Introdução
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um transtorno do neurodesenvolvimento que afeta o desenvolvimento da pessoa que se encontra nesta condição e traz prejuízos na organização de pensamentos, sentimentos e emoções (APA, 2013). Para Orrú (2012, p. 17), “o autismo é uma palavra de origem grega (autós), que significa por si mesmo. É um termo usado, dentro da psiquiatria para denominar comportamentos humanos que se centralizam em si mesmos, voltados para o próprio indivíduo”.
Os primeiros estudos sobre o autismo indicavam que sua manifestação se vinculava predominantemente no sexo masculino, constando que a cada 4 meninos com diagnóstico de autismo, 1 era menina (Kanner, 1943). As noções masculinas provenientes de uma sociedade de cultura patriarcal influenciaram a Ciência em sua percepção sobre o autismo de forma a fomentar uma violenta negligência acerca do autismo no feminino, pois tanto na realização de pesquisas como nos espaços da clínica, as meninas e mulheres eram preteridas. Estudos recentes apontam que a real prevalência do autismo é de 4 casos para o sexo masculino e 3 para o feminino, ou seja, o autismo não é raro em meninas e mulheres (McCrossin, 2022).
Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) em sua quinta edição, publicado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA, 2013; 2022), estão presentes dificuldades no âmbito da linguagem, no uso da imaginação e na socialização, além da presença de comportamentos considerados restritos e repetitivos. São relatadas a constância em interesses em temas e atividades específicas, a rigidez cognitiva e a literalidade como características peculiares que corroboram para um substancial impacto sensorial na vida das pessoas com o diagnóstico do autismo. O interesse em temas e atividades específicas é conhecido como hiperfoco, e costumam ser muito apreciados pela pessoa com o diagnóstico de TEA, podendo vir a se tornar um caminho para o seu autossustento (Ashinoff; Abu-Akel, 2021).
De acordo com os critérios para diagnóstico médico, o TEA tem sido compreendido em 3 níveis de suporte, sendo que o nível 3 é a sua manifestação mais grave. Os níveis 2 e 3 apresentam déficits mais acentuados na comunicação bem como maiores chances de terem outras condições clínicas associadas (APA, 2013, 2022).
Importante dizer que o diagnóstico do TEA se manifesta repetidamente, independentemente de sexo, gênero, cor, etnia, geopolítica e crenças. Enquanto a condição do autismo se repete, as pessoas não se repetem, elas são únicas e cada uma tem a sua própria vivência e experiência no autismo. Neste sentido, entendemos que cada pessoa atravessada pelo autismo, é única e singular.
Não é um tipo de pessoa, um tipo de gente, uma filosofia de vida, uma doença, uma deficiência, uma genialidade, uma escolha, uma benção ou maldição hereditária, tampouco uma manifestação sobrenatural divina ou demoníaca. Não é uma coisa legal ou ruim (Orrú, 2024, p. 103).
Relutando às formulações universalistas que estabelecem e fixam identidades, Gilles Deleuze afirma que é necessário refutar terminologias que ligam condições como o autismo, aos agenciamentos de causas e sintomas que nomeiam apenas déficits, em detrimento da percepção da subjetivação da pessoa: “[...] esses sintomas aparecem em migalhas, difíceis de totalizar, de unificar numa entidade coerente e bem localizável: por toda parte uma síndrome discordante, sempre em fuga sobre si mesmo” (Deleuze, 2016, p. 27).
Quando Espinoza (1977) disserta que a um cego não lhe falta a visão, ele quer dizer que nenhum corpo pode ser definido pela falta, pelo déficit, pelo que ele não tem. Só se pode definir um corpo por aquilo que ele tem. Somente se utilizarmos o dispositivo da comparação podemos definir um corpo pelo que ele não tem. Ou seja, para comparar temos que partir de um modelo idealizado, de uma norma. Assim o corpo autista é um corpo desqualificado pois está preso ao dispositivo da normalidade biopolítica que o compara e ao fazer isso põe em variação sua potência. Sob a óptica de Espinoza, um corpo não pode ser comparado tendo como parâmetro outro corpo, a potência de um corpo está em relação às suas próprias capacidades de tecer relações mais potentes e expansivas com outros corpos.
O autismo, que atualmente circula entre escolas e clínicas, perpassa pelo advento daquilo que é voltado para si. O estranho que insiste em não se enquadrar, não se portar, não se compreender, não é grande novidade entre rótulos e relatórios. Seu código atualmente é sabido: 6A02, que quase sempre anda acompanhado por uma lista de déficits e sintomas que impossibilitam uma leitura do fora, dos processos de subjetivação, daquilo que não se vê, pois não se lê em manuais que o enquadram em peças que não se combinam, posto que são difusas e divergentes, mas que o poder biomédico insiste em fazê-lo.
Nesse sentido, o autismo é um dispositivo biopolítico que diz respeito ao emolduramento da saúde mental, uma designação política de normalização de subjetividades e corpos. Neste ensaio, o dispositivo é compreendido sob a mirada foucaultiana que compreende o dispositivo como um conjunto heterogêneo, que engloba desde instituições, discursos, leis, proposições filosóficas, morais, até organizações arquitetônicas, enunciados científicos. O dispositivo é a rede onde se pode estabelecer relações entre esses elementos (Foucault, 1988).
Em diálogo com essa perspectiva, Giorgio Agamben (2009, p. 40) chama literalmente de dispositivo “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”. A zona de subjetivação dentro do dispositivo, segundo este filósofo italiano, é assegurada pela tríade: episteme, subjetivação e instituições. O dispositivo é uma maquinaria que opera, por um lado, via saberes (episteme) e, por outro, pela captura do sujeito (subjetivação) e age via tensão das relações das instituições e o modo como ela modela os viventes.
É nesse contexto que colocamos a escolarização de massas, enquanto criação da modernidade, figurando como uma instituição que está sob a égide dos dispositivos disciplinares, para controlar, assegurar, classificar e normalizar a vida. A criação da Educação para todos, imprime tensões diversas, a exemplo da inclusão de pessoas com deficiência, que aqui entenderemos como um movimento político, conforme afirma Tatiana Luiza Rech (2013, p. 25):
A palavra inclusão, por ela mesma, remete-nos a um movimento que poder ser pensado de diferentes formas, se levarmos em conta as diferentes épocas históricas das quais fez e ainda faz parte. Para alguns falamos de um processo, de um conceito, de uma ideia que denota salvação. Já a meu ver, falamos em práticas, em um movimento que tem se (re) configurado no Brasil.
Com base nessa afirmação, entendemos que a conquista do direito à inclusão escolar, por jovens e adultos com autismo, é um instrumento político que se pauta em ferramentas legais como a Constituição Federal (Brasil, 1988), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996), a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (Brasil, 2008), Decreto Nº 6.949 que promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Brasil, 2009), Lei nº 12764 para a Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Brasil, 2012), a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Brasil, 2015) e o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Brasil, 2023), dentre outras políticas e legislações. Em que pese a importância desse arcabouço legal, este escrito busca suscitar reflexões acerca das tentativas de controle feitas por dispositivos biopolíticos, como o laudo diagnóstico, a medicalização e as emoldurações pedagógicas realizadas pelas instituições escolares sobre os corpos de pessoas com autismo, com base na justificativa da supremacia da ciência em detrimento dos processos de subjetivação, da primazia dos relatórios em prejuízo das multiplicidades.
A problematização deste ensaio surge a partir de reflexões que emergem de binômios como inclusão/exclusão; típico/atípico; normal/patológico; razão/desrazão; convergente/divergente. Dualidades que insistem em colocar o autismo na categoria da anormalidade, logo, ele precisa se submeter a dispositivos que o normalizam: remédios, neuroquímicos, terapias, metodologias específicas. A vida do autista está tutelada a um catálogo normalizador onde ele não pode escapar da vigilância moralizadora. Assim, o corpo autista submetido a captura biopolítica, não é um corpo que se expressa, é um dispositivo que funciona.
A estratégia estabelecida para desenhar este escrito transita entre o conceito de biopolítica e a definição do autismo, enquanto um diagnóstico que emoldura os sujeitos via dispositivo da normalidade. Utilizaremos como ferramentas analíticas a inclusão escolar de alunos com autismo e indicadores como a medicalização, que têm funcionado também como dispositivos de usos políticos destes corpos.
O autismo como dispositivo biopolítico
Em que pese a importância do retrospecto histórico da compreensão categórica do que é o Autismo, impressos nos manuais psiquiátricos ao longo da história, aqui objetivamos partir do consensual, da pedra fundamental lançada pelo diagnóstico, para tecer reflexões acerca da categorização biopolítica como estratégia de controle e mercantilização dos corpos das pessoas com autismo.
[...] essa herança que ainda carregamos diz respeito à medicina como sistema de biopolítica que cria e implementa patologias no corpo social, controla e gerencia o corpo das mulheres, a expropriação da saúde e da educação, a medicalização da sociedade, a coisificação do indivíduo pelo diagnóstico como dispositivo de controle que materializa o biopoder no mundo contemporâneo (Orrú, 2024, p. 79).
O diagnóstico autista é uma forma de poder que transforma indivíduos em sujeitos. “A palavra sujeito tem dois sentidos: sujeito submetido ao outro pelo controle e sujeito tornado aderente à própria identidade através da consciência ou do conhecimento de si. Nos dois casos, essa palavra sugere uma forma de poder que subjuga e sujeita” (Esposito, 2017, p. 48). Por isso, “para potencializar a si mesmo, o poder é obrigado a potencializar, ao mesmo tempo, o objeto sobre o qual se descarrega” (Esposito, 2017, p. 50). Mas não só isso, faz-se necessário também tornar o sujeito, sujeito do próprio assujeitamento. É neste sentido que entendemos que uma teoria do sujeito autista só é possível como teoria dos dispositivos biopolíticos que o assujeitam.
O dispositivo biopolítico da norma funciona a partir de um casal - “inversamente, a experiência mostra que um casal que funciona é um casal que faz dispositivo. Um casal, e não um par ou uma dupla, pois todo casal é assimétrico, comporta um maior e um menor” (Tiqqun, 2019, p. 232-233). Dentro dessa lógica hierárquica o maior no dispositivo é a norma. “O dispositivo agrega o que é compatível com a norma pelo simples fato de não o distinguir, de deixá-lo imerso na massa anônima, portadora do que é normal” (Tiqqun, 2019, p.233). De modo lógico e complementar, o termo menor no dispositivo será, portanto, o anormal. “O normal deve ser dito instituidor da norma ou normativo; ele é o prototípico e não mais o arquetípico. Esse segundo sentido deve normalmente subentender o primeiro” (Canguilhem, 2012, p.177).
“É isso que o dispositivo faz existir, singulariza, isola, reconhece, distingue e então reagrega, mas enquanto desagregado, separado, diferente do resto dos fenômenos” (Tiqqun, 2019, p. 233). Ou seja, o singular no dispositivo da normalidade é o anormal. O singular, é portanto, sempre irregular, mas, ao mesmo tempo, “ele é perfeitamente absurdo, pois ninguém pode compreender como uma lei cuja invariância em que a identidade a si garante a realidade é, a um só tempo, verificada por exemplos diversos e impotente para reduzir a sua variedade, ou seja, sua infidelidade” (Canguilhem, 2012, p.171).
Sob esta mirada Canguilhem (2009) vai afirmar que sem os conceitos de normal e de patológico o pensamento e as atividades das ciências médicas são incompreensíveis. A noção de norma, entorno dos quais os saberes se constroem são indispensáveis para compreender as estratégias biopolíticas. Afinal, a norma permite a articulação entre o conhecimento científico e as intervenções concretas, além de ser em torno dela que podem ser criadas as estratégias de poder que correspondem aos corpos dos indivíduos e os processos biológicos da espécie - a biopolítica (Caponi, 2016, p. 104).
Na biopolítica, o que não é normal será assim dado por patológico, quando sabemos por experiência que a patologia é ela mesma, para os organismos doentes, uma norma de vida e que a saúde não está ligada a uma norma de vida particular, mas a um estado de forte normatividade, a uma capacidade de afrontar e criar outras normas de vida. A essência de todo dispositivo está em impor uma divisão autoritária do sensível na qual tudo o que vem à presença se confronta com chantagem de seu caráter binário (Tiqqun, 2019, p. 234-235).
O conceito de biopolítica, interpretado pelo filósofo francês Michel Foucault1 como o exercício de poder sobre o corpo-espécie que opera exponencial e globalizadamente desde o século XVII nas populações (Foucault, 1998, p. 168-169), encontra ressonância no autismo, afinal, a biopolítica faz alusão a um vínculo explícito entre política e vida expressado e sistematizado pela ciência moderna. A partir da modernidade o Estado por meio de dispositivos políticos legitima determinadas práticas e saberes sob as quais submete o corpo a fim de controlá-lo e manipulá-lo.
O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica (Foucault, 2015, p. 144).
Foi a ciência estrutural moderna que produziu as estruturas rígidas que capturam/nomeiam/ emolduram o corpo autista, tendo como referência um padrão de normalidade daquilo que se considera o ideal, que aqui afirmamos ser sempre uma ficção, mas que sem ele não é possível a comparação, por isso que a nossa sociedade opta pelo caminho das formas, dos encaixes. Há um sabotamento das diferenças pela máquina social, que está contido na necessidade de enquadramento, que se instala, inclusive, pelos processos de aprendizagem e pelas marcas das terapias. Isso tem vigorado como algo definitivo, no entanto, entendemos que há campo para pensar possibilidades outras e subverter a lógica da biopolítica.
O que os dispositivos materializam é apenas a mais notória das imposturas da metafísica ocidental, que se condensa no adágio a essência precede a existência. Para a metafísica, o existente é somente um predicado da essência: inclusive, de acordo com ela, todo existente só atualizará uma essência, esta que será para ele primeira. Segundo essa doutrina aberrante, a possibilidade, isto é, a ideia, precederia as coisas; cada realidade seria um possível que, além disso, adquire a existência (Tiqqun, 2019, p. 244-245).
Cabe destacar também, que o advento das descobertas da biologia molecular, pela via das biotecnologias, acabou impactando o campo da biologia, deslocando e/ou reforçando argumentos naturalistas e ampliando a ideia de biopolítica. Sob esta mirada Rabinow e Rose (2006) argumentam que se faz urgente uma atualização do conceito de biopolítica foucaultiano que incorpore os saberes e informações biotecnológicas do fim do século passado, tais como os avanços da biologia molecular (genética, imunologia e neurociências). Os avanços destas três áreas do saber “inauguraram uma nova concepção de vida e o humano passou a ser visto como um feixe de informações, no qual o destino da humanidade estaria inscrito em estruturas minúsculas do corpo: os genes, os linfócitos, os neurônios” (Manske, Pich e Zoboli, 2023, p.84).
As descobertas da biologia molecular abrem ao corpo a possibilidade de distintas composições com outras matérias (orgânicas ou inorgânicas) que podem ser recombinadas molecularmente fazendo com que a vida já não seja concebida como algo inalterável, ou seja, a biologia deixa de ser o destino (Rose, 2013).
La biopolítica molecular rompe con las condiciones impostas por la biopolítica de las poblaciones, ante todo porque el blanco de ataque no es el cuerpo en su soledad biológica, sino su apertura a los niveles infracorporales, una suerte de física cuántica de la biología, que abre el camino a los procesos de tecnificación más allá de lo imaginado en los inicios de la clínica médica moderna (Rodríguez, 2019, p. 435-436).
Essa abertura da biopolítica molecular também interferiu no modo de compreender a medicalização psiquiátrica. Atualmente se olha para os psicofármacos não somente sob perspectiva estratégica de pacificar ou normalizar, mas também sob o viés do ajuste que contribui para com que o indivíduo possa entrar nos circuitos de vida cotidiana (Rose, 2013). Pensando isto de forma hipotética, considerando o contexto biopolítico do corpo com autismo, essa concepção também pode inferir diretamente no investimento em pesquisas genéticas para propor intervenções a fim da busca de uma possível ‘cura’ do autismo, a partir do tratamento de uma suposta anormalidade.
Faz-se necessário pensar em que medida se pode escapar desse emolduramento autista imposto pelo dispositivo da norma. Desse modo cabe o questionamento: como se pode instaurar modos distintos de existência para além desse modelo que despotencializa corpos autistas? O filósofo David Lapoujade (2017) argumenta, a partir dos diferentes modos de existências apontados por Étienne Souriau, que a existência não admite grau; ou seja, cada existência possui seu modo de ser, intrínseco, incomparável. “Todo ser é uma maneira de ser e reciprocamente: toda maneira de ser é um ser distinto, que existe à sua maneira” (Lapoujade, 2017, p. 27). Sob esta mirada, “cada existência é tão perfeita quanto pode ser” (Lapoujade, 2017, p. 27).
Autismo e escolarização: entre peças e molduras
Para iniciar a composição da moldura do nosso quebra-cabeça nos reportamos às institucionalizações dos ‘anormais’, promovidas no século XIX. De acordo com Lilia Ferreira Lobo (2023, p. 250), essas instituições não se resumiram a “hospícios para loucos e idiotas, internatos especiais para surdos e cegos, além do caráter médicos que os hospitais começavam a apresentar”. Para essa autora, as separações institucionais também ocorreram nos saberes e “mais tarde, no início do século XX, a produção da criança anormal, que passou a compor definitivamente os discursos e as práticas médico-pedagógicas” (Lobo, 2023, p. 250).
A necessidade principia de não só disponibilizar à produção industrial a mão-de-obra dos pais dessas crianças, como, de alguma forma também integrá-las a este universo, fez com que os processos de exclusão se redesenhassem. Assim surgiram espaços institucionais demarcados, nos quais as práticas se reconfiguravam, mas com o mesmo objetivo. “Limpar as cidades em todos os sentidos, do lixo urbano ao lixo humano” (Lobo, 2023, p. 250). De acordo com essa autora, assim surge a categoria ‘inclusão’, que neste contexto apresenta um contraponto à ideia de ‘exclusão’. Ela nos lembra também que:
A produção de subjetividades individualizadas, da valorização das identidades, deu-se também pelo artifício das inclusões institucionais - por sinal, no Brasil, bastante hierarquizadas [...] Não mais a expulsão para outro território, mas a fixação em seu interior, em um espaço perfeitamente quadriculado (Lobo, 2023, p. 251).
Portanto, é reconhecido por essa autora, que é socialmente esperado que a inclusão ocorra, considerando que é necessário que as malhas institucionais e seus dispositivos façam sua parte, qual seja, classificar e manter a ordem social. Diante desse pressuposto, juntamos as peças que dão origem à inclusão e nos apropriamos delas, para compreender que elas podem se mover, que há tensionamentos possíveis, de acordo com a composição de movimentos sociais e suas lutas. É possível observar isso, tanto com o movimento antimanicomial, que promoveu a Reforma Psiquiátrica no Brasil, na década de 1960; quanto com a luta pela inclusão em classes regulares para as pessoas com deficiência, com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), em 1996. Em ambos os exemplos, de alguma forma, as pessoas com diagnóstico de autismo estão diretamente implicadas.
A luta pelos direitos da pessoa autista deve ir na direção de uma reversão clínico-política, isto é, mais do que apenas SE dizer, SE identificar, SE inserir na sociedade, é preciso criar na sociedade espaços para que a diferença tenha lugar (Almeida, 2024, p. 406).
Compreendendo a inclusão escolar de pessoas com autismo como fruto de um movimento político, demarcamos como marco dessa luta a conquista da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008), concebida no Governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tem como objetivo:
[...] assegurar a inclusão escolar de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, orientando os sistemas de ensino para garantir: acesso ao ensino regular, com participação, aprendizagem e continuidade nos níveis mais elevados do ensino; transversalidade da modalidade de educação especial desde a educação infantil até a educação superior; oferta do atendimento educacional especializado; formação de professores para o atendimento educacional especializado e demais profissionais da educação para a inclusão; participação da família e da comunidade; acessibilidade arquitetônica, nos transportes, nos mobiliários, nas comunicações e informação; e articulação intersetorial na implementação das políticas públicas (Brasil, 2008, p. 14).
Fruto do seu tempo histórico, a criação dessa Política é justificada com base em dados de censos educacionais que indicam a exclusão educacional e social das pessoas com deficiência. No entanto, quando tratamos sobre o autismo, percebe-se um dilema atual em um território que compromete a autonomia pedagógica e limita as possibilidades de desenvolvimento pleno das potencialidades das pessoas com autismo. Há uma tendência em considerarmos narrativas pautadas em evidências científicas, como um dispositivo biopolítico, discurso sobre o qual não cabe generalização, mas que, em parte, tem sido referendado por alguns profissionais que trabalham com saúde mental. Esse cenário pode limitar o autismo a uma única abordagem intervencionista2 possível, desconsiderando as diversas possibilidades teóricas existentes.
Tornou-se comum o recebimento pelas escolas de laudos que indicam a forma como o professor deve atuar na condução de suas práticas pedagógicas e controlam resultados, com base em intervenções terapêuticas e na medicalização, com o objetivo final de normalizar comportamentos. Essa perspectiva demonstra o entendimento de dispositivo pensado por Michel Foucault (2008), o qual compreende discursos, instituições, leis, enunciados científicos, proposições filosóficas, entre outros. À escola tem sido demandada uma resposta por meio do preenchimento de relatórios e documentos como o Plano Educacional Especializado (PEI).
De acordo com Cunha (2023), a inclusão de pessoas com autismo na escola pode ser um desafio, por exigir reformulação da prática à teoria e vice-versa. Portanto, faz-se necessário discutir a educação inclusiva na formação inicial e continuada, proporcionando os conhecimentos básicos para que os professores se comprometam com a aprendizagem de todos, objetivando não reforçar tratamento excludente entre os alunos. As diversas formas de aprender precisam ser consideradas nas práticas pedagógicas.
Rech (2013, p.37) afirma que “a urgência atual presente nas escolas - quando o assunto é a inclusão educacional - está ligada diretamente com o currículo e suas implicações e obrigações”. Dessa urgência surgem também respostas prontas, em um momento em que a escola tem se isentado de exercer reflexões e análises mais aprofundadas sobre seus fundamentos, sobre o projeto político pedagógico, sobre a autonomia docente e sobre a compreensão de cada aluno como sendo distinto. Assim, ficamos reféns de uma atuação profissional equivocada que, muitas vezes, faz uso dessas abordagens de forma imediatista e normalizadora, podendo invisibilizar os eixos de interesses, que são particulares a cada pessoa.
No mesmo plano da homogeneização de abordagens pedagógicas, observamos também como um dispositivo disciplinar o controle de comportamentos feitos por meio da medicalização. Decisão que não é desproposital, mas está diretamente ligada a uma estratégia política, que movimenta uma indústria lucrativa, que gere as vidas das pessoas para a criação de uma segurança social, dentro daquilo que está posto como o normal. De acordo com Orrú (2024, p. 83-84):
A supervalorização do diagnóstico fundamentado na doença e no déficit rastreia explicar tudo pela genética, desde violências, homoafetividade, transtornos mentais, dependências químicas, dificuldades no processo de aprendizagem e tudo mais que possa perpassar o indivíduo. À medida que se espiga a cultura da patologização e da medicalização da vida e da sociedade, é desconsiderada brutalmente a subjetividade do sujeito, suas vivências experienciadas, seu sofrimento psíquico, seu modo singular de ser e estar no mundo, com o mundo e com as outras pessoas, sendo diferente, sendo quem é.
É relevante ressaltar que não tomamos aqui a crítica à medicalização em si, posto que, em muitas ocasiões, o medicar é necessário para mediar comportamentos que são maléficos e até perigosos à própria pessoa com autismo e demais pessoas que convivem com a mesma. A prática medicamentosa, que aqui nos contrapomos, está ligada por exemplo, à tentativa de fazer com que uma criança fique sentada na carteira da escola, enquanto durar o tempo de aula, ou para retirar dela um movimento estereotipado das mãos, que não lhe faz mal em nada, com o único objetivo de a normalizar perante a sociedade. A nossa ponderação se refere objetivamente ao fator limitante de uma prática exercida por uma parcela de profissionais que, ao invés de uma medicação, poderiam oferecer um esporte, uma atividade musical, uma equoterapia, entre outras possibilidades terapêuticas.
Ivan Illich (1975) realiza em sua obra, “A expropriação da saúde: nêmesis da medicina”, uma crítica ao poder da medicina e traz especialmente reflexões acerca da sua contraprodutividade global, sendo a ciência médica uma das principais responsáveis por grande parte das dificuldades de libertação que enfrentamos nos dias atuais. De acordo com esse autor, “os cuidados médicos, reeducação e recuperação psíquica seriam apenas diferentes formas de uma programação do homem para adaptá-lo ao meio ambiente programado” (Illich, 1975, p. 91).
Uma estrutura social e política destruidora apresenta como álibi o poder de encher suas vítimas com terapias que elas foram ensinadas a desejar. O consumidor de cuidados da medicina torna-se impotente para curar-se ou curar seus semelhantes. Partidos de direita e de esquerda rivalizam em zelo nessa medicalização da vida, e, com eles, os movimentos de libertação. A invasão da medicina não reconhece limites (Illich, 1975, p. 06).
Ivan Illich (1975), afirma que cada idade tem como correspondente um meio ambiente especial para otimizar a saúde-mercadoria. Para ele espaços especializados como a escola, a rua e a clínica-médica ao se enriquecerem de prescrições profissionais, empobrecem as vidas das pessoas que estão encerradas neles, nessas celas especializadas, que tem como objetivo a domesticação humana.
O homem fica encaixotado num meio feito para os membros de sua categoria, conforme a concebe o especialista burocrático encarregado de sua gerência. Em cada um desses lugares, o indivíduo é instruído para seguir o comportamento que convém a uma administração de pedagogos, de pediatras, de ginecologistas, de geriatras e às suas diversas classes de servidores (Illich, 1975, p. 43).
Georges Canguilhem (2009, p. 43), afirma que “viver é, mesmo para uma ameba, preferir e excluir”. Talvez essa seja a ordem natural das coisas, considerando a concepção de saúde questionada por Canguilhem (2009), ou seja, a que busca a normatização mental e física. Por isso consideramos que cruzar as fronteiras das identidades implica na criação de um processo de sequestro daquilo que é esperado, restando apenas o campo da anomalia - o descabido, incoerente, desconfortável - que gera uma composição em desalinho, que naturalmente também contraria as instituições, o organismo social e biológico.
Dentro dessa classificação normalizadora (que capturam corpos de pessoas autistas) o corpo da biologia ocupa lugar central pois cunha espaços delimitáveis (topologias) para os sujeitos serem inseridos, gerando, dessa forma, também o que não é normal, a anormalidade. Por conseguinte, aqueles corpos que porventura ultrapassarem esses limites passam a fazer parte do que não está autorizado, do não legitimado, previsto, prescrito, e portanto, colocam-se por fora da norma, são objeto de burla, infração.
De acordo com Marcos Nalli (2013), com base em seus estudos sobre a abordagem imunitária de Esposito, é preciso perceber que não apenas uma contraposição entre o biológico e o político. “Trata-se de perceber como o corpo, o corpo vivo, é a um só tempo alvo de intervenção médica e de intervenção política: é no corpo que política e biologia se cruzam e se mesclam tornando-se um só” (Nalli, 2013, p. 50).
Pensar o corpo a partir da modernidade é entendê-lo a partir do modelo proposto tradicionalmente no âmbito da ciência hegemônica. Como afirma Sibilia (2002, p. 68), “o saber científico redefiniu o corpo: arrancando-o do homem vivo e escolhendo o cadáver como seu modelo e objeto”. O corpo ficou assim condicionado a uma ideia de natureza pautada em toda uma epistemologia biologicista e fisicalista. Ou seja, as bases epistemológicas ocidentais modernas significaram o corpo em contornos biológicos e físicos, impactando na política e na estética dos seus usos. O assunto da relação entre política e a materialidade do corpo passa pelo problema da ordem e das categorias, problema este pautado na necessidade da pressuposição da ordem em relação à subjetivação vivente. Desse processo nasce a conformação estruturalmente aporética que dá base à filosofia política moderna (Esposito, 2017).
No caso da temática do corpo anormal/deficiente - aqui tratada sob o recorte do autismo - historicamente, o peso do corpo biológico, concebido pela anatomia, funciona como fronteira material das relações subjetivas. O corpo com autismo é potente de possibilidades, porém, a universalização do mesmo, reduzido sob episteme biológica, parece confiscar a pluralidade de outros corpos, dada a predominância de um modo de existência universal, que tende a despotencializar justamente a emergência de outros modos de existência.
Considerações finais
Retomando o objetivo deste ensaio, que foi o de questionar o conceito de biopolítica para a partir dele interpelar o autismo como diagnóstico que enquadra os sujeitos a partir do dispositivo da normalidade no contexto educacional, entendemos que a presença desses corpos incluídos na sociedade deve ser vista como prenúncio de novas estéticas e novas políticas, que perpassam diretamente pela educação. Essa conquista nos faz pensar o patológico ou o anormal como possibilidade de ampliação de fronteiras, uma nova norma de corpo, ou seja, uma nova norma de vida.
É um desafio do nosso tempo pensar em possibilidades de nos desfazer da inclusão excludente de pessoas com autismo, sob a lógica biopolítica, que as limita a um laudo, a um número ou índices, para as tornar tão somente pessoas economicamente produtivas. Foi desafio deste escrito subverter a lógica da deficiência, que impõe a inadequação aos corpos das pessoas com autismo. Cunha (2023, p. 09) afirma, “não raro, o capacitismo atravessar a educação e as crianças com algum tipo de deficiência ou necessidade específica, como as que têm autismo, são, de antemão, vistas como incapazes”.
Dessa forma, também repensamos a lógica que determina o diagnóstico enquanto um fim e a uma identidade, enquanto estratégia que emoldura a normalidade. Para Canguilhem (2009, p. 76), esse contexto “[...] reflete a relação da ciência da vida com a atividade normativa da vida e, no que se refere à ciência da vida humana, com as técnicas biológicas de produção e de instauração do normal, mais especificamente com a medicina.
Quem ousa trafegar fora dos padrões da normalidade médica, torna-se uma monstruosidade, uma anomalia. Para Canguilhem (2009) a anomalia é a consequência da variação individual que impede que dois ou mais seres possam se substituir um ao outro de modo completo. Porém, alerta o autor, a diversidade não é doença, logo, o anormal não é o patológico. “Patológico implica pathos, sentimento direto e concreto de sofrimento e de impotência, sentimento de vida contrariada” (Canguilhem, 2009, p. 44).
A reboque e consonante ao dispositivo da normalidade, giram as engrenagens da indústria farmacológica. Medicalizar um corpo autista para torná-lo funcional ao sistema de ensino é tarefa que o pensa funcional também para o sistema capitalista, com um objetivo claro de anular os seus processos de subjetivação, ou seja, aquilo que caracteriza o que cada um é em si mesmo. No caso do autismo, o fundamento de identificação tem funcionado, muitas vezes, como um dispositivo de exclusão e controle, sob uma falsa ideia da necessidade de um laudo diagnóstico para a promoção da inclusão e de acesso às políticas assistencialistas. De acordo com Lobo (2023, p. 412), “O desafio encontra-se, então, na luta pela conquista diária da dignidade, pela emancipação das tutelas que funcionam como um potente processo de subjetivação”.
Entendemos que a política da diversidade não é o simples reconhecimento ou financiamento de fetiches identitários, e sim a promoção de relações dialógicas entre Estado, sociedade global e formas plurais de existência que implicam na instauração e apropriação de territórios (Sodré, 2012). A estética causada pelo corpo anormal da pessoa com autismo tem uma potência política para repensar o modo de produção social vigente, pois são corpos que sugerem novas formas de territorialização, à medida que reconfigura nossas percepções causando litígios nos modelos formais. “A inclusão do autismo passa a ser então a inclusão deste ponto disruptivo e criativo; caos e cosmo no cerne da subjetivação” (Almeida, 2024, p. 401).
É preciso então restituir o lugar de todos os lugares: topos, espaço fora da linguagem, espaço onde se deslizam o agir, o tecer, o cartografar e todos os infinitivos primordiais que são indispensáveis para a vida, o comum, a espécie (Almeida, 2024, p. 403).
Deste modo, faz-se necessário romper com o paradigma da normalidade a fim de pensar a biopolítica não como uma política sobre a vida, mas como uma política da vida, “[...] isto é, que seja a realização de toda potência da vida em se produzir e se constituir em si mesma” (Nalli, 2013, p. 52). Seguindo os rumos impressos pelo pensamento de Esposito, esse autor nos convida a pensar a vida para além da objetificação dos corpos e, com isso, cogitá-la como uma possibilidade de inovação de si