacional, Vitória da Conquista, v. X n. X, 202x. DOI: 10.22481/praxisedu.vXXiXX.XXXX

Recebido: 21 de Abril de 2021; Aceito: 24 de Agosto de 2022

Adelson Ferreira da Silva Doutorando em Educação, UFMG. Universidade do Estado da Bahia - Brasil; Programa de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social. Membro do Grupo de Pesquisa Universitátis. Contribuição de autoria: escrita do artigo, conceituação e análise formal. Não há conflito de interesse. http://lattes.cnpq.br/9729796550869174

Suzana dos Santos Gomes Doutora em Educação, UFMG. Pós-Doutorado em Educação, Universidade de Lisboa, U.L e Universidade de São Paulo, USP. Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG - Brasil; Programa de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social. Líder do Grupo de Pesquisa Universitátis. Contribuição de autoria: escrita do artigo, análise formal e revisão. Não há conflito de interesse. http://lattes.cnpq.br/7926600962920347

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