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Revista Práxis Educacional

versão On-line ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.19 no.50 Vitória da Conquista  2023  Epub 03-Jul-2024

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v19i50.12666 

Ensaio

A EDUCAÇÃO DA ATENÇÃO EM TIM INGOLD: UM COMPROMISSO ONTOLÓGICO COM A VIDA

THE EDUCATION OF ATTENTION ACCORDING TO TIM INGOLD: AN ONTOLOGICAL COMMITMENT TO LIFE

LA EDUCACIÓN DE LA ATENCIÓN EN TIM INGOLD: UN COMPROMISO ONTOLÓGICO CON LA VIDA

1Faculdade do Nordeste da Bahia - Coronel João Sá, BA; eldercorreia21@gmail.com

2Universidade Federal de Sergipe - São Cristóvão, SE, Brasil; zobolito@gmail.com


RESUMO:

O presente escrito tem como objetivo demostrar que mediante seu compromisso ontológico, a educação acena para uma melhor compreensão da participação do humano na produção do mundo. Para tal, partimos da noção de “educação da atenção”, do antropólogo britânico Tim Ingold. A partir desse pressuposto, o texto assume a posição de que a preocupação fundamental da educação precisa dizer respeito a um compromisso ontológico com o mundo e com àqueles que os constitui. Conclui-se que o pensamento de Ingold nos possibilita explorar o compromisso ontológico da educação, ao se atentar para uma noção de educação em que está preocupada com a continuidade da vida.

Palavras-chave: educação da atenção; Tim Ingold; compromisso ontológico; continuidade da vida

ABSTRACT:

This paper aims to demonstrate that education, through its ontological commitment, leads to a better understanding of human participation in the production of the world. To do so, we start from the notion of " education of attention", by the British anthropologist Tim Ingold. From this assumption, the text takes the position that the fundamental concern of education needs to concern an ontological commitment to the world and to those who constitute it. It concludes that Ingold's thinking enables us to explore the ontological commitment of education by paying attention to a notion of education that is concerned with the continuity of life.

Keywords: education of attention; Tim Ingold; ontological commitment; continuity of life

RESUMEN:

El presente escrito objetiva demostrar que a través de su compromiso ontológico, la educación apunta a una mejor comprensión de la participación humana en la producción del mundo. Para ello, partimos de la noción de “educación de la atención”, del antropólogo británico Tim Ingold. A partir de este supuesto, el texto asume la posición de que la preocupación fundamental de la educación debe consistir en un compromiso ontológico con el mundo y con quienes lo constituyen. Se concluye que el pensamiento de Ingold permite explorar el compromiso ontológico de la educación, al prestar atención a una noción de educación en la que se preocupa por la continuidad de la vida.

Palabras clave: educación de la atención; Tim Ingold; compromiso ontológico; continuidad de la vida

Introdução

A filósofa alemã de origem judia Hannah Arendt, é conhecida por sua filosofia política, e apesar da possibilidade de a partir de sua obra, ser possível traçar reflexões acerca da educação, ela tem apenas um texto propriamente dito sobre tal tema, cujo título é “A crise na educação”. Não é por acaso que o referido ensaio se encontra em seu livro “Entre o passado e o futuro”, pois para Arendt (2016), a educação lida com o paradoxo de que é necessário apresentar aos novos (crianças, jovens) um mundo que os precede, ao mesmo tempo em que tal apresentação deve também os tornar capazes de, a partir da novidade de sua aparição, serem responsáveis pela conservação do mundo e sua renovação. Em outros termos, entendemos que em Arendt (2016), a problemática fundamental da educação é a orientação pela responsabilidade pelo mundo, responsabilidade esta que se expressa, segundo Correia (2010), tanto na apresentação do mundo aos novos, como na conservação da novidade destes.

Destarte, sinalizamos que, a partir da posição harendtiana, a educação diz respeito a um problema fundamentalmente ontológico, no sentido em que se preocupa com o jogo relacional entre as pessoas e o mundo, em que a condição de possibilidade de constituição de ambos, exige uma relação recíproca entre eles, ao ponto que nos tornamos pessoas/sujeitos, ao sermos responsáveis pelo mundo, seu zelo e sua renovação.

Nos utilizamos aqui justamente da posição de que a preocupação fundamental da educação diz respeito sobre um compromisso ontológico com o mundo e àqueles que os constitui para delinear os contornos do presente ensaio. Destarte, nosso objetivo é mostrar que mediante seu compromisso ontológico, a educação acena para uma melhor compreensão da participação do humano na produção do mundo. Faremos isso apresentando a noção de “educação da atenção”, do antropólogo britânico Tim Ingold. O motivo de tal escolha se deve ao fato de que para o autor, os princípios da antropologia são também os da educação, pois, tal como ele afirma, “[...] o estudo antropológico, como uma forma de viver com os outros, é inteiramente educacional [...]” (Iingold, 2020, p. 9). Como veremos nos próximos tópicos, o pensamento de Ingold nos possibilita explorar o compromisso ontológico da educação, ao se atentar para uma noção de educação em que está preocupada com a continuidade da vida.

Para isso, o presente ensaio está divido em mais três partes para além dessa introdução: num primeiro momento, apresentamos de maneira geral a compreensão de antropologia em Tim Ingold, de modo a indicar como sua antropologia está intimamente ligada à educação. Na segunda seção, a partir da exposição de conceitos centrais em sua antropologia, dissertamos sobre a noção de “educação da atenção” ingoldiana, ao passo que nos esforçamos para sinalizar como tal noção sinaliza para a necessidade da atividade educativa pautar-se em um compromisso ontológico do ser humano com os seres não-humanos e mundo. Na terceira e última parte tecemos nossas considerações finais.

A antropologia ingoldiana: a natureza e a cultura como perguntas

O ambicioso projeto da antropologia ingoldiana trata-se em colocar a vida no cerne da preocupação antropológica, ou como se referiu o próprio autor, “[...] restaurar a antropologia à vida [...]” (Ingold, 2015, p. 26). Para isso, um de seus principais esforços é repensar dois termos que estão fortemente incrustrados na antropologia, a saber “natureza” e “cultura”. De modo geral, enquanto o primeiro, aponta Ingold (2019), indica as qualidades essenciais das coisas, qualidades estas dadas desde o princípio, sendo então inato e universal; o segundo acena para aquilo que é distinto e particular, sujeito às mudanças da história. Assim, a dicotomia entre natureza e cultura faz refletir as oposições entre o particular e o universal, entre a mente e a matéria (Ingold, 2019).

Tal dualismo, explica Ingold (2019), produziu implicações no modo como os antropólogos entenderam os seres humanos e o mundo: eles admitem existir um mundo natural, em que tanto os humanos como os outros animais fazem parte dele, mas seria da essência humana transcender esse mundo, rompendo seus laços com a natureza e os demais seres (como os próprios animais), pois seria esta a condição do humano enquanto espécie, se tornar humano, para além do natural (Ingold, 2019) ascendendo ao plano da cultura.

Neste sentido, Ingold (2019) explica que foi tal compreensão que levou a antropologia a separar as dimensões cultural e biológica da existência humana, bem como impediu uma melhor compreensão da participação da vida humana na produção do mundo. Segundo o autor, se a antropologia quer quebrar tal impasse, seria necessário entender que sua tarefa é ir além da ideia de humanidade, ou no mínimo pensá-la a partir de outra forma (Ingold, 2019). Para o antropólogo britânico:

O primeiro passo é tomar a natureza e a cultura não como respostas, mas como perguntas. A questão da natureza é: em que aspectos os seres humanos são semelhantes? O que os leva a fazer coisas praticamente da mesma maneira? E a questão da cultura é: em que aspectos os seres humanos se diferenciam? Por que eles fazem coisas de forma distintas? Podemos observar, por exemplo, que todos os seres humanos, após a primeira infância e salvo acidente ou deficiência, caminham sobre dois pés, mas que apenas alguns povos habitualmente carregam pesos sobre suas cabeças. É razoável perguntar por quê. Mas concluir que todos andam bipedalmente porque é da natureza humana fazê-lo, ou que alguns povos (mas não outros) carregam peso sobre suas cabeças porque é da sua cultura, seria manifestamente circular (Ingold, 2019, p. 22).

O erro nesta circularidade está justamente em supor que natureza e cultura estão alojadas nos corpos e mentes dos seres humanos a ponto de serem agentes causais de seus comportamentos, ao invés de entendê-las como perguntas que se fazem sobre os humanos, explica Ingold (2019). Se não são respostas, natureza e cultura são problemáticas que se desdobram dentro do processo de ontogênese do indivíduo e de seu comportamento: um determinado gosto, ou uma suposta tendência de um indivíduo não nasce com ele, mas se desenvolve no seio de um processo de crescimento contínuo em um certo ambiente, pois não há nenhum suposto atributo ou habilidade dos seres humano, como de qualquer outro animal, que não tenha surgido dentro do desenvolvimento ontogenético (Ingold, 2019). Sobre este aspecto, o autor insiste que:

[...] Na vida real, as condições encontradas no ambiente cumprem uma função tão formativa na ontogênese quanto qualquer outro elemento intrínseco aos indivíduos em questão. Não se trata de priorizar a ‘educação’ em detrimento da ‘natureza’. Não se trata de afirmar que os seres humanos são formados pelo meio ambiente e não por seus genes, nem tão pouco que seja possível decompor as respectivas contribuições de cada um deles ou ponderá-las com porcentagens. Os seres humanos são os produtos de uma interação entre causas endógenas e exógenas, genes e ambiente, não mais que as outras criaturas vivas. Eles não são produtos, absolutamente. Eles são os produtores de suas vidas, respondendo, a cada momento, às circunstâncias moldadas cumulativamente por suas próprias ações e pelas ações dos outros no passado (Ingold, 2019, p. 25).

Com isso, Ingold (2019) sublinha que as diferenças humanas não são acréscimos gerados a partir da experiência com o ambiente à uma base padrão universal dada desde o nascimento, ao contrário, o processo ontogenético já demonstra que as diferenciações já se fazem presentes desde o início da vida de um indivíduo. Em outros termos a vida (humana) não é uma passagem do uniforme ao diverso, ou da natureza à cultura (Ingold, 2019), ela é já um processo de diferenciação ao longo de todo o seu continuum. Ingold (2019, p. 26) exemplifica isso a partir do andar enquanto habilidade aprendida:

[...] As pessoas aprendem a andar de muitas maneiras diferentes, dependendo da qualidade do solo, da composição do calçado (se usado) e das expectativas variáveis sobre o que é apropriado para pessoas de diferentes idades, gêneros e status. Mas essas diferenças não são adicionadas a uma capacidade universal para a locomoção bipedal estabelecida, de alguma forma, desde o princípio. Aprender a andar é aprender a andar do modo particular em que o fazemos - um processo, ademais, que nunca se completa, mas continua ao longo da vida, em resposta, por um lado, ao apoio e à companhia de outros e, por outro, à biodinâmica instável de um corpo que nunca para de envelhecer [...]. Assim, a incorporação e a ontogênese, o aprendizado de técnicas específicas e o desenvolvimento do organismo humano não estão isolados em lados opostos de uma divisão entre condicionamento cultural e desenvolvimento biológico. Eles são um único processo [...].

Isso significa que o processo de formação do ser humano ao longo da vida é uma tarefa sem fim, na medida em que criamos uns ao outros, e só nos criamos historicamente ao estabelecermos, naquilo que fazemos, as condições nas quais as gerações que estarão por vir possam se desenvolver (Ingold, 2019). Se tais condições mudam, também mudamos, assim como podemos perder ou até desenvolver novas habilidades que nossos antepassados desconheciam (Ingold, 2019). Assim sobre este aspecto histórico, explica Ingold (2019), se nascemos já em um mundo de contínua variação, não temos escolhas a não ser seguir adiante a partir daquele momento e lugar, convergindo para e divergindo dos modos de vida de outros, pois nos diferenciamos uns dos outros no próprio processo de estar juntos.

Disso Ingold (2019) extrai implicações significativas para pensar a atividade da qual a antropologia se ocupa. Segundo ele, o objetivo da antropologia consiste, a partir da experiência de aprendizagem com outros povos, especular acerca das condições e possibilidades da vida (Ingold, 2019). Neste sentido, Ingold (2019) sinaliza que se trata não de entender a antropologia como uma subdivisão de algo maior, na qual sua preocupação se voltaria, mas sim de se atentar à vida humana em sua integralidade, e não a algum aspecto particular dela. No entanto, alerta o autor, não é que a antropologia reivindique a exclusividade de alguma coisa, mas em “entrar na pele do mundo” e aprender com ele, abrindo-se à variedade e infinidade das experiências humanas (Ingold, 2019). Por isso quando o autor se refere à integralidade da vida, não significa sua totalização como o caráter definitivo de um ser unificado, mas sobre a infinitude da vida (Ingold, 2019). Portanto, se a ideia de integralidade não se refere ao humano e sua existência encerrada e contida, insiste Ingold (2019, p. 67), é porque “[...] sem pontas soltas, a vida não pode continuar. Ela deve sempre escapar [...]”. Por essa lógica é que os esforços do autor, como ele mesmo já sinalizou, é se contrapor a uma concepção finalista da vida, e propor um reconhecimento da capacidade dela em transpor as destinações à ela conferidas pelos diversos poderes, pois a vida não tem um ponto de origem que acena para uma destinação final, não se trata de um fechamento, e sim um movimento de abertura, isso é a vida (Ingold, 2015).

Em termos mais práticos, a antropologia estaria interessada no entrelaçamento de aspectos da vida, que para outras disciplinas poderiam ser divididos e isolados para estudo, como, por exemplo, os economistas estudam o mercado e os cientistas políticos o Estado; enquanto para a antropologia, a tarefa seria demonstrar como o mercado e o Estado se interpenetram na experiência de um determinado povo (Ingold, 2019). “Em resumo, a antropologia é uma disciplina que opera imergindo no processo da vida e acompanhando-o” (Ingold, 2019, p. 67).

Isso significa, especula Ingold (2019), que a antropologia emerge na riqueza da indivisibilidade da experiência humana, se inserindo nas relações e processos que fazem surgir as coisas no mundo, tentando trazê-las à nossa percepção; tal como a arte, que segundo Paul Klee, não reproduz o visível, mas torna visível, a antropologia torna presente para nós as coisas ao longo de seu processo de formação. Neste sentido, a antropologia em seu diálogo com o mundo e a vida, não busca para si poderes exclusivos para explicá-la, mas busca se integrar nela, com ela (Ingold, 2019). Isso não significa, explica Ingold (2019, p. 72), que a antropologia se contraponha à ciência, nem que não esteja preocupada na produção acadêmica, mas:

[...] A verdadeira contribuição da antropologia não está em sua literatura, mas em sua capacidade de transformar vidas. É por isso que a ideia de ‘antropologia aplicada’ tem tão pouca força na disciplina. Não é porque queiramos o nosso conhecimento para nós mesmos, puro e não corrompido pelo uso, mas porque não pode haver conhecimento que não cresça no engajamento prático com outros. Pois o que impulsiona os antropólogos, em última instância, não é a demanda por conhecimento, mas uma ética do cuidado. Não nos importamos com os outros, tratando-os como objetos de investigação, atribuindo-lhes categorias e contextos, ou explicando-os. Nós nos importamos ao torná-los presentes, para que eles possam dialogar conosco e nós possamos aprender com eles. Essa é maneira de construir um mundo onde haja lugar para todos. Nós só podemos construí-lo juntos.

É evidente como no trajeto da obra do autor, a partir de sua particular concepção da antropologia, Ingold (2015, 2019, 2020) não somente não confere centralidade ao conceito de cultura, como dá um passo aquém dela, prestando atenção naquilo que aqui chamamos de um continuum da vida. Não se trata necessariamente de um abandono, pois como já mostrei anteriormente, Ingold concebe a cultura como pergunta, e ao estilo deleuziano, inspira-se no problema que o conceito de cultura nos coloca, ou seja, a preocupação em saber como as pessoas se diferenciam uma das outras, e como as gerações participam do processo formativo das gerações seguintes. No próximo tópico, buscamos demonstrar como o antropólogo britânico trabalha as questões da diferença e da contribuição entre gerações não a partir do conceito de cultura, mas a partir do que ele chamou de uma “educação da atenção”.

A educação da atenção e seu estatuto ontológico

A educação da atenção em sua aproximação com uma fenomenologia

A produção de Ingold sobre educação traduzidas no Brasil concentra-se em dois textos. O primeiro é um artigo intitulado “Da transmissão de representações à educação da atenção” (Ingold, 2010), e o segundo é um livro cujo título é “Antropologia e/como educação” (Ingold, 2020). Da primeira para a segunda a base do argumento é a mesma, porém na segunda, o autor costura uma série de conceitos, que como veremos, acaba dando à sua abordagem de educação um estatuto ontológico.

Como já é uma marca do antropólogo britânico, ao tratar sobre educação, ele inicia através de questões acerca do conhecimento, sua manutenção e transmissão:

Como a experiência que adquirimos ao longo de nossas vidas é enriquecida pela sabedoria de nossos ancestrais? E como, por sua vez, tal experiência se faz sentir nas vidas dos descendentes? Em termos gerais, na criação e manutenção do conhecimento humano, o que dá, de subsídio, cada geração à geração seguinte? (Ingold, 2010, p. 6).

Gostaríamos aqui de insistir que tais questões feitas por Ingold podem se referir tanto à cultura como à educação, mas o autor evita cair na circularidade do argumento da cultura a tratando como resposta, a transformando em pergunta. Tal operação se dá necessariamente em tratar as questões que citamos acima a partir do viés da educação, ou o que Ingold (2010, 2020) chamou de educação da atenção, pois é justamente isso que permite o autor formular tais questões.

O primeiro ponto a ser destacado é que uma educação da atenção entende que o conhecimento não é um aglomerado de informações que o ser humano recebe e as codifica, mas a partir de uma abordagem ecológica, o conhecimento consiste fundamentalmente em habilidades (skills), e que o ser humano é um centro de percepção e agência - que emerge - em um campo de prática (Ingold, 2010).

Neste sentido, a noção de habilidade é fundamental para a compreensão da educação em Ingold (2010, 2020). O autor entende que é necessário ir além da dicotomia entre capacidades inatas e competências adquiridas, e sinaliza que as habilidades são propriedades emergentes de sistemas dinâmicos (Ingold, 2010). Essa noção faz com que o autor insista que é através de uma espécie de processo de habilitação (enskilment) que cada geração ultrapassa, leva adiante, faz continuar, o conhecimento de seus predecessores, levando o antropólogo a concluir que é através de uma educação da atenção que uma geração contribui para a seguinte (Ingold, 2010, 2020).

No decorrer de seus escritos, Ingold cita vários exemplos de como isso acontece. Ao destacar que as habilidades não são internamente pré-especificadas nem externamente impostas, mas que “[...] surgem dentro de processos de desenvolvimento, como propriedades de auto-organização dinâmica do campo total de relacionamentos no qual a vida de uma pessoa desabrocha [...]” (Ingold, 2010, p. 15), o autor britânico cita exemplos sobre habilidades motoras:

Um exemplo é a capacidade de, com certa precisão, lançar e agarrar coisas com a mão. Isto, bem como caminhar com dois pés, parece ser uma das características da nossa espécie. Ainda há, na prática, um sem-número de diferentes modos de lançar e de agarrar, adequados a diferentes atividades e situações. O lançamento de um dardo, de um peso ou de uma bola de cricket, cada qual exige padrões e sequências diferentes de tensão muscular, e diferentes concepções de passadas, ângulos e giros. No entanto, não existe uma ‘essência’ de lançar e agarrar baseando essas variações no verdadeiro desempenho (Thelen, 1995, p. 83). Em todos os casos, as capacidades específicas de percepção e ação que constituem a habilidade motora são desenvolvimentalmente incorporadas no modus operandi do organismo humano através de prática e treinamento, sob a orientação de praticantes já experientes, num ambiente caracterizado por suas próprias texturas e topografia, e coalhado de produtos de atividade humana anterior. Para adotar a feliz expressão de Kugler e Turvey (1987), os componentes que de fato produzem as trajetórias dos membros envolvidos em lançar e agarrar não se apresentam em circuitos duros, e, sim, em ‘arranjos suaves’ (Ingold, 2010, p. 15-16).

Seguindo este veio argumentativo, Ingold (2010) insiste que não faz sentido em perguntar se nossas capacidades e habilidades estão dentro do corpo, ou estão fora dele, isto é, no ambiente, o que interessa para o autor é que as múltiplas habilidades emergem em campos de práticas constituídos pelas atividades de seus antepassados. Assim, as ideias de Ingold nos leva a um entrelaçamento entre corpo e ambiente, entendendo-os não como entidades fixas e pré-existentes, mas elementos que emergem e fazem parte de um sistema de relações em constante mudança.

Ingold (2010) ainda argumenta que uma educação da atenção envolve um processo de aprendizagem que se dá por um redescobrimento dirigido, isto é, através daquilo que ele entende como “mostrar”. O mostrar, explica Ingold (2010), é fazer com que alguma coisa se torne presente para uma pessoa, de forma que ela a apreenda através de sua percepção. Assim, Ingold (2010, p. 21) sinaliza o papel do tutor, ou do professor: “[...] criar situações nas quais o iniciante [ou o aluno] é instruído a cuidar especialmente deste ou daquele aspecto do que pode ser visto, tocado ou ouvido, para poder assim ‘pegar o jeito’ da coisa. Aprender, neste sentido, é equivalente a uma ‘educação da atenção’”.

Os argumentos do autor continuam sinalizando que essa educação da atenção é uma afinação do sistema perceptivo, na qual o sistema perceptivo de um praticante (aluno etc.) de uma determinada atividade, entra em ressonância com as propriedades do ambiente que envolvem tal atividade (Ingold, 2010). É necessário insistir que isso não significa que o sistema perceptivo do praticante e as propriedades do ambiente são elementos formados antes das relações criadas em determinada atividade, mas que as habilidades do praticante e o ambiente emergem nesse instante em um processo ininterrupto de modificação e modulação. Para citar o próprio Ingold (2010), as habilidades e o ambiente são imanentes e desabrocham em um campo de prática, é o que o autor chamou de taskscape, ou “tarefagem”. É esse aspecto da educação da atenção que responde a maneira pela qual o conhecimento é produzido e continuado entre as gerações:

Somos agora, finalmente, capazes de dar uma resposta à minha questão inicial. Na passagem das gerações humanas, a contribuição de cada uma para a cognoscibilidade da seguinte não se dá pela entrega de um corpo de informação desincorporada e contexto-independente, mas pela criação, através de suas atividades, de contextos ambientais dentro dos quais as sucessoras desenvolvem suas próprias habilidades incorporadas de percepção e ação. Em vez de ter suas capacidades evolutivas recheadas de estruturas que representam aspectos do mundo, os seres humanos emergem como um centro de atenção e agência cujos processos ressoam com os de seu ambiente. O conhecer, então, não reside nas relações entre estruturas no mundo e estruturas na mente, mas é imanente à vida e consciência do conhecedor, pois desabrocha dentro do campo de prática - a taskscape - estabelecido através de sua presença enquanto ser-no-mundo. A cognição, neste sentido, é um processo em tempo real. ‘Em vez de falar de idéias, conceitos, categorias e elos’, sugere Gatewood, deveríamos pensar em fluxos, contornos, intensidades e ressonâncias’ (1985, p. 216). Estes são termos que descrevem, por um lado, as características da taskscape na qual os praticantes estão situados e, por outro lado, a trajetória de sua própria atenção enquanto abrem caminho através dela. Mas como a tarefagem através da qual qualquer pessoa se move é constituída pela prática de todas as outras, cada um desempenha um papel no estabelecimento das condições de desenvolvimento de todos os demais indivíduos (Ingold, 2010, p. 22 - grifo nosso).

Isso leva o autor a entender que o conhecimento é constituído no entrelaçamento da vida dos indivíduos em relação e que a aprendizagem das habilidades, portanto, a educação da atenção - que envolve pessoa e ambiente de forma mútua - faz parte de um único processo, diz Ingold (2010, p. 23) “[...] o processo da vida das pessoas no mundo [...]”.

Até o momento desse seu artigo, Ingold (2010) elabora seu pensamento de uma educação da atenção fundamentalmente a partir de uma abordagem fenomenológica, sobretudo com Merleau Ponty, e da psicologia ecológica de James Gibson, abordagem estas que, digamos, são as grandes responsáveis pelo conceito de skill (habilidade) na teoria ingoldiana.

Percebemos isso ao destacarmos as cinco dimensões das skills em Ingold, como nos mostra Sautchuk (2015): 1) a habilidade não é uma capacidade de um sujeito, como se fosse de maneira prévia, nem é anterior à ação, mas distribui-se para além do humano, aplicando-se também aos animais. 2) Se skills não é propriedade de um indivíduo, é porque ela faz parte de um campo total de relações constituído pelo organismo-pessoa, o que significa que envolve o ambiente, outras pessoas, objetos técnicos, animais etc. 3) A habilidade não resulta de um automatismo, mas relação entre percepções e ações presentes no desempenho de um gesto, sendo o movimento e a destreza o resultado de uma tarefa emergente, em que se dá a partir dos inúmeros ajustes às variações de uma determinada tarefa. 4) Sobre a aprendizagem de skills, Ingold rejeita que ela possa acontecer de forma abstrata por regras e de maneira solipsista, afirmando que a aprendizagem se dá através de uma educação da atenção, ou seja, como destaca Sautchuk (2015) a experimentação de um sujeito no ambiente organizado que permita que suas ações sejam guiadas de modo que as relações apropriadas sejam experimentadas. Aqui é necessário destacar que com tal noção da aprendizagem de skills, Ingold promove, como lembra Sautchuk (2015), um campo fértil para pensar a recriação e manutenção de práticas, bem como faz perder o sentido da dicotomia entre inato (biológico, natural) e adquirido (ambiental, cultural). 5) Na quinta dimensão, Ingold insiste que o papel dos mais experientes (ou do professor, tutor etc.) é preparar contextos, situações, em que os aprendizes possam experimentar aspectos de determinadas práticas por eles mesmos, possibilitando seu desenvolvimento no interior das habilidades destas práticas.

Diante disso, Sautchuk (2015) analisa que a proposta ingoldiana da aprendizagem de habilidades através da educação da atenção, se dá através da tensão entre o polo do organismo-pessoa (trataremos aqui como corpo) e do ambiente, de modo que tal educação da atenção é um processo que abarca ambos os polos. No entanto, continua Sautchuk (2015), apesar da tentativa de Ingold em tratar da relação entre organismo-pessoa e ambiente, a ênfase recai sobre o organismo-pessoa, e isso se dá necessariamente pela influência da fenomenologia pontyana, e do pensamento ecológico gibsoniano, de modo que a relação com o ambiente orbita em torno do organismo-pessoa. Na análise de Sautchuk (2015), Ingold além de afirmar que skills é um campo total de relações, também afirma que ela é constituída pela presença do organismo-pessoa, ou seja, é ativada através dessa presença, o que significa que a noção de skill está diretamente vinculada à existência do organismo-pessoa.

Novamente acreditamos que se faz necessário sublinhar a implicação da fenomenologia nesta fase do pensamento ingoldiano: o autor parte de um horizonte de mundo já constituído através da presença situacional da percepção do sujeito. Em outros termos, a conjugabilidade percepção e ação é centrada na presença de um sujeito em dada situação, em certo campo de prática - já há aqui um horizonte existencial como condição, que é a presença do sujeito (organismo-pessoa em termos ingoldianos). No entanto, queremos adiante mostrar como em seu livro “Antropologia e/como educação”, Ingold (2020) tira o peso da noção de organismo-pessoa e de uma percepção situacional para operar com uma noção de educação da atenção, dando ênfase em seu estatuto ontológico, e farei isso trazendo para conversa, junto com Ingold, Deleuze e Guattari.

A educação da atenção e o continuum da vida

Uma operação feita por Ingold que o permitiu pensar sobre a educação da atenção e seu estatuto ontológico foi o entendimento de que o que ele chamava antes da relação entre ambiente e organismo-pessoa (com ênfase neste), passou a entender como um “emaranhado de linhas em um espaço fluido” (Ingold, 2015). Com Deleuze e Guattari, ele vai entender que o animal (humano e não humano) não vive em um ambiente constituído por objetos, mas vive em um mundo de terra e céu, em seus fluxos. É um espaço fluido que é uma matéria em movimento, fluxo e contínua variação, em que a consequência daí tirada para a questão da percepção e ação é que essa matéria-fluxo, e aqui Ingold é completamente inspirado pela filosofia deleuzo-guattariana, só pode ser seguida. Substituindo matéria-fluxo por materiais (uma questão de nomenclatura, apenas), Ingold (2015) nos indica que o que nos resta é seguir os materiais, e assim:

“[...] perceber é alinhar os próprios movimentos em contraponto às modulações do dia e da noite, do sol e da sombra, do vento e do clima. É sentir as correntes de ar enquanto infundem o corpo, e as texturas da terra sob os pés. No mundo aberto, para deixar a última palavra com Deleuze [e Guattari], ‘não há nenhuma linha separando a terra e o céu; não há nenhuma distância intermediária, nenhuma perspectiva ou contorno, a visibilidade é limitada; e, no entanto, há uma topologia extraordinariamente fina que se baseia não em pontos ou objetos, mas sim em hecceidades, em conjuntos de relações (ventos, ondulações de neve ou areia, o canto da areia ou o estalido do gelo quebrando, as qualidades tateia)’ (DELEUZE & GUATTARI, 2004, p. 421). Estas hecceidades não são o que nós percebemos, já que no mundo de espaço fluido não há objetos de percepção. Elas são, ao contrário, aquilo com que percebemos. Em suma, perceber o ambiente não é reconstituir as coisas a serem encontradas nele, ou discernir suas formas e disposições congeladas, mas juntar-se a elas nos fluxos e movimentos materiais que contribuem para a sua - e nossa - contínua formação (INGOLD, 2015, p. 142-143).

Mas o que isso tem a ver e por que foi fundamental para Ingold (2020) desenvolver uma noção de educação da atenção com um estatuto ontológico? Para responder isso, se faz necessário apresentar uma série de conceitos que permite o autor desenvolver seu conceito de educação. No entanto, adiantamos que em seu “Antropologia e/como educação”, Ingold (2020) é menos “fenomenólogo”, e descentraliza a questão da percepção e ação do humano (ou com ele chama, organismo-pessoa), e a partir de um entendimento de espaço fluido entende que para o humano agir é necessário sempre uma educação, que é antes uma prática de atenção, atentando-se para certos fluxos e ritmos do mundo que são necessários para a continuidade e (re)criação desta ou daquela atividade.

Com John Dewey, um dos principais filósofos da educação, Ingold (2020) nos lembra que a educação, em seu sentido geral, trata-se do meio para a continuidade social da vida, em que onde a vida estiver acontecendo, está também a educação. É ao entender como continuidade social da vida, que o autor aborda uma série de conceitos e aproximações entre eles, de modo a desenvolver sua noção de educação da atenção e seu objetivo na continuidade (e ampliação) da vida.

O primeiro conceito que o autor trata é o de comum, ou o que Ingold (2020) entende como comungar: significa que indivíduos com experiências diferentes possuem uma capacidade que permite conduzir suas vidas juntos, em que no contexto da educação, o comungar se dá, principalmente, entre pessoas de diferentes gerações. A comunhão, ou comungar, trata-se da continuação da vida, e junto a isso, Ingold (2020) inclui outro termo, ambiente: a variação da vida. O ambiente se trata das condições pelas quais a vida é desenhada, ao longo do tempo e em conjunto com outros seres (animais humanos e não humanos), com os fluxos e ritmos do mundo. Conforme seguimos certos fluxos e entrando em ressonância com certos ritmos, de alguém ou alguma coisa, vamos variando com eles (Ingold, 2020). Assim, vamos respondendo a tais aspectos da vida, respondemos aos outros, e é isso que nos permite variar com eles. Ingold (2020) inspirado em Dewey, lembra que não há educação sem essa capacidade de responder e ser respondido.

Assim, explica Ingold (2020, p. 21), comunhão e variação são codependentes: “[...] por um lado, não pode haver movimento, crescimento ou vida no compartilhamento da experiência, a menos que haja variação no que cada participante traz para ela [...]”. Em suma:

[...] comunhão e variação dependem uma da outra, e ambas são necessárias para a continuidade da vida. A comunidade educacional é mantida unida através da variação, não pela semelhança. É uma comunidade - não apenas uma convivência, mas literalmente uma doação conjunta (de com-, ‘juntos’, mais -munus, ‘dom’) - em que todos têm algo para dar precisamente porque eles não têm nada em comum, e em que a coexistência generosa supera a regressão essencialista a uma identidade primordial, “Ter em comum” - como a própria humanidade - não é uma linha de base, mas uma aspiração; não dada desde o início, mas uma tarefa que exige esforço comunitário. Este esforço exige de todos, jovens e idosos, que se abram para os outros, cada um contribuindo, em suas próprias ações, às condições da vida em comum da qual variações adicionais surgem. Assim, as pessoas de cada geração desempenham o seu papel em estabelecer as condições ambientais sob as quais seus sucessores são criados e crescem em direção à maturidade. E a conclusão de Dewey, com base nesses argumentos, é que a educação não pode ocorrer por ‘transmissão direta’, mas apenas indiretamente, ‘por intermédio do ambiente’ (Ingold, 2020, p. 21-22).

Essa é a base do argumento que permite Ingold (2020) reconhecer que todo conhecimento é fundado na habilidade (skills), pois para conhecer, é necessário que toda e qualquer pessoa tenha que responder a um conjunto de atividades, seus fluxos e ritmos, que se constituem como verdadeiros territórios (ou ambiente, na linguagem ingoldiana inspirada em Dewey) de crescimento e desenvolvimento através de uma educação da atenção, ao seguir seus predecessores.

Até aqui, a abordagem de Ingold (2020) pouco muda de seu pensamento anterior em Ingold (2010). No entanto, a partir de termos e conceitos como hábito, atencionalidade, agenciamento, cuidado, saudade e “hapticalidade”, seu conceito de educação da atenção sofre uma grande inflexão.

Ingold (2020) nos explica que há uma diferença significativa entre viver e conduzir a vida. Há, sinaliza Ingold (2020), um excesso do conduzir sobre o viver, em que ao conduzir a vida, temos a capacidade de expandi-la, superando o que já existe, sendo esta, segundo o autor, uma problemática fundamentalmente educacional, e que o que faz a diferença entre viver a vida e conduzi-la é a atenção.

Para avançar em seus argumentos, Ingold (2020, p. 38) mostra alguns sentidos da palavra atenção: “[...] ‘atenção’ vem do [latim] ad-tendere, que significa literalmente ‘alongar (tendere) em direção a (ad)”. Atenção, nestes termos, seria a busca pelo alongamento, alargamento, ampliação da vida. Junto a isso, Ingold (2020, p. 39) inclui outro significado para atenção:

[...] a vida não é meramente vivida no aqui e agora, mas é esticada por uma memória do futuro que se permite que cada momento presente possa ser um novo começo. Para esta lembrança imaginativa, ou imaginação mnemônica, introduzirei o termo ‘saudade’. Saudade, no meu uso, é outra palavra para o alongamento de uma vida, ao longo de uma linha.

Para mostrar que esse processo não é passivo, mas também não resulta de um agente causal, mais uma vez Ingold (2020) se utiliza de Dewey para explicar que toda experiência é imbuída de um “fazer” e “passar por”, e para melhor explicar isso ele apresenta o que significa o conceito de hábito no autor estadunidense e sua implicação para a experiência. Para Dewey, explica Ingold (2020), não estamos nem antes do hábito, nem depois dele, nem somos causas dele nem efeitos, pois não estamos nem na frente, nem atrás, mas no meio. Com isso, troca-se a relação causa e efeito, por processo, o que significa que o hábito não é nem produtor nem produto, mas é o princípio de produção pelo qual um eu que habita suas práticas é também gerado por elas (Ingold, 2020). Assim, o hábito não é uma coisa fixa de fazer as coisas, mas sinaliza que todo fazer é realizado na medida em que passamos por algo (Ingold, 2020).

Neste sentido, o que o princípio do hábito mostra é que o “passar por algo” é o que a pessoa faz, e o fazer é a coisa pela qual a pessoa passa, pois, insiste Ingold (2020, p. 41): “[...] o fazer está dentro do passar por algo [...] [e] realizar uma experiência é estar dentro dela, é habitar nela. Assim, é através do fazer que passa por algo, como Dewey reconheceu, nós habitamos o mundo”. Através de um belo exemplo sobre caminhada, Ingold (2020, p. 42) mostra como o princípio do hábito põe em questão a noção de agência, colocando o indivíduo como constituinte da corrente de ação de uma atividade, indicando uma receptividade ativa pautada na atenção:

Caminhar deixa de ser algo que eu determino meu corpo a fazer, como uma rotina autoimposta. Em vez disso, parece que eu me torno o meu caminhar, e que a minha caminhada me leva. Eu estou lá, dentro dela, animado pelo seu movimento. E a cada passo eu não sou tão mudado quanto modificado [...] eu serei de fato uma pessoa diferente quando chegar, não a mesma pessoa em outro lugar, ou com um corpo marcada pelos estigmas da passagem. Até as dores e os calos se desdobram em minha experiência como parte de uma vida pela qual passo ativamente, e pode ser mais dolorosa porque: goste ou não, eu não posso separá-las do ser andante que sou. Eles são biográficos e eu posso contar uma história a partir deles. Nem uma vez em meu caminho posso sustentar a ideia de que caminhar é imprudente, um automatismo corporal que liberta a mente para fazer as suas próprias coisas. Pelo contrário, andar é em si um hábito de pensar. Este pensamento não é, contudo, uma operação cognitiva dentro da cabeça, mas o trabalho de uma mente que, em suas deliberações, mistura-se livremente com o corpo e o mundo. [...] para sermos abertos ao mundo, devemos também renunciar a algo da nossa agência. Nós devemos nos tornar seres responsivos. Assim, mesmo enquanto ando, devo ajustar meu pé ao terreno, seguir ao caminho, submeter-me aos elementos. Existe em cada passo um elemento de incerteza.

Com isso, o caminhar significa colocar o eu no meio, ou ao longo da experiência pelo qual se passa, e não antes dela, pois encontra-se no meio da corrente de ação dela. Assim, sinaliza Ingold (2020), não é mais possível dizer com certeza “fiz isso” ou “fiz aquilo”, mas perguntar “é isso que estou fazendo?”, ou “fiz isso?”. Parafraseando Erin Manning, o autor aponta que o “eu sou”, é sempre em grande parte um “era eu?”, “[...] é como se a ação estivesse chamando minha agência na sua esteira, não como uma resposta, mas como uma questão [...]” (Ingold, 2020, p. 43). Essas questões sobre a problemática da agência mostram que não é porque nem tudo acontece de acordo com nossa vontade, significa que há outra pessoa na agência, ou que esta está mais distribuída, significa sim que há algo de errado quando pensamos que o que quer que nos aconteça é sempre a agência de algo ou de outro (Ingold, 2020).

Decorre disso que se a agência não está dada antes da experimentação, mas sempre se forma e se transforma na ação/experimentação, Ingold (2020) propõe transformá-la em verbo, sendo mais apropriado falar em “tornar-se agente” ou “agenciar”, próximo do que no francês chama-se por agencement. Agenciar, explica o autor, aproxima-se do “fazer passando por”, tal como foi tratado anteriormente, apontando que o agenciamento é “[...] uma tarefa que devemos assumir como seres responsivos e responsáveis, e como parte da vida pela qual passamos [...]” (Ingold, 2020, p. 44) - é acima de tudo um compromisso ético ontológico para com a vida, uma tarefa, portanto, educacional, pois trata-se em conduzir a vida.

Junto a isso, Ingold (2020, p. 45) propõe distinguir intenção de atenção para melhor compreender o agenciamento, e para isso retorna ao exemplo da caminhada:

Andar a pé, como vimos, exige a resposta contínua do pedestre ao terreno, ao caminho e aos elementos. Para responder, ele deve atentar a essas coisas enquanto caminha, participando ou participando com elas em seus próprios movimentos. É isso que significa ouvir, observar, sentir. [...] [se através da intencionalidade a atenção] interrompe ou corta o movimento de modo a estabelecer uma relação transversal entre mente e mundo (cuja separação é assumida desde o início), no segundo se junto com o movimento como um acompanhante ou refrão. Atenção, nesse sentido, é longitudinal. O caminhante atento ajusta seu movimento ao terreno na medida em que ele se desdobra debaixo de seus pés [...].

Diante dessa gama de termos e conceitos, Ingold (2020) retorna à educação para insistir que educação se trata, fundamentalmente em continuar e variar a vida, e isso somente é possível na medida em que atentamos e respondemos aos demais seres, coisas, animais humanos e não humanos, e isso só é possível se eles forem restaurados à nossa atenção. A educação e seu propósito, insiste Ingold (2020), inspirado nos filósofos da educação Jan Masschelein e Maarten Simon, é restaurar à nossa atenção as coisas - o mundo com seus fluxos e ritmos. Neste sentido, trata-se de uma dívida ontológica, na medida em que restaurados à nossa atenção, temos a capacidade de responder, de co-responder de forma apropriada aos demais seres que também devemos a eles nossa própria formação (Ingold, 2020).

De maneira atenta, ao responder ao mundo de forma apropriada, passamos novamente a compreender que a educação se trata em conduzir a vida, o que significa continuá-la, mas também a ampliar, dito de outro modo, é nos atentarmos para o continuum da vida, percebendo que estamos em seu fluxo de ação e acontecimento. Por isso, ao modo pragmatista de Dewey, Ingold (2020) sinaliza que, se o único resultado da vida é mais vida (sua intensificação), o único resultado (fins) da educação é mais educação, e nessa esteira, mais é educação é mais vida.

Por isso que o autor, irá defender junto com Masschelein, que a educação para a intensificação da vida se dá em uma abertura para os - fluxos - do mundo em si, no sentido de torná-lo presente, e para isso é preciso adotar práticas que permitam “nos expormos”, e em termos ingoldianos, práticas que permitam nos atentarmos ao mundo e seus seres, fluxos (Ingold, 2020). É através da atenção, explica o antropólogo britânico, que o mundo se abre para nós e que se faz presente, permitindo a exposição às suas forças, pois é a atenção que torna possível a experimentação.

Já com James Gibson, Ingold (2020), sinaliza que também nos abrimos ao mundo na medida em que ao nos movermos nele, sofremos um processo contínuo de modulação de nossa atenção, de modo que, por exemplo, no caso de uma caminhada, o solo pelo qual caminhamos é conhecido através da caminhabilidade. Isso se dá através de um ajuste de habilidades perceptivas que torna o caminhante atento às nuances do ambiente (Ingold, 2020). Assim, o que difere um experiente em determinada prática de uma pessoa mais novata, é que o mais experiente tem sua percepção mais sintonizada para atentar-se a aspectos mais críticos da prática; quanto mais experiente um sujeito se torna, significa que ele é mais capaz de se atentar para aspectos fundamentais da prática, e é isso que significa uma educação da atenção (Ingold, 2020).

Ao pôr em diálogo Gibson e Masschelein, Ingold (2020) sinaliza ao concordarem que a educação se dá sobre a atenção, apontam para dois aspectos presentes em qualquer prática e que reflete o que já tratamos sobre o “passar pelo fazer”, que é a relação entre habilidade e submissão. Se utilizando novamente do exemplo do caminhante, o autor aponta:

[o caminhante] tem um certo domínio prática da arte de caminhar, que vem com a experiência. Mas, por outro lado, a cada passo, ele se submete ao caminho sem ter certeza de para onde ele vai levar. E quando nos habituamos a caminhar, como em qualquer hábito, é a submissão 1ue conduz, enquanto que a maestria segue sua esteira, e não o contrário. Há atenção em ambos, mas numa delas o praticante está a mando do mundo, na outra o mundo está a mando do praticante. Um deixa o mundo entrar, como uma respiração profunda; o outro deixa saírem um movimento orientado de percepção e ação. ‘Experienciar como respirar’, como Dewey disse, ‘é um ritmo de inspiração e expiração’. Masschelein está inequivocamente do lado da entrada. É por isso que ele nos lembra que a palavra attendre, em francês, significa ‘esperar’. Mesmo em inglês, atender as coisas ou pessoas significa esperar por elas, aceitando-as e seguindo o que elas fazem. Gibson, pelo contrário, está do lado da saída. Na detecção de possibilidades, de oportunidades para continuar, os praticantes escolhem e se voltam para as características vantajosas de um mundo [...]. Ou em suma, enquanto que para Masschelein o praticante espera no mundo, para Gibson, o mundo espera pelo praticante. No primeiro caso, a atenção educa, expondo-nos a um mundo em formação, deixando-o entrar. No segundo, a atenção é o que é educado, por força dessa experiência. Na verdade, no entanto, não pode haver um sem o outro. Submissão e maestria prática são dois lados da mesma moeda. Essa moeda é o princípio do hábito (Ingold, 2020, p. 54).

Nestes termos, uma educação deveria fornecer meios para experimentar e tornar-se atentos para então possibilitar o alargamento do continuum da vida enquanto um campo metaestável que não se reduz às destinações dadas a ela socialmente e culturalmente. É necessário, então, exercícios, diz Ingold (2020) inspirado em Masschelein, que proporcione a exposição para o real, ou a verdade que sai do real na experiência.

Por essa razão, Ingold (2020) irá sinalizar que essa exposição ao real, continuum da vida, é mais percebida em situações nas quais as coisas parecem não mais ser comuns para nós, por exemplo, explica o autor, quando num terreno a consciência percebe que perdemos o caminho, ou quando o solo que anteriormente corria, não nos traz mais segurança. Em situação como essas, diz Ingold (2020, p. 61), “[...] você está em risco, até mesmo exposto. Mas, ao mesmo tempo, você participa como nunca antes, como todo som, todo lampejo de luz e todos os sentimos são ampliados em intensidade [...]”. É assim, afirma o antropólogo, que nos abrimos a outros seres, coisas, materiais e ao mundo.

Sobre esse tipo de ampliação da atenção, Ingold (2020) invoca a filósofa Erin Manning e sua forma de abordar a percepção autista. Segundo o autor, no pensamento de Manning, essa ampliação sensorial é característica da experiência perceptiva daqueles que são diagnosticados como autista:

O que para a maioria de nós só em primeiro plano em momentos de incerteza radical - como quando, caminhando, estamos perdidos -, é para pessoas autistas uma condição crônica. A condição deles não é um fechamento tanto quanto uma abertura que, de vez em quando, pode tornar-se insuportável. A retirada, na medida em que ocorre, é uma reação defensiva ao que pode ser uma onda esmagadora de estimulação sensorial, visto que podemos colocar nossas mãos sobre nossos ouvidos em resposta ao ruído excessivo ou proteger nossos olhos da luz. Como Manning observa, na verdade, ‘eles estão demorando na verdadeira plenitude da atenção, atraídos pela complexidade infinita’ [da metaesbalidade do continuum da vida] (Ingold, 2020, p. 61).

É essa atenção super engajada, nos explica Manning, o motivo pelo qual, por vezes, confundimos a experiência perceptiva de pessoas autistas como déficit de atenção, no entanto, o que ocorre é que essa condição atencional autista puxa o indivíduo para várias direções, várias maneiras ao mesmo tempo, tornando-o imóvel (Ingold, 2020). Se a pessoa autista demora na complexidade infinita do continuum da vida, o restante de nós passamos de maneira muito rápida que nem o percebemos direito, pouco nos atentamos a ele, pois optamos na maior parte das vezes, por pegar “atalhos” nas formas, pessoas, objetos, que prontamente conseguimos identificar, entender, categorizar (Ingold, 2020). Já o mundo para a pessoa autista é um perpétuo movimento, devir, de incipiência e nascimento contínuo, pois colocam o plano da fonte sempre variável da experiência em primeiro lugar, isto é, sua metaestabilidade, antes dos contornos, formas e categorizações (Ingold, 2020), pois seguem os fluxos e ritmos do mundo. Em uma colocação fundamental para a compreensão dessa maneira de atentar para o mundo e sua variação potencial, a partir de Manning, Ingold (2020) pontua que o autista responde ao mundo fenomenal antes mesmo da possibilidade de identificação e interação consciente, pois:

[...] ‘há um lapso de tempo importante’, como Manning coloca, ‘entre a percepção direta da ecologia emergente e a tomada efetiva de objetos e assuntos em seu meio’. Na percepção autista, é como se esse lapso fosse experienciado em câmera lenta. No entanto, a percepção autista, Manning também insiste, ‘não pertence exclusivamente aos autistas’. É comum a crianças, cuja consciência viva ainda tem que ser reduzida pela opressão disciplinar dos adultos, e a modos de ser dos povos indígenas que os antropólogos categorizam classicamente como ‘animistas’ (Ingold, 2020, p. 62).

Porém, lembra Ingold (2020), esse tipo de percepção é comum a todos nós, desde que a atenção não tenha sido completamente suprimida pelas formas finais do mundo dadas socialmente ao mundo e à vida, e é isso (a atenção) que torna ainda capaz a vida continuar e expandir. E isso se dá, pois, inevitavelmente experimentamos o que Manning chamou de “gestos menores”, aquelas pequenas perturbações e distrações que mudam nosso curso (Ingold, 2020) no mundo, nos abrindo à condição metaestável e potencial infinito do continuum da vida. “O gesto menor é a fonte de variação que torna possível o compartilhamento” (Ingold, 2020, p. 63).

O gesto menor enquanto variação, é também o que Manning chamou de “inflexão”. Seja qual for a prática, pode ser uma caminhada, por exemplo, ao nos inserirmos no fluxo de sua experimentação, ao estarmos atentos à sua variação contínua, há uma variação, não no movimento, mas no modo como o movimento se move (Ingold, 2020) - é uma variação qualitativa, ou se preferirmos, intensiva:

[...] O ponto de inflexão marca a transição da submissão para a maestria, ou do desejo de manobra, em que ‘uma incipiência vaga se torna uma direcionalidade’. E atender a isto significa perceber diferenciais no movimento: na fenda da madeira ou na marcha variável do andador, mas igualmente na subida ou descida da linha melódica do canto, ou no duto da caligrafia. Cada corte decisional - seja em madeira, caminhar, cantar ou escrever - implica um diferencial no caminho de movimento que se move e que eventualmente o leva nesta direção ou naquela. É isso o que habilidade é: não impor formas exterior à matéria complacente, mas encontrar o fundamento das coisas e dobrá-las para um propósito em evolução [...] (Ingold, 2020, p. 66).

Não é à toa que em outro livro (“Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição”), ao escrever sobre processo de habilitação, Ingold (2015) insiste que na habilidade há uma qualidade rítmica que acontece em uma espécie de “acoplamento dinâmico de movimentos”:

[...] Esta qualidade, no entanto, não se encontra no caráter repetitivo do próprio movimento. Para que haja ritmo, o movimento deve ser sentido. E o sentimento reside no acoplamento de movimento e percepção que, como vimos, é a chave para a prática qualificada. Como Leroi-Gourhan claramente reconheceu, a atividade técnica é conduzida não contra um fundo estático, mas em um mundo cujos constituintes múltiplos sujeitam-se aos seus próprios ciclos particulares. Pela percepção, os gestos rítmicos do profissional estão em sintonia com os vários ritmos do ambiente. Assim, qualquer tarefa, ela própria um movimento, se desdobra dentro da ‘rede de movimentos’ na qual a existência de cada ser vivo, animal ou humano, é suspensa. Uma operação como serrar uma prancha, por exemplo, compreende não um movimento, mas um conjunto de movimentos concorrentes, dentro e fora do corpo. O carpinteiro que tem uma ideia do que está fazendo é aquele que pode mais ou menos harmonizar esses vários movimentos uns com os outros, de modo a que ressoem ou estejam em ‘sintonia’ [...] O ritmo, então, não é um movimento, mas um acoplamento dinâmico de movimentos [...] (Ingold, 2020, p. 107).

Mais uma vez aqui se faz presente a relação do “fazer passando por”, bem como da continuidade, correspondência e variação da vida, que tratei anteriormente neste tópico. É através da composição entre ritmos que o continuum da vida se desdobra e faz entrar em variação o campo da experiência. Aqui, Ingold opera a descentralização do organismo-pessoa, o qual já abordamos, voltando a atenção para o acoplamento dinâmico de ritmos do mundo e do que constitui as diversas atividades que humanos e não humanos participam. Isso significa que a maneira pela qual acontece essa relação dinâmica entre movimentos e ritmos do mundo ao longo do continuum da vida, é necessariamente através da correspondência, ou nas mais diversas maneiras que temos em responder a realidade viva do mundo, os outros seres, possibilitando então a ampliação da vida, ou o que lembra Ingold (2020), o que nos faz conduzir a vida, ao invés de simplesmente viver.

Se como Ingold (2020) nos mostra, esse é a problemática fundamental da educação, a saber a continuidade da ampliação da vida (sua potencialização), um termo que o autor toma emprestado de Harney e Moten, expressa bem a via que torna isso possível: a “hapticality”, ou hapticalidade, que significa “sentir para sentir os outros sentindo você” (Ingold, 2020, p. 78). É uma abertura para esse sentir, é essa forma de atencionalidade, que nos torna sensíveis à infinita variação dos movimentos e ritmos da vida presente em todo seu continuum através dos seres e suas atividades que expressam a potência infinita da vida.

Se esse é o papel da educação, é porque, insiste Ingold (2020), estudar faz com que passado e futuro venham à tona através de uma coexistência móvel, e isso diz respeito tanto às pessoas, quanto aos supostos conteúdos trabalhados na escola. Por exemplo, Ingold (2020) mostra que o estudo é uma forma de desapropriação mútua, na medida em que o conhecimento se dá quando os participantes de um processo educativo podem trazer suas experiências de forma desanexadas do contexto nos quais possuem sentido e utilidade prévia, tornando, assim, tal conhecimento público e aberto, para que todos os participantes tenham a possibilidade de fazer com eles o que podem seus corpos. “[...] Suspenso do uso, talvez por pessoas da geração mais velha, ainda não apropriado pelas pessoas mais jovens. Isto é o que torna possível para cada geração recomeçar, para se experimentar como nova geração” (Ingold, 2020, p. 74).

Isso requer uma mudança de perspectiva também no que tange no suposto papel do professor e na experiência do aprender e do ensinar. Com Biesta (um teórico da educação), Ingold (2020) defende que “aprender com alguém” é diferente de “ser ensinado por alguém”. Primeiramente, o que é essencial para a educação é que alguém esteja presente, como um professor, por exemplo, para que “coloque sobre a mesa” tudo aquilo que tem, ao invés de simplesmente deixar os alunos fazer de sua educação o que bem entenderem, com atenção e sensibilidade para as potencialidades dos alunos, e discutindo com eles o que deve e o que pode ser feito (Ingold, 2020). O professor é um dos participantes do processo educativo, processo esse o qual é constituído não por qualquer participação, mas uma participação a qual transforma a perspectiva de todos que estão envolvidos no processo: “Poderíamos então seguir o exemplo de Dewey em pensar o ensino como um processo de comunhão e variação, de atenção e resposta, nas quais o mestre e os alunos seguem juntos em um espírito de experimentação” (Ingold, 2020, p. 81). Assim, participar do processo educativo só acontece de dentro de atividades que levamos conjuntamente com outros seres que modulam nossa atenção, nos abrindo ao processo contínuo da vida.

Diante disso, se o estatuto ontológico da educação da atenção apresentada por Ingold (2020) difere de seu primeiro escrito sobre educação em Ingold (2010), se deve ao fato de que em seu livro “Antropologia e/como educação”, Ingold (2020) radicaliza a noção de que a educação tem como objetivo a busca por garantir a continuidade e potencialização da vida. Tal radicalização primeiramente se dá através do reconhecimento de que só podemos conhecer o mundo porque fazemos parte dele (Ingold, 2020). Segundo porque educação consiste em criar condições para que outros consigam explorar, ou experimentar as condições e potências da vida e seu continuum na relação do humano não somente com ele mesmo, mas com outros seres não humanos (Ingold, 2020). Isso significa trazer para nossa atenção outros seres para que possamos responder a eles, ressoar com seus ritmos, acompanhar seus fluxos, uma verdadeira hapticalidade - por isso é uma educação da atenção.

Conclusão

Para continuar...

No intuito de encerrar, neste escrito, o pensamento aqui desenvolvido, mas ao mesmo tempo abrir possibilidades para continuar a problemática aqui posta, acreditamos que é necessário insistir em dois pontos. Em primeiro lugar, se na concepção de Hannah Arendt, a educação diz sobre a preocupação com o mundo, sua conservação e renovação através nos novatos, com Ingold e sua noção de educação da atenção, podemos entender que para tal empreendimento, é insuficiente considerar somente o humano nesse processo. Neste sentido, se pensar a educação requer entender a participação do humano na construção do mundo, ou nos termos ingoldianos, na continuidade da vida, essa participação envolve a presença de outros seres os quais modulam a atenção do humano de tal modo que este seja capaz de compreender melhor a si mesmo e aos demais seres no interior do processo continuum da vida.

Em segundo lugar, apesar lançar mão de conceitos como habilidade, bem como destacar o caráter prático, portanto, pragmático da educação, a concepção ingoldiana de educação não se aproxima de uma necessidade neoliberal em reduzir a fins, tal como um interesse meramente econômico, no sentido de habilitar as pessoas tecnicamente para o mundo do trabalho. Ao contrário, é necessário lembrar que se em Ingold a vida não é o encerramento de possibilidades, mas sua abertura, e se a educação diz sobre a continuidade da vida, não podemos reduzir a educação à uma concepção finalista da vida, mas como uma forma de - a educação - fazer com que a vida, continuamente, consiga transpor as destinações a ela postas. Está aí então a expressão máxima do compromisso ontológico da educação, a preocupação com a vida

Referências

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2016. [ Links ]

CORREIA, Adriano. Natalidade e amor mundi: sobre a relação entre educação e política em Hannah Arendt. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.36, n.3, p. 811-822, set./dez. 2010. DOI: 10.1590/S1517-97022010000300011 Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/ep/a/Hpsxn9MYhxBhmWHLPx3pnQx/?lang=pt Acesso em: 04 abr. 2023. [ Links ]

INGOLD, Tim. Da transmissão de representações à educação da atenção. Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 6-25, 2010. Disponível em: Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/6777 Acesso em: 23 abr. 2023. [ Links ]

INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015. [ Links ]

INGOLD, Tim. Antropologia, para que serve? Petrópolis: Vozes , 2019. [ Links ]

INGOLD, Tim. Antropologia e/como educação. Petrópolis: Vozes , 2020 [ Links ]

SOBRE OS AUTORES

3CORREIA, Elder Silva; ZOBOLI, Fabio. A educação da atenção em Tim Ingold: um compromisso ontológico com a vida. Revista Práxis Educacional, Vitória da Conquista, v.19, n. 50, 2023. DOI:10.22481/praxisedu.v19i50.11534.

Recebido: 23 de Maio de 2023; Aceito: 23 de Julho de 2023

Elder Silva Correia. Doutor em Educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Membro do Grupo de pesquisa “Corpo e política”. Professor do Departamento de Educação Física da Faculdade do Nordeste da Bahia - (FANEB). Contribuição de autoria: autor do texto

Fabio Zoboli. Pós-doutor em Educação do Corpo pela Universidad Nacional de La Plata (UNLP-Argentina). Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Membro do Grupo de pesquisa “Corpo e política”. Professor do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGED) e do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - (UFS). Contribuição de autoria: autor do texto. Link do Lattes: https://lattes.cnpq.br/0682121655932961

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