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Revista Práxis Educacional

versão On-line ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.18 no.49 Vitória da Conquista  2022  Epub 04-Jul-2023

https://doi.org/10.22481/praxisedu.vxxixx.xxxx 

Seção Temática

UMA ANÁLISE DOS CURRÍCULOS PORTUGUÊS E BRASILEIRO SOB O OLHAR DA EDUCAÇÃO HISTÓRICA

AN ANALYSIS OF PORTUGUESE AND BRAZILIAN CURRICULUMS FROM THE PERSPECTIVE OF HISTORY EDUCATION

UN ANÁLISIS DE LOS CURRÍCULOS PORTUGUÉS Y BRASILEÑO DESDE LA PERSPECTIVA DE LA EDUCACIÓN HISTÓRICA

1Universidade Estadual de Londrina, Londrina, Paraná, Brasil; anab.thomson@yahoo.com.br

2Universidade do Minho, Braga, Portugal; gago.marilia@gmail.com

3Universidade Estadual de Londrina, Londrina, Paraná, Brasil; cainelli@uel.br


RESUMO:

Este artigo tem como objetivo analisar dois documentos curriculares ligados ao ensino de História, as Aprendizagens Essenciais (AE) aprovadas em 2018 em Portugal e as Habilidades da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) aprovadas em 2017, no Brasil. Realizaremos uma análise qualitativa, utilizando a estratégia metodológica da análise documental. Em um primeiro momento, faremos uma breve contextualização de ambos documentos, verificando em quais contextos históricos eles foram aprovados e como são explicitadas as concepções de aprendizagem histórica em ambas propostas. Nossa análise insere-se no campo da Educação histórica, que em Portugal e no Brasil tem se constituído como uma proposta de ensino de história que articula teoria e prática na perspectiva da epistemologia da história e que tem se colocado como um campo de estudo para um ensino de história comprometido com o pluralismo democrático. Nesse sentido, a análise terá como foco a identificação de elementos-chave do campo da Educação histórica nesses documentos curriculares, como a abordagem de conceitos meta-históricos, de conceitos substantivos e a questão dos temas controversos. Também estabelecemos um recorte de análise nos currículos do 9º ano em ambos países sobre as abordagens dos pressupostos da aprendizagem histórica apresentada pelos documentos curriculares.

Palavras-chave: educação histórica; currículo; conceitos meta-históricos.

ABSTRACT:

This article aims to analyze two curricular documents related to the teaching of History, the Essential Learnings (AE) approved in 2018 in Portugal and the Common National Curriculum Base Skills (BNCC) approved in 2017 in Brazil. We will carry out a qualitative analysis, using the methodological strategy of document analysis. At first, we will briefly contextualize both documents, verifying in which historical contexts they were approved and how the concepts of historical learning in both proposals are explained. Our analysis is part of the field of History Education, which in Portugal and Brazil has been constituted as a proposal for teaching history that articulates theory and practice in the perspective of the epistemology of history and which has been positioned as a field of study for a history teaching committed to democratic pluralism. In this sense, the analysis will focus on identifying key elements of the field of History Education in these curricular documents, such as the approach to meta-historical concepts, substantive concepts and the issue of controversial themes. We also established an analysis cutout in the 9th grade curricula in both countries on the approaches to the assumptions of historical learning presented by the curriculum documents.

Keywords: history education; curriculum; metahistorical concepts.

RESUMEN:

Este artículo tiene como objetivo analizar dos documentos curriculares relacionados con la enseñanza de la Historia, los Aprendizajes Esenciales (AE) aprobados en 2018 en Portugal y las Habilidades de la Base de currículo nacional común (BNCC) aprobadas en 2017 en Brasil. Realizaremos un análisis cualitativo, utilizando la estrategia metodológica de análisis documental. En un primer momento contextualizaremos brevemente ambos documentos, verificando en qué contextos históricos fueron aprobados y cómo se explican los conceptos de aprendizaje histórico en ambas propuestas. Nuestro análisis forma parte del campo de la Educación Histórica, que en Portugal y Brasil se ha constituido como una propuesta de enseñanza de la historia que articula teoría y práctica en la perspectiva de la epistemología de la historia y que se ha posicionado como un campo de estudio para una enseñanza de la historia comprometida con el pluralismo democrático. En este sentido, el análisis se enfocará en identificar elementos claves del campo de la Educación Histórica en estos documentos curriculares, como el abordaje de conceptos metahistóricos, conceptos sustantivos y el tema de temas controvertidos. También establecimos un recorte de análisis en los planes de estudio de 9º grado en ambos países sobre los enfoques a los supuestos del aprendizaje histórico presentados por los documentos del plan de estudios.

Palabras clave: educación histórica; currículum; conceptos metahistóricos

Introdução

Nos últimos anos, muitas políticas educacionais empreendidas nos países ocidentais têm demonstrado um alinhamento a perspectivas neoliberais, que priorizam a formação dos estudantes para o mercado de trabalho a partir do desenvolvimento de diferentes competências. A valorização do chamado conhecimento substantivo em forma de um currículo prescritivo também é uma forte tendência nos últimos anos (SOLÉ, 2017). Esse movimento mundial de reestruturação curricular foi impulsionado principalmente pelas políticas implantadas pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)1 , que vêm realizando pesquisas e relatórios internacionais e abrangentes acerca da educação.

Contudo, embora tais abordagens possam parecer inovadoras a princípio, é importante ressaltar que em sua maioria desconsideram as particularidades das áreas disciplinares e promovem a “[...] desvalorização das ciências sociais, pela perspectiva economicista e tecnocrata atribuída ao ensino que valoriza as áreas de ciências exactas” (SOLÉ, 2017, p. 3-4). Segundo Fronza (2020), essas políticas educacionais mais recentes são carregadas de “teorias alienantes” e transformam metas de aprendizagem em moedas de troca que desumanizam professores, alunos e gestores educacionais. Vista sob tal perspectiva, a didática assume um papel instrumentalizador e superficial, que banaliza a natureza específica das disciplinas estabelecendo-se como uma receita supostamente “pronta” e generalista para ser aplicada nas escolas.

Considerando esse contexto atual e as implicações dessas recentes políticas educacionais, este artigo tem como objetivo analisar dois documentos curriculares aprovados recentemente, sendo um deles em Portugal e o outro no Brasil. Ambos documentos são responsáveis por orientar currículos, planejamentos e ações dos professores em sala de aula. A investigação proposta nesse artigo será feita segundo os preceitos metodológicos da análise documental, cujo recorte será a faixa etária do 9° ano de escolaridade. A análise se insere no campo teórico-metodológico da Educação Histórica, que desde os anos 1970 vem agregando pesquisadores preocupados com a formação e o desenvolvimento do pensamento histórico de alunos e professores. Para isso, as investigações são fundamentadas na epistemologia da ciência histórica e assumem como pilares análises sobre conceitos substantivos, conceitos de segunda ordem, progressão das ideias de alunos e professores (LEE, 2003), experiências didáticas em aulas de história (BARCA, 2011) e também aspectos relacionados à teoria da consciência histórica (RÜSEN, 2015).

As Aprendizagens Essenciais em Portugal

Em Portugal, o despacho n° 6478 de 2017 aprovou o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (PA), documento considerado base principal de referência para o desenvolvimento dos currículos e das políticas educacionais no país. De acordo com esse documento, o PA não tem a intenção estipular um conjunto de conhecimentos mínimos ou ideais, mas sim definir alguns aspectos “desejáveis” mantendo certa “flexibilidade” no que se refere ao âmbito curricular.

Não falamos de um mínimo nem de um ideal, mas do que se pode considerar desejável, com necessária flexibilidade. Daí a preocupação de definir um perfil que todos possam partilhar e que incentive e cultive a qualidade (DGE-PA, 2017, p. 5).

O PA se divide em 4 partes: Princípios, Visão, Valores e Áreas de Competências e apresenta reflexões sobre aquilo que os jovens devem alcançar ao final do período de escolaridade obrigatória em Portugal. Na primeira parte, são definidos 8 princípios que devem orientar o sistema educativo: Base humanista, Saber, Aprendizagem, Inclusão, Coerência e flexibilidade, Adaptabilidade e ousadia, Sustentabilidade, Estabilidade. Esses princípios apresentam uma natureza genérica, sem delimitar aspectos relacionados às disciplinas específicas. Sua função é orientar alunos, professores, gestores e as escolas como um todo, estipulando a base humanista como fundante do programa educativo.

Na segunda parte, intitulada Visão, o PA apresenta alguns tópicos que pretendem orientar um modelo de escolaridade que seja voltado à “qualificação individual e à cidadania democrática”. Pode-se afirmar que nesta parte o documento apresenta sua própria definição sobre o conceito de cidadania, enumerando diversas atitudes que devem caracterizar os jovens ao fim de seu percurso na escola como: serem capazes de “lidar com a mudança e com a incerteza num mundo em rápida transformação”, “[...] pensar crítica e autonomamente, criativo, com competência de trabalho colaborativo e com capacidade de comunicação” e respeitar “os princípios fundamentais da sociedade democrática e os direitos, garantias e liberdades em que esta assenta” (DGE-PA, 2017, p. 15).

A terceira parte do PA, denominada Valores, enumera 5 valores que considera fundamental estarem presentes na educação dos jovens: Responsabilidade e integridade, Excelência e exigência, Curiosidade, reflexão e inovação, Cidadania e participação, Liberdade. A última parte do PA discute a questão das competências, definidas como “combinações complexas de conhecimentos, capacidades e atitudes”. De acordo com o documento, as competências não se referem especificamente às áreas disciplinares (veja na Figura 1) e devem compor o trabalho de todos os campos do saber, pois se estruturam em torno do uso de “literacias múltiplas” e de “tecnologias de informação e comunicação”.

Fonte: DGE-PA (2017, p. 19)

Figura 1 Áreas de competências definidas no PA 

A publicação do PA foi um marco para a reforma curricular em Portugal e a partir desse documento outras diretrizes educacionais de caráter mais prático foram implantadas. Nesse artigo, trataremos de um desses documentos aprovados depois do PA e que pode ser considerado mais específico no que se refere às práticas em sala de aula e à questão da aprendizagem histórica: as Aprendizagens Essenciais (AE) de História. Elas foram aprovadas no âmbito nacional em Portugal em 2018 e foram construídas a partir de discussões promovidas há décadas pelos pesquisadores ligados à Educação Histórica.

Em 2018 são aprovadas as Aprendizagens Essenciais (AE), na sua elaboração colaboraram investigadores da área Educação História e a Associação de Professores de História. As Aprendizagens Essenciais integram claramente os princípios epistemológicos da Educação Histórica (SOLÉ, 2021, p. 165).

Como um desdobramento do PA, as Aprendizagens Essenciais constituem o documento que norteia diretamente o trabalho dos professores em sala de aula atualmente em Portugal. Segundo esse documento, espera-se que os alunos formem sua consciência histórica adquirindo um posicionamento crítico e atuante na sociedade.

Pretende-se que o aluno adquira uma consciência histórica que lhe permita assumir uma posição crítica e participativa na sociedade, reconhecendo a utilidade da História para compreender de forma integrada o mundo em que vive e para a construção da sua identidade individual e coletiva. A História, através da análise fundamentada e crítica de exemplos do passado, é uma disciplina fundamental para promover a cultura de autonomia e responsabilidade, referida no documento PA. (DGE-AE 9° ano História, 2018, p. 2).

As Aprendizagens Essenciais são organizadas por ano de escolaridade e por disciplina. A estrutura do documento é formada por tabelas divididas em 4 colunas: Domínio, AE (conhecimentos, capacidades e atitudes), ações estratégicas e descritores do perfil dos alunos. Os conteúdos são então apresentados de modo cronológico, por meio de uma frase que indica uma ação a ser esperada do aluno.

Relacionar o ultimato inglês com o processo de expansão colonial europeu; Interpretar o primeiro conflito mundial à luz da rivalidade económica e do exacerbar dos nacionalismos; Analisar as alterações políticas, sociais, económicas e geoestratégicas decorrentes da rutura que constituiu a I Guerra Mundial (DGE-AE 9° ano História, 2018, p. 5).

A título de exemplo, no 9° ano, o documento apresenta 3 domínios (DGE-AE 9° ano História, 2018, p. 5):

A Europa e o mundo no limiar do século XX; Da grande depressão à Segunda Guerra Mundial; Do segundo pós-guerra aos desafios do nosso tempo.

Os conteúdos são apresentados em 51 frases que constituem as chamadas “Aprendizagens Essenciais” dessa faixa etária. Acompanhando os conteúdos, em outra coluna, algumas ações estratégias didáticas são sugeridas. Muitas dessas estratégias trazem menções diretas ao uso de fontes, à memorização, à valorização patrimonial, à verificação de conhecimentos prévios, à organização do discurso oral, entre outros procedimentos ligados tanto à ciência histórica quanto a outras áreas do saber.

[...] formular algumas hipóteses sustentadas em evidências, face a um acontecimento ou processo histórico, de forma autónoma; utiliza os conceitos operatórios da História para a compreensão dos diferentes contextos; (DGE-AE 9° ano História, 2018, p. 5).

Desse modo, articulando conhecimentos e atitudes, as Aprendizagens Essenciais em Portugal representam o documento base para professores elaborarem seus planejamentos, assim como para os autores organizarem os manuais didáticos.

No contexto de Portugal, as tendências ligadas à Educação Histórica permeiam os debates curriculares desde os anos 1990 (SOLÉ, 2017). Os estudos fundantes promovidos no contexto inglês nas décadas de 1970 e 1980 tiveram forte impacto ao valorizar o professor como investigador das ideias que os estudantes traziam às aulas e ao enfatizar a natureza particular da História no processo de ensino-aprendizagem. Nas Aprendizagens Essenciais de Portugal, os aspectos ligados aos conceitos meta-históricos são evidenciados com mais destaque e aparecem sob o título de “Ações estratégicas de ensino - exemplos de ações a desenvolver na disciplina”, em uma coluna paralela aos conteúdos. Essas ações são tanto ligadas às operações cognitivas genéricas, como também específicas da natureza da História. No documento (Quadro 1) referente ao 9° ano, identificamos 17 ações estratégicas que consideramos serem pautadas na epistemologia da História e que podem ser diretamente relacionadas a um conceito meta-histórico.

Quadro 1 Conceitos meta-históricos e Aprendizagens Essenciais 

Conceito meta-histórico Ação estratégica sugerida nas Aprendizagens Essenciais
Evidência
  • Formular algumas hipóteses sustentadas em evidências, face a um acontecimento ou processo histórico, de forma autónoma;

  • Organizar debates orientados que requeiram sustentação de afirmações, elaboração de opiniões ou análises de factos ou dados históricos;

  • Selecionar fontes históricas fidedignas e de diversos tipos; Organizar a informação recolhida em fontes históricas de diversos tipos;

  • Colocar questões-chave cuja resposta abranja um acontecimento ou processo histórico específico;

  • Utiliza os conceitos operatórios da História para a compreensão dos diferentes contextos;

  • Utiliza a metodologia específica da História para a análise de acontecimentos e processos;

  • Propor alternativas de interpretação a um acontecimento, evento ou processo, de forma autónoma;

Multiperspectividade
  • Promover a multiperspetiva em História, de forma autónoma;

  • Analisar fontes históricas escritas com diferentes pontos de vista, problematizando-os.

  • Confrontar ideias e perspetivas históricas distintas, respeitando as diferenças de opinião.

Significância
  • Analisar factos e situações, aprendendo a selecionar elementos ou dados históricos relevantes para o assunto em estudo;

  • Recolher e selecionar dados de fontes históricas relevantes para a análise de assuntos em estudo, aprendendo;

Narrativa histórica
  • Elaborar pequenas sínteses com base em dados recolhidos em fontes históricas analisadas;

  • Discutir conceitos ou factos numa perspetiva disciplinar e interdisciplinar, incluindo conhecimento disciplinar histórico, de forma autónoma;

  • Organizar o discurso oral ou escrito recorrendo a conceitos operatórios da História;

  • Organizar o discurso oral ou escrito recorrendo a conceitos metodológicos da História;

Fonte: as autoras.

As abordagens referentes aos conceitos meta-históricos nas Aprendizagens Essenciais são bem mais aprofundadas que o caso do documento brasileiro. A multiperspectividade é abordada a partir da capacidade de confrontação e de problematização de diferentes pontos de vista. A significância abrange os diferentes contextos históricos. A evidência é explorada sob diferentes aspectos, de modo que os alunos compreendam os procedimentos operacionais da ciência da História. Além disso, há uma preocupação com a questão da elaboração de narrativas históricas, para que os alunos consigam organizar seu discurso de modo fundamentado em fontes, seja oralmente ou fazendo uma síntese escrita. Outra diferença entre os dois currículos que analisamos é que no currículo português as ações estratégicas aparecem em cada ano de escolaridade e são adaptadas aos conteúdos específicos abordados naquela faixa etária, diferentemente do currículo brasileiro, que traz as mesmas 7 competências específicas para toda a etapa do ensino fundamental II (do 6° ao 9° ano de escolaridade).

A Base Nacional Comum Curricular no Brasil

Atualmente, a Base Nacional Curricular (BRASIL, 2018) é o principal documento curricular oficial que orienta as diretrizes educacionais no Brasil, seja para formulação de livros didáticos, para a organização dos currículos estaduais e municipais e para o planejamento docente. Uma primeira versão da BNCC, formulada por diversos grupos de especialistas, foi disponibilizada para consulta pública em 2015. Ao longo dos anos, uma segunda e terceira versão foram desenvolvidas a partir das colocações de professores e especialistas. Em 2018, foi apresentada a versão final com textos referentes à Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio. Nesse contexto, muito se discutiu no país sobre “qual história” deveria ser ensinada na escola, em um processo bastante conturbado de disputas.

É perceptível que o processo transcorreu reforçando uma lógica que compreende a Base Curricular Nacional como uma forma de selecionar conteúdos e definir objetivos para eles, o que é uma visão no mínimo restrita de currículo, e considerando a prescrição oficial como o espaço privilegiado das demonstrações de força e guerras territoriais entre pesquisadores. (MARTINS, 2017, p. 50).

De modo geral, a BNCC foi estruturada a partir da concepção do desenvolvimento de competências (SCHMIDT, 2021), tendência introduzida no Brasil nos anos 1990 já anunciada nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PNCs). A emergência da Pedagogia das competências está vinculada ao contexto do advento neoliberal, em que se busca preparar os alunos para o mercado de trabalho priorizando-se assim o desenvolvimento de capacidades genéricas que possam ser consideradas “úteis” profissionalmente. Como aponta a BNCC,

[...]competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (BRASIL, 2018, p. 8).

De acordo com Schmidt (2021), um dos principais problemas dessa abordagem de ensino-aprendizagem é o enfraquecimento do conhecimento específico das áreas de referência.

Torna-se explícita a face instrumentalizadora das diretrizes curriculares, em que a concepção de cidadania passa a ser identificada com a ideia de preparação para ser competente e com a perspectiva do aprender a aprender, minimizando a importância do conhecimento histórico como possibilitador do desenvolvimento da formação baseada na atribuição de sentidos para os alunos [...] (SCHMIDT, 2021, p. 51).

A BNCC apresenta dez Competências Gerais, que devem ser incentivadas por todos os componentes curriculares. Essas envolvem o desenvolvimento de capacidades de lidar com diversos aspectos da vida contemporânea: tecnologias digitais, escolhas do mercado de trabalho, autocuidado, autonomia, responsabilidade, sustentabilidade, curiosidade e resiliência, por exemplo. Também são explicitadas as Competências de Área, como é o caso das Ciências Humanas (composta por História e Geografia no Ensino Fundamental e História, Geografia, Filosofia e Sociologia no Ensino Médio) e as Competências Específicas, referentes a cada campo do saber.

Cada componente curricular da BNCC se articula ainda em unidades temáticas, objetos de conhecimento e habilidades. Em História, a organização dos conteúdos no Ensino Fundamental pauta-se na lógica cronológica, intercalando eventos históricos de caráter universal e nacional. Já no Ensino Médio, a organização se mantém por Área do conhecimento - integrando Filosofia, Geografia, História e Sociologia - sem se aprofundar em conhecimentos específicos da História, sendo uma abordagem de caráter temática organizada a partir dos seguintes tópicos: Tempo e Espaço; Territórios e Fronteiras; Indivíduo, Natureza, Sociedade, Cultura e Ética; e Política e Trabalho.

No campo da Educação Histórica, o trabalho com os conceitos meta-históricos constitui uma das faces fundamentais da aprendizagem histórica. Os meta-históricos são aqueles conceitos que se referem às operações cognitivas específicas da ciência histórica. Na BNCC, os conceitos meta-históricos não são mencionados de modo explícito. Porém, são apresentadas sete Competências Específicas de História para o Ensino Fundamental, que trazem algumas referências a uma aprendizagem voltada ao âmbito epistemológico da História (conforme Quadro 2).

Quadro 2 Competências Específicas de História para o Ensino Fundamental (BNCC) 

1. Compreender acontecimentos históricos, relações de poder e processos e mecanismos de transformação e manutenção das estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais ao longo do tempo e em diferentes espaços para analisar, posicionar-se e intervir no mundo contemporâneo.
2. Compreender a historicidade no tempo e no espaço, relacionando acontecimentos e processos de transformação e manutenção das estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais, bem como problematizar os significados das lógicas de organização cronológica.
3. Elaborar questionamentos, hipóteses, argumentos e proposições em relação a documentos , interpretações e contextos históricos específicos, recorrendo a diferentes linguagens e mídias, exercitando a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos, a cooperação e o respeito.
4. Identificar interpretações que expressem visões de diferentes sujeitos, culturas e povos com relação a um mesmo contexto histórico, e posicionar-se criticamente com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários.
5. Analisar e compreender o movimento de populações e mercadorias no tempo e no espaço e seus significados históricos , levando em conta o respeito e a solidariedade com as diferentes populações.
6. Compreender e problematizar os conceitos e procedimentos norteadores da produção historiográfica.
7. Produzir, avaliar e utilizar tecnologias digitais de informação e comunicação de modo crítico, ético e responsável, compreendendo seus significados para os diferentes grupos ou estratos sociais.

Fonte: (BRASIL, 2018, p. 402 - grifo nosso)

No texto das Competências Específicas da BNCC foi possível identificar algumas referências às operações cognitivas inerentes à metodologia da ciência histórica. Podemos notar que são abordados aspectos dos conceitos meta-históricos de tempo e mudança na competência específica 2. Porém, a abordagem do conceito de mudança, por exemplo, se restringe a “compreender os processos de transformação” sem tratar de aspectos essenciais como os ritmos e as direções de mudança, a periodização, a significância das transformações e a problematização da noção de progresso. Como apontam Gusmão e Sukow (2020), muitos dos documentos curriculares limitam-se à valorização da relação passado/presente e na aquisição de eventos do tempo linear, silenciando a questão dos horizontes de expectativa e de futuro. A questão da interpretação temporal para embasar a orientação da vida prática também não é mencionada no documento curricular. Sabe-se que a orientação temporal emerge “[...] no momento em que a interpretação do tempo vivido adquire uma relação com a vida prática ela transforma-se em orientação [...]” (GUSMÃO; SUKOW, 2020, p. 166-167). Consideramos, portanto, que a falta desse aspecto no texto do documento fragiliza a proposta de abordagem do conceito.

O conceito meta-histórico de evidência é colocado de modo bem sutil na competência específica 3, que na verdade faz referência a palavra “documentos”. Afirma-se que os alunos devem fazer “questionamentos, hipóteses, argumentos e proposições” às fontes históricas. Entretanto, nota-se que a frase é superficial e não explora o próprio conceito de fonte ou evidência e sabemos que “[...] sem um conhecimento conceitual, os alunos dificilmente irão além de um consumo acrítico das fontes históricas como informação [...]” (BERTOLINI; MIRANDA; SANTOS, 2020, p. 80). O trato com fontes em sala de aula envolve reflexões sobre a natureza do documento, suporte, materialidade, autoria e contexto. Bertolini, Miranda e Santos (2020) definem três princípios orientadores para o trabalho com fontes em sala de aula: indagar a origem, contextualizar e confirmar e comparar com outras fontes. Tais discussões são essenciais para que os alunos possam estabelecer uma análise aprofundada das fontes, para então conseguir criar argumentos e proposições em relação à evidência. Além disso, a competência específica não menciona a capacidade de confrontação com diversidade de fontes, procedimento cognitivo essencial para os alunos formularem interpretações mais completas e aprofundadas sobre os contextos históricos estudados.

O conceito de multiperspectividade pode ser trabalhado em sala de aula a partir do exposto na competência específica 4, que propõe a identificação de “visões de diferentes sujeitos”. Contudo, o documento não aprofunda abordando, por exemplo, a confrontação entre tais visões de modo que seja possível identificar divergências ou convergências entre pontos de vistas. Como aponta Barca (2011, p. 62-63) “[...] a mesma situação ou evento traz consequências positivas e negativas de forma variável e relativa, para pessoas e para grupos, e que historicamente as eventuais mudanças podem ser interpretadas sob diversos enfoques (dimensões sociais, grupos humanos e protagonistas individuais), ritmos (permanência, evolução lenta, ruptura) e escalas (curta, média e longa duração)”. Sem esse exercício de confrontação de versões os alunos são orientados a apenas identificar visões de diferentes sujeitos, limitando assim o trabalho com o conceito de multiperspectividade.

O conceito meta-histórico de significância pode ser abordado com os alunos a partir da competência específica 5. Entretanto, nota-se que nesta competência o conceito fica restrito ao contexto do “movimento de populações e mercadorias no tempo e no espaço”. Assim, de acordo com o texto do documento, os alunos devem analisar e compreender os significados históricos das migrações e do comércio em diferentes sociedades. Mas e os outros contextos históricos? O trabalho com a significância deve permear os diferentes temas abordados em sala de aula, pois ele pressupõe indagações vinculadas diretamente à epistemologia histórica: “[...] como indivíduos atribuem importância a fatos e acontecimentos no passado? Quais são os valores que interferem na forma como estes são interpretados e avaliados?” (CAINELLI, 2020, p.158). Trabalhar em sala de aula a partir do conceito de significância possibilita, portanto, que os alunos compreendam a própria natureza da ciência histórica e sua provisoriedade, já que a valoração de eventos e fatos pode alterar conforme o contexto, a época e a própria perspectiva dos historiadores.

Embora seja possível inferir essas referências aos conceitos meta-históricos nas competências específicas da BNCC, observamos que são referências superficiais que não aprofundam o “como fazer” ao professor e não trazem contributos teóricos para fundamentá-las. Compreendemos que a BNCC não foi criada a partir dos preceitos teórico-metodológicos da Educação Histórica, porém, ao apresentar alguns conceitos de modo superficial, ela pode dificultar o trabalho dos professores e propagar uma concepção simplista sobre a aprendizagem histórica.

Conteúdos substantivos

Com relação à estrutura curricular dos documentos dos dois países, foi possível verificar que ambos utilizam verbos indicativos de “atitudes” em relação aos conteúdos. Para a contagem desses verbos, enumeramos as habilidades da BNCC e as aprendizagens essenciais na ordem em que elas aparecem nos documentos (conforme Quadro 3).

Quadro 3 Contagem de verbos 

Verbos Número de identificação da Habilidade
da BNCC
Número de identificação da
Aprendizagem Essencial
Identificar 3, 5, 6, 7, 8, 10, 11, 17, 19, 21, 23, 28, 36 4, 7, 10, 14, 16, 21, 22, 24, 28, 35, 45, 51
Analisar 12, 17, 18, 24, 26, 28, 29, 32, 33, 35 3, 27, 33, 39, 42, 47, 50
Descrever 1, 13, 18, 29, 31 18
Discutir 4, 6, 14, 15, 20, 22, 26, 34, 36 -
Relacionar 9, 10, 16, 21, 25, 27 1, 15, 17, 25, 29, 36
Descrever 1, 13, 18, 29, 31 18
Compreender 2, 8, 19 5, 9, 13, 30, 43, 44, 46
Caracterizar 2, 14 49
Comparar 30 20
Avaliar 3, 5, 31 12
Contextualizar 1, 13 40
Explicar 7 19, 32, 38
Aplicar - 4, 7, 14, 16, 24, 28, 35, 45, 51
Indicar - 26, 48
Distinguir - 6, 37
Conhecer - 8
Interpretar - 2
Demonstrar - 11
Problematizar - 23
Destacar - 31
Realçar - 41
Integrar - 34

Fonte: as autoras.

O verbo mais citado em ambos os documentos curriculares para indicar a ação dos estudantes frente aos conteúdos foi “identificar”, com 13 menções na BNCC e 12 menções nas Aprendizagens Essenciais. Podemos afirmar que a capacidade de identificar está atrelada ao nível mais básico no que se refere à formação do pensamento histórico, pois não exige etapas como contextualização, nem o estabelecimento de relações entre fontes e a problematização das mesmas. As ações que exigem um nível de pensamento considerado mais complexo, como problematizar, avaliar, contextualizar e comparar foram citadas poucas vezes pelos documentos. No currículo português, das 12 menções ao verbo identificar nota-se que 9 delas foram acompanhadas do verbo “aplicar”, sugerindo que o processo de identificação deva ser acompanhado por outra etapa um pouco mais complexa.

Como aponta Schmidt (2021), o uso dos verbos generalistas para lidar com as operações cognitivas relacionadas ao processo histórico acaba fragilizando a relação com a ciência de referência e o processo de aprendizagem se ancora em ações a serem desenvolvidas em relação aos conteúdos.

Ademais, ao confundir a aprendizagem com o desenvolvimento de competências/habilidades, os documentos selecionam algumas operações mentais da consciência não propriamente histórica, tais como ‘conhecer’, ‘caracterizar’, ‘refletir’ e ‘utilizar fontes históricas’, indicando uma delimitação de categorias do pensamento que indicam ações a serem desenvolvidas em relação a determinados conteúdos, e não formas de compreensões históricas. (SCHMIDT, 2021, p. 55, grifos do autor).

O uso de verbos generalistas para se referir às operações da aprendizagem histórica é reflexo da forte influência da taxonomia de Bloom (1956) nas concepções curriculares. Criada em meados do século XX, em um contexto de aumento da fragmentação e da especialização, a taxonomia bloominiana ofereceu uma maneira de pensar sobre o conhecimento em grande escala (WINEBURG; SCHNEIDER, 2010). Segundo a taxonomia de Bloom, o conhecimento situa-se na base e a partir dele são elencadas operações cognitivas como: compreensão, aplicação, análise, síntese e avaliação. Sob esse ponto de vista, percebe-se que o conhecimento apresenta um status de “pronto” e “finalizado”, sendo então operacionalizado para um fim devidamente estipulado. Esse modelo proposto tem como objetivo fornecer um senso de ordenamento aos processos cognitivos, independentemente da área do saber que estivesse em discussão.

Analisando a taxonomia de Bloom a partir de uma perspectiva mais ligada à natureza do conhecimento histórico, Wineburg e Schneider (2010) questionam se o modelo não estaria invertido, já que o conhecimento deve configurar-se como objetivo final do processo de análise histórica. Afinal, a análise de fontes históricas, a confrontação de diferentes pontos de vista e a contextualização não têm como objetivo final a construção de conhecimentos sobre as sociedades de outros tempos? Então porque colocar o conhecimento como base e não no topo da pirâmide de Bloom? Tais questionamentos decorrem de uma análise que leva em conta as operações específicas ligadas à ciência da História e divergem da visão generalista adotada na pirâmide de Bloom.

Realizamos também a análise curricular verificando os conceitos substantivos que são apresentados em ambos documentos. No campo da Educação Histórica, os conceitos meta-históricos são articulados aos conceitos substantivos e fazem parte do que se convenciona chamar de “conteúdos”.

Os conceitos substantivos podem ser definidos como os conhecimentos compartilhados, agregados, somados e adquiridos por todos os sujeitos históricos e que são necessários para que se estabeleça um pensamento histórico a partir de carências da vida prática. (SILVA; SOUSA; SCORSATO, 2020, p. 56).

Os conceitos substantivos estão presentes no dia a dia das pessoas e são carregados de “cultura cotidiana” (SILVA; SOUSA; SCORSATO, 2020, p. 57). Assim, eles podem ser temas, fatos, ações, realizações que se referem ao passado e que apresentam significados para a sociedade. Quando articulados aos conceitos meta-históricos e trazidos à discussão sob o olhar epistêmico da História, os conceitos substantivos contribuem para a formação da consciência histórica.

Verifica-se que quando tratamos de conteúdos, os contextos históricos estudados por alunos brasileiros não estão tão distantes daqueles presentes no currículo português. Resguardadas as especificidades da História Nacional, que são adotadas em ambos currículos, sob o ponto de vista temporal-cronológico privilegia-se no 9° ano o estudo sobre o contexto global do século XX, envolvendo temáticas como: Revolução Russa, 1º e 2º Guerra Mundial, Guerra Fria, Globalização, América Latina e temas contemporâneos.

Na tabela a seguir, apresentamos esses conteúdos agrupados em 7 categorias. As colunas do Quadro 4 apresentam os números de identificação das Habilidades e das Aprendizagens Essenciais que identificamos em cada categoria e um exemplo referente a cada uma.

Quadro 4 Conteúdos substantivos 

Número de identificação da Habilidade da BNCC (Brasil) Número de identificação da Aprendizagem Essencial (Portugal)
História nacional 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 25, 27 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45
Descrever e contextualizar os principais aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos da emergência da República no Brasil. Contextualizar a mudança de regime que ocorreu em 25 Abril de 1974 com a crescente oposição popular à guerra colonial e à falta de liberdade individual e coletiva;
Revolução Russa 11 5, 6, 7
Identificar as especificidades e os desdobramentos mundiais da Revolução Russa e seu significado histórico. Compreender que o modelo ideológico socialista, saído da revolução de outubro de 1917, resultou de antagonismos sociais e políticos;
Contexto I Guerra Mundial 10, 12, 14 1, 2, 3, 4, 15, 16
Identificar e relacionar as dinâmicas do capitalismo e suas crises, os grandes conflitos mundiais e os conflitos vivenciados na Europa. Analisar as alterações políticas, sociais, económicas e geoestratégicas decorrentes da rutura que constituiu a I Guerra Mundial;
Contexto II Guerra Mundial 13 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 28
Descrever e contextualizar os processos da emergência do fascismo e do nazismo, a consolidação dos estados totalitários e as práticas de extermínio (como o holocausto). Relacionar a ascensão ao poder de partidos totalitários com as dificuldades económicas e sociais e com o receio da expansão do socialismo, realçando o papel da propaganda;
Contexto Guerra Fria 15, 16, 28, 31 26, 27, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 46,
Identificar e analisar aspectos da Guerra Fria, seus principais conflitos e as tensões geopolíticas no interior dos blocos liderados por soviéticos e estadunidenses Compreender a Guerra Fria como resultado das tendências hegemónicas dos EUA e da URSS, dando origem à formação de blocos militares e a confrontos;
América latina 29, 30, 34 -
Descrever e analisar as experiências ditatoriais na América Latina, seus procedimentos e vínculos com o poder, em nível nacional e internacional, e a atuação de movimentos de contestação às ditaduras. -
Cidadania e mundo atual 24, 26, 32, 33, 35, 36 47, 48, 49, 50, 51
Analisar os aspectos relacionados ao fenômeno do terrorismo na contemporaneidade, incluindo os movimentos migratórios e os choques entre diferentes grupos e culturas Analisar as dimensões da globalização (ex.: tecnologias de informação, comunicação e transportes, migrações);

Fonte: as autoras.

Depois de agrupar as Habilidades e as Aprendizagens Essenciais em 7 categorias, calculamos a proporção de cada categoria em relação ao currículo do 9° ano como um todo, considerando o total de 36 Habilidades e 51 Aprendizagens Essenciais (conforme Gráfico 1):

Fonte: as autoras.

Gráfico 1 BNCC - Brasil 

No currículo brasileiro, verificamos que 50% das Habilidades do 9° ano fazem referência à história do Brasil. A segunda categoria que apresenta mais incidência é Cidadania e mundo atual (16,6%), cujas discussões envolvem o contexto da globalização, desenvolvimento tecnológico, migrações e choques culturais. A terceira categoria com mais incidência é o contexto da Guerra Fria, seguidas por habilidades que fazem referência direta à América Latina e o contexto da Primeira Guerra Mundial. As categorias que apresentam as menores incidência no currículo brasileiro são a Segunda Guerra Mundial e a Revolução Russa, ambas com 2,7% (veja-se no Gráfico 2):

Gráfico 2 Aprendizagens Essenciais - Portugal 

Assim como ocorreu com o currículo brasileiro, a história nacional (deste caso de Portugal) também é a que ocupa maior espaço no currículo. No entanto, esse percentual é menor em Portugal, sendo que 33,3% dos conteúdos podem ser identificados diretamente com a história portuguesa. As próximas categorias com mais incidência nas Aprendizagens Essenciais são a Segunda Guerra Mundial, tema com pouco destaque no currículo brasileiro, e a Guerra Fria, ambas com 19,6%. Temas como a Primeira Guerra Mundial, Cidadania e mundo atual e Revolução Russa foram as que apresentaram menor incidência no currículo português, sendo que a categoria América Latina não foi contabilizada. Nesse sentido, importante ressaltar também que no currículo português do 9° ano a questão da predominância de aspectos políticos e econômicos em detrimento do âmbito cultural ou cotidiano já foi destacado por Solé (2021, p. 39, grifos do autor).

Domina o político e o económico, e pouco ex pressiva surge a história da vida quotidiana e a cultura, presente nos ‘loucos anos 20’ operadas pelas mudanças provocadas pela condicionalismos políticos, sociais e económicos em consequência da I Guerra Mundial.

Além disso, nessa etapa de escolaridade em ambos países há uma grande incidência de conteúdos considerados dolorosos ou, como intitulado por Borries (2018), de temas da história difícil (burdening history).

Há uma efetiva preocupação neste ano de escolaridade em se promover aprendizagens, para além do conhecimento substantivo, no saber procedimental e atitudinal, levando-os a refletir e ter sentido crítico sobre temas fraturantes e dolorosos quer ao nível da história mundial, como o holocausto, ou mesmo da história nacional, com a guerra colonial, quando se determina que os alunos deverão saber aplicar conceitos como Genocídio; Resis tência; Holocausto ou Movimentos de libertação; Descolonização; Neocolonialis mo (SOLÉ, 2021, p. 39).

Ao trabalhar o século XX, os currículos trazem os conflitos mundiais, a ascensão de regimes totalitários, o holocausto e outros temas mais específicos nacionais (como os contextos das ditaduras). Como apontado por Solé (2021), é no 9° ano que as discussões passam a englobar os conceitos de genocídio, holocausto e resistência, por exemplo.

Conclusões

Logo, tendo como referência o estudo realizado, é possível tecer algumas considerações sobre as Aprendizagens Essenciais portuguesas e as Habilidades da BNCC brasileiras. De modo geral, ambos currículos partem de uma concepção similar no que se refere ao papel das competências como princípio condutor da aprendizagem. As dez Competências gerais da BNCC e os princípios e valores nos quais são baseadas as Aprendizagens Essenciais destacam, por exemplo, a importância de capacidades como autonomia, resiliência, curiosidade, o uso de diferentes linguagens e tecnologias, além de valorizarem as atitudes sustentáveis e a participação social cidadã. Assim, é possível enquadrar ambos os currículos em uma perspectiva alinhada às tendências curriculares ocidentais, que ultimamente têm se desenvolvido a partir de parâmetros definidos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Tais perspectivas priorizam uma noção generalista sobre o currículo, desconsiderando as especificidades das disciplinas.

Além disso, percebe-se uma tendência comum em ambos os documentos curriculares em atrelar os conteúdos históricos a determinadas ações a serem empreendidas pelos estudantes. Nesses casos, os verbos cujas ações correspondentes exigem pouca complexidade cognitiva foram os mais frequentes quando analisada a faixa etária do 9° ano, sendo que no caso português há uma sutil complexificação ao se atrelar o verbo identificar ao verbo aplicar.

No caso do currículo português, é possível perceber uma relação de maior proximidade com os preceitos da Educação Histórica, principalmente no que se refere à profundidade de abordagem dos conceitos meta-históricos; enquanto no currículo brasileiro tais conceitos ainda aparecem de modo superficial e sem embasamento teórico específico. Por fim, no que se refere aos documentos do 9° ano, vê-se uma grande proximidade temática em relação aos conteúdos apresentados em ambos os currículos, dentro de uma lógica cronológica e dividida entre história ocidental e história nacional, onde a última prevalece em ambos.

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SOBRE AS AUTORAS

1 Organização internacional que tem como objetivo “moldar políticas que promovam prosperidade, igualdade, oportunidade e bem-estar para todos”. Juntamente com governos, formuladores de políticas e cidadãos, trabalham no “estabelecimento de padrões internacionais baseados em evidências e na busca de soluções para uma série de desafios sociais, econômicos e ambientais”. Fonte: https://www.oecd.org/about/.

SOBRE AS AUTORAS

5CAINELLI, Marlene Rosa; GAGO, Marília; THOMSON, Ana Beatriz Accorsi. Uma análise dos currículos português e brasileiro sob o olhar da educação histórica. Revista Práxis Educacional, Vitória da Conquista, v. X n. X, 202x. DOI

Recebido: 13 de Abril de 2022; Aceito: 01 de Novembro de 2022

Ana Beatriz Accorsi Thomson. Doutora em Educação pela UEL, Linha de Pesquisa História da Educação e Ensino de História. Professora de História da Secretaria de Educação do Estado do Paraná. Contribuição de autoria: Conceituação, Curadoria de Dados, Escrita. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6397258608830832.

Marlene Rosa Cainelli. Doutora em História Social e Pós Doutora em Educação pela UFPR, Pós-Doutora em Educação pela Universidade do Minho, Portugal; Pesquisadora do Centro de Investigação Transdisciplinar, Cultura, Espaço e Memória CITCEM Universidade do Porto, Portugal. Contribuição de autoria: Conceituação, Curadoria de Dados, Escrita. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9389915936393492.

Marília Gago. Doutora em Educação, Universidade do Minho, Braga, Portugal. Professora Auxiliar na Universidade do Minho. Investigadora do Centro de Investigação Transdisciplinar, Cultura, Espaço e Memória CITCEM, membro do LAPEDUH/UFPR. Contribuição de autoria: Conceituação, Curadoria de Dados, Escrita.

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