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Revista Práxis Educacional

On-line version ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.19 no.50 Vitória da Conquista  2023  Epub July 04, 2024

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v19i50.12048 

Seção Temática

O PENSAMENTO DE JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI (1895-1930) E AS LUTAS INDÍGENAS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

THE THINKING OF JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI (1895-1930) AND INDIGENOUS STRUGGLES IN CONTEMPORARY BRAZIL

EL PENSAMIENTO DE JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI (1895-1930) Y LAS LUCHAS INDÍGENAS EN EL BRASIL CONTEMPORÁNEO

Tanise Baptista de Medeiro1 
http://orcid.org/0000-0002-0857-467X

Magali Mendes de Menezes2 
http://orcid.org/0000-0001-6325-9595

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil; tanise.medeiros@gmail.com

2Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil; correio magaliufrgs@gmail.com


RESUMO:

Este trabalho é fruto de pesquisa a nível de Doutorado em Educação que tem como objetivo traçar diálogos possíveis entre o pensamento de José Carlos Mariátegui (1895-1930), intelectual peruano, e as lutas indígenas no Brasil contemporâneo, a fim de contribuir para a elaboração de um projeto histórico e de um pensamento latino-americano descolonizador e anticapitalista, a partir da realidade onde nossos pés pisam. Diante do contexto de genocídio e epistemicídio dos povos indígenas no Brasil, buscamos apresentar as resistências indígenas em defesa de seus territórios como movimentos políticos e pedagógicos, contra-hegemônicos à violência capitalista-colonial, afirmando, ainda, com Mariátegui, que a esperança indígena é profundamente revolucionária.

Palavras-chave: José Carlos Mariátegui; povos indígenas; pensamento latino-americano

ABSTRACT:

This work is the result of research at the Doctorate level in Education, which aims to outline possible dialogues between the thinking of José Carlos Mariátegui (1895-1930), a Peruvian intellectual, and indigenous struggles in contemporary Brazil, in order to contribute to the elaboration of a historical project and a decolonizing and anti-capitalist Latin American thought, based on the reality where our feet step. Faced with the context of genocide and epistemicide of indigenous peoples in Brazil, we seek to present indigenous resistance in defense of their territories as political and pedagogical movements, counter-hegemonic to capitalist-colonial violence, also stating, with Mariátegui, that indigenous hope is profoundly revolutionary.

Keywords: José Carlos Mariátegui; indian people; latin american thought

RESUMEN:

Este trabajo es resultado de una investigación a nivel de Doctorado en Educación, que tiene como objetivo esbozar posibles diálogos entre el pensamiento de José Carlos Mariátegui (1895-1930), intelectual peruano, y las luchas indígenas en el Brasil contemporáneo, a fin de contribuir a la elaboración de un proyecto histórico y de pensamiento latinoamericano descolonizador y anticapitalista, a partir de la realidad donde pisan nuestros pies. Frente al contexto de genocidio y epistemicidio de los pueblos indígenas en Brasil, buscamos presentar la resistencia indígena en defensa de sus territorios como movimientos políticos y pedagógicos, contrahegemónicos a la violencia capitalista-colonial, afirmando también, con Mariátegui, que la esperanza indígena es profundamente revolucionaria.

Palabras clave: José Carlos Mariátegui; pueblos indígenas; pensamiento latinoamericano

Introdução

O caminho que nos leva até Mariátegui é a busca incessante não apenas por conhecer nosso vasto, profundo e diverso continente, mas também por reconhecer em sua vida e em sua obra um elemento impulsionador que nos identifica como latino-americanos e, ao mesmo tempo, isso nos convoca a uma análise particular não apenas de nosso continente em relação ao mundo, mas também de uma mirada interna, em sua dinâmica particular, sua diversidade territorial e populacional.

José Carlos Mariátegui nasceu em Moquegua (Peru) em 1984, filho de uma costureira e de um funcionário público, viveu sua infância e adolescência em um contexto político efervescente, trabalhando em diferentes periódicos peruanos e passando a frequentar desde muito cedo os primeiros círculos socialistas do país, tornando-se mais tarde um dos principais jornalistas do Peru quando funda a revista “Amauta” (sábio, em quechua). Além de periodista, envolveu-se profundamente com a política de seu país, primeiro junto a Aliança Popular Revolucionária (APRA) e, posteriormente, fundando o Partido Socialista Peruano.

São diversas as suas contribuições para a compreensão da realidade peruana já disponíveis no Brasil, embora publicadas tardiamente, dentre elas Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, sua obra de maior fôlego, publicada em 1928, onde mais do que uma análise da sociedade peruana do início do século XX, nos apresenta uma análise bastante própria da realidade latino-americana como um todo. Mariátegui desenvolve seu pensamento num momento histórico de maior difusão das concepções socialistas, anarquistas e comunistas na América Latina, devido tanto aos processos de migração europeia ocorridos de forma mais intensiva no início do século XX, como da ida de diversos intelectuais à Europa e o contato desses com os movimentos de trabalhadores. O próprio Mariátegui vai à Itália em 1920, exilado por perseguições do governo de Augusto Leguía, mas como correspondente do jornal El Tiempo e acompanha os movimentos grevistas e o Congresso do Partido Socialista Italiano. É nesse período que inicia de forma mais sistemática seus estudos das obras marxistas. Porém, diferente de grande parte da intelectualidade latino-americana que se projetava e se espelhava na Europa para a produção de seu pensamento, Mariátegui produz um pensamento particular, considerando sua condição de peruano e as problemáticas mais sentidas de seu povo. Trata-se de um intelectual que se debruça sobre diferentes temas de seu tempo e em diferentes campos do conhecimento como a arte, a literatura, a educação, a religião, etc., o que o possibilitou conhecer de modo cada vez mais complexo, o Peru e a América Latina do início do século XX.

Uma das questões mais originais para seu tempo e, o que aqui já apresentamos como um dos elementos mais relevantes do pensamento de Mariátegui, é sua interpretação acerca da realidade indígena e camponesa no continente. Mariátegui (2010) afirma que a questão indígena tem suas raízes no regime de propriedade de terra e que, portanto, deve ser compreendido como um problema fundamentalmente econômico, não reivindicando o direito indígena apenas à educação, à cultura, mas seu direito à terra. Portanto, o autor aponta que a questão da raça e da etnia não pode ser tratada de forma abstrata ou no plano moral, mas nas condições históricas concretas de exploração vivida pelos diferentes povos. Aponta ainda que, mesmo com toda destruição causada pelo colonialismo imperialista, sobrevivem na América Latina formas sociais e práticas culturais pré-coloniais que carregam tradições comunitárias e igualitárias que podem ser a base da construção do socialismo com características nacionais e próprias de cada povo, afirmando ainda que só quem pode resolver a questão indígena no Peru são os próprios índios.

Também sobre a educação pública, Mariátegui (2010) analisa as influências do processo educacional na América Latina, apontando que a educação nacional tem um espírito colonial e colonizador, sendo considerada como privilégio pelo fato de persistir o privilégio da riqueza e da casta. O autor ainda traça um intenso estudo sobre a universidade peruana, tendo participado ativamente no processo de reforma universitária iniciado em Córdoba e sentido fortemente no Peru, e na constituição das Universidades Populares González-Prada, onde realiza sua experiência como professor, embora nunca tenha tido vínculos institucionais em qualquer universidade, tampouco formação superior, destacando o caráter autodidata de seu estudo.

A difusão do pensamento de Mariátegui na América Latina, embora tardiamente realizada, tem em Florestan Fernandes e Aníbal Quijano, dois de seus principais prefaciadores. Em um texto de 1994, Fernandes coloca acerca da atualidade do pensamento do intelectual peruano:

[...] nos dias que correm, Mariátegui - ao contrário de tantos anarquistas, social-democráticos, socialistas e comunistas - encontraria dentro de si a indagação fundamental: como representar e explicitar a totalidade histórica intrínseca ao capitalismo monopolista automatizado? O que ele promete de novo à evolução da humanidade e da civilização pós-moderna? O que ele reserva aos de baixo, à escória, ao trabalhador mecânico inativo, aos estratos inferiores e intermediários das classes médias? O que ele remete e arranca da periferia, subcapitalista ou em desenvolvimento capitalista, e àqueles países nos quais a lenta transição para o socialismo não foi ainda arrasada. Ciência, tecnologia, tecnocracia racionalizada foram, por fim, colocadas à serviço de homens livres e iguais ou servem apenas à concepção romana de riqueza, grandeza e poder - repetida no destino manifesto dos Estados Unidos e na conglomeração de potências que encarnam a mesma aspiração de atingi-la? E qual é a essência civilizatória desse capitalismo ultramoderno? Ele contém a propensão para abolir as classes, a dominação de classes e a sociedade de classes? Ou as oculta por trás de uma miragem pela qual a ideologia escamoteada reaparece com vigor nunca pressentido no neoliberalismo? (FERNANDES, 2015, p. 81-82)

Essas questões, colocadas por Florestan Fernandes a partir de seu tempo, evidencia na obra de Mariátegui um elemento central, qual seja, o questionamento da ordem vigente: o capitalismo monopolista, já em sua fase imperialista, que tão bem o autor se debruçou. E, ainda, realiza esta análise levando em conta tanto esta realidade histórica como a multiplicidade da região andina a qual seus pés pisam, com todo seu conjunto heterogêneo de sociabilidades, estruturas de poder, produções materiais e imateriais, etc.

Na sua condição de peruano, dedicou-se ao estudo do passado e do presente, longe dos círculos acadêmicos, embora não distante do debate teórico-epistemológico. Como intelectual assumidamente marxista, sem se render aos modismos, mas convivendo com uma situação história rica para o socialismo e o marxismo revolucionário, realizou profundamente uma análise concreta de situação concreta (LENIN, 2015), relacionando projetos locais e globais, as cosmologias ocidentais e ameríndias, denunciando ferozmente a situação colonial, a lógica destrutiva dos gamonales e das elites criollas que perpetuaram o projeto colonialista. E, por outro lado, apontando um projeto histórico alternativo para a ordem social, não apenas no plano teórico, mas prático, o que não poderia ser forjado na América Latina sem a participação ativa dos povos indígenas, camponeses, trabalhadores e das mulheres.

É nesse sentido que analisamos a obra de Mariátegui não em si mesma, mas buscamos sistematizar quais elementos de sua obra nos ajudam a pensar a realidade latino-americana e brasileira na atualidade, guardando os devidos cuidados de nem atribuirmos sentido à obra de Mariátegui que não lhe corresponda, nem transpor mecanicamente suas análises para a realidade brasileira atual.

Mas por que recuperamos Mariátegui e por que agora? Nas palavras de Florestan Fernandes (2015, p. 80) “[...] interessa-nos o que ele representaria, hoje, graças às peculiaridades do seu pensamento e ação, nesta trágica etapa de negação do socialismo [...]”, e acrescentamos ainda, nesta trágica etapa de genocídio e epistemicídio das populações indígenas, pretas e periféricas no Brasil, do domínio do capital agrário exportador, do latifúndio, do agronegócio, da mineração, da bancada ruralista no Congresso Nacional, dos discursos de ódio, intolerância, negacionismo, racismo, sexismo e homofobia, de uma pandemia global que assolou principalmente os trabalhadores e trabalhadoras que não puderam ter garantidos os direitos ao isolamento social, aos protocolos sanitários e, ainda, à vacinação em tempo hábil. Mariátegui permanece tão necessário e tão atual pois, embora com novas roupagens, as problemáticas mais sentidas por nossos povos no sul global e periférico ainda permanecem essencialmente as mesmas.

O pensamento de José Carlos Mariátegui: um horizonte descolonizador e anticapitalista

A proposta de Mariátegui consistiu em olhar o Peru desde dentro, e neste papel de olhar, observar e entender o Peru, considerava que os verdadeiros peruanos eram os índios e que o problema indígena não poderia estar relacionado à educação e à redenção espiritual, como até o início do século XX havia se produzido a partir de uma perspectiva indigenista, mas passava pela destruição do latifúndio e da servidão. Ou seja, a grande novidade para a intelectualidade peruana e latino-americana naquele período era considerar que interpretar a realidade deste território passava por enfrentar a questão indígena e a questão agrária.

Mariátegui, em seu texto “O homem e o mito” (2022), evoca uma mística e um mito, profundamente enraizado nos povos de Nuestra América, onde mito e história não se opõem, mas se realizam nos modos comunais de vida, os quais o autor reconhece que nem mesmo a brutalidade da colonização pôde apagar. É nessa dimensão mítica e mística que reside a capacidade revolucionária desses povos: “A força dos revolucionários não está na sua ciência, está em sua fé, em sua paixão, em sua vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do mito.” (MARIATÉGUI, 2022, p. 36).

Assim, Mariátegui nos aponta para um horizonte descolonizador de Nuestra América, tendo o indígena, o periférico, o explorado, o oprimido, em suma os “condenados da terra” como sujeitos desse pensar e agir latino-americano, possibilitando des-en-cobrir o que aqui encontra-se encoberto pela violência colonial ainda tão premente em nosso continente. Recupera, desse modo, a dimensão utópica, mística e mítica das transformações sociais, articulando o estar indígena enraizado na América Profunda com o projeto histórico universal de emancipação humana.

As lutas indígenas no Brasil contemporâneo: movimentos políticos e pedagógicos

A questão indígena não surge nesta reflexão apenas como um enfoque a ser evidenciado, ou como um elemento apontado a partir do pensamento de Mariátegui, mas como uma realidade urgente e necessária de ser evidenciada, principalmente no que diz respeito, por um lado, aos processos de genocídios e epistemicídios que essas populações vêm sofrendo desde o processo colonial, mas principalmente na atualidade no Brasil com os ataques da mineração, do agronegócio, da grilagem, enfim, do latifúndio e do capitalismo que transforma toda e qualquer vida humana e natural em bens e mercadorias a serem vendidos e consumidos. Por outro lado, há uma urgente e necessária evidência a ser feita a partir da resistência indígena a esses processos no capitalismo. Nisso, insere-se a dimensão da luta política dos povos indígenas para resistirem e existirem diante do ataque de um projeto do capital monocultor-agro-exportador.

O debate (ainda inicial nesta reflexão) aqui proposto e dialogado junto às vozes indígenas que se erguem nos movimentos pelo Brasil, mostra que hoje o capitalismo, na particularidade brasileira, assume como um de seus principais alvos os povos indígenas. Nossa hipótese, é de que isso ocorre pois justamente os mais de 300 povos indígenas que se encontram em território brasileiro representam uma ameaça ao projeto capitalista. Este precisa de terra e matéria-prima para produzir madeira, soja, criar gado, ou seja, precisa devastar a natureza e retirar toda a terra daqueles que dela a usufruem para seu bem viver e o bem viver de sua coletividade. Assim, essa dinâmica será tratada aqui neste trabalho a partir dessa contradição elementar entre propriedade privada da terra e sua coletivização, entre a universalização da produção de capital e a proteção dos povos, rios e florestas, entre um projeto de morte e extermínio e um projeto de vida em abundância para a humanidade.

É necessário também compreendermos que há resistência indígena frente ao projeto do capital. Muitas das análises contemporâneas sobre os processos e movimentos políticos na América Latina tem abordado os povos indígenas como “novo sujeito político” ou como os “novos movimentos sociais”, principalmente a partir da ascensão de Evo Morales à presidência da Bolívia, ao reconhecimento da sociedade do Bem Viver e de uma constituição plurinacional no Equador e no Chile, entre outros movimentos. Sem negarmos o protagonismo dos povos indígenas nos principais movimentos progressistas vivenciados a partir dos anos 2000 em nosso continente, queremos aqui ressaltar que a luta e a resistência indígena não é, necessariamente, uma novidade e que não pode ser passível de reconhecimento apenas quando aproxima-se da esfera institucional do Estado. Há uma temporalidade nas lutas indígenas.

A temporalidade das lutas indígenas resgata as estruturas simbólicas e culturais, os modos de vida antes do estabelecimento do processo colonial e precisa ser compreendida como um passado que não se encontra isolado, fragmentado, imaculado para ser visto e compreendido por historiadores de forma também isolada em seu tempo e espaço. As lutas indígenas na América Latina, que resgatam a wipala, as figuras de Tupaq Amaru e Tupac Katari no movimento katarista ou até mesmo de Emiliano Zapata no México zapatista, precisam ser apreendidas em uma visão histórica que projeta um futuro. Como nos diz Krenak (2022, p. 11) em sua obra recente Futuro Ancestral: “[...] se há futuro a ser cogitado, este futuro é ancestral, porque já estava aqui”.

Mariátegui já nos coloca no início do século XX que não é possível pensar e teorizar sobre esta região que denominamos América Latina, sem levar em conta a questão indígena e a questão da terra. Ao fazermos uma mirada histórica das lutas indígenas nesta região, percebemos que a questão territorial é o principal motivo de conflitos e disputas. Conflitos e disputas esses, instaurados não pela lógica dos povos indígenas, mas pela lógica do capital, do latifundiário, do ruralista, madeireiro, das elites do agronegócio que tornam a terra onde pisam em negócio lucrativo para interesses privados. Um exemplo disso na atualidade é a chamada tese do Marco Temporal que limita a reivindicação de demarcação das terras indígenas aos territórios ocupados quando da promulgação da Constituição Federal de 1998. Em 2013, o TRF-4 havia aceito a tese do marco temporal ao conceder ao Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina a reintegração de posse de uma área que é parte da Reserva Biológica do Sassafrás, onde fica a Terra Indígena Ibirama LaKlãnõ, em que vivem os povos xokleng, guarani e kaingang. Em 2021, o STF julga um recurso da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), questionando a decisão do TRF-4 e o que fosse decidido pelos ministros da Corte criaria um entendimento que poderia ser aplicado em situações semelhantes em todo o Brasil.

O processo de resistência e defesa dos povos indígenas tem sido essencial e pedagógico, no sentido de conscientizar a sociedade brasileira acerca das presenças e disputas que se dão sobre este território e que vem dizimando sistematicamente os povos indígenas. A resistência indígena ao marco temporal nos apresenta questões importantes no que diz respeito aos conceitos de território e territorialidade para os povos indígenas, além de afirmar a potencialidade desses sujeitos enquanto coletividade resistente aos processos colocados pelo capitalismo em seu estágio atual. Durante a votação no STF da tese, de 22 a 28 de agosto de 2021, o acampamento Luta pela Vida reuniu cerca de 6 mil indígenas de 176 povos diferentes em Brasília. As falas de 4 advogados indígenas contrários à tese imposta, são potentes para compreendermos o significado desse julgamento. Samara Pataxó afirmou que:

Não há como falar de vida sem a proteção aos nossos territórios. [...] Já não basta historicamente terem nos impostos uma língua, uma fé, uma civilização? Ainda querem nos impor um padrão de sociedade, um padrão de desenvolvimento, um padrão de progresso e querem também limitar, interferir, ditar os moldes do nosso usufruto, e o gozo e efetivação dos nossos direitos territoriais, mesmo estando esses direitos consagrados na carta constitucional inclusive como cláusula pétrea1 (ÁVILA; LIMA, 2021, p.1).

E ainda, Eloy Terena diz que: “Adotar o marco temporal é ignorar todas as violações a que os povos indígenas estão submetidos. Demarcar terra indígena é imperativo constitucional” 2 (ÁVILA; LIMA, 2021, p.1).

Nesse sentido, trazemos à tona as noções de território e territorialidade presentes em diferentes textos legais. Segundo o Decreto nº 6.040 de 2007 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais - territórios tradicionais são espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente e temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas. O objetivo do decreto é garantir aos povos e comunidades tradicionais seus territórios e recursos para a sua reprodução. Ainda, o Artigo 231 da CF afirma que “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à união demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” (BRASIL, 2020).

Para esse debate, trago aqui dois elementos importantes, que dialogam com outras referências teóricas, além de Mariátegui. Primeiro, destaco que, a partir das lutas indígenas, emerge a noção ampliada de território, não limitado apenas ao direito à terra. A terra, é forma e meio de produção das necessidades mais elementares, da relação ser humano e natureza, da subsistência humana; o território é espaço de reprodução, nesse sentido, ampliam-se a esfera do direito dos povos indígenas à educação, saúde, alimentação, moradia, configurando-se o direito ao território como o direito a estar dignamente ocupando os diferentes espaços sociais, políticos, econômicos, culturais. Observamos, na mesma direção, a luta pela universidade como território indígena, pela cidade como território ancestral, o convite das mulheres indígenas pelo aldeamento no campo da política institucional, dentre outras resistências trazidas pelos povos indígenas na atualidade.

Um segundo ponto reside na contradição de um estado burguês que se outorga o direito de legitimar ou não um território como território indígena, sendo que essa organização é muito anterior à própria constituição da noção de Estado. Embora a luta pela demarcação das terras indígenas seja necessária e se configure como uma das principais questões na atualidade, ela é fruto da própria contradição de circunscrever o espaço indígena a um determinado espaço e tempo, como as próprias práticas de aldeamento e redução no Brasil colonial e imperial. Demarcar, no sentido da sociedade capitalista, é limitar, cercar, isolar, dar posse, o que fere justamente a noção dos povos indígenas de coletivização das terras, do caminhar livre sobre um território ancestral. Porém, diante da ganância do homem branco burguês ruralista, madeireiro, dono dos grandes latifúndios, é necessário que o estado demarque, proteja e garanta o direito à terra e ao território de determinado povo.

Possibilidades de diálogos entre tempos: Mariátegui e os povos indígenas

São essas e outras contradições que colocamos em diálogo com o pensamento de Mariátegui (2010, p. 53) que, acerca da questão indígena, nos diz:

Todas as teses sobre o problema indígena que ignoram ou aludem a este como problema econômico-social são outros tantos exercícios teóricos - e às vezes apenas verbais - condenados a descrédito absoluto. Nem a boa fé de algumas a salvam. Praticamente todas só serviram para ocultar ou desconfigurar a realidade do problema. A crítica socialista o descobre e esclarece, porque busca suas causas na economia do país e não no seu mecanismo administrativo, jurídico ou eclesiástico, nem em sua dualidade ou pluralidade das raças, nem em suas condições culturais ou morais. A questão indígena nasce de nossa economia. Tem suas raízes no regime de propriedade da terra. Qualquer tentativa de resolvê-la com medidas de administração ou polícia, com métodos de ensino ou obras de estrada, constitui um trabalho superficial ou adjetivo, enquanto subsistir o feudalismo dos gamonales.

Esta é a tese central de Mariátegui para a questão indígena, sem desconsiderar certamente que a problemática indígena na América Latina e em específico no Peru perpassa dimensões políticas, culturais, administrativas, morais e étnicas. Mariátegui, à luz do pensamento marxista, encontra a essência da problemática no regime de propriedade de terras, dando concreção histórica à reivindicação indígena, situando-a na dinâmica dos regimes colonial e republicano e fugindo de análises unilaterais.

Ainda em seu ensaio sobre a economia colonial e republicana, Mariátegui (2010) afirma que a conquista europeia representou uma quebra de continuidade no império incaico e no trabalho indígena que deixou de funcionar de forma solidária e orgânica. Afirma que a conquista foi, antes de tudo, uma tremenda carnificina e que sua organização política e econômica não deu fim ao extermínio indígena, considerando este extermínio não apenas como uma tática da invasão colonial, mas como elemento que perdura também mesmo após a independência. O regime republicano favoreceu a absorção da propriedade indígena pelo latifúndio, pauperizou o índio, agravou sua opressão e exasperou sua miséria. Essas são as marcas de um capitalismo desenvolvido não apenas no Peru, mas na América Latina como um todo, e que mantém suas bases latifundiárias, seus elementos de uma economia colonial, enraizada em uma aristocracia criolla sucessora de encomenderos e latifundiários, pensando ainda sobre esses uma educação espanhola.

Porém, Mariátegui (2010, p. 22) reconhece que: “[...] a esperança indígena é absolutamente revolucionária [...]”, visto que os traços da “[...] economia comunista indígena [...]” ainda subsistem principalmente na serra peruana. Quando Mariátegui fala em economia comunista indígena, não está aqui tratando de uma abstração política-ideológica, mas de um modo de existir, produzir e organizar a vida de forma comunal, estabelecendo vínculos com a terra e entre os seres humanos. Trata-se de sociedades em que a noção de propriedade privada da terra não encontra correspondência, mas sim noções de coletivização, cooperação, solidariedade e organicidade.

Percebemos, não num processo imediatamente comparativo entre o passado e presente, mas onde esses dois elementos se articulam dialeticamente, que a carnificina engendrada pelo processo colonial se atualiza no ataque às vidas indígenas e a todos e todas que defendem a vida humana e natural. Conforme o observado no Relatório dos Conflitos no Campo no Brasil, lançado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 20213 foi registrado o aumento de 75% de assassinatos em consequência de conflitos no campo no Brasil, ofensiva causada, certamente, pela retirada de direitos territoriais dos povos indígenas, comunidades quilombolas e povos e comunidades tradicionais, manifestadas, por exemplo, nos conflitos em terras indígenas no norte do Rio Grande do Sul, no sul da Bahia, no Mato Grosso do Sul, na Amazônica Legal ou expressos, ainda, no assassinato dos indigenistas Bruno Pereira e Dom Phillips.

Se parte da esquerda, movimentos sociais e intelectualidade progressista desistiram de falar em capitalismo e, até mesmo, de lutar contra ele, os povos indígenas no Brasil vem nos mostrando que sua luta e sua existência são profundamente anticapitalista. E os são, porque sentem na pele, cotidianamente em seus territórios, as agruras desse modelo de produção e de sociabilidade humana que transforma a tudo e a todos em mercadoria. Ailton Krenak (2020, n. p.), nos aponta:

Os povos originários estão há muito tempo apontando o caminho da sociedade que eles gostariam que continuasse existindo. Sociedades onde não tenha propriedade, em que temos de proteger o rio, a floresta e a montanha, e não uma sociedade em que tem de correr para ver quem fica dono da montanha, quem é dono da mineradora, quem é o dono dos bancos. Vivemos hoje em uma civilização onde num extremo estão os banqueiros, que controlam o sistema financeiro global, e no outro estão os miseráveis, morrendo em fila da Caixa Econômica para pegar seiscentos paus. É claro que eu não quero esse tipo de civilização. Ou esse tipo de humanidade [...] A crítica a essa coisa do capitalismo não pode ficar na superfície. Ela tem de ter consequências. Não adianta você querer modernizar o capitalismo, humanizar o capitalismo. O capitalismo é uma doença. E fim de papo. Você quer ficar dentro dela, então se vire com a doença.

Casé Tupinambá (2021) fala de formas socioculturais de resistência e (re) existência dos povos indígenas que podem ser percebidas na arte, na cultura, na memória e na identidade indígena. Nessas formas de resistência, percebemos uma relação com a terra na perspectiva de sua coletivização, em oposição à propriedade privada. Como fala Antonio Bispo dos Santos (2018, p.44), retomando a luta histórica dos povos quilombolas, “[...] a terra não pertence às pessoas, elas é que pertencem à terra”. A lógica capitalista nomeia os indígenas e quilombolas como posseiros, donos de sua própria terra, enquanto que a relação desses povos com a terra é uma relação de cultivo. Tratam-se de povos que não precisam comer com a fadiga do suor, porque a natureza já oferta a comida. Assim, apresentam-se tão perigosos ao capital, subvertendo sua lógica que quer explorar os corpos humanos em troca de lhes conceder uma pequena parte do que produzem, e transformar tudo, inclusive os próprios seres humanos, em mercadorias. O próprio mito narrado por Davi Kopenawa (KOPONEWA; ALBERT, 2015), retrata o mal, a doença, como aquilo que é causado pela ganância dos brancos e não como algo dado.

Cacique Babau (2019, n. p.) também nos diz:

As nações indígenas são as que mais lutam para manter a água limpa e as árvores de pé. Usamos o solo sob outra lógica. Em nossas terras, não há enchentes nem ventos que matam, você não encontra grandes incidentes. Mas, apesar disso, somos chamados de povo atrasado, povo sem futuro, o entrave do Brasil. Somos considerados o atraso que precisa ser retirado da frente para que tudo possa ser finalmente derrubado.

O modo de viver coletivizado, de cultivar a terra, de alimentar-se e viver uns com os outros, sem cercas, fere a produção capitalista que visa o lucro às custas da exploração cada vez mais exacerbada da natureza. Por isso, a necessidade que vemos cada vez mais acentuada da intensificação do projeto de genocídio dos povos indígenas, pois é preciso extingui-los para explorar a terra, derrubar a mata, envenenar os rios. As retomadas dos territórios indígenas se mostram como um processo de resistência e de enfrentamento à propriedade privada e àqueles que se julgam seus proprietários. Considero esse um dos atos mais subversivos frente ao sistema que sobrepõe a liberdade individual frente aos interesses coletivos de povos inteiros. Não é à toa que, como afirma Felipe Milanez (2020, n. p.):

Quem mais agride os povos indígenas no Brasil são os representantes do agronegócio. E ainda: Na vã tentativa de usar máscaras de bons moços e luvas para esconder o sangue das mãos, como na campanha o agro é pop da Rede Globo, a narrativa ruralista tenta despolitizar a violência, naturalizar a inferiorização sistemática da pessoa ameríndia, e justificar a supremacia do branco latifundiário como o Herói da Nação. Despolitizar o fato de que o país, através do racismo institucional, insiste em não reconhecer e demarcar as terras indígenas.

E são esses os poderes hegemonicamente atuantes no genocídio de populações indígenas e negras no Brasil, país esse onde o capitalismo se combina com a lógica do latifúndio e da monocultura agro-exportadora e os interesses mais conservadores e retrógrados do homem branco dono da terra e das águas. Nesse sentido, como afirma Milanez (2020), estabelece-se uma linha hierárquica entre aqueles considerados humanos e os subhumanos, numa lógica cada vez mais racista, homofóbica e patriarcal, onde o colonialismo se reatualiza constantemente.

Daniel Munduruku (2012), ao tratar do caráter educativo do movimento indígena brasileiro, nos afirma que seu nascimento se dá a partir dos anos 1970 num contexto ainda marcado por uma relação entre estado e povos indígenas baseado em uma lógica integracionista. Tal movimento se dá no âmbito de ressignificação do termo índio como definidor de uma identidade indígena nacional homogeneizante. A União das Nações Indígenas (UNI) iniciada em 1982 possibilitou a criação de outras tantas organizações indígenas que fomentaram os debates, discussões e estratégias de atuação que culminou com a Constituição de 1988 em seu Art. 231. Os povos indígenas vêm assim educando a sociedade brasileira quanto à diversidade indígena. Munduruku (2012, p. 221) fala:

O Movimento Indigena é fruto da ação concreta de resistência de pessoas que, sem se conhecerem, deixaram rastros de solidariedade. Foram pessoas que viveram em tempos diferentes, mas sua resistência permitiu que as novas gerações sobrevivessem para atuar incisivamente dentro da sociedade brasileira.

Mas Álvaro Tucano, ainda nos ressalta que,

Antes da chegada do branco, o Movimento Indígena já existia. Respeitávamos os povos vizinhos, tínhamos a nossa história, fazíamos as festas, defendíamos nosso território. Isso foi muito bom. Mas, com a chegada do branco, mudaram os nossos costumes. Ele não foi capacitado a conviver com o meio ambiente e começou a devastar, fazendo tudo ao contrário. Começou a haver confrontos, aconteceram muitas guerras. (TUCANO apudMUNDURUKU, 2012, p. 222).

E Munduruku (2012, p.222) continua afirmando que:

Talvez a maior contribuição que o Movimento Indígena ofereceu à sociedade brasileira foi o de revelar - e, portanto, denunciar - a existência da diversidade cultural e linguística. O que antes era visto apenas como uma presença genérica passou a ser encarado como um fato real, obrigando a política oficial a reconhecer os diferentes povos como experiências coletivas e como frontalmente diferentes da concepção de unidade nacional.

Desde a Constituição de 1988, portanto, diversas organizações e movimentos indígenas foram se constituindo, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) atuando nacionalmente e internacionalmente em defesa dos povos indígenas; os Acampamentos Terra Livre que desde de 2004 se constituiu na maior assembleia dos povos e organizações indígenas do Brasil; a Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade, que vem organizando a Marcha das Mulheres Indígenas, dentre diversas outras organizações e manifestações, locais, regionais e nacionais em todo território brasileiro.

Dentre as principais lutas indígenas, ressaltamos, através das vozes indígenas dessas organizações, a demarcação das terras indígenas, o que significa a defesa e proteção dos territórios indígenas e, ao mesmo tempo, a defesa e proteção de toda a biodiversidade brasileira. Recentemente a APIB afirmou, diante da União Europeia no processo de aprovação da Lei Anti-desmatamento, que a proteção dos territórios deve ser feita sobre todos os ecossistemas naturais, não apenas das florestas da Amazônia. O Cerrado, por exemplo, está perdendo cerca de um milhão de hectares ao ano e é savana mais rica do planeta e a casa de centenas de povos, culturas e territórios indígenas, quilombolas, e outras populações e culturas tradicionais e que, por outro lado, é a maior fronteira agrícola do mundo e de maior impacto da produção de soja importada na Europa.

A APIB (2022, n.p.) reforça que:

Os Povos Indígenas do Brasil, que estão distribuídos por todo o território brasileiro e localizados em todos os biomas, já sofrem hoje em dia a pressão da produção de commodities mediante: 1) invasão ilegal e desmatamento das suas terras; 2) violência, ameaças e assassinatos de lideranças indígenas e ativistas que lutam pela defesa do meio ambienta e da proteção dos direitos indígenas; 3) pressão socio-ambiental direta através do desmatamento, incêndios e da crescente intensificação de atividades agropecuárias em grande escala ao redor das Terras Indígenas com uso de agrotóxicos que poluem terras e rios.

Em mapeamento realizado mostra que a maior parte das áreas desmatadas estão destinadas a pastagens para criação de gado (para exportação de carne e de couro) e a produção de soja, mas também destacam plantações de cana, arroz ou algodão, entre outras commodities. E, ainda, a APIB (2022, n.p.) reforça que:

Commodities de risco para ecossistemas comercializadas mundialmente, tais como soja, carne, couro, óleo de palma, cacau e borracha, são de longe as que mais contribuem para essas emissões através do desmatamento e da destruição dos ecossistemas.

No Brasil, já existem terras degradadas para permitir a produção de commodities em larga escala, sem a necessidade de cortar uma só árvore ou arbusto, nem competir por espaço com a produção local de alimentos. Além disso, deixam bastante claro que a destruição dos ecossistemas não é apenas uma questão de mudanças climáticas, mas também é diretamente responsável por pelo menos 70% da perda global de biodiversidade, violações generalizadas dos direitos humanos e invasões de terras, além de estar relacionada com o surgimento ou a reemergência de doenças infecciosas. Demarcar as terras indígenas, portanto, é o que precisa ser feito para que a crise global do clima seja enfrentada de frente.

Nesse sentido, o manifesto da segunda edição da Marcha das Mulheres Indígenas, também amplia as noções de território e direito indígenas quando afirma:

Precisamos construir juntos um trajeto de vida e reconstrução, que se baseie no encontro entre os povos, no cuidado com nossa Terra, na interação positiva de saberes. É isso que propomos com o Reflorestarmentes. É possível vivermos e convivermos de outra forma, com outras epistemes, a partir de cosmologias ancestrais. Cuidar da Mãe Terra é, no fundo, cuidar de nossos próprios corpos e espíritos. Corpo é terra, floresta é mente. Queremos reflorestar as mentes para que elas se somem para prover os cuidados tão necessários com nosso corpo-terra (ANMIGA, 2022, p.1).

Nesse sentido, de viver e conviver com outras epistemes, Domingos (2016, p.26), mulher e liderança Kaingang, afirma que o bem viver kaingang é um projeto contra-hegemônico ao projeto capitalista neoliberal:

É então, na sociedade capitalista, que vivenciamos disputas, sejam elas em conjunto como macro, ou de cada categoria, como os indígenas, contra aqueles que excluem, exploram, discriminam e que detém financeiramente e, muitas vezes, politicamente o poder. Neste sentido, temos os coletivos indígenas, nas suas lutas, principalmente a luta pelos direitos originários e a resistência que os mesmos apresentam, podemos dizer que estes são movimentos contra-hegemônicos, que contestam e resistem contra a ideologia dominante pautadas no neoliberalismo e na ótica de exploração do capital. [...] O bem viver kaingang pode ser considerado um movimento contra-hegemônico, pois estes modos de vida, modos de existência, vão contra a ordem neoliberal competitiva, que viola os direitos humanos, que discrimina coletivos indígenas, quilombolas, mulheres, entre tantos outros. Neste sentido, a partir de sua resistência, podemos perceber que os coletivos indígenas também somam junto com outros movimentos sociais na luta contra a desigualdade social, desrespeito e privações de direitos.

Assim, os movimentos indígenas mostrado para nós, não-indígenas, que luta, resistência e vida não se separam; que há uma multiplicidade de povos, modos de ser e pensar apagados e transformados em termos simplórios a partir da lógica do colonizador e que, hoje representam uma resistência, uma das mais acentuadas, ao capitalismo.

Considerações Finais

Para concluir, enfatizamos que o diálogo que podemos estabelecer entre as lutas e movimentos indígenas e o pensamento de Mariátegui é profundamente importante e necessário, pois como nos diz Mariatégui (2010, p. 22): “[...] a esperança indígena é absolutamente revolucionária”. Contudo, sabemos que temos ainda muito a refletir sobre a contribuição de seu pensamento para a realidade dos povos indígenas hoje na América Latina, principalmente, na escuta sobre o que os povos indígenas teriam a dizer em relação ao pensamento de Mariátegui.

Diante do exposto, ficam muitas questões, pois nossa intenção não foi esgotar a intensidade da vida e obra de um pensador (infelizmente ainda pouco estudado no Brasil). Nos perguntamos de que forma situamos as problemáticas levantadas por Mariátegui, diante da atual fase do capitalismo que nos encontramos e de que forma as resistências indígenas a esses processos produzem movimentos políticos e pedagógicos na sociedade brasileira?

O movimento indígena é educador, parafraseando Nilma Lima Gomes (2017), e tem nos ensinado a pensar/sentir o planeta terra de outras formas. Como pesquisadoras atuantes no campo da educação, nossa preocupação também se insere na formação de pesquisadores-educadores comprometidos com a realidade social de modo geral e com a realidade educacional de modo específico. Destacamos, desse modo, dois elementos que consideramos relevantes para a continuidade deste trabalho.

O primeiro é a dimensão ampliada de educação. Na perspectiva do próprio Mariátegui, esta dimensão não se separa do projeto de sociedade a qual vivemos, visto que no Peru, assim na América Latina como um todo, a educação assume um espírito colonial e colonizador, herdando dos europeus seu sentido aristocrático, como um conceito eclesiástico e literário de ensino que se restringia à formação de clérigos e doutores, excluindo o povo que não tinha direito a nenhuma instrução e, muito menos, à universidade. Em que medida esse espírito ainda persiste na educação e na universidade brasileira?

E, ainda, ao buscar compreender as resistências indígenas como movimentos pedagógicos, estamos assumindo a perspectiva dos próprios povos indígenas em que vida, rito, saúde, território não se separam do próprio processo educativo. Portanto, a educação não está restrita ao espaço escolar ou acadêmico, contudo os povos indígenas compreendem que ao (re) tomar estes espaços, busca-se novas ferramentas de luta. A busca de tais ferramentas, situadas em nosso chão latino-americano e brasileiro, é o que nos impulsiona no diálogo entre Mariátegui e às resistências indígenas

Referências

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SOBRE O/AS AUTOR/AS

1Falas retiradas da reportagem disponível em: https://amazoniareal.com.br/marco-temporal-julgamento/

2Idem

SOBRE O/AS AUTOR/AS

6MEDEIROS, Tanise Baptista e MENEZES, Magali Mendes de. O Pensamento de José Carlos Mariátegui (1895-1930) e as Lutas Indígenas no Brasil Contemporâneo. Revista Práxis Educacional, Vitória da Conquista, v. 19 n. 50, 2023. DOI: 10.22481/praxisedu.v19i50.12048

Recebido: 25 de Novembro de 2022; Aceito: 06 de Janeiro de 2023

Tanise Baptista de Medeiros. Doutoranda em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEDU/UFRGS). Trabalha com jovens em espaço escolar e não escolar nas temáticas sobre Ações Afirmativas, Acesso e Permanência de estudantes de origem popular no Ensino Superior. Contribuição de Autoria: Escrita e Revisão. https://lattes.cnpq.br/0373959031967956

Magali Mendes de Menezes. Doutora em Filosofia. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS). Coordenadora do Projeto Saberes Indígenas na Escola. Contribuição de Autoria: Escrita. https://lattes.cnpq.br/9491379022053570

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