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Revista Práxis Educacional

versão On-line ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.18 no.49 Vitória da Conquista  2022  Epub 04-Jul-2023

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v18i49.10768 

Seção Temática

ANALFABETISMO, PRÁTICAS DE CURA E POPULAÇÃO NEGRA: UMA ANÁLISE DA PRODUÇÃO DISCURSIVA DA IMPRENSA BRASILEIRA NA DÉCADA DE 1850

ILLITERACY, HEALING PRACTICES AND BLACK POPULATION: AN ANALYSIS OF THE DISCURSIVE PRODUCTION OF THE BRAZILIAN PRESS IN THE 1850s

ANALFABETISMO, PRÁCTICAS CURATIVAS Y POBLACIÓN NEGRA: UN ANÁLISIS DE LA PRODUCCIÓN DISCURSIVA DE LA PRENSA BRASILEÑA EN LA DÉCADA DE 1850

Ana Maria de Oliveira Galvão1 
http://orcid.org/0000-0001-9063-8267

1Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil; anamariadeogalvao@gmail.com


RESUMO:

O artigo tem como objetivo analisar como, em meados do século XIX, são produzidas, na imprensa brasileira, associações entre analfabetismo, práticas de cura e a população negra. Do ponto de vista teórico-metodológico, o trabalho está baseado em estudos da História Cultural e da Análise do Discurso. Como principais fontes de pesquisa, mobilizamos a imprensa periódica e dicionários. Analisamos, particularmente, seis matérias publicadas em jornais do Rio de Janeiro e Pernambuco na década de 1850. Nos textos analisados, é possível visualizar as estratégias discursivas mobilizadas pelos autores de publicações veiculadas na imprensa para produzir efeitos nos possíveis leitores de que o sujeito analfabeto, pobre e negro é alguém que deveria ser excluído da marcha do progresso e da civilização. Os saberes de que eram portadores eram desqualificados e, muitas vezes, ridicularizados. Acrescentava-se a ideia de que os negros, por serem considerados semelhantes a animais e terem suas manifestações culturais e espirituais associadas mais diretamente à feitiçaria e à bruxaria, eram vinculados, de modo ainda mais estreito, à barbárie

Palavras-chave: analfabetismo; população negra; saúde e educação; século XIX; imprensa.

ABSTRACT:

The article aims to analyze how, in the middle of the 19th century, associations between illiteracy, healing practices and the black population were produced in the Brazilian press. From a theoretical and methodological point of view, the work is based on studies of Cultural History and Discourse Analysis. As main research sources, we mobilized the periodical press and dictionaries. In particular, we analyzed six articles published in newspapers from Rio de Janeiro and Pernambuco in the 1850s. In the texts analyzed, it is possible to visualize the discursive strategies mobilized by the authors of publications in the press to produce effects on potential readers that the illiterate, poor and black subject is someone who should be excluded from the march of the progress and the civilization. Their knowledge was disqualified and often ridiculed. Black people were more closely associated with barbarism, as they were considered similar to animals and had their cultural and spiritual manifestations more directly associated with witchcraft and sorcery.

Keywords: illiteracy; black population; health and education; 19th century; press

RESUMEN:

El artículo tiene como objetivo analizar cómo, a mediados del siglo XIX, se producen en la prensa brasileña asociaciones entre analfabetismo, prácticas curativas y población negra. Desde un punto de vista teórico-metodológico, el trabajo se basa en estudios de Historia Cultural y de Análisis del Discurso. Como principales fuentes de investigación, movilizamos la prensa periódica y los diccionarios. Particularmente analizamos seis artículos publicados en periódicos de Río de Janeiro y Pernambuco en la década de 1850. En los textos analizados es posible visualizar las estrategias discursivas movilizadas por los autores de publicaciones publicadas en la prensa para producir efectos en los posibles lectores que los analfabetos, los pobres y los negros debem ser excluidos de la marcha del progreso y de la civilización. El conocimiento que llevaban fue descalificado y, a menudo, ridiculizado. Se agregó la idea de que los negros, al ser considerados similares a los animales y tener sus manifestaciones culturales y espirituales más directamente asociadas con la brujería y la brujería, estaban aún más estrechamente vinculados a la barbarie.

Palabras clave: analfabetismo; población negra; salud y educación; siglo XIX; prensa

Introdução

O artigo tem como objetivo analisar como, em meados do século XIX, são produzidas, na imprensa brasileira, associações entre analfabetismo, práticas de cura e a população negra. Insere-se em uma problematização mais ampla, que busca compreender como, ao longo do Oitocentos, gradativamente, foi-se produzindo um discurso que associa os termos analfabeto e analfabetismo a palavras/sujeitos como escravo, liberto, pardo, crioulo, africano, boçal, mina. De modo mais amplo, pretende entender como foram sendo estabelecidas relações entre o sujeito que não sabe ler e escrever e a incapacidade de tomar decisões de modo soberano. Nesse sentido, tem-se buscado compreender o surgimento de produções discursivas que, em sua dispersão (FOUCAULT, 2008), construíram, ao longo das décadas, um conjunto de imagens que associam a pessoa analfabeta e o analfabetismo à ignorância, à incapacidade, à pobreza, à doença, à cegueira e, ao mesmo tempo, ao perigo e à irracionalidade. Essa produção deu-se em diversas esferas do discurso (BAKTHIN, 1997) e de modos distintos.

Neste texto, discutiremos apenas uma dessas maneiras: o processo concomitante de associar o indivíduo denominado de analfabeto à ausência de saberes e, ao mesmo tempo, à presença de conhecimentos e sujeitos que teriam que ser desqualificados, se o Brasil realmente almejasse alcançar os parâmetros civilizatórios dos países do hemisfério Norte, onde a ilustração, o conhecimento, a racionalidade, a ciência e a escrita imperavam. Que saberes eram esses? Como esses saberes eram também associados a homens e mulheres negros? Como os autores/editores dos periódicos construíam discursivamente argumentos que, por um lado, faziam o leitor acreditar que o analfabeto era alguém que não sabia de (quase) nada, e que, ao mesmo tempo, aquilo que ele sabia merecia ser desqualificado? Como se cruzam analfabetismo, conhecimentos sobre práticas de cura e feitiçaria e população negra?

A pesquisa tem mobilizado um conjunto variado de fontes documentais, como periódicos, dicionários, relatos de viajantes, discursos oficiais, autobiografias e obras literárias. Do ponto de vista teórico-metodológico, o trabalho está baseado em estudos da História Cultural (CHARTIER, 1990) e da Análise do Discurso (FOUCAULT, 2008; CHARAUDEAU, MAINGUENAU, 2008).

No presente artigo, analisaremos, particularmente, a imprensa periódica. Selecionamos, entre as 621 ocorrências encontradas para o termo analfabeto em periódicos brasileiros, localizados na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, no período de 1828 e 1860, seis matérias publicadas em jornais do Rio de Janeiro e Pernambuco na década de 1850. Nessas matérias, como buscaremos evidenciar ao longo da análise, aparecem, de modo mais explícito, tensões entre a qualificação e a desqualificação de saberes - particularmente as práticas de cura e a “feitiçaria” - associados ao sujeito analfabeto e à população negra. Para a realização dessa análise, buscamos identificar, nas fontes, os sujeitos que utilizam a expressão e a quem se dirigem; o enunciado e a enunciação; e o léxico associado à palavra, seja por sinonímia, seja por antinomia. Buscamos, assim, analisar estratégias discursivas que eram utilizadas na imprensa para produzir esses efeitos nos possíveis leitores. Estratégias discursivas são compreendidas como um

conjunto de artifícios linguísticos que, explorados, arranjados, ordenados, por meio do jogo com as palavras, buscam persuadir o leitor, convencê-lo a ser colaborativo na construção do sentido para o texto que lê, seguindo, no trabalho interpretativo, os caminhos traçados, na produção textual, para a sua compreensão. (GALVÃO; MELO, 2019, p.234-235)

Por que eleger a imprensa como locus privilegiado para compreender como, ao longo do tempo, foram-se produzindo associações entre analfabetismo, práticas de cura e população negra? A imprensa tem desempenhado papel fundamental na história, agindo ativamente na formação da população; tem sido, portanto, não apenas expressão do que ocorria em diversas esferas sociais, mas um ator social, produtor de acontecimentos e de representações. Para Morel (2005, p. 217)

O que se punha na perspectiva destes homens de letras [redatores/ editores dos periódicos] era sobretudo a crença de que estariam imbuídos de uma missão pedagógica, esclarecedora, civilizadora. Eles desejavam contribuir para incorporar à sociedade estas camadas que, de classes perigosas ou ameaçadoras, poderiam transformar-se em elementos úteis e integrados, por meio da educação e cultura, ao trabalho e a um determinado grau de cidadania.

No caso específico do Brasil Oitocentista, os periódicos tiveram um papel fundamental na construção de uma esfera pública (MOREL, 2005), pois se constituíam em uma das poucas instâncias em que ocorriam debates sobre temas candentes da época. Trata-se, portanto, de locus privilegiado para se compreender também como ocorria essa tensão entre saberes considerados populares/tradicionais - particularmente as práticas de cura -, analfabetismo e população negra.

Analfabetismo e população negra: algumas aproximações

Até os anos 1860, foram encontradas, na pesquisa realizada, associações muitos pontuais entre pessoas negras e as expressões analfabeto e analfabetismo, possivelmente porque os sentidos das palavras ainda pareciam estar em disputa nesse período (GALVÃO; CHAGAS, 2017). Neste artigo, discutiremos essas primeiras ocorrências em que os termos aparecem relacionados, focalizando, particularmente, a década de 1850. A partir dos anos 1870, sobretudo no contexto de discussão da abolição, as associações entre as expressões se tornam mais recorrentes, embora diversos trabalhos venham mostrando que as relações entre homens e mulheres negros e a cultura escrita não pode ser caracterizada pela ausência.

Estudos têm mostrado que muitos negros podiam ler e/ou escrever e/ou utilizavam, de maneira ativa, a leitura e a escrita como instrumentos de sobrevivência, de informação e de conquista de seus direitos. Segundo Paiva (2006), os casos de escravizados, libertos e descendentes que aprenderam a ler e a escrever, entre os séculos XVI e XIX, estavam longe de serem exceções, ao contrário do que tendiam a mostrar estudos tradicionalmente realizados sobre a temática, que partiam de pressupostos que, embora não fossem comprovados em fontes de arquivo, estavam incorporados em uma certa memória comum brasileira. Uma dessas ideias partilhadas indica que haveria uma “pretensa incapacidade natural de negros e mestiços para as atividades intelectuais” e que “eles nunca tiveram acesso à escrita e à leitura e nem se interessavam por isso” (PAIVA, 2006, p.481). Esses estudos desconheciam, por exemplo que, antes de aportarem no Brasil como escravizados, muitos povos africanos, principalmente os mulçumanos, desde os séculos XIV e XV, já possuíam tradição de letramento e de reflexão intelectual. Não por acaso, um dos primeiros trabalhos realizados no Brasil que deu visibilidade às habilidades de ler e de escrever dos escravizados focalizou africanos islamizados. Nesse trabalho, Reis (2003) analisa o “levante dos malês”, ocorrido em Salvador em janeiro de 1835. Na documentação relativa a essa rebelião escrava, foram encontradas diversas fontes que mostram a aproximação do grupo com a cultura escrita. Recentemente, Viana, Ribeiro Neto e Gomes (2019) realizaram um inventário de escritos, que eles denominam de “insubordinados”, supostamente produzidos por escravizados que expressavam vontade coletiva em situações semelhantes, como insurreições e rebeliões.

Mas as habilidades de ler e de escrever e as competências para participar ativamente do mundo da palavra escrita de escravizados e libertos estavam presentes não apenas em contextos de insurreições, em grupos étnicos específicos, nem na vida de alguns indivíduos que tiveram trajetórias excepcionais1, mas parecia disseminada de modo muito mais amplo, principalmente quando se tem em vista que, até o final do XIX, mais de 80% da população brasileira não sabia ler nem escrever (FERRARO, 2009)2. Podemos afirmar que essa participação na cultura escrita ocorria, pelo menos, de dois modos: diretamente, quando eram leitores e escritores, ou indiretamente, quando utilizavam a escrita por meio da mediação de outras pessoas. Ao analisar os anúncios publicados no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, entre 1830 a 1888, Bergamini (2017) encontrou cerca de 300 referências a escravizados (“em fuga”, à venda, “para aluguel” ou em “situações de tutela e concessão”), retratados pelos senhores, como pessoas que “sabiam ler e escrever”. Encontrou, ainda, indícios de que havia, entre eles, mestres que ensinavam essas habilidades. Segundo o autor, a maior parte dos anúncios se refere a pessoas que tinham um ofício (alfaiates, cozinheiros, carpinteiros e pedreiros)3, estavam na Corte ou tinham vindo da Bahia, do Ceará e de Pernambuco. Além disso, do ponto de vista dos senhores, eram descritos como pardos. Resultados semelhantes em relação aos ofícios especializados foram encontrados por Peres (2020), em pesquisa realizada com base também em anúncios sobre pessoas escravizadas.

Em relação especificamente à escrita, diversos estudos também têm dado visibilidade à capacidade de escravizados e forros. Wissenbach (2002) indica que, aos autos judiciários utilizados como fonte na recente historiografia da escravidão, eram anexadas pequenas peças escritas, utilizadas como evidências de crimes. Entre esses textos, a autora se refere a cartas, bilhetes, listas de objetos - capazes, por exemplo, de legitimar posses -, rezas e preces colocadas em escapulários e amuletos.

Talvez um dos usos táticos mais interessantes que negros faziam da palavra escrita e que revela o conhecimento que possuíam sobre o poder que ela tinha no mundo em que viviam fosse o de portar a carta de alforria junto ao corpo. Na interpretação de Wissenbach (2002), além do sentido pragmático - afinal, era esse “papel” que materializava e comprovava a condição de livre ou liberto - o porte da carta também tinha um sentido simbólico muito importante, o do “sentido mágico das palavras escritas”, aproximando-se, nesse sentido, dos escapulários e amuletos que os afrobrasileiros traziam consigo (WISSENBACH, 2002, p.109). A documentação revela, também, que muitas vezes esse documento era fabricado pelo próprio escravizado alfabetizado ou por alguém a seu pedido. Nesse sentido, conhecer o universo letrado possibilitava uma maior mobilidade e circulação do cativo que, “ao se intitular forro”, poderia “se passar por livre”, como mostra Barros (2017), baseada na análise de anúncios publicados na imprensa da Parahyba do Norte.

De modo geral, essas pessoas que liam e escreviam eram quase sempre homens, mas isso não significa que as mulheres não conheciam o poder da palavra escrita. Peres (2020) mostra, por meio da análise de anúncios de jornal, que muitas vezes as mesmas pessoas que ensinavam prendas domésticas, como costurar, engomar e bordar, também ensinavam a leitura e a escrita a meninas livres ou escravizadas. Na esfera pública, as mulheres negras usavam o escrito para defender os direitos, tendo em vista as brechas da legislação. Camillia Cowling (2018) mostra, por exemplo, como a linguagem escrita foi mobilizada no processo de emancipação gradual de mulheres negras e seus filhos no Rio de Janeiro e em Havana na segunda metade do século XIX, sobretudo por meio do princípio do “ventre livre”. As ações judiciais analisadas no trabalho revelam que “[...] elas eram fruto de uma rede coletiva de apoio mútuo e comunicação” (COWLING, 2018, p.26).

Se os usos da leitura e da escrita pelas pessoas negras têm sido objeto de várias pesquisas realizadas nos últimos anos, também temos uma produção recente que nos revela em que espaços esses aprendizados se davam. Pode-se afirmar, inicialmente, que muitos escravizados e libertos aprendiam a ler em comunidades específicas, como mostra Reis (2003) em relação aos malês, que se congregavam para orar, recitar, decorar versos do Qur’an (Corão), e também para aprender a ler e escrever em árabe. Para a maioria dos escravizados, as irmandades religiosas e as corporações de ofício também faziam esse papel, como mostram os estudos de Luz (2013, 2014) e Mac Cord (2013). A população negra também aprendia a ler e a escrever nos próprios espaços de trabalho, como constata Bergamini (2017, p. 124) em relação às oficinas tipográficas, caracterizadas, pelo autor, como: “[...] lugar de disseminação da leitura e da escrita entre pessoas escravizadas, ex-escravos e homens livres pobres”. Wissenbach (2002) também vê, no trabalho urbano, principalmente daqueles que exerciam atividades autônomas, instâncias de usos da leitura e da escrita. As escolas, por muito tempo consideradas pela historiografia da educação tradicionalmente produzida no Brasil, como espaço privilegiado das elites, também recebiam “pessoas de cor”. Estudos realizados recentemente na área têm mostrado que a presença de negros nas aulas públicas foi muito maior do que se acreditava, como mostram pesquisas realizadas sobre várias províncias4. Pesquisas também têm mostrado a existência de aulas particulares voltadas especificamente para a população negra, como a de Pretextato dos Passos e Silva, professor negro que, em 1853, abriu uma escola na Corte para meninos pretos e pardos (SILVA, 2000). Carvalho e Ferreira (2017) analisam a experiência de Agostinho, ou Divino Mestre - como os discípulos o chamavam -, homem negro, livre, alfaiate, que utilizava versos para alfabetizar homens e mulheres negros na década de 1840 em Pernambuco. Sua “seita”, que congregava cerca de 300 pessoas no Recife, opunha-se a alguns dogmas do catolicismo. No ato de sua prisão, foi apreendido o “ABC”, documento que pregava a liberdade dos negros e falava do Haiti. Podemos citar, ainda, instituições que recebiam meninos e meninas negras, órfãos e “desvalidos”, companhias de Aprendizes Artífices (BARROS, 2017), escolas de movimentos abolicionistas (ALONSO, 2015) e colônias orfanológicas (ARANTES, 2005).

Vê-se, portanto, que escravizados e libertos utilizavam, de modo ativo - direta ou indiretamente -, a leitura e da escrita. A visibilidade dada por esses estudos a esse fenômeno não esclarece, no entanto, um aspecto: negros e negras passaram a ser associados, em diversas esferas do discurso, ao analfabetismo e a expressões a ele relacionadas, como “incapacidade”, “barbárie” e “o pior dos males do país”. Paiva (2006) atribui esse apagamento das competências das pessoas negras em relação à cultura escrita às produções posteriores (do final do século XX e das primeiras décadas do XX), muitas vezes elaboradas por intelectuais e pela própria historiografia, com o intuito de inventar um Brasil civilizado e moderno, em um processo que ele chama de embranquecer o futuro e também a memória.

Certamente as obras dos intelectuais e a historiografia contribuíram para a produção dessas ideias, mas não explicam a irradiação dessa produção discursiva em outras esferas da atividade humana. Por isso, torna-se importante analisar outras instâncias em que ela foi, ao longo do tempo, gestada, como, por exemplo, a imprensa. Estudos que busquem analisar a emergência dessas formações discursivas, em sua dispersão, são ainda raros no Brasil. O trabalho de Mariza Silva (1998) talvez tenha sido pioneiro nesse sentido e auxilia a responder, em parte, algumas questões. A autora analisa, sob a perspectiva da Análise do Discurso, como se construíram, historicamente, as dicotomias e as assimetrias entre “analfabetismo/alfabetização” e “analfabeto/alfabetizado”. De modo geral, nas obras dos autores por ela pesquisados, os negros (particularmente os escravizados) aparecem, juntamente com os indígenas, próximos à barbárie e à ausência de civilização - sem “história nem literatura”.

Práticas de cura, feitiçaria e a produção do sujeito negro e analfabeto

Nesta parte do trabalho, buscamos, diante desse contexto, analisar como a referência a determinados saberes - sua presença ou ausência - contribuía para a produção sócio-discursiva que estabelece associações entre a população negra, o analfabetismo e práticas de cura.

Comecemos pelo significado das próprias palavras analfabeto e analfabetismo, que parecem ter sido dicionarizadas pela primeira vez em língua portuguesa, em 18135 e em 18996, respectivamente. São palavras compostas por um prefixo de negação - “an” -, ou seja, os sujeitos que a portam ou o fenômeno a que se referem são caracterizados pelo não saber: não saber o alfabeto, como está em seu significado, mas também não saber muitas outras coisas, como explica Mariza Silva (1998), no trabalho já citado, por meio da análise, entre outros recursos linguísticos, do advérbio “até” - “ignorante até das letras”. O analfabeto, portanto, ignora quase tudo - mas, paradoxalmente, possui alguns saberes. Que saberes são esses? Como eles se relacionam com homens e mulheres negros? Tentaremos responder a essas questões por meio da análise de alguns textos publicados na imprensa brasileira nos anos de 1850.

A primeira matéria analisada foi publicada em 1855, no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro7. Intitulada “Somnambulismo: de Cabrion a Pipelet”, trata-se da crítica a um escrivão denominado, logo na terceira linha, de “analphabeto Cabrion”. Veiculado na seção “Publicações a pedido”, o texto é assinado por O Charlatão. O suposto escrivão já teria ocupado cargos importantes na Corte e é caracterizado como alguém que “só” lê “novellas”. Em tom irônico, o autor afirma que ele também sabe “representar dramas, comedias ou farças!”, principalmente se a peça a ser encenada for “Ave de rapina”, onde certamente brilhará com “graça”, “talento” e “perspicácia”. Observa-se, aqui, uma associação entre o sujeito designado como analfabeto, as leituras consideradas más e a perspicácia para tirar proveito da tragédia alheia - representada pela ave de rapina. Essa associação entre ignorância, incompetência, imoralidade, corrupção e esperteza e o sujeito analfabeto é muito recorrente no conjunto das fontes analisadas, como pudemos mostrar em outro trabalho (GALVÃO; CHAGAS, 2017). Nessa rede de significados, a palavra analfabeto não caracteriza quem não sabe ler nem escrever, mas está vinculada a indivíduos que ocupam cargos importantes na esfera pública, mas considerados pouco capacitados para as funções que exercem; vincula-se, portanto, à imoralidade, ou seja, à improbidade no exercício da função e ao parasitismo em relação ao governo Imperial.

O narrador descreve, então, uma cena imaginária de um gabinete onde “se dão consultas somnambulisadoras”. O “heróe” da peça está sentado em uma poltrona e, diante dele, em uma cadeira baixa, está seu criado Luizinho, um “molequinho”. Ao lado dos dois, encontra-se, em pé, um “um homem baixo com chapéo e botas á mineira, com feições aparvalhadas”. Este sujeito que, aparentemente vem pedir um emprego - possivelmente um cargo público - para o personagem principal, embora pareça não ter competência para tal (já que tem as feições “aparvalhadas”), traz na mão uma pequena lata, que oferece ao protagonista. Quando o escrivão a abre, encontra “uma porção de cabellos!” Fecha, então, a lata, “e depois de trocar algumas palavras com o homem das botas, este tira da algibeira uma moeda de 20$ a que o nosso heróe se agarra com unhas e dentes”. Depois disso, o “heróe” da narrativa troca algumas palavras com o “molequinho”, iniciando “com a sua arte magica pela fórma seguinte: põem as mãos de modo a imitar as armas de S. Francisco, e diz o seguinte: “Meu bem! Meu molequinho, não me deixes ficar mal; são chegadas as festas e pódes contar comigo.” Em seguida, esfrega as mãos e “principia com benzeduras ou feitiços que são pouco mais ou menos os desses negros Minas que por ordem da policia tem ido parar á cadêa”.

Há, aqui, a introdução do sujeito negro, com quem o protagonista aprende a fazer o “feitiço”, a “benzedura”. O suposto feitiço aprendido é, ainda, associado aos escravizados originários da Costa da Mina e que seria motivo, inclusive, da prisão de alguns deles8. O “analfabeto”, desse modo, aprende um tipo de saber - interdito e diretamente vinculado a um pertencimento étnico-racial - que lhe é útil para enganar os inocentes, concretizados na figura do “mineiro”, possivelmente uma representação dos que viviam no interior das vastas dimensões do território brasileiro, em contraposição aos supostos espertalhões da Corte.

Na sequência da narrativa, o autor descreve que a plateia do teatro imaginário dá demonstrações de descontentamento, enquanto o “criado” começa a se espreguiçar, bocejar e ressonar, demonstrando muito cansaço, enquanto “a benzedura feiticeira progride”. Luizinho acaba dormindo, para a insatisfação dos espectadores, que, impacientes, principiando um alarido, acusam o “heróe” de charlatão. Diante da situação, o mineiro, “espavorido”, foge. Luizinho também “corre envergonhado”, mas o personagem principal, “que tem presença de espirito para tudo affrontar, mostra com ar de mofa, ao fogo, o producto de tanta audacia (os 20$), e diz com ironia: “Estes já ninguem m’os tira!...” O “povo” - a plateia - quer invadir o palco, mas o juiz impede que isso ocorra, avisando que ainda haveria o 5o ato do drama e, que quando a peça acabasse, as pessoas poderiam aplaudir ou reprovar como quisessem. Assim, a matéria se encerra.

Nessas últimas descrições, observa-se que somente o esperto “charlatão” permanece em cena: o “aparvalhado” e o “criado”/“molequinho” foram usados, mas não têm mais utilidade e espaço nas ações do “charlatão”. Há, aqui, ainda, alguns aspectos que podem ser analisados. A palavra charlatão aparece no texto tanto para designar o seu autor - que assina com esse pseudônimo - quando para caracterizar o protagonista, que é assim acusado pelo “povo”. Na edição de 1858 do dicionário de Moraes Silva, “charlatão” é definido como “[...] o fallador, impostor, que se vende por erudito; o que inculca drogas de muito prestimo, e segredos de medicina, e artes” (MORAES SILVA, 1858, p.452). No sentido figurativo, o dicionário informa que a palavra designa “[...] todos os que vendem, inculcam mentiras sabias” (MORAES SILVA, 1858, p.452). Há, portanto, uma relação “charlatão” e (falsos) saberes, entre os quais estão aqueles da medicina. Os conhecimentos do sujeito negro são, portanto, associados a falsos conhecimentos, que servem, no caso, para enganar os inocentes e beneficiar os corruptos. O uso da palavra pode também ser uma referência irônica ao jornal O Anti-Charlatão. Segundo Velloso (2007), esse “pequeno jornal”, que era publicado às terças e sábados e distribuído gratuitamente, circulou na cidade do Rio de Janeiro entre os meses de julho e agosto de 1846. Seus redatores, que se mantinham no anonimato e escreviam por meio de pseudônimos, eram farmacêuticos e médicos pertencentes à Academia Imperial de Medicina que objetivavam esclarecer a população acerca da homeopatia, que começava a se difundir no Brasil no período, e de seus praticantes, considerados por eles como charlatões9. Ainda de acordo com Velloso (2007, p.172), o periódico adotava um “tom racional” em seu discurso, buscando condenar a crença no sobrenatural, nos sortilégios, nos alquimistas, nos reis taumaturgos, associando-os aos “tempos obscuros” da Idade Média.

A expressão “ave de rapina” é também mobilizada em outra matéria analisada.10Publicado na seção “Correspondencia” e dirigido à polícia, o texto aborda o “enxame de pedintes” que “infesta do Cathete” todas as manhãs. Nesse cenário, encontram-se “aves de rapina”, charlatões que vendem supostos bilhetes premiados “aos negrinhos e analphabetos que crêm na causa.”

Não erão só dous ou tres vendedores de vigesimos que davão aos negrinhos, portadores de bilhetes premiados, 5$ em lugar de 500$. Não são só os especuladores de boa consciencia que conseguem matar rezas tisicas, para empestar o povo! Não são só alguns taverneiros que têm compradesco com fiscaes honrados e cegos. Não ha só um Maranhense analphabeto, industrioso e charlatanissimo que incommoda a muito cidadão honesto e que estruge os ouvidos dos leitores do Mercantil com tanta sandice (JORNAL DO COMÉRCIO, 1856, p.2).

O autor pede, então, providências à polícia para que aja diante da situação. Nessa matéria, parte da população negra - os meninos - é considerada inocente, passível de ser enganada, talvez porque também creia em coisas irracionais, assim como os analfabetos. São apresentados como dois grupos distintos, mas algo em comum: são vítimas de embuste.

Associações semelhantes são observadas em quatro textos que tratam de um mesmo fato, publicados três em periódicos distintos - O Liberal Pernambucano, Diario de Pernambuco, Correio Mercantil, e Instructivo, Politico, Universal - e reproduzida no Relatorio da Repartição dos Negocios do Imperio. No Relatório... e em O Liberal Pernambucano, o texto é exatamente o mesmo11. Estávamos no ano de 1855 e o Brasil passava por uma epidemia de cólera morbus que, calcula-se, matou cerca de 200 mil pessoas em todo o País, afetando sobretudo os escravizados e a população mais pobre (KODAMA, 2011, p.11). Em Pernambuco, a situação não era diferente.

O texto publicado em O Liberal Pernambucano e no Relatorio da Repartição dos Negocios do Imperio, depois de descrever vários casos disseminados por diversos locais do território de Pernambuco e relatar a escassez de medicamentos e de mantimentos, afirma que, não bastassem todos esses “apuros”, uma “lamentavel emergencia” veio complicar ainda mais a situação. Tratava-se de um “pobre escravo Africano” que prometia a cura da doença por meio de uma “beberagem”, enganando

[...] homens de espirito fraco, que no momento do perigo esperão a salvação de quantas patranhas ouza propalar a ignorancia ou a torpe cobiça, installárão no publico a crença de curas maravilhosas infalliveis, que operava hum pobre escravo Africano, mediante uma beberagem (composta de substancias vegetaes pouco mais ou menos inertes [...]. (O LIBERAL PERNAMBUCANO, 1858, p.2)

Tem-se, no trecho acima, a relação entre um escravizado africano e as expressões “crença” e “curas maravilhosas infalliveis”. Essas supostas curas advinham de mentiras, ignorância e/ou da cobiça imoral e eram sedutoras para aqueles que tinham o espírito fraco. Há, ainda, outros recursos discursivos que contribuem para a desqualificação do saber do negro. O uso do artigo indefinido para caracterizá-lo produz o efeito, nos leitores, de que se trata de qualquer “escravo Africano” e não de alguém que tinha características próprias e conhecimentos específicos. O adjetivo “pobre”, aparentemente, busca angariar a simpatia do leitor, buscando associá-lo à ingenuidade; ao mesmo tempo, no entanto, produz a ideia de que o seu conhecimento não é legítimo - um “coitado” certamente não elabora saberes racionais e científicos. Por fim, há um último efeito desqualificador do sujeito e do seu saber: o remédio é composto de substâncias vegetais “pouco mais ou menos inertes”, ou seja, o leitor já é levado a acreditar que ele é inócuo.

Mas, o “pobre preto” foi, mesmo assim, levado “solemnemente” a hospitais, acompanhado de “ordenanças”, “para obrar os milagres e convencer incredulos”. Segundo o texto, a primeira autoridade da província, diante da situação em que se encontrava o Recife e do “sentimento publico”, não deveria “violentar a fé” e concedeu licença para que o “preto Manoel” - nesse momento, ele é identificado pelo nome - aplicasse “o seu curativo”. No entanto, logo depois, a Comissão de Higiene considerou que a concessão - o auxílio que a autoridade dava ao “analphabeto e boçal Africano” - constituía em um grande desrespeito ao Regulamento da Junta e “grande quebra de sua força moral”. O “preto” acabou se tornando réu e a comissão, composta de “pessoal habituado e inteligente”, por não ter sido foi atendida em suas reclamações contra a proteção e apoio que a ele se dava, renunciou, alegando motivo de doença. Tudo isso agravou, ainda mais, a situação na província, que já contava com 18.000 mortos, sendo 3.000 na capital.

Nessa segunda parte da matéria que estamos analisando, vemos que o seu autor produz, por meio da mobilização de certas estratégias discursivas, associações, por sinonímia, entre as palavras analfabeto, boçal, africano, preto, curativo, milagres e fé e, por antonímia, entre as expressões analfabeto e força moral, pessoal habituado e inteligente. Destacamos que a palavra boçal, que na edição mais próxima à época em que essas matérias foram publicadas, a de 1858, do dicionário de Moraes Silva, ainda não estava diretamente associada ao analfabeto, o que só ocorreria em 1890 12. No verbete daquela edição, os significados atribuídos à palavra são: “tosco, rude, inculto, sem beneficio de artifice, ou ensino”; “que tem a rudeza, do que não foi cultivado”; “que não tem ainda experiencia, nem practica, sem arte nem malicia”; “[...] que não falla ainda a lingua do paiz estrangeiro em que se acham. Diz-se em geral dos pretos, oppondo-se aos ladinos” (MORAES SILVA, 1858, p.335); “[...] não ensinado, não adestrado no exercicio para que é destinado: diz-se fallando dos animaes” (MORAES SILVA, 1858, p.335). Vê-se, portanto, que o modo como o texto foi escrito leva o leitor a produzir sentidos que relacionam, uma vez mais, a população africana escravizada à esfera não racional do conhecimento, à rudeza, à animalidade, à ausência do domínio da língua, ao analfabetismo.

O Diario de Pernambuco13, por sua vez, publicou uma resposta ao texto divulgado pelo O Liberal Pernambucano e pelo Relatório... Essa resposta foi republicada, alguns dias depois, nas páginas de o Correio Mercantil, e Instructivo, Politico, Universal14. Nela, o autor afirma que, em Pernambuco, os fatos quase sempre são “desfigurados” ou “deturpados”, pelo espírito de intriga, rivalidade e inveja. Escreve, então, que, estando ciente de todos os episódios da epidemia de cólera, não poderia senão rir “de piedade” do texto publicado no outro periódico, pois o “preto Manoel” não havia tido ordenanças dadas pelo governo, que também não o havia autorizado a curar. Na verdade, ele havia sido mandado ao hospital como uma medida de cautela, para sair dali preso. Sustenta, por fim, que “não houve pessoa alguma limpa que especulasse com a miséria e calamidade publica.” Transcreve, a seguir, trechos da notícia publicada no periódico rival e comenta que, se o autor do relatório tivesse documentos que provassem a verdade - de que não houve autorização do presidente ao “analphabeto e buçal africano” -, não teria causado injúria ao colega, que “tanto acreditou na cura do limão do analphabeto caboclo do Pará”. Possivelmente, essa cura do limão deve ter sido referenciada em outra notícia, mas esse dado não é importante aqui. Tornam-se relevantes duas estratégias discursivas utilizadas pelo autor do texto: a repetição das três expressões juntas - analfabeto, boçal e africano -, o que leva à reiteração da mesma ideia anterior e a associação, realizada no último trecho, entre práticas de cura e saberes tradicionais a outro grupo populacional: os indígenas e seus descendentes15.

É exatamente na confluência entre esses dois grupos - a população negra e a população indígena - que se situa a outra matéria analisada. Publicado pelo Correio Mercantil, e Instructivo, Politico, Universal, em 3 de abril de 185616, o texto é aberto com a notícia de que, naquela data, havia sido condenado a quatro anos de prisão um sujeito que, nos tempos inquisitoriais, “por certo teria de ir á fogueira.” Para o autor, o réu, José Antonio da Silveira, era “o homem mais entendido nos mysterios das prisões da côrte, porque tem viajado por todas ellas.” Mas, quem era Silveira? O narrador começa descrevendo-o como alguém que tem uma “pouco interessante individualidade”. Nascido no Pará, tinha 56 anos, “foi a soldado, nunca conheceu o estado conjugal, não sabe ler nem escrever, e para refocilar das fadigas da guerra reformou-se”. Por “não ter o que fazer” e por ganhar um soldo “que não lhe chega para viver commodamente”, ainda segundo o texto, “procurou adquirir algumas tinturas de medicina”. Em pouco tempo, apresentou-se como “curador de feitiços e maleficios” e muitas mulheres - e aqui o jornal introduz um grupo específico, historicamente associado a bruxarias e feitiços17 - começaram a dar crédito ao novo charlatão e se foram “deixando enganar por elle”.

O texto começa, então, a narrar o último crime cometido pelo réu, que havia ido atender uma “certa Joanna”, mas não encontrava o seu endereço. Encontrou, então, uma “certa Luzia Maria da Conceição, de quem procurou saber novas da tal Joanna”. Luzia, descrita como “crioula”, afirmou a Silveira que não a conhecia, mas o “charlatão”, esperto, afirma que a havia curado de “feitiços” e lhe dado fortuna: “(…) aprendi com os indios do Pará, meus parentes, e até conheço aquellas pessoas que estão atacadas de maleficios. (…) e tanto conheço, que a senhora é uma dessas pessoas que precisão ser curadas.” Como Luzia sofria há muito tempo, desconfiou que seus sofrimentos eram provenientes de “cousa feita” e, por isso, “tinha estado em desintelligencia com uma negra mina, famigerada na arte dos feitiços.” Vê-se, aqui, a associação entre o feminino, a origem africana, as práticas de cura e a ausência de inteligência - e, certamente, a ausência da leitura e da escrita.

Silveira promete, então, curá-la em poucos instantes; depois de medir o pulso de Luzia, pede para entrar em seu “casebre”, no que é imediatamente atendido: o “curandeiro entrou triunphante e orgulhoso, arrotando milagres, e fallando de seus muitos curativos, feitos todos por caridade e philantropia, e nunca com vistas de interesse.” Luzia ficou muito feliz “por ter em casa o remedio contra os maleficios da negra Mina.” Aqui, os “feitiços” da africana, originária da Costa da Mina, são descritos como maléficos. Silveira pede, então, uma vela e um pires com água e, enquanto Luzia foi buscar, ele levou a “velha Severina”, que estava na sala e poderia servir como testemunha, para a cozinha. Depois, no quarto com Luzia, pediu-lhe um lenço de seda e dois lençóis: “Depois tomou pulso de novo á credula mulher, olhou para a luz e para a agua, bateu na testa, e disse algumas palavras.” Disse, então, a Luzia, que precisava de um remédio mais forte e iria buscá-lo. Trouxe da rua um cipó e pediu que ela tirasse todo o ouro que portava, corais e brincos, e trouxesse uma faca e uma bacia com água. O cipó foi cortado em pedaços e lançado na bacia. Silveira, então, teria afirmado: “- Agora, para findar o curativo, é preciso cozinhar isto, e tomar um banho; amanhã estará perfeitamente boa; vá já e já, que não ha tempo a perder, ponha tudo isto no fogo e volte.” Luzia obedeceu, foi à cozinha, deixando Silveira em seu quarto, “e principiou a fazer fogo”. No entanto, quando voltou ao quarto, já não achou o curandeiro, “que se tinha mandado ir conduzindo os cordões de ouro, os coraes, os lençóes e os lenços de seda.” O narrador, então, exclama: “Luzia estava roubada! Optima cura!” Cinco dias depois, o “larapio” foi preso, após Luzia ter prestado queixa. A seguir, o texto narra detalhes do julgamento e da condenação do réu a quatro anos de prisão.

A publicação leva o leitor, uma vez mais, a vincular os saberes africanos e indígenas ao charlatanismo, à não racionalidade, à crença, à superstição - e também ao feminino e ao povo -, que, naquele contexto de ascensão do saber racional, científico e escrito, não apenas não poderia ser valorizado, como deveria ser eliminado de um País que se pretendia em marcha contínua em direção à civilização.

Discutiremos, por fim, uma última matéria, publicada em uma seção denominada “Chronica judiciaria”, referente ao “Jury da côrte”18. Nela, a população negra não é associada diretamente às práticas de cura ou à feitiçaria, mas à irracionalidade, à animalidade e à selvageria, o que contribui para que se situe na mesma formação discursiva.

O narrador escreve, como o próprio título da seção anuncia, uma crônica com base na sessão do júri do dia 10 de agosto de 1855. Situado nas fronteiras entre a realidade e a literatura, o texto extrapola a descrição da sessão e ficcionaliza o que teria ocorrido, como o próprio narrador anuncia

Sentimos bastante não poder narrar os acontecimentos com aquellas côres vivas, com quem forão debuxados. Ha cousas que se não podem dizer, e que se não pintão, apezar de profundamente sentidas. Factos ha, que se não podem escrever com fiel e escrupulosa exactidão; por que o jornalismo tem suas leis de honestidade e pudor, que não podem ser infringidas sem damno sabido; depois a susceptibilidade dos leitores é também um freio poderoso, que contém em certos limites o escriptor, limites, que não lhe é permittido transpor sem merecida censura. Nós respeitamos ambas as cousas, as leis da imprensa honesta, e a susceptibilidade do leitor, ainda que por isso as nossas chronicas tenhão de sahir capuxas, e sensaboronas. (CORREIO MERCANTIL, E INSTRUCTIVO, POLITICO, UNIVERSAL, 1855, p. 1)

A crônica aborda os casos de dois réus, ambos negros - um pardo e um africano livre. A desqualificação dos réus ocorre desde o início da crônica, quando o autor afirma que “De ha muito que não temos soltado os diques da hilaridade com tamanha satisfação como no dia de hontem, por occasião de subir á consideração do jury o processo do preto Simão”, o africano livre. Afirma, então, que deixará esse caso para ser o último a ser narrado, pois, segundo suas palavras, “a sobre-mesa é sempre o melhor dos pratos, quando se trata de gastronomia.”

O primeiro réu a ser julgado é o “pardo Querino Fernandes”, acusado de ter feito ferimentos no “preto Ignacio”, alguns meses antes. Ele é assim descrito pelo narrador

Como os leitores hão de querer saber toda a biographia do réo, vamos dizer-lhe o que sabemos, que não é muito; por que o animal de que se trata não tem representado grande papel no mundo social, e é a primeira vez que tem a distincta honra de occupar a attenção de um publico respeitavel. O homem vai ver pela primeira vez seu nome e letra redonda. E o mais é que esta honra nem todos podem contar. Porém Querino não póde ver seu nome estampado nas collunas de um jornal, porque é um analphabeto de 40 annos com quasi duas toezas de altura. É homem e mais alguma cousa! Se fosse casado, tinhamos uma raça de gigantes, boa para fazer parte de certa colonisação; que já foi uma vez pedida para o Alto-Amazonas. (CORREIO MERCANTIL, E INSTRUCTIVO, POLITICO, UNIVERSAL, 1855, p. 1)

Alguns trechos dessa apresentação merecem ser analisados para os propósitos deste artigo: Querino é descrito como “animal” que não tem “representado grande papel no mundo social”. Por isso, nunca teve a oportunidade de falar para um público tão respeitável. Embora seu nome vá ser estampado em um jornal, não poderá vê-lo, pois é analfabeto. A palavra analfabeto vem imediatamente acompanhada da idade de Querino e da sua altura de “quasi duas toezas19”. O narrador mobiliza o recurso discursivo da hipérbole para salientar os traços de animalidade, da “raça de gigantes” a que o réu pertenceria. Querino é descrito como “Homem e mais alguma coisa”20. A expressão “mais alguma coisa” é explicitada a seguir: trata-se de um reprodutor, capaz de colonizar uma região como o Alto-Amazonas, de baixa densidade populacional no período. Há, portanto, uma associação direta entre três expressões: não saber ler - animal reprodutor - homem negro.

Em seguida, o narrador afirma que somente pela “descomunal altura” Querino se fazia recomendável - ou seja, pelo seu caráter biológico e animalesco - pois o “seu trajar é o da pobreza” e não parece ser bom pedreiro, pois “o edificio de sua propria pessoa não offerece a elegancia da construcção moderna.” Acrescenta-se, aqui, mais um elemento para a análise da produção sócio-discursiva que estamos buscando compreender: a pobreza. Associam-se, então, as noções de analfabeto, animal, pobre, homem e negro. Para a civilização e a cultura, Querino revela-se inadequado

Suas faces são encovadas, e macilentas, e seu rosto muito comprido: sua fronte é alta, bem desenvolvida, e indicando que a natureza o creou para uma especialidade. Como não pôde ser engenheiro architecto, fez-se pedreiro. (CORREIO MERCANTIL, E INSTRUCTIVO, POLITICO, UNIVERSAL, 1855, p. 1)

Querino também se revela inadequado na situação do júri, que o deixa sem lugar e o faz sofrer

Seu olhar é profundo, sombrio e vacilante. O seu corpo treme em presença do tribunal, e sua voz se altera, e é entercortada por longas aspirações de quem soffre physicamente. (CORREIO MERCANTIL, E INSTRUCTIVO, POLITICO, UNIVERSAL, 1855, p. 1)

A promotoria o condena ao máximo de pena, mas seu advogado, Dr. Carlos Antonio Cordeiro21, descrito como “o habil advogado dos presos pobres”, argumenta que o tribunal não dá a ele o conhecimento prévio dos processos e que, muitas vezes, apresenta-se ignorando até mesmo o nome dos réus. O advogado enfatiza que trabalha de forma espontânea e gratuita em favor dos “réos desvalidos”. Ao falar especificamente de Querino, afirma que, “em virtude do seu estado morboso, em vez de ser trazido ao tribunal, deveria ter sido remettido22, se por ventura tivesse sido examinado pelo presidente da junta de hygiene!...” Acrescenta que Querino estava com “todos os synptomas do cholera-morbus”. Esses comentários do “honrado e espirituoso advogado” são interpretados, pelo narrador, como “pilheria”, o que desumaniza, mais uma vez, Querino. O advogado termina, por fim, a sua argumentação e o réu é absolvido, por unanimidade.

O “preto Simão”, cuja história havia provocado ainda mais risos no narrador, é o segundo réu a ser julgado na mesma sessão. O cronista começa a narrativa com uma ode ao amor - caracterizado como um “extasi indefinivel” e como um “encantamento” -, e considerado, por ele, como o único sentimento que resume a história do “infeliz genero humano”, desde que Adão “viu pela primeira vez sua cara metade até o momento em que subiu ao tribunal do jury o pretinho Simão.” Mísera e mesquinha: é assim que o narrador caracteriza a história do “escravo de nação”, “africano livre”. Segundo o cronista, Simão foi transportado das “longinquas e adustas arêas de Moçambique”, por um “arrogante e indomavel” traficante, e chegou até o Brasil, onde se apaixonou pela “faceira Maria”, também escravizada. Nesse momento, seu “coração selvagem palpitou cheio de vida, de amor e de esperança” e foi correspondido. O narrador volta a usar a expressão selvagem - afirmando que os “amores de um selvagem é assumpto magnifico para ser cantado em verso” - algumas linhas depois, parecendo querer provocar efeitos no possível leitor de que, apesar de ser capaz de amar e de ser amado, tratava-se de um amor sem as aparas da civilização, visto que Simão, assim como Querino, assemelhava-se a um animal

Porém, aqui para nós, o namorado é feio como um mono; é um verdadeiro urango-tango, de olhar malicioso e ventas... cruz! - O resto é assim como pouco mais ou menos, não ha duvida, e nem estamos agora prompto para fazer caricaturas de negros de Moçambique. (CORREIO MERCANTIL, E INSTRUCTIVO, POLITICO, UNIVERSAL, 1855, p. 1)

A animalidade de Simão, comparado a um orangotango, é associada à malícia e à feiura. Segundo o cronista, os “amantes” eram felizes mas “tudo passa”, e Maria se apaixonou pelo “malungo João”, quebrando as promessas que havia feito a Simão. “Devorado pelo demonio do ciume”, Simão quis vingar-se. Um dia, embriagado, implorou a Maria que voltasse, sem sucesso, o que provocou uma “luta” entre os dois, resultando no assassinato de Maria (isso não é explicitamente afirmado na crônica, mas somente suposto), tendo sido ele preso “como uma fera sedenta de sangue”. Vê-se, aqui, que a imprensa contribui para a produção da ideia de que a civilização é oposta aos instintos descontrolados dos seres humanos - sobretudo daqueles que, oriundos do continente africano, assemelham-se a animais selvagens. O ciúme e o crime estão entre esses impulsos instintivos.

No tribunal, Simão narra as “infidelidades de Maria com João”, o que teria provocado “estrondosas gargalhadas do auditorio”, principalmente quando “pinta e descreve com vivacidade a sua minotaurisação, a amabilidade com que diz ter ainda saudades de Maria.....” O narrador afirma que a cena produzida é burlesca e animada e os espectadores regalaram-se de rir “á custa do novo Othelo e da novissima Desdemona.” Depois de ouvidas duas testemunhas, Simão é condenado à pena de grau médio do código criminal. Dr. Cordeiro, que, segundo o narrador, levava a sua “philantropia até o sacrificio” e deveria ser o “curador dos Africanos livres”, apresenta provas da inocência de Simão, usando uma linguagem que demonstra facilidade em argumentar, “belleza de dicção” e “summa graça”, o que produz, uma vez mais, “solemnes gargalhadas”. Há, nesse trecho da notícia, referências a duas narrativas que eram, possivelmente, bastante conhecidas daquele público: a de Minotauro e a de Otelo e Desdêmona. Por que o narrador mobilizaria esses personagens? No primeiro caso, talvez para marcar a dimensão animalesca de Simão: parte homem, parte touro. Quando o autor utiliza o substantivo “minotaurização” - inexistente nos dicionários da época -, certamente tinha o objetivo de enfatizar o processo pelo qual o africano havia passado, quando, deparando-se com o ciúme, deixou de ser um homem apaixonado para se tornar um monstro. A referência à peça de Shakespeare, bastante encenada no Rio de Janeiro Oitocentista23, parece óbvia: como no clássico enredo, a história de Simão e Maria é marcada por questões raciais, ciúme, rivalidades, acusações de bruxarias e o assassinato da mulher amada. No entanto, parece que o texto queria, com esse recurso, provocar ainda mais o riso do público, já que comparava um africano qualquer a um personagem criado em um dos países que mais encarnavam a ideia de civilização - a Inglaterra - mesmo que Othelo fosse um mouro.

Por que a cena provocava risos24? Imersos em uma realidade de mais de um século e meio depois, corremos o risco de anacronismos em nossas interpretações, mas podemos supor que, para aquele grupo de pessoas que assistiam ao julgamento e para os possíveis leitores do jornal onde a crônica foi publicada, um animal - feio, monstruoso, coisificado pelo regime da escravidão - seria incapaz de amar, de controlar os ciúmes, de superar os instintos e a barbárie... Além disso, havia sido enganado por uma mulher e um homem semelhantes a ele. O próprio cronista nos ajuda nessa interpretação, ao escrever a seguinte afirmação: “Calculem os leitores quanto póde haver de curioso nos amores de um selvagem.”

A reunião do conselho resultou no veredito de “plena absolvição para o infeliz Othelo”. O narrador conclui a crônica com versos por ele escritos narrando a vitória de “pai Simão”. Vê-se, aqui, que há um deslocamento da denominação de “preto” Simão para “pai Simão”. Nos versos, que não reproduziremos aqui, João também é denominado de “pai”. Qual os efeitos que o narrador queria provocar no possível leitor com esse deslocamento? Certamente, buscava associar os dois africanos ao que, contemporaneamente, denominaríamos de manifestação religiosa de matriz africana e que, naquele momento, estava associado ao que, genericamente, chamava-se de “feitiçaria”. Maria, por sua vez, é chamada de “delinquente” e, mais uma vez, de a “Desdemona Africana”. Tem-se, aqui, a transformação da vítima em culpada, pois, de acordo o dicionário de Moraes Silva (1858, p.614), delinquente significava: “[...] pessoa, que cometteu algum crime, delicto”. Associa-se, portanto, a mulher negra à sedução, à traição e ao crime e, o homem negro, à infelicidade, à vitimização, à piedade, à feitiçaria25.

Considerações finais

Uma das formas, produzidas no século XIX brasileiro, de associar a população negra à barbárie, à selvageria, à animalidade, à irracionalidade foi associá-la à ausência da escrita. Nas matérias analisadas, é possível visualizar as estratégias discursivas mobilizadas pelos autores de publicações veiculadas na imprensa para produzir efeitos nos possíveis leitores de que o sujeito analfabeto, pobre e negro é alguém que deveria ser excluído da marcha do progresso e da civilização. Os saberes de que eram portadores eram desqualificados e, muitas vezes, ridicularizados. Como mostramos em outro trabalho (GALVÃO, ALVARENGA, 2019), a imprensa buscava convencer o leitor de que o saber racional, vinculado à ciência nascente, opõe-se ao saber tradicional, oral, gestual, identificado à superstição, ao obscurantismo, aos impulsos e ao popular.

Acrescentava-se a ideia de que os negros, por serem considerados semelhantes a animais e terem suas manifestações culturais e espirituais associadas mais diretamente à feitiçaria e à bruxaria, eram vinculados, de modo ainda mais estreito, à barbárie. Como afirma Velloso (2007, p.180), embora a mesma elite que rejeitava a “tradição mágica associada ao passado medieval”, convivesse, no cotidiano da Corte26, com benzedeiras, curandeiros, feiticeiros, que faziam uso de amuletos, rezas e remédios secretos para curar diversos tipos de males, entre os quais as próprias doenças, era preciso desqualificar os saberes dos grupos marginalizados - negros, pobres, indígenas, mulheres, populações rurais. Aos poucos, a escola também foi chamada a cumprir a tarefa de aproximar esses grupos da civilização, mas, pelo menos no corpus analisado, ela ainda não está associada diretamente à população escravizada e analfabeta.

Esse modo de produzir sentidos ao termo analfabeto, associado à população negra, foco do presente artigo, parece não se distinguir entre periódicos conservadores ou liberais. Ao que parece, trata-se de uma formação discursiva (FOUCAULT, 2008) emergente, que expressa um movimento mais amplo que busca legitimar a racionalidade - e sua forma supostamente mais acabada, a ciência, representada pelo conhecimento produzido por homens brancos europeus - como o modo mais legítimo de experienciar o mundo. Para que esse processo ocorresse, era preciso desqualificar outras formas de produzir conhecimento e os sujeitos a elas associados. Em outras palavras, a população negra analfabeta é vinculada ao inexplicável, aos sentidos e aos instintos pouco domesticáveis dos seres humanos, ou seja, ao oposto da civilização fundada sobre a contenção e a auto-regulação dos impulsos e das emoções (ELIAS, 1994).

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SOBRE O/AS AUTOR/AS

1 Esse é o caso, por exemplo, de Luiz Gama: nascido livre em Salvador, foi vendido por seu pai como escravo. Quando chegou a São Paulo, foi educado por um estudante da Faculdade de Direito. Depois de liberto, tornou-se amanuense, lente da mesma instituição, literato e abolicionista (AZEVEDO, 1999).

2O primeiro censo brasileiro, realizado em 1872, indicava que 82,3% da população brasileira de 5 anos ou mais era analfabeta (FERRARO, 2009).

3Também Morais (2007), em estudo sobre a Comarca do Rio das Mortes, Minas Gerais, no período de 1731 a 1850, encontrou um maior número de assinantes entre escravos e forros que exerciam ocupações especializadas.

4Os resultados de algumas dessas pesquisas foram reunidos em Mac Cord, Araújo e Gomes (2017) e em Fonseca e Barros (2016).

5“ANALFABÉTO, ou ANALPHABÉTO, s. m. O ignorante até das Letras do A, B, C.” (MORAES SILVA, 1813, p.128).

6Analphabetismo, m. Falta de instrucção, qualidade do que é analfabeto (FIGUEIREDO, 1899, p.84).

7Rio de Janeiro, Sabbado, 27 de Outubro de 1855, Anno XXX, n. 296, p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=364568_04&Pesq=analphabeto&pagfis=9233. Acesso em: 20 maio 2021.

8Os rituais de cura representavam parte fundamental das religiosidades africanas e afrodescendentes. Para a ortodoxia da Igreja, essas práticas “[...] eram superstição, feitiçaria, idolatria, magia, nunca religião” e a sua “demonização” foi seguida da “criminalização pelos códigos penais, da patologização pelos médicos e da denúncia pelos jornalistas” (PARÉS, 2018, p.382).

9Há uma vasta bibliografia no Brasil que mostra as tensões e as disputas que ocorreram, sobretudo no século XIX, para que a medicina científica se legitimasse como a forma mais eficaz de cura, em relação aos saberes tradicionais. Ver, entre outros, Chaloub et al. (2003); Magalhães (2011); Figueiredo (2002).

10Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, Domingo, 1 de Junho de 1856, Anno XXXI, N. 151, p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=364568_04&Pesq=analphabeto&pagfis=9945. Acesso em: 28 abril 2021.

11Pernambuco, terça-feira, 26 de Janeiro de 1858, Anno VII, Numero 1589, p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=705403&Pesq=analphabeto&pagfis=6374. Acesso em: 31 de maio de 2021.

12“ANALPHABÉTO, (ort.etym.), ou ANALFABÉTO, s.m. Pessoa que não conhece o alfabeto, que não sabe lêr nem escrever, que não sabe o a, b, c. B. Flor, 5, p. 321, << Herodes, o analfabeto>>.§ Também adj.: homem analphabeto. § Muito ignorante, rude, estúpido, boçal. (MORAES SILVA, 1890, p.470).

13Pernambuco, Quarta feira, 10 de Fevereiro de 1858, ANNO XXXIV, n. 32, p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=029033_03&Pesq=analphabeto&pagfis=9781. Acesso em: 10 fevereiro 2021.

14Rio de Janeiro, Terça-feira, 2 de Março de 1858, ANNO XV, N. 58, p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=217280&pesq=analphabeto&pasta=ano%20184&pagfis=14430. Acesso em: 02 de abril de 2021.

15Correio Mercantil, e Instructivo, Politico, Universal. Rio de Janeiro, Terça-feira, 2 de Março de 1858, ANNO XV, N. 58, p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=217280&pesq=analphabeto&pasta=ano%20184&pagfis=14430. Acesso em: 03 de março de 2021.

16Correio Mercantil, e Instructivo, Politico, Universal. Rio de Janeiro, Sabbado, 3 de Abril de 1856, ANNO XIII, N. 94, p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=217280&Pesq=analphabeto&pagfis=11696. Acesso em: 12 de março 2021.

17As relações entre o feminino e a irracionalidade têm sido estudadas em várias áreas. Ver, entre outros, Tedeschi (2008).

18Correio Mercantil, e Instructivo, Politico, Universal. Rio de Janeiro, Segunda-feira, 13 de Agosto de 1855, ANNO XII, N. 223, p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=217280&Pesq=analphabeto&pagfis=10754. Acesso em: 12 julho 2021.

19Toesa - unidade de medida da França pré-revolucionária. Uma toesa equivale a dois pés, ou seja, 1,83 m. Duas toesas equivaleriam a mais de 3 metros e meio.

20Para uma instigante e impactante discussão da construção da ideia de selvagem na cultura ocidental sobretudo no que diz respeito aos ameríndios e aos africanos e suas relações com a animalidade - particularmente com os macacos - e com a demonização, ver Jahoda (1999).

21Carlos Antonio Cordeiro ficou conhecido como o autor da peça O escravo fiel, escrita em 1859. É também autor de Abecedário Jurídico ou, Collecção de principios, regras, maximas (1858) e de O assessor forense, ou, formulario de todas as acções criminaes (1858), entre outras publicações.

22Possivelmente, trata-se de uma referência ao lazareto de Maricá, criado durante a epidemia de cólera, para deixar em quarentena os passageiros de navios que estavam em trânsito.

23Segundo Rhinow (2007), somente no Rio de Janeiro e na interpretação de João Caetano, Othelo, em tradução de Gonçalves de Magalhães, foi encenada 26 vezes entre 1837 e 1860 quando, no geral, as peças eram encenadas cerca de seis vezes. Segundo a autora, o drama também foi levado, pelo autor, aos palcos da Bahia, de Pernambuco e do Rio Grande do Sul.

24Compreender o riso e os motivos que o provocavam no passado talvez seja uma das chaves mais interessantes para penetrar em universos mentais estranhos, como nos mostra Darnton (1986), ao realizar a análise do episódio do grande massacre dos gatos.

25Por razões como essa, feministas negras têm afirmado, insistentemente, que não é possível discutir racismo sem incorporar, no debate, sexismos. Ver, entre outras, Davis (2016).

26 Morais Filho (s.d./1888) também mostra que, nas festas populares, as elites participavam de rituais que envolviam superstições e crenças.

SOBRE O/AS AUTOR/AS

28GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Analfabetismo, práticas de cura e população negra: uma análise da produção discursiva da imprensa brasileira na década de 1850. Revista Práxis Educacional, Vitória da Conquista, v. 18 n. 49, 2022. DOI: 10.22481/praxisedu.v18i49.10768

Recebido: 05 de Maio de 2022; Aceito: 01 de Novembro de 2022

Professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Realizou estágio-sanduíche no Institut National de Recherche Pédagogique, França, e estágio sênior na Northern Illimois University, EUA. Atuou também como investigadora visitante na Universidade Nova de Lisboa, Portugal, com financiamento da CAPES. Bolsista produtividade em Pesquisa CNPq, Nível 1D Contribuição de autoria: autora. http://lattes.cnpq.br/6102383021147824

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