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Revista Práxis Educacional

versão On-line ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.18 no.49 Vitória da Conquista  2022  Epub 04-Jul-2023

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v18i49.9034 

Artigos

APONTAMENTOS PARA UMA EDUCAÇÃO OMNILATERAL EM MARX E ENGELS

NOTES FOR AN OMNILATERAL EDUCATION IN MARX AND ENGELS

NOTAS PARA UNA EDUCACIÓN OMNILATERAL EN MARX Y ENGELS

Marco Antônio de Oliveira Gomes1 
http://orcid.org/0000-0002-2397-5615

Ana Paula Aires Rodrigues2 
http://orcid.org/0000-0001-9359-6779

Mônica Vasconcelo3 
http://orcid.org/0000-0001-7671-2491

1Universidade Estadual de Maringá (UEM) - Maringá, Paraná, Brasil; marcooliveiragomes@yahoo.com.br

2 Universidade Estadual de Maringá (UEM) - Maringá, Paraná, Brasil; prof.ana.aires@gmail.com

3 Universidade Estadual de Maringá (UEM) - Maringá, Paraná, Brasil; profmonica@yahoo.com


RESUMO:

As análises das contribuições de Karl Marx e de Friedrich Engels para a educação e para a formação politécnica é o objetivo proposto neste trabalho. Nesse sentido, é consensual, entre diferentes pesquisadores marxistas da área de trabalho e educação, que o conceito de uma formação politécnica foi delineado originalmente por Marx. Fundamentados nos postulados metodológicos marxianos, entendemos que a educação e o ensino não podem ser desvinculados do modo de produção que os forjou. Assim, com a finalidade de alcançar os objetivos propostos, o artigo analisa as razões que impedem a emancipação dos trabalhadores no âmbito das relações capitalistas, considerando, nesse processo, os projetos educacionais do século XIX e a atualidade do princípio entre ensino e trabalho na educação. Por fim, concluímos que, historicamente, a proposta de formação politécnica de educação, segundo o pensamento marxiano, pode contribuir para a formação de uma postura crítica diante das relações capitalistas. Diante disso, cabe constatar que a educação, por si só, não é responsável pela superação do capitalismo. No entanto, é impossível pensar a revolução sem ela.

Palavras chave: educação; formação omnilateral; marxismo

ABSTRACT:

The analysis of the contributions of Karl Marx and Friedrich Engels to education and polytechnic training is the objective proposed in this work. There is a consensus among different Marxist researchers in the field of work and education that the concept of a polytechnic formation was originally delineated by Marx. Based on Marxian methodological postulates, we understand that education and teaching cannot be separated from the mode of production that forged them. In order to achieve the proposed objectives, the article analyzes the reasons that prevent the emancipation of workers under capitalist relations, considering in this process the educational projects of the nineteenth century and the actuality of the principle between teaching and work in education. Finally, it is concluded that, historically, the proposal of polytechnic education in education, according to Marxian thought, can contribute to the formation of a critical attitude towards capitalist relations. Education alone is not responsible for overcoming capitalism, however, it is impossible to think of revolution without it.

Keywords: education; marxism; omnilateral formation

RESUMEN:

Los análisis de las contribuciones de Karl Marx y Friedrich Engels para la educación y la formación politécnica es el objetivo propuesto en este trabajo. Existe un consenso entre los diferentes investigadores marxistas en el campo del trabajo y la educación de que el concepto de formación politécnica fue originalmente delineado por Marx. Fundamentados en los postulados metodológicos marxianos, entendemos que la educación y la enseñanza no pueden separarse del modo de producción que las forjó. Para lograr los objetivos propuestos, el artículo analiza las razones que impiden la emancipación de los trabajadores bajo las relaciones capitalistas, considerando en este proceso los proyectos educativos del siglo XIX y la actualidad del principio entre la enseñanza y el trabajo en la educación. Finalmente, se concluye que, históricamente, la propuesta de la educación politécnica en la educación, según el pensamiento marxiano, puede contribuir a la formación de una actitud crítica hacia las relaciones capitalistas. La educación por sí sola no es responsable de la superación del capitalismo, sin embargo, es imposible pensar en la revolución sin ella.

Palabras clave: educación; formación omnilateral; marxismo

Introdução

É de amplo conhecimento que a educação não foi um tema priorizado nos estudos de Marx e de Engels, como atestam Bemvindo (2016), Lombardi (2010), Manacorda (2010) e Saviani (2003). Isso porque a abordagem ocorreu de forma esparsa, ao longo de suas obras, a partir do aprofundamento da crítica da economia política da sociedade capitalista do século XIX. Ora, considerando as transformações ocorridas no interior do capitalismo e o atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas, cabe questionar: qual a contribuição dos autores para uma educação a serviço da luta pela emancipação da classe trabalhadora?

Vale destacar que as análises elaboradas pelos referidos autores, principalmente quando consideramos a crise estrutural do modo de produção capitalista, permanecem contemporâneas. A essência contraditória e predatória do capital, produtor estrutural de crises, deriva substancialmente de sua incapacidade de existir sem explorar continuamente a força de trabalho de forma crescente, ao mesmo tempo em que naturaliza das diferenças sociais. Por isso, retomar os estudos realizados por Marx e Engels impõe-se, deste modo, como uma tarefa fundamental.

Em uma breve síntese, podemos afirmar que o capitalismo, desde seus primórdios, apresentou uma vocação expansionista. Isso porque o propósito maior de expansão do capital implicou na busca incessante por novas fontes fornecedoras de matéria prima, bem como de mercados consumidores.

Pela exploração do mercado mundial, a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela roubou da indústria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram destruídas continuam a ser destruídas diariamente. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas - indústrias que já não empregavam matérias-primas nacionais, mas, sim matérias-primas vindas das regiões mais distantes, e cujos produtos se consomem não somente no próprio país, mas em todas as partes do mundo (MARX; ENGELS, 2017, p. 25).

Mesmo considerando as transformações ocorridas desde 1848, ano de sua primeira publicação, não há como negar a atualidade do Manifesto Comunista, quando observamos a crescente internacionalização do capitalismo, com todas as contradições marcadas pela miséria de milhões de trabalhadores como expressão do processo autoexpansivo e destrutivo do capital. Como negar a indissociabilidade da lógica do capital, que fez da exploração de milhões de trabalhadores o caminho para acumulação de riquezas nas mãos de poucos? Como negar sua essência predatória, marcada por crises cada vez mais agudas?

É absolutamente inconcebível superar o caráter destrutivo do capitalismo sem compreender como este se organiza em uma cadeia de contradições que não é capaz de solucionar.

A insolvência crônica de nossos antagonismos, composta pela incontrolabilidade do capital, pode, por algum tempo ainda, continuar a gerar uma atmosfera de triunfalismo, bem como ilusões enganadoras de permanência, como aconteceu em passado recente. Mas, no devido tempo, os problemas crescentes e destrutivamente intensos terão de ser enfrentados. Pois, se no século XXI ocorrer realmente o triunfalismo do ‘século americano’ do capital, não haverá no futuro outros séculos para a humanidade, muito menos um milênio. Isso nada tem a ver com ‘antiamericanismo’ (MÉSZÁROS, 2003, p. 16).

Diante da crise estrutural e das contradições que o capital não é capaz de resolver, as proposições burguesas não apontam para uma alternativa civilizatória e de emancipação da classe trabalhadora, e nem poderiam. Seria a negação de seu caráter de classe. Assim, para intensificar a extração de mais valia, o capital promove a destruição dos direitos sociais e da legislação trabalhista, na medida em que privatiza os serviços sociais. Não por acaso, a educação passou por um amplo processo de mercantilização, principalmente nas nações periféricas.

Paralelamente ao desenvolvimento das forças produtivas, sob do domínio do capital, a escola se tornou ainda mais estratégica para a subordinação do trabalhador ou para sua emancipação. Sem compactuar com uma perspectiva idealista, que enxerga a educação como panaceia para todos os males da sociedade, colocamos a seguinte questão: como contribuir para uma educação que fomente a formação de uma consciência de classe dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, se contraponha à barbárie que se avizinha a passos largos?

A questão formulada expressa a necessidade histórica de construção de uma sociedade que supere as mazelas do capitalismo. Nesse sentido, concordamos com Saviani (1989), quando afirma que a pedagogia revolucionária é crítica. Isso porque

longe de entender a educação como determinante principal das transformações sociais reconhece ser ela elemento secundário e determinado. Entretanto, longe de pensar, como o faz a concepção criticar e produtivista, que a educação é direcionada unidirecionalmente pela estrutura social dissolvendo-se a sua especificidade, entende que a educação se relaciona dialeticamente com a sociedade. Nesse sentido, ainda que elemento determinado, não deixa de influenciar o elemento determinante. Ainda que secundário, nem por isso deixa de ser instrumento importante e por vezes decisivo no processo de transformação da sociedade (SAVIANI, 1989, p. 75).

Não se trata da crença idealista, que enxerga a educação como determinante das transformações sociais, tal qual as teorias pedagógicas não-críticas apresentam, mas de compreendê-la como um instrumento necessário na luta pelo acesso ao conhecimento, que contribua para a formação da consciência de classe dos trabalhadores. Para levarmos adiante tal desafio, é fundamental entender o processo educativo enquanto instrumento de luta pela articulação dos interesses dos trabalhadores.

Assim, a partir do desafio de contribuir para a superação das proposições educativas que naturalizam a desigualdade e reforçam a dominação burguesa, e tomando como parâmetro a afirmação de Marx e Engels na Ideologia alemã, onde atestam que “[...]as circunstâncias fazem os homens, assim como os homens fazem as circunstâncias” (MARX; ENGELS, 2007, p. 43), propomo-nos a contribuir para o debate acerca de uma educação que objetive a formação integral do homem e que contribua para a sua concreta emancipação.

A inviabilidade da emancipação dos trabalhadores sob as relações capitalistas de produção

O trabalho é basilar para a constituição do homem porque é condição para sua existência em sociedade. Ao mesmo tempo em que os homens modificam a natureza para sobrevivência, têm igualmente modificada sua própria natureza, em um processo de transformação mútua, que converte o trabalho social em uma atividade fundante do desenvolvimento da sociabilidade humana.

Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimentas e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje tem de ser cumprida diariamente, simplesmente para manter os homens vivos (MARX; ENGELS, 2007, p. 33).

No entanto, se o trabalho é atividade fundante para a constituição histórica do homem, por outro lado, os despossuídos dos meios de subsistência pelo capital transformam-se em trabalhadores assalariados e alienados. Por conseguinte, o que deveria constituir-se em objetivo essencial do ser social transforma-se em meio de tortura e pauperismo. Assim, o que deveria constituir um meio de realização, de humanização e de emancipação de homens e mulheres se converte em um mecanismo de desumanização. Sob o manto do capital, o trabalhador frequentemente não se realiza no trabalho, mas precisa vender sua força de trabalho para manter-se de forma degradada, não se reconhecendo em seu trabalho. O que se observa, então, é a realização de um trabalho alienado, no qual o trabalhador desconhece o próprio processo produtivo, além de não ter controle sobre o valor dos produtos.

Antes de prosseguirmos, faz-se necessário enfatizar que a divisão manufatureira do trabalho é um elemento constitutivo do modo de produção capitalista. Diz respeito ao processo de fragmentação da produção em numerosas operações, de tal forma que o produto é o resultado de uma variedade de operações executadas por diferentes trabalhadores em cada tarefa. Suas origens coincidem com a origem da manufatura moderna nos primórdios do capitalismo. Nesse âmbito, a consolidação do modo de produção capitalista, por sua vez, gerou o sistema de fábricas que aprofundou a divisão do trabalho em tarefas fragmentadas e repetitivas.

Fundamentado na rígida divisão entre as atividades intelectuais e o trabalho manual, ao longo do século XIX ocorreu a expansão dos sistemas públicos de educação na Europa. Apesar da ampliação do processo de alfabetização, o acesso ao conhecimento ainda continuava sob o domínio de uma minoria.

O processo de constituição das relações capitalistas ocorreu concomitantemente à progressiva superação das corporações de ofício ao mesmo tempo em que a burguesia reunia trabalhadores em um único espaço para a produção de mercadorias. Nesse sentido, foi ampliada a distância entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, colocando os trabalhadores na condição de meros executores, por nada possuírem além da sua força de trabalho. Trata-se de um modo de produção que se forjou ao longo das contradições e da desintegração do modo de produção feudal pelo processo de acumulação de capital nas mãos de uma classe.

Para a burguesia constituir-se, entretanto, foi preciso controlar a propriedade privada dos meios de produção, eliminar os resquícios da propriedade feudal e abolir as formas de trabalho típicas do feudalismo, como a servidão. No processo denominado por Marx de “acumulação primitiva” do capital, homens, mulheres e crianças, expropriados das condições de sobrevivência, expulsos da terra, foram obrigados a vender-se no mercado para as manufaturas e, posteriormente, para as indústrias (MARX, 1985).

Isso significa afirmar que o fruto do trabalho é estranho ao trabalhador. Na verdade, quanto mais trabalho um trabalhador transfere para a matéria, mais de si mesmo coloca em objetos que não lhe pertencerão. As relações sociais de produção, alicerçadas na apropriação privada dos meios de produção, alienam o trabalhador. Dessa forma, o mesmo trabalhador não domina o processo produtivo e as relações sociais decorrentes. Não é um indivíduo integral, mas um homem fragmentado, e vive, desse modo, vendendo sua força de trabalho por um preço miserável. Marx assinala que: “[...] o trabalhador desce até ao nível de mercadoria, e de miserabilíssima mercadoria; que a penúria do trabalhador aumenta com o poder e o volume da sua produção” (MARX, 2006, p. 110).

É dessa relação social, marcada pela assimetria, que foram forjadas as classes sociais antagônicas: burguesia - proprietária dos meios de produção - e trabalhadores - os despojados dos meios de sobrevivência. Trata-se de uma forma de coagir aquele que nada possui a submeter-se à exploração por meio da venda da força de trabalho.

Nesse processo, sob o manto das relações capitalistas, o trabalho, a propriedade, a tecnologia e a ciência passam a ter a finalidade de gerar lucro ou mais capital. Por isso, era necessário abolir a servidão na Europa e, posteriormente, a escravidão na América. Nesse contexto, os trabalhadores, eles mesmos, tornaram-se mercadoria. Marx, nos Manuscritos econômico-filosóficos, já apontava que o trabalho no sistema capitalista “[...] leva à alienação do homem, que se ‘objetifica’ diante da máquina e se torna uma ferramenta, instrumento utilizado pelo capital a fim de explorá-lo” (MARX; ENGELS, 2004, p. 8). O trabalhador transforma-se em mercadoria e quanto mais riqueza ele gera; quanto mais produtos produz, menos ele pode possuir.

Desse modo, o trabalhador não é o responsável por organizar e planejar a produção, não determina o que produzir, como produzir e o que fazer com a produção. Por consequência, o trabalhador não se realiza no seu trabalho, não se desenvolve, não libera todas suas potencialidades físicas e intelectuais. Desse modo, a atividade laboral deixa de ser uma manifestação do homem para ser uma atividade imposta e não voluntária. Assim sendo, o trabalho deixa de ser a realização de uma necessidade para se tornar uma tormenta semelhante vivida por Sísifo, figura dramática da mitologia grega que foi condenado a repetir infinitamente o trabalho de empurrar uma pedra até o topo de uma montanha. Logo, o trabalho aparece como um sacrifício interminável, que esgota as energias físicas e espirituais do trabalhador. A desumanização é uma decorrência desse processo em que o trabalho deixa de ser uma atividade criadora.

O trabalho torna-se vazio de sentido para o trabalhador, considerando que o produto de sua atividade é apropriado por outro. Diante disso, para Marx (2006, p. 66) “[...] a procura de homens regula necessariamente a produção de homens como de qualquer outra mercadoria”, o que quer dizer que

se a oferta é muito maior que a procura, então parte dos trabalhadores cai na miséria ou na fome. Assim, a existência do trabalhador torna-se reduzida às mesmas condições que a existência de qualquer outra mercadoria. O trabalhador transformou-se numa mercadoria e terá muita sorte se puder encontrar um comprador (MARX, 2006, p. 66).

É importante advertir que, na medida em que o trabalho potencializa a liberação do homem, contraditoriamente, é alicerce de toda a pobreza e alienação. Se, por um lado, a potencial libertação ocorre a partir dos domínios do conhecimento sobre a natureza e os instrumentos necessários para a liberação do trabalho; por outro, o desenvolvimento gerado pela ciência é incorporado pela máquina que, sob o monopólio do capital, se opõe ao trabalhador, traduzindo-se em desemprego, desqualificação, baixos salários e precarização das condições de trabalho.

A partir dessa perspectiva, somos forçados a refletir sobre a atualidade das análises de Marx, no sentido de que elas nos estimulam a adotar posturas que combatam a desumanização dos trabalhadores, ao compreendermos que

quanto mais o trabalhador produz, menos tem de consumir; quanto mais valores cria, mais sem valor e mais desprezível se torna; quanto mais refinado o seu produto, mais desfigurado o trabalhador; quanto mais civilizado o produto, mais desumano o trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho, mais impotente se torna o trabalhador; quanto mais magnífico o trabalho, mais o trabalhador diminui em inteligência e se torna escravo por natureza (MARX, 2006, p. 113).

As análises de Marx, em um contexto de aprofundamento da putrefação do capital, demonstram sua atualidade. Nas circunstâncias contemporâneas, o capital busca a promoção ampliada a qualquer custo, colocando em movimento a destruição de tudo o que lhe opõem. Nem mesmo as promessas de “paz” ou de “prosperidade”, alardeadas pelos ideólogos do capital, foram efetivadas nos últimos decênios.

Concomitantemente ao avanço do processo destrutivo do capital, a questão do desemprego não se limitou a um exército de reserva “[...] à espera de ser ativado e trazido para o quadro da expansão produtiva do capital, como aconteceu durante a fase de ascensão do sistema, por vezes numa extensão prodigiosa” (MÉSZÁROS, 2003, p. 22). Os atuais números crescentes de desemprego ou subemprego, a destruição dos direitos sociais e uma crescente quantidade de homens e mulheres que sequer possuem condições mínimas de sobrevivência demonstram a falácia da prosperidade prometida pela burguesia.

Ora, os conhecimentos imprescindíveis à compreensão do processo produtivo e da historicidade do capitalismo foram expropriados pelos detentores dos meios de produção. Consequentemente, a decorrente alienação do homem, afastando-o de si mesmo e de seus companheiros de infortúnio, é a expressão do domínio do capital sobre os trabalhadores. Ao longo da jornada de trabalho, o trabalhador, transformado em acessório de uma máquina, não tem clareza suficiente do processo produtivo em que se insere. Assim, as mercadorias não lhe aparecem como produtos de sua elaboração. Isso porque sua produção se traduz em mercadorias que ganham vida própria, e ele, o trabalhador, se torna um objeto que segue as regras do mercado.

Nesse contexto, a fragilização física e intelectual dos trabalhadores, diante de uma situação que nada lhe resta, constitui um de seus efeitos, especialmente a partir do processo de mecanização da produção, imposto pela grande indústria moderna. Nesse âmbito, a presença de mulheres e de crianças em condições ainda mais degradantes, gerada pela grande quantidade de braços disponíveis para o trabalho, produziu um quadro de pauperismo material para muitos e riqueza para poucos. Nesse processo,

[...]o trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata, quanto maior número de bens produz. Com a valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se também a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e justamente na mesma proporção com que produz bens (MARX, 2006, p. 111).

Ora, estariam as considerações de Marx ultrapassadas? Entendemos que os problemas colocados por Marx e por Engels ao longo do século XIX continuam presentes com outra roupagem. Não se trata, aqui, de tomar o marxismo como dogma religioso, mas de compreender que a essência destrutiva do capital permanece inalterada. Como negar que o capital necessita cada vez menos do trabalho estável e cada vez mais de trabalho parcial, intermitente, terceirizado e sem garantias? Como negar que as novas técnicas de gestão do trabalho têm implicado na intensificação da exploração do trabalhador?

Os últimos trinta anos do século XX até o presente momento são marcados por uma profunda transformação estrutural no universo da produção de mercadorias. Nesse período, o avanço tecnológico ocorreu concomitantemente com a hegemonia das experiências neoliberais e do capital financeiro. Trata-se de um momento marcado, também, pela precarização do trabalho e do sistema de proteção ao trabalhador.

Vale desatacar, ainda, que o atual processo de reestruturação produtiva orientou-se pelas diretrizes do que se convencionou chamar-se de “empresa enxuta”, ou seja, a empresa que reduz a utilização da força de trabalho (trabalho vivo), ampliando a utilização de máquinas, que Marx denominou como trabalho morto.

A implantação de programas de qualidade total, dos sistemas just-in-time e kanban, além da introdução de ganhos salariais vinculados à lucratividade e à produtividade (de que é exemplo o Programa de Participação nos Lucros e Resultados, PLR), sob uma pragmática que se adequava fortemente aos desígnios neoliberais, possibilitou a expansão intensificada da reestruturação produtiva no Brasil, tendo como consequências a flexibilização, a informalidade e a precarização da classe trabalhadora. Se a informalidade (que ocorre quando o contrato empregatício não obedece à legislação social protetora do trabalho) não é sinônimo direto de precariedade, sua vigência expressa formas de trabalho desprovidas de direitos e, por isso, encontra clara similitude com a precarização. A flexibilização do trabalho no Brasil tem sido, como veremos ao longo deste e de outros capítulos, importante instrumento utilizado pelas empresas para burlar a legislação social do trabalho (ANTUNES, 2018, p. 135).

As consequências foram, e ainda o são, evidentes: crescimento estrutural do desemprego, precarização estrutural do trabalho, rebaixamento salarial, perda de direitos etc. Trata-se de um modelo societário produtor de crises intermináveis, devido à necessidade sempre presente de produção de novas mercadorias e por causa da total incapacidade de satisfazer as necessidades básicas de todos.

Assim, a fartura se torna o seu oposto, a criação de lixo descartável, a pura devastação do meio ambiente, enquanto milhões de indivíduos seguem com seu tempo espoliado. A tradução desse processo se resume em massas crescentes de trabalhadores concorrendo entre si para assegurar a acumulação do capital nas mãos de poucos (Cf. FONTES, 2017). Consequentemente, filas intermináveis deixam as pessoas esperando por horas e até dias para garantir uma vaga de emprego e a situação só tende a se agravar com o aprofundamento das reformas que flexibilizam as relações de trabalho em favor do capital.

A existência do trabalhador se transforma em um martírio crescente que deve vender sua força de trabalho, fato agravado pelo desmonte dos direitos conquistados, que os deixam em situação ainda mais fragilizada. Isso porque (man) ter condições mínimas de sobrevivência requer vender sua força de trabalho em condições cada vez mais precárias. Evidencia-se, então, a existência de uma ditadura do capital que lucra com o excedente, isso é, ganha com todo o trabalho não pago, realizado por quem produz.

Cabe assinalar, entretanto, que as ações do capital não são homogêneas, mas atuam com maior ou menor volúpia, segundo a capacidade de resistência e de organização dos trabalhadores nas diferentes partes do mundo. No entanto, a flexibilização dos direitos trabalhistas, criando em algumas regiões formas de trabalho análogas à escravidão, tem sido uma constante para a elevação das taxas de lucro.

Dessa forma, a educação, mais uma vez, aparece como panaceia para todas as mazelas sociais, pois lhe é conferida um papel central: adaptar os trabalhadores às novas dinâmicas da economia e inseri-los no mercado. Considerando a lógica do capital, crianças e jovens são educados nas diferentes arenas sociais para a competição de todos contra todos.

Os problemas que enfrentamos atualmente são questões que ultrapassam as fronteiras nacionais. Em primeiro lugar, devemos compreender o capitalismo em sua totalidade e dentro de um movimento em que o capital se torna universal e monopolista.

Breves considerações sobre a educação no século XIX: projetos em disputa

A escola, tal como a conhecemos, surgiu no contexto das sociedades de classes, como prerrogativa dos grupos dominantes. Sua expansão para além das classes proprietárias ocorreu a partir da Idade Moderna, mas dentro das fronteiras de uma sociedade que expressava as relações conflituosas entre dominantes e dominados. A formação do espaço urbano-industrial, com a expansão das fábricas e a constituição da classe operária, trouxe a demanda de um mínimo de escolaridade. Tornou-se necessário, então, a compreensão do idioma e uma escrita comum, ou seja, a língua oficial da nação, bem como ter o conhecimento de noções básicas para o trabalho dentro de uma fábrica.

Adam Smith, por exemplo, apontava que algumas invenções e máquinas foram introduzidas pelos próprios operários, que aprenderam a trabalhar e “[...] com naturalidade, se preocupam em concentrar sua atenção na procura de métodos para executar sua função com maior facilidade e rapidez, estando cada um deles empregado em uma operação muito simples” (SMITH, 1996, p. 69). Como expressão do pensamento burguês, o autor sugeriu uma educação em doses homeopáticas para os trabalhadores, com o fim de aliviar os efeitos negativos da divisão do trabalho. Obviamente, não se tratava de um ensino que promovesse o amplo acesso ao conhecimento para os trabalhadores, mas que fosse útil para a produção.

A burguesia possuía clareza absoluta dos seus propósitos. Ainda que seus intelectuais proclamassem a necessidade da universalidade, da laicidade, da gratuidade e da renovação cultural, isso não significou, na prática, que os homens de negócios estivessem dispostos a renunciar seus privilégios de classe e socializar o conhecimento produzido com aqueles que precisam vender sua força de trabalho para sobreviver. Ponce (2001) enfatiza que é possível compreendermos, em certa medida, a contradição explícita nessa discrepância entre aquilo que se diz e a prática social, por meio da seguinte passagem:

Quase ao mesmo tempo em que Sarmiento assegurava que não se podia manejar uma ferramenta sem saber ler, um fabricante inglês de vidros - Mr. Geddes - afirmava a uma comissão investigadora: ‘A meu ver, a maior parte da educação que tem desfrutado uma parte da classe trabalhadora durante os últimos anos é prejudicial e perigosa, porque a torna demasiada independente’. Nada mais adequado para mostrar as contradições que existem na burguesia do que citar essas duas atitudes tão distintas no plano pedagógico: de um lado, a necessidade de instruir as massas, para elevá-las até o nível das técnicas da nova produção e, do outro, o temor de que essa mesma instrução as torne cada dia menos assustadiças e menos humildes (PONCE, 2001, p. 150).

Nesse sentido, o processo de universalização da escola pública não foi linear e homogêneo, mas marcado por uma série de contradições, expressou a fragmentação dos conteúdos, típicos da forma pela qual se organizava a produção nas fábricas. De forma análoga ao que ocorreu com as terras, a burguesia se apropriou das matérias-primas e de todo o espaço produtivo.

O conhecimento materializado nas máquinas e dentro das fábricas tornou-se privativo das classes dominantes. Consequentemente, expropriada por meio das relações de produção constituídas pelo capitalismo, a classe trabalhadora também se viu privada do conhecimento, recebendo-o apenas em doses homeopáticas, suficientes para que pudesse executar suas tarefas. Assim, a escola refletiu a forma por meio da qual se organizou a produção (Cf. BEMVINDO, 2016).

Entretanto, deve-se destacar o movimento contraditório entre burguesia e proletariado e suas implicações para a educação, que “[...] é apontado não somente por marxistas, mas também por intelectuais comprometidos com um entendimento contextualizado da educação” (LOMBARDI, 2010, p. 22). Nesse sentido, podemos verificar, por exemplo, o caso de Franco Cambi, autor de História da Pedagogia, que, segundo Lombardi (2010, p. 22):

faz uma síntese erudita e metodologicamente eclética dos conhecimentos construídos nesse campo de investigação. Ele entende o Século XIX como aquele caracterizado pela existência de uma frontal oposição entre as duas classes fundamentais da sociedade capitalista e que se refletia em todas as dimensões da vida e organização da sociedade, seja a econômica, a social, a política e a ideológica. Cambi enfatiza o confronto entre a burguesia e o proletariado, afirmando que esse embate também produziu projetos antagônicos e radicais no que diz respeito à educação e à pedagogia [...]. Para este autor, nenhuma região do planeta ficou livre das profundas e aceleradas transformações então em curso. Conservadores, reformistas e revolucionários colocavam na educação um papel essencial, quer para manter o equilíbrio e a harmonia social, quer para promover ajustes que resolvessem disfunções sociais ou mesmo para revolucionar a ordem existente.

Cambi esclarece em seu texto que, ao longo do século XIX, foram forjados projetos político-pedagógicos antagônicos que podem ser identificados em dois campos: o burguês e o proletariado, inspirados respectivamente no positivismo e socialismo (Cf. CAMBI, 1999). Essa disputa atinge todos os níveis de instrução e expressa o grau de antagonismo presente nas relações sociais.

Ressaltamos, ainda, que o processo de consolidação da sociedade burguesa foi acompanhado pela defesa da educação como um dos seus fundamentos, cujos projetos educacionais, propostas e práticas pedagógicas foram construídos e modificados no calor das lutas de classes e das transformações do processo produtivo.

Se quisermos avançar um pouco mais, basta apontar que, no momento em que o capitalismo consolidava-se como modo de produção, as escolas destinadas ao proletariado mais pareciam um depósito, em que as crianças recebiam atestado de frequência escolar.

O espírito da produção capitalista resplandecia vitorioso na redação confusa das chamadas cláusulas de educação das leis fabris, na falta de aparelhagem administrativa, que tornava frequentemente ilusória a obrigatoriedade do ensino, na oposição dos próprios fabricantes contra essa obrigatoriedade e nas suas manhas e trapaças para se furtarem a ela. ‘Toda crítica deve ser dirigida contra a legislatura que promulgou uma lei provisória, que ostentando o pretexto de cuidar da instrução das crianças, não contém nenhum dispositivo que assegure a consecução desse objetivo. Essa lei estabelece apenas que as crianças sejam encerradas por determinado número de horas (3) por dia, entre as quatro paredes de um local chamado escola e que o empregador receba por isso semanalmente um certificado subscrito por uma pessoa que se qualifique de professor ou professora’. Antes da lei fabril emendada de 1844, não eram raros os certificados de frequência à escola, subscritos com uma cruz por professores ou professoras que não sabiam escrever: ‘Ao visitar um dessas escolas que expediam certificado, fiquei tão chocado com a ignorância do mestre-escola que lhe perguntei: ‘Por favor, o senhor sabe ler?’ Responde ele: ‘Ah! Sei somar’. Para justificar-se, acrescentou: ‘em todo o caso, estou à frente dos meus alunos’ (MARX; ENGELS, 2004, p. 69-70).

No contexto “[...] em que uma nova palavra entrou no vocabulário econômico e político do mundo: capitalismo” (HOBSBAWM, 1982, p. 21), a constituição da educação pública, sob direção do Estado burguês, ocupou o papel de naturalizar as desigualdades sociais. Não por acaso, a educação ofertada aos filhos dos trabalhadores, para além dos rudimentos necessários ao sistema fabril, pautou-se também pela proposta de formação moral dos indivíduos com vistas à aceitação da ordem social e o controle do ímpeto revolucionário do proletariado.

Porém, antes mesmo que o movimento operário avançasse em suas lutas e que Marx desenvolvesse sua crítica à economia política, outros intelectuais demonstravam sua contrariedade ao caráter predatório do capitalismo, às condições de vida dos trabalhadores e às formas de educação gestadas no interior da sociedade burguesa.

Por conseguinte, considerando a constituição histórica do projeto pedagógico identificado com o socialismo, é importante ressaltar que este teve suas origens vinculadas às proposições do chamado “socialismo utópico”, fundamentalmente com François Marie Charles Fourier (1772-1837), idealizado a partir das comunidades denominadas falanstérios e Robert Owen (1771-1858), considerado um reformador social e um educador britânico que confluiu para as elaborações de Marx e de Engels, iniciadas a partir da publicação do Manifesto do Partido Comunista, em 1848. É a perspectiva socialista de educação presentes em Marx e Engels que será trabalhada nas linhas abaixo.

A atualidade do princípio da união entre ensino e trabalho e da pedagogia histórico-crítica

A tarefa de construção de uma educação identificada com os interesses da classe trabalhadora e, portanto, socialista, não é uma atividade que deve ser pensada somente após a superação do modo de produção capitalista, precisamente porque sua tarefa história é forjada a partir das necessidades de construção da consciência de classe dos trabalhadores. Seu objetivo é a formação omnilateral, que busca desenvolver todas as dimensões do homem, tendo como fundamento o princípio educativo do trabalho.

Isto posto, vale destacar que a educação da classe trabalhadora não deve ser tão somente uma atividade de denúncia das mazelas do capitalismo. É preciso, também, que seja forjada a partir de uma análise rigorosa dos determinantes materiais da exploração do capital sobre os trabalhadores. Assim, não devemos nos esquecer que as análises de Marx e de Engels a respeito da educação, ainda que esparsas, foram construídas a partir da participação dos autores nas lutas proletárias do século XIX. Entre os aspectos por eles levantados, destacam-se: as condições concretas de trabalho e formação das crianças do período; o papel do Estado na educação; a unidade entre ensino e trabalho; a necessidade de uma educação financiada pelo Estado, mas sob controle dos trabalhadores.

Existe uma anuência entre diferentes pesquisadores marxistas de que o conceito de “educação politécnica” foi forjado originalmente por Marx, consistindo basicamente no desenvolvimento integral do educando a partir de três aspectos: educação corporal, educação intelectual e educação tecnológica (MARX; ENGELS, 2004). A expressão dessa proposta implica na superação da formação unilateral do trabalhador, compreendida como condição requisito para a constituição de uma sociedade fundamentalmente diferente e emancipada.

Em suma, a categoria trabalho destaca-se por seu papel basilar no processo educativo, pois significa, em sua essência, formar um indivíduo na sua totalidade, omnilateralmente, de forma a contribuir para inserção na sociedade, não alienada. Manacorda (2010), a partir das formulações marxianas, destaca o imperativo do trabalho para o processo na formação dos trabalhadores.

Sua concepção de instrução é delineada numa forma explícita e detalhada nas instruções aos delegados ao I Congresso da Internacional dos Trabalhadores, que se realizou em Genebra em setembro de 1866; aqui, após ter aceito, sem sentimentalismos, a tendência da indústria a introduzir na produção a colaboração de crianças e adolescentes de ambos os sexos, desde que isso aconteça de modo adequado às forças infantis, e após ter afirmado que, cada um deve participar do trabalho produtivo e trabalhar não somente com o cérebro mas também com as mãos, ele assim precisa sua concepção: ‘por instrução nós entendemos três coisas: instrução intelectual, [...] educação física, assim como é ministrada nas escolas de ginástica e pelos exércitos militares, [...] treinamento tecnológico, que transmita os fundamentos científicos gerais de todos os processos de produção e que contemporaneamente introduza a criança e o adolescente no uso prático e na capacidade de manusear os instrumentos elementares de todos os ofícios’ (MANACORDA, 2010, p. 358).

As análises do autor italiano deixam claro a vinculação das propostas de Marx com a formação omnilateral dos trabalhadores. Promover a formação intelectual, a formação tecnológica e a corporal significavam a preparação dos trabalhadores e seus filhos para o enfrentamento dos desafios colocados pela sociedade capitalista. No entanto, é importante enfatizar que tal processo só seria possível por meio da articulação das atividades intelectuais e motoras vinculadas com o processo produtivo.

Antes de tudo, Marx tem em vista a unidade entre instrução e trabalho para todos. Interessava-se por uma formação tecnológica que não guiasse uns para uma atividade profissional e outros para outra. Ele tem em mente uma formação que contribua para formação de todos, tanto em “[...] conhecimento da totalidade das ciências, como as capacidades práticas em todas as atividades produtivas. Ela visava, enfim, a uma formação de homens total e omnilateralmente desenvolvidos” (MANACORDA, 2010, p. 359).

Considerando as análises de Marx e de Engels, compreende-se o trabalho como princípio educativo porque, historicamente, o homem satisfaz suas necessidades por meio do trabalho, estabelecendo-se como principal atividade humana, na medida em que transforma a natureza e a si mesmo. Nesse processo, o homem se humaniza por meio do trabalho, atuando sobre a realidade objetiva e humanizando o mundo:

O homem se diferencia dos outros animais por muitas características, mas a primeira, determinante, é a capacidade de trabalho. Enquanto outros animais apenas recolhem o que encontram na natureza, o homem, ao produzir as condições da sua sobrevivência, a transforma. A capacidade de trabalho faz com que o homem seja um ser histórico; isto porque cada geração recebe condições de vida e as transmite a gerações futuras, sempre modificadas - para pior ou para melhor (SADER, 2007, p. 14).

Por conseguinte, não é qualquer tipo de atividade que caracteriza o trabalho, mas uma ação adequada a finalidades. Ora, se a existência humana não é garantida pela natureza, mas precisa ser produzida cotidianamente pelas ações dos homens, constituindo-se, como, um produto do trabalho, “[...] isso significa que o homem não nasce homem. Ele forma-se homem” (SAVIANI, 2007, p. 154).

Com a consolidação do modo de produção capitalista, a educação expressou a hegemonia dos interesses da burguesia. Nesse sentido, qual o papel dos educadores comunistas? Por se referir a um projeto de emancipação dos trabalhadores, a proposta pedagógica identificada com o materialismo histórico não se limita à educação escolar, mas assume, como tarefa, a contribuição para a formação da consciência de classe dos trabalhadores.

Como educadores comunistas, como bem recomenda Saviani, temos uma dupla tarefa: por um lado, empreender uma radical e profunda crítica à educação burguesa, mostrando seus mecanismos classistas de funcionamento, desmistificando e desnaturalizando a inculcação ideológica realizada na escola; por outro, organizarmos uma prática educativa que possibilite aos assalariados, aos dominados, o acesso ao saber historicamente produzido pela humanidade. Como a burguesia se apropria da ciência e de todos os saberes para impulsionar o desenvolvimento das forças produtivas sob seu controle, bem como para reforçar e naturalizar a dominação de classe, nos cabe viabilizar aos que vivem do trabalho o acesso e a apropriação aos conteúdos e saberes elaborados pela humanidade, possibilitando uma potencialização de sua luta em defesa de seus interesses (LOMBARDI, 2010, p. 40-41).

Conforme as análises de Lombardi, das quais corroboramos, cabe aos educadores, identificados com a superação da exploração do homem pelo homem em favor de uma sociedade sem classes, o compromisso com a luta estratégica de uma educação que seja instrumento de luta dos trabalhadores. Desse modo, a transformação revolucionária da sociedade capitalista implica, essencialmente, em um processo formativo que possibilite a apropriação do conhecimento historicamente produzido e resgate a unidade entre o trabalho manual e intelectual. Marx (2013, p. 157) já apontava em 1843 que:

A arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica da arma, o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria também se torna força material quando se apodera das massas. A teoria é capaz de se apoderar das massas tão logo demonstra ad hominem, e demonstra ad hominem tão logo se torna radical. Ser radical é agarrar a coisa pela raiz. Mas a raiz para o homem é o próprio homem.

Ora, como “a teoria é capaz de se apoderar das massas”? Certamente não será por um processo espontâneo e não intencional. A apropriação do conhecimento - enquanto uma totalidade - e a formação omnilateral do homem são requisitos importantes para a luta de superação revolucionária do capitalismo. É importante destacar que em 1848, por exemplo, Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista defenderam “[...] a educação pública e gratuita para todas as crianças, abolição do trabalho das crianças nas fábricas, tal como é praticado hoje. Combinação da educação com produção material etc.” (MARX; ENGELS, 1998, p. 31).

Ora, fica evidenciado que já no Manifesto Comunista apresentavam o princípio do trabalho na formação do homem e transformação social. Como mencionado, não se tratou de uma manifestação isolada dos autores. Em 1875, Marx ao elaborar a Crítica ao programa de Gotha, abordou a questão nos seguintes termos: "O parágrafo sobre as escolas deveria exigir, pelo menos, escolas técnicas (teóricas e práticas), combinadas com a escola primária" (MARX; ENGELS, 2004, p. 102).

Ainda no mesmo texto, Marx e Engels posicionaram-se contrários a uma "educação popular a cargo do Estado":

[...] O Partido Operário Alemão exige, como base espiritual e moral do Estado: 1. Educação popular geral e igual a cargo do Estado. Assistência escolar obrigatória para todos. Instrução gratuita. Educação popular igual? Que se entende por isso? Acredita-se que na sociedade atual (que é a de que se trata), a educação pode ser igual para todas as classes? O que se exige é que também as classes altas sejam obrigadas pela força a conformar-se com a modesta educação dada pela escola pública, a única compatível com a situação econômica, não só do assalariado, mas também do camponês? ‘Assistência escolar obrigatória para todos. Instrução gratuita’. A primeira já existe, inclusive na Alemanha; a segunda na Suíça e nos Estados Unidos, no que se refere às escolas públicas. O fato é que se em alguns dos Estados deste último país sejam ‘gratuitos também os centros de ensino superior, significa tão somente, na realidade, que ali as classes altas pagam suas despesas de educação às custas do fundo dos impostos gerais. [...] Isso de educação popular a cargo do Estado é completamente inadmissível. Uma coisa é determinar, por meio de uma lei geral, os recursos para as escolas públicas, as condições de capacitação do pessoal docente, as matérias de ensino, etc, e velar pelo cumprimento destas prescrições legais mediante inspetores [...] outra coisa completamente diferente é designar o Estado como educador do povo! Longe disto, o que deve ser feito é subtrair a escola a toda influência por parte do governo e da Igreja [...] (MARX; ENGELS, 2004, p. 101-102).

Ao compreender a educação escolar como parte da superestrutura de uma sociedade dividida em classes antagônicas, Marx rejeita que o Estado ocupe o papel de educador dos trabalhadores. Isso não quer dizer, no entanto, que o Estado deveria se omitir nas garantias de recursos para o financiamento da educação pública.

A partir destes postulados, Marx aponta para uma proposta de educação que se converta em um instrumento estratégico para as lutas de emancipação dos trabalhadores e, além disso, permita o acesso aos bens culturais necessários para uma participação efetiva e revolucionária da sociedade. Tratava-se de unificar a escola com o trabalho.

Um projeto de educação integral de trabalhadores que tenha o trabalho como princípio educativo articula-se ao processo dinâmico e vivo das relações sociais, pressupondo-se a participação ativa dos sujeitos, como meio de alimentar de sentido a ação educativa mediada, dialogada, repensada, renovada e transformada continuamente, dialeticamente. Enfatiza a construção coletiva do conhecimento a partir da socialização dos diversos saberes e da realização de um trabalho integrado entre educadores, incorporando os acúmulos advindos das diversas experiências formativas trazidas, individualmente, pelos diferentes sujeitos educadores (FRIGOTTO; CIAVATA; RAMOS, 2005, p. 71).

Dessa forma, pela perspectiva da classe trabalhadora, a educação escolar deve proporcionar a aquisição de conhecimentos técnico-científicos, que possibilitem ao trabalhador o conhecimento do processo produtivo e acerca do significado do trabalho na produção da existência, adotando a perspectiva de formação integral. Não se trata de formar para o mercado, mas de contribuir para o acesso ao conhecimento historicamente produzido pela humanidade.

A educação pautada em uma perspectiva marxista objetiva a formação omnilateral do homem. Significa, portanto, uma proposta educativa de superação radical aos desígnios do capital. A tradição marxista opera com a perspectiva de que o indivíduo deve se desenvolver de forma integral, ou seja, o homem não é tão somente materialidade corporal ou, ainda, não se reduz a uma visão teleológica do mundo circundante. Tomando os escritos de Marx, a omnilateralidade apenas pode se realizar, por completo, no interior de uma sociedade comunista, autorregulada do ponto de vista da organização, produção e distribuição dos bens necessários para garantir a existência de todos. Enfim, o que se aspira é uma sociedade sem classes, sem a dominação do homem pelo homem e, consequentemente, o fim do modo de produção capitalista.

Não se trata de revolucionar a sociedade por meio da educação, mas de inseri-la como instrumento de luta dos trabalhadores. Nesse sentido, é importante enfatizar que a formação integral do homem não diz respeito à educação compreendida como uma finalidade em si mesma, mas de um processo que objetiva que a classe trabalhadora tome consciência de si, de sua trajetória histórica enquanto indivíduos produtores dos meios para existência, das contradições e desigualdades presentes nas relações sociais. Isso porque pressupõe não apenas desenvolver análise de regras científicas, mas também compreender os interesses envolvidos dentro de uma totalidade histórica marcada pelos antagonismos de classes.

Em suma, os autores consideravam a educação como um elemento importante para a luta de superação da ordem burguesa, devido ao imperativo de forjar a solidariedade e a consciência de classe entre os trabalhadores, e à necessidade de socializar os conhecimentos historicamente produzidos e sistematizados.

Já a perspectiva burguesa em relação à educação básica aponta para outro objetivo: a permanência da dualidade. Para os filhos da classe trabalhadora, resta, então, uma educação pautada na formação para execução de atividades cada vez mais simplificadas pelo uso constante das tecnologias e, em contrapartida, a formação para o trabalho intelectual, dirigida para uma pequena parcela. Isso se deve à forma de organização social pautada no modo de produção capitalista, que se encontra assentado na divisão social e técnica do trabalho. Na prática, os homens são educados para compreender as diferenças como algo natural e exercer diferentes posições no sistema produtivo.

Considerações finais

Diante do contexto marcado pela consolidação do modo de produção capitalista, que evidenciou a produção de riqueza em escala industrial, materializada por um avanço científico-tecnológico inimaginável para muitos e, de outro, as condições miseráveis para a grande maioria dos homens e mulheres, Marx e Engels forjaram um sistema teórico que tinha como horizonte a emancipação humana como finalidade e a da ação revolucionária o instrumento dos trabalhadores para a conquista do reino da liberdade. A partir das formulações marxianas e engelsianas, percebemos que, para os autores, a instrução dos trabalhadores era compreendida como um aspecto fundamental para a construção da consciência de classe do proletariado.

Em pleno alvorecer do século XXI, mais do que nunca, a produção de Marx e Engels demonstra sua atualidade. Assim, o capital mostra cada vez mais sua incapacidade civilizatória. Suplantá-lo é uma tarefa urgente para a sobrevivência da humanidade. No entanto, tal empreitada exige maior aprofundamento teórico para compreender a dinâmica destrutiva do capital, percebendo que as alternativas reformistas ou conciliatórias não têm força revolucionária para superar a desumanização dos homens transformados em mercadoria.

Diante das contradições e antagonismos de classes do capitalismo, é fundamental que a classe trabalhadora e seus intelectuais orgânicos se posicionem em defesa de uma educação que contribua para as lutas de emancipação de todos. É necessário, então, propiciar a todos os homens e mulheres o acesso aos conhecimentos mais elaborados produzidos pela humanidade como forma de possibilitar a compreensão da sociedade. Aqui cabe reforçar o posicionamento contrário ao projeto pedagógico hegemônico, que defende a educação básica vinculada aos interesses dominantes e às propostas pedagógicas identificadas como pedagogia das competências, do empreendedorismo ou, ainda, da empregabilidade.

Nesse sentido, a formação do homem integral e completo (omnilateral), educado a partir do princípio da união entre ensino e trabalho, cujas premissas materiais já estão colocadas no interior do capitalismo, só será possível historicamente com sua superação. Isso, no entanto, não significa cair no imobilismo. É preciso opor-se e denunciar todas as propostas identificadas em formar o indivíduo obediente e adaptado às demandas do capital. Somente a luta pela formação e pela emancipação do homem poderá contribuir para a conquista da igualdade. Não se trata, portanto, da igualdade jurídica burguesa, mas de uma sociedade alicerçada em uma igualdade real e concreta entre todos os homens e mulheres como requisito da emancipação de todos.

Finalmente, entendemos que a educação poderá contribuir para a construção de uma percepção de que todos os homens devem ser iguais e, dessa forma, possuir acesso aos meios que possibilitem a vida em plenitude para todos. Por fim, fica evidente a urgência de uma educação que contribua para a emancipação de todos os homens e mulheres.

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SOBRE O/AS AUTOR/AS

Como citar este artigo GOMES, Marco Antônio de Oliveira; RODRIGUES, Ana Paula Aires; VASCONCELO, Mônica. Apontamentos para uma educação omnilateral em Marx e Engels. Revista Práxis Educacional, Vitória da Conquista, v. 18, n. 49, 2022. DOI:10.22481/praxisedu.v18i49.9034

Recebido: 16 de Julho de 2021; Aceito: 01 de Outubro de 2022

Marco Antônio de Oliveira Gomes. Doutor em História e Filosofia da Educação pela Unicamp. Docente na UEM. Líder do Grupo de Pesquisa “Fundamentos Históricos da Educação” - UEM/CNPq. Contribuição de autoria: escrita e análise do texto final - http://lattes.cnpq.br/0581840246394811

Ana Paula Aires Rodrigues. Doutoranda em Educação pela UEM. Docente na Unespar - Campus de Campo Mourão. Contribuição de autoria: Levantamento de bibliografias, escrita e acompanhamento do texto - http://lattes.cnpq.br/4908714314864555

Mônica Vasconcelo. Doutoranda em Educação pela UEM. Bolsista da CAPES. Contribuição de autoria: Levantamento de bibliografias, escrita e acompanhamento do texto - http://lattes.cnpq.br/7468718060335732.

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