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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.2 Caxias do Sul maio/ago 2018  Epub 21-Ago-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.n2.1 

Artigos

A fenomenologia heideggeriana e a diferença de princípio entre filosofia e ciência

The difference of principle between philosophy and science and Heidegger’s phenomenology

Marcos Alexandre Alves* 

*Doutor em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Licenciado em Filosofia pela FAFIMC. Professor no curso de Filosofia. Mestre em Ensino de Humanidades e Linguagem e Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática da Unifra, Santa Maria. : <maralexalves@gmail.com>


Resumo

Este artigo examina, em âmbito fenomenológico, as categorias da experiência fática da vida e do fenômeno histórico, a partir da primeira parte da preleção “Introdução à fenomenologia da religião”, proferida por Heidegger, no semestre de inverno de 1920/1921. Elucida a peculiaridade dos conceitos filosóficos e a diferença de princípio que há entre filosofia e ciência. Apresenta a reelaboração do método fenomenológico, como ponto de partida da filosofia, capaz de fazer jus à vida fática (concreta e individual) e à historicidade (mundo vital e significatividade) do Ser-aí. Examina o significado do fenômeno histórico e a crítica à maneira habitual de pensá-lo, como “algo que transcorre no tempo” ou “uma propriedade geral aplicável a todo objeto temporal”. Conclui que as vias de afirmação da vida contra o histórico caem no modo teorético e não expressam o histórico em seu caráter imediato. Portanto, preservar o caráter fenomenológico e intranquilizador da história significa respeitar a historicidade viva e a força vital e multidirecional do sentido fático do Ser-aí.

Palavras-chave:  Fenomenologia; Filosofia; Ciência; Facticidade; Historicidade

Abstract

This article examines in phenomenological scope the categories of the factual experience of life and the historical phenomenon, from the first part of the lecture “Introduction to the phenomenology of religion”, given by Heidegger, during the winter semester of 1920/1921. Elucidates the peculiarity of philosophical concepts and the principle of difference that exists between philosophy and science. It presents the re-elaboration of the phenomenological method while starting point of philosophy, capable of living up to the factual life (concrete and individual) and the historicity (vital world and meaning) of Being-there. It examines the meaning of the historical phenomenon and critique in the usual way of thinking it, as “something that runs in time” or “a general property applicable to every temporal object”. It concludes that the ways of asserting life against history fall into the theoretical mode and do not express the historical in its immediate character. Therefore, to preserve the character phenomenological and unsettling history means respecting the historicity alive and vital and multidirectional strength of the factual sense of Being-there.

Keywords:  Phenomenology; Philosophy; Science; Facticity; Historicity

Introdução

Heidegger, autor de vasta obra filosófica, influenciou decisivamente nos rumos da filosofia e do pensamento contemporâneos. Indicou um caminho para a filosofia numa época em que ela se encontrava numa profunda crise e num período em que seu país sofreu as terríveis consequências das duas Grandes Guerras. Profundo conhecedor da história da filosofia, dialogou com os filósofos gregos e criticou seus antecessores por terem esquecido a questão fundamental da filosofia: a questão do ser. Assumiu a tarefa de recolocar a questão fundamental da filosofia e colocou, no centro da discussão filosófica, aquele que é o único ser que tem consciência do seu ser: o Ser-aí. Compreendeu que, entre filosofia e ciência, há uma diferença de princípio, e que, por isso, o filosofar não pode se valer do método científico. Para Heidegger, tão importante quanto o que se quer alcançar, é o como se vai fazê-lo. Daí a importante contribuição dada aos contemporâneos pelo desenvolvimento da fenomenologia e do método fenomenológico. (STEIN, 2001).

Fenomenologia da vida religiosa trata-se de uma preleção proferida por Heidegger no semestre de inverno de 1920-1921, para seus alunos da universidade de Freiburg, na Alemanha.1

Heidegger ofereceu essa preleção como Privatdozent (professor livre) na Universidade de Freiburg, que teve início no dia 29 de outubro de 1920 e foi concluída em 25 de fevereiro de 1921. Segundo Uscatescu (2006), o curso nasceu motivado por seu então mestre Husserl, fundador do método fenomenológico. Como discípulo e assistente, Heidegger ficou encarregado de elaborar uma fenomenologia da religião. Nascido dentro do movimento filosófico da fenomenologia, o estudo heideggeriano pretendia servir de base a uma ontologia formal. Enquanto Husserl assumia a tarefa de fundamentar, explicar e desenvolver os princípios da fenomenologia para lançar as bases de tal ontologia, repartiu entre seus mais destacados discípulos a tarefa de elaborar uma fenomenologia de regiões particulares da realidade.

O contexto no qual se dá a elaboração da Fenomenologia da vida religiosa é bastante amplo e complexo. Entre as últimas décadas do século XIX e as duas primeiras do século XX, ocorre uma autêntica virada na ciência da religião e na filosofia da religião. Nesse momento histórico, são investigadas religiões primitivas até então desconhecidas ou muito mal conhecidas (animismo, totemismo), são lançadas hipóteses pré-animistas, e o sagrado é colocado como objeto básico da religião. A filosofia não fica aquém desse debate e reage com novas propostas.

A estrutura da edição do curso de 1920-1921 é composta por duas partes: a primeira trata de uma introdução metodológica, e a segunda aborda fenômenos religiosos concretos que estão em conexão com as epístolas paulinas. A sua maior parte é dedicada à questão prévia de fixar e delimitar o método fenomenológico. Para Heidegger, tão importante quanto o que se quer abordar, é como se vai fazê-lo. Logo, a questão do método é fundamental.

A introdução metodológica foi organizada em 13 parágrafos e 4 capítulos. Decidido a começar o curso com a introdução metodológica, Heidegger discorre sobre conceitos, tais como o histórico e a experiência fática da vida; elucida o que se compreende por experiência cognitiva, formalização e anúncio formal; esclarece a peculiaridade dos conceitos filosóficos e a diferença de princípio que há entre filosofia e ciência. Também procura fazer uma consideração crítica acerca das tendências dominantes da filosofia da religião de seu tempo.

O tema central da fenomenologia de Heidegger, tratado na obra em questão, é a vida fática, que coloca, no centro, a vida concreta e individual de cada homem. Esse aspecto revela que, embora estivesse condicionado por Husserl na fundação de uma fenomenologia da religião, Heidegger já trabalhava em uma concepção própria da fenomenologia. Propõe uma reelaboração do método fenomenológico, que pudesse fazer justiça à vida fática e à historicidade. Nesse sentido, faz uma introdução metodológica explicando que, para estabelecer o objeto da religião, é preciso delimitar a experiência religiosa originária e a forma de acesso adequada a ela. Assim, fixa a experiência fática da vida como ponto de partida de sua filosofia.

Dos apontamentos, os editores deduziram que, no dia 30 de novembro de 1920, Heidegger abandonou sua introdução metodológica e passou a explicar fenômenos religiosos concretos. Tal mudança ocorreu por motivos filosóficos e também por motivos de outra ordem. A explicação mais plausível é a de que alguns alunos, os menos dotados para questões metodológicas, teriam se queixado para o decano da faculdade porque consideravam que do título do curso cabia esperar algo mais concreto e relacionado com a vida prática. O título da segunda parte, Explicação fenomenológica de fenômenos religiosos concretos tomando por base as epístolas paulinas, evidencia a separação do curso em duas partes diferenciadas entre si. Contudo, na segunda parte, há considerações importantes sobre o método fenomenológico.

A segunda parte do curso foi organizada em 5 capítulos e 19 parágrafos. Neles, Heidegger aplica seu método a um caso específico e concreto: a experiência religiosa do cristianismo primitivo. Parte dos registros bíblicos mais próximos de Jesus: a Primeira Epístola de São Paulo aos Tessalonicenses. No entanto, não se fixa nessa Epístola, mas a relaciona com a Segunda Epístola aos Tessalonicenses, com a Epístola aos Gálatas, com a Epístola aos Coríntios e ainda com o livro bíblico que retrata os Atos dos Apóstolos. Nesse sentido, para Caruzo (2013), Heidegger parte de fatos históricos fixados naqueles documentos concretos e oferece um exímio exercício de exegese bíblica que se concentra no esclarecimento da experiência religiosa genuína e aplica o método fenomenológico às Cartas paulinas por identificar, em Paulo de Tarso, o expoente mais originário do cristianismo primitivo.

A intenção de Heidegger, quando da aplicação do método fenomenológico à experiência religiosa originária do cristianismo, não era tanto a religião como tal, mas realizar uma fenomenologia da vida fática, ou seja, ressaltar elementos da faticidade da vida tomando como base documentos capitais da história da religião. Centra sua atenção na experiência originária da religiosidade cristã (vida fática de Paulo de Tarso) e deixa de lado a experiência religiosa genuína (vivência de Deus). (FERRANDIN, 2010). Da experiência paulina destaca a tribulação, a angústia, a proclamação evangélica, o ser cristão, a negação dos ídolos e dos deuses do paganismo, a parusia, o serviço e a esperança, a graça divina, entre outros tópicos.

Portanto, Heidegger apresenta, no curso de Freiburg, uma fenomenologia da vida fática baseada na experiência religiosa fundacional da vida fática cristã e não uma fenomenologia da religião. O importante não é o momento da experiência de Deus, mas a compreensão própria do ser que possui essa experiência religiosa. Acentua a historicidade da experiência fática do cristianismo e destaca a individualidade histórica de cada uma das religiões. Enfim, se trata de reconstruir, em âmbito fenomenológico, a vivência originária em que se constitui a religião. (GONÇALVES, 2012).

Após essa breve descrição do contexto e dos objetivos de Heidegger, ao elaborar sua preleção intitulada Fenomenologia da vida religiosa, cumpre esclarecer que, neste artigo, busca-se um encontro com Heidegger no que diz respeito, tão somente, à primeira parte (Introdução metodológica: filosofia, experiência fática da vida e fenomenologia da religião) da primeira preleção friburguense do semestre de inverno de 1920-1921, intitulada Introdução à fenomenologia da religião.

O presente artigo está dividido em quatro partes: inicialmente, apresenta-se uma distinção de princípios entre conceitos filosóficos e conceitos científicos. A ambiguidade é a marca própria e peculiar dos conceitos filosóficos, que não devem pretender ter a imobilidade e a fixidez dos conceitos científicos. Afirma-se a importância das perguntas prévias para o filosofar e o combate àquelas posturas que procuram fazer da filosofia uma ciência. Defende-se que, a despeito da diferença de princípios entre ciência e filosofia, ambas têm o mesmo ponto de partida: a vida fática. A ciência não é rigorosa, a ponto de realizar o giro radical necessário que a filosofia exige: a filosofia nasce da experiência fática da vida para, logo, voltar-se a ela. Na sequência, mostra-se o resultado da formalização que é ponto de partida, origem e constante impulso da fenomenologia: a experiência fática da vida. Nesse momento, destacam-se as compreensões sobre os mundos vitais (mundo circundante, mundo compartilhado e mundo próprio) e sobre o caráter de significatividade de tudo que é experienciado na experiência fática da vida.

A abordagem apresentada no curso não segue os moldes utilizados nas ciências, justamente para indicar que o filósofo não pode proceder da mesma forma que o cientista. Posteriormente, evidencia-se o interesse de Heidegger em esclarecer o que significa dizer que um fenômeno é histórico. Procura-se compreender a crítica à maneira habitual de pensar o histórico como “algo que transcorre no tempo” ou como “uma propriedade geral aplicável a todo objeto temporal”; a diferenciação entre objeto (Objekt) e objetualidade (Gegenstand) e a crítica àqueles que tomam o homem por objeto; as determinações do pensamento histórico como apoio ou como fardo diante do caráter intranquilizador do histórico; as três vias de afirmação da vida contra o histórico (aversão, entrega radical e compromisso entre as duas primeiras), que surgiram daquela forma dominante de ver o histórico como “propriedade de um objeto”.

Chega-se à conclusão de que as vias de afirmação da vida contra o histórico caem no modo teorético, modo incapaz de fazer justiça às referências vitais que o histórico, necessariamente, precisa conter. A fenomenologia heideggeriana quer expressar o histórico em seu caráter latente e imediato. Eliminar o caráter intranquilizador da história significa eliminar aquilo que é próprio do histórico: a historicidade viva. A fenomenologia aponta à força vital e multidirecional do histórico e da existência humana. Para finalizar, enfatiza-se a descrença em relação aos meios filosóficos empreendidos, pela sua incapacidade de apreender o sentido do Ser-aí fático. Nesse sentido, Heidegger postula uma nova cultura capaz de recriar o Ser-aí e que realce sua essência e sentido como vida fática.

Formação dos conceitos filosóficos: diferença entre filosofia e ciência

O título da lição relaciona três conceitos: introdução, fenomenologia e religião. Heidegger compreende que o primeiro a fazer é esclarecer o significado de cada um desses conceitos. Mas, antes de delimitar o significado dos três conceitos, Heidegger dedica um parágrafo à análise da peculiaridade dos conceitos filosóficos, que não podem ser entendidos da mesma forma que se entendem conceitos científicos. Os conceitos filosóficos têm a peculiaridade de ser “oscilantes, vagos, multiformes, flutuantes como costuma ser demostrado na mudança dos pontos de vista filosóficos” (HEIDEGGER, 2010, p. 9), diferentemente dos científicos, que são fixados e determinados por seu complexo temático. Os conceitos filosóficos possuem a marca necessária do incerto, o que significa que essa não é vista como um aspecto negativo, mas, ao contrário, ela é necessária num conceito que se pretende filosófico. Segundo Sánchez (2001, p. 4), o próprio da filosofia em Heidegger “é certa ambigüidade que neste sentido não é algo que precisa ser superado, mas que quer ser o reflexo mesmo do meio no qual se desenvolve”. O incerto responde “ao sentido mesmo dos conceitos filosóficos, os quais permanecem sempre incertos”. (HEIDEGGER, 2010, p. 9). O incerto não pode ser tomado como uma marca de imperfeição dos conceitos filosóficos.

A peculiaridade dos conceitos filosóficos resulta do fato de que “a filosofia não possui nenhum contexto objetivamente configurado à disposição, no qual os conceitos pudessem ser ordenados para dele obter sua determinação”. (HEIDEGGER, 2010, p. 9). Nessas considerações iniciais, Heidegger está realizando um diálogo com as ciências, procurando mostrar que a filosofia não pode ser tomada ou confundida com essas, uma vez que é próprio da ciência possuir um complexo temático bem objetivado no interior do qual são dispostos seus conceitos. Além disso, sustenta que os conceitos científicos requerem imobilidade, uma capacidade de permanecerem inalterados. Entre filosofia e ciência, há uma diferença na base dos conceitos e, por isso, na forma de proceder. Heidegger quer mostrar, ao longo das lições, que há uma diferença de princípio entre filosofia e ciência, que justifica o peculiar dos conceitos filosóficos. (HEIDEGGER, 2008).

No entanto, além de mostrar que há uma diferença fundamental entre conceitos filosóficos e científicos, Heidegger dá um passo atrás, a fim de encontrar pontos comuns entre filosofia e ciência. A primeira hipótese lançada é a de compreender ambos como “comportamento racional cognoscitivo”. Mas essa hipótese logo é abandonada por conta dos riscos de tomar a filosofia por ciência e por levar a crer que os complexos racionais são os mesmos tanto na filosofia quanto na ciência. A segunda hipótese é determinante: “Em todo caso, existe uma concepção ‘nivelada’ entre os ‘conceitos’ e ‘proposições’ da filosofia e da ciência. Eles se encontram na ‘vida fática’, na esfera da representação e comunicação linguística como ‘significados’ que são compreendidos”. (HEIDEGGER, 2010, p. 10).

Essa compreensão tanto da filosofia quanto da ciência se desenvolve a partir da vida fática. Como consequência dessa forma de compreensão, surge a necessidade de investigar o domínio da vida fática e o modo como filosofia e ciência se desenvolvem a partir dele. Somente assim, se poderá compreender a diferença entre conceitos filosóficos e conceitos científicos. Destaca-se que os conceitos filosóficos se dão a partir da vida fática.

Heidegger interroga seus alunos: “Todas essas consideração não são mera insistência em questões preliminares?” (HEIDEGGER, 2010, p. 10). Com essa pergunta, chama a atenção para sua forma de introduzir, que faz um retrocesso em busca da base que é a vida fática e que quer confirmar a importância de colocar e se fazer questões prévias. Esse processo introdutório não pode ser compreendido, como se faz na ciência, como desnecessário ou como uma perda de tempo. Ao contrário, revela algo que é próprio da filosofia. O cientista pode fazer ciência sem se preocupar com tais questões, mas o filósofo não pode se dedicar ao exercício filosófico sem as levar seriamente em consideração. (HEIDEGGER, 1998). Em oposição àqueles que acreditam que a filosofia deve solucionar problemas concretos e construir visões de mundo, Heidegger afirma “que essa necessidade da filosofia de girar em torno de questões preliminares cresça e se mantenha, a ponto de tornar-se uma virtude”. (2010, p. 10).

Para Sánchez (2001), esse projeto apresentado por Heidegger possui um caráter de simplicidade, mas assume uma tarefa grandiosa, ampla e arriscada. A saber, Heidegger estaria revelando, em seu modo filosófico, um alerta contínuo que suspende, constantemente, tudo aquilo com que se relaciona e que procura afastar toda e qualquer determinação inicial.

Após essa apresentação inicial, Heidegger retoma o título da lição Introdução à fenomenologia da religião e destaca os conceitos de introdução, fenomenologia e religião, visando a chegar, com seus alunos, a um acordo provisório sobre eles. Vale lembrar que para Heidegger a fenomenologia tem o mesmo sentido que filosofia. A proposta é esclarecer os significados das palavras introdução, fenomenologia e religião e mostrar que fazer a introdução a uma ciência implica compreender três coisas: a) delimitação do setor temático; b) doutrina sobre o tratamento metodológico do setor temático; c) consideração histórica das tentativas até então realizadas de propor e resolver tais tarefas científicas. (HEIDEGGER, 2010, p. 11). Todas as ciências obedecem formalmente a esse esquema e, em seu exercício, se reportam a um sistema puramente racional. Mas um sistema puramente racional é insuficiente para a fenomenologia que Heidegger está buscando consolidar. Enfatiza que a filosofia não procede da mesma forma que a ciência e conclui que um filósofo não estaria sendo justo se fizesse uma introdução nos moldes científicos. Fazê-lo significa para Heidegger “encobrir os contextos filosóficos”. (2010, p. 11). Numa palavra, Heidegger chega a afirmar que se conhece o filósofo como tal pela sua introdução à filosofia.

Especificamente aqui, Heidegger está dirigindo uma crítica àquela compreensão da filosofia como uma ciência geral da qual se originam ciências particulares. Afirma que as ciências surgem historicamente da filosofia, mas que ela não pode ser compreendida como ciência. Numa consideração histórica ou no interior de uma introdução à ciência, é equivocado atribuir à filosofia qualquer tentativa de solução de tarefas científicas. (HEIDEGGER, 2008). Não se pode aceitar que as ciências jazem pré-figuradas na filosofia, ou que, em outras palavras, uma ciência se torne independente da filosofia ao determinar, com um método próprio, um setor temático concreto antes elaborado pela filosofia. Ora, Heidegger explica o sentido do surgir quando afirma que a ciência surge da filosofia: “Somente uma determinada modificação formadora de um momento interno da filosofia, o qual, porém, ainda permanece na filosofia em sua forma originária, portanto, ainda não modificado, transforma as ciências durante o surgimento da filosofia e, através do modo próprio determinado de surgir, em ciências”. (2010, p. 12).

A vida fáctica não é só um “momento incluído na filosofia”, mas também faz parte da ciência. Para Sánchez o fazer científico opta por “deixar de atender ao marco que lhe dá impulsos constantemente” (2001, p. 5-6), ou seja, em deixar de atender à vida fática. A ciência segue a tendência de “tomar o âmbito do fáctico como imediatamente evidente, como algo sobre o qual não é preciso voltar-se, já que toda demora é vista como uma perda de tempo em prejuízo de algum outro conhecimento”. (SÁNCHEZ, 2001, p. 6). Ao cientista interessa mais os problemas científicos concretos e menos as perguntas prévias, introdutórias.

Em uma introdução à filosofia, se faz patente uma incerteza sabiamente fundada, por afastar toda e qualquer determinação inicial, por não tomar o fático como imediatamente evidente, por conta da necessidade de abordar e levar as perguntas introdutórias ao extremo. Na ciência, a introdução é técnica, mas isso não ocorre com a filosofia. Não se pode, simplesmente, tomar os métodos científicos e aplicá-los à filosofia. Uma introdução à filosofia tem importância muito diferente da que é feita na ciência: “Talvez ‘introdução à filosofia tenha um sentido tão importante que deva manter-se atenta à introdução em cada passo seguinte. Ela não é apenas técnica”. (HEIDEGGER, 2010, p. 12). A introdução à filosofia não pode se dar como um momento inicial que é abandonado posteriormente em vista de soluções a problemas concretos ou concepções de mundo.

Quando se toma a filosofia como ciência, facilmente certas questões são rotuladas como improdutivas, acadêmicas, etc. Para Heidegger isso ocorre com a questão fundamental: “qual é a essência da filosofia?” Enquanto o cientista não se pergunta sobre a essência da ciência que exerce, “um filósofo ocupa-se seriamente com a essência da filosofia, antes de colocar-se ou lançar positivamente o trabalho”. (HEIDEGGER, 2010, p. 12). A essência da filosofia é algo que está presente e se revela em todo processo do filosofar.

A partir da distinção entre filosofia e ciência, é possível apresentar a possibilidade de fazer uma história da filosofia realmente filosófica. Usar o método científico para fazer uma história da filosofia teria como resultado o confronto com uma série de dados ou um imenso registro de acontecimentos filosóficos. Uma história da filosofia precisa ser mais que uma coleta e registro de dados, que uma consideração neutra dos sistemas filosóficos, que um belo discurso. A intenção de Heidegger é afastar-se de um método cronológico de datação e classificação, para “manifestar que a filosofia não tem um começo, como pode tê-lo a ciência, a partir de alguns elementos simples que vão sendo combinados e desenvolvidos”. (SÁNCHEZ, 2001, p. 5). A saber, os grandes sistemas filosóficos precisam ser considerados sob um olhar reflexivo, crítico e questionador, que vai revelar se os sistemas são realmente filosóficos ou se são confundidos com os ideais e com os meios científicos.

A nova questão, colocada e respondida por Heidegger, pergunta pelo como ocorre uma compreensão própria da filosofia. Essa compreensão somente se alcança mediante o próprio filosofar:

O que a filosofia mesma é não se deixa jamais colocar cientificamente em evidência, porém só na filosofia mesma se torna clara. Não se pode definir a filosofia segundo o modo usual. Nem é possível caracterizá-la através da ordenação num contexto, da maneira como se costuma dizer: a química é uma ciência, e a pintura, uma arte. Tentou-se ordenar a filosofia num sistema de conceitos, de modo determinado. Porém aqui também já se salta para dentro da concepção científica da filosofia. Os princípios do pensar e conhecer permanecem em si mesmos constantemente não esclarecidos. (HEIDEGGER, 2010, p. 13).

Caracterizar a filosofia requer, portanto, que ela tenha um conhecimento de si mesma, e que esse não pode ser alcançado através da inserção da filosofia num complexo temático ou metodológico, como ocorre com a ciência. Ou seja, afirmar que a filosofia se ocupa de determinado objeto (setor temático), de determinada maneira de fazer (método teorético) implicaria afirmar que a filosofia é uma ciência, principalmente em vista da desconsideração em relação aos princípios do pensar e do conhecer. Porém, essa desconsideração não se pode cometer na filosofia. Distanciando-se do ideal de ciência, a filosofia deve se (re)-conhecer a partir da experiência fática da vida:

O problema da autocompreensão da filosofia sempre foi assumido levianamente. Contudo, se concebermos este problema de maneira radical, então é aceitável que a filosofia surge da experiência fática da vida. Entretanto é mesmo aí que ela ressurge na e para a experiência fática da vida mesma. O conceito de experiência fática da vida é fundamental. Com a definição da filosofia enquanto comportamento racional de conhecer, nada é dito em absoluto, mas submete-se ao ideal da ciência. (HEIDEGGER, 2010, p. 13).

Nessa perspectiva, entende-se que todo filosofar se dá a partir da e na direção da vida fática: “Qualquer dos momentos da filosofia se encontra imerso na vida que a possibilita e da qual tem que prestar conta”. (SÁNCHEZ, 2001, p. 5). Assim, se tem na tese: a filosofia brota da experiência fática da vida para voltar logo a ela, um dos principais fundamentos da fenomenologia heideggeriana.

Fenomenologia da experiência fática da vida

A filosofia, na perspectiva de Heidegger, se desenvolve a partir da experiência fática da vida. O que significa essa expressão? Refere-se a um fenômeno que é o ponto de partida da filosofia e da ciência, e que a ciência, para ser ciência, deixa de atender a ele. Como compreender esse ponto de partida? Para Heidegger, experiência fática da vida se refere ao fenômeno da vida em seu aqui e agora, um fenômeno fundamental esquecido pela tradição filosófica ocidental. (EVANGELISTA, 2008). A experiência fática diz respeito à experiência profunda e originária da vida e às suas estruturas (comportamento, movimento e categorias fundamentais).

A experiência indica dois sentidos: uma confirmação experiencial e um experienciado através dessa confirmação. Heidegger emprega a categoria da experiência em seu duplo significado, pois “exprime justamente o essencial da experiência fática da vida, uma vez que o experimentar mesmo e o experimentado não devem ser colocados como coisas uma ao lado da outra”. (2010, p. 14). Experienciar não tem, aqui, o sentido de uma experiência cognitiva, ou seja, de “tomar conhecimento, mas o confrontar-se com”. (HEIDEGGER, 2010, p. 14). No experienciar, o eu experienciante possui um sentido passivo, autoafirmação das configurações do experienciado, e um sentido ativo, afrontamento. Nesse viés, o conceito do fático somente será compreendido a partir do conceito do histórico. Heidegger introduz a discussão acerca do fático alertando que ele “não alcança seu significado a partir de determinados pressupostos da teoria do conhecimento, uma vez que deve ser compreendido apenas através e pelo conceito do ‘histórico’”. (2010, p. 14).

Na conferência, Heidegger, constantemente, apresenta aos seus alunos elementos que esclarecem sua tese: que há uma diferença de princípios entre filosofia e ciência. Um desses elementos é a crítica que faz àqueles que concebem o processo científico, também o filosófico, como a-histórico. Ciência e filosofia, vistas sob o sentido executivo, têm sua origem na vida fática, isto é, discorrem na vida e não podem escapar de sua influência. (EVANGELISTA, 2008). A filosofia não pode ser vista como uma estrutura formada com independência do fático. O conteúdo da ciência e da filosofia é inseparável do momento executivo no qual se dá. Nesse sentido, há uma crítica àqueles grandes filósofos que tentaram elevar a filosofia à posição de ciência, por terem se deixado levar pela ideia de uma filosofia rigorosamente científica. Para Heidegger, rigor nem mesmo é um conceito originariamente científico; ao contrário, “o conceito e o sentido de rigor são originariamente filosóficos, não científicos. Somente a filosofia é originariamente rigorosa. Ela possui um rigor diante do qual todo e qualquer rigor científico é meramente uma derivação”. (2010, p. 14). Mediante o filosofar, há aqui um esforço por tornar preciso o conceito próprio de filosofia. Em grande parte, esse esforço significa libertar a filosofia daquelas concepções que a secularizam e que a converteram em ciência ou em doutrina científica sobre as concepções de mundo. O caminho para se chegar a uma compreensão própria da filosofia não pode se dar pelas vias propostas por essas concepções:

Abertamente, em princípio, a tese elimina a vida da dedução científica: também não através da tarefa da “objetualidade” da filosofia. É possível que, em hipótese alguma, a filosofia não se ocupe com um objeto. Talvez não devêssemos perguntar pela sua objetualidade. Mediante intuições místicas tendemos a amputar o problema. (HEIDEGGER, 2010, p. 15).

O caminho até a filosofia começa com a experiência fática da vida. O começar não pode ser sucedido de um desligamento da vida fática. A filosofia não pode tornar-se independente da vida fática. (FERRANDIN, 2010). Logo, faz-se necessário um giro radical para se chegar à filosofia, um giro em direção à experiência fática da qual se origina, como última instância a que toda filosofia deve ser remetida. Essa dinâmica leva à afirmação de que a filosofia somente se pode obter mediante uma verdadeira transformação radical. A origem da filosofia, na vida fática, não pode ser entendida como mero ponto de partida, pois a vida (como origem) nunca é uma fase ou ponto determinado do qual a filosofia surge e de imediato tem a possibilidade de se tornar independente.

Para que se possa entender esse ponto de vista, Heidegger procura caracterizar o fenômeno da experiência fática da vida. Aqui, fenômeno significa algo mais que uma experiência cognitiva. A experiência da vida constitui a plena colocação ativa e passiva do homem no mundo: vemos a experiência fática da vida apenas segundo a direção do comportamento que experimenta. Assim, definimos o que é experimentado – o vivido – visto como mundo, e não como objeto” (HEIDEGGER, 2010, p. 16). Nesse sentido, o que se experiencia, o conteúdo experienciado, é o mundo. O mundo é concebido formalmente como mundo circundante, do qual fazem parte as coisas materiais, os objetos ideais, a arte e a ciência, mas também o mundo compartilhado com os outros homens. A saber, o mundo não é tomado como um objeto, mas como algo dentro do qual se pode viver.

Por fim, faz parte da experiência fática da vida, ainda, o eu-mesmo, o mundo próprio. Mundo circundante, mundo compartilhado e mundo próprio são expressões formais para os mundos vitais acessíveis à experiência fática da vida, que não podem ser violentados por hierarquizações, subdivisões, delimitações rígidas e/ou conformações soltas. Heidegger quer chamar a atenção para dois aspectos nessa caracterização: 1) a ciência e a arte são experienciadas como mundo circundante; e 2) o importante é que os mundos vitais sejam acessíveis à experiência, cabendo unicamente a pergunta: Como desse experienciar? A saber, para Heidegger, “pode-se apenas caracterizar o jeito e a maneira, ou seja, o como do experimentar de cada mundo. Isso significa que é possível perguntar pelo sentido referencial da experiência fática da vida”. (2010, p. 16). O modo, o como me coloco às coisas não está incluído na experiência. A peculiaridade da experiência fática da vida está envolta toda no conteúdo experienciado, o como pode ser, no máximo, compreendido a partir desse conteúdo, pois é nele que transcorrem as mudanças da vida.

No curso da jornada de um dia faticamente vivido, ocupando-me com coisas completamente diferentes é, contudo, na atuação fática da vida que surge, para mim, de modo não consciente, o como diferente de seu reagir em cada maneira diferente. Entretanto, nisso se encontra, sobretudo, o conteúdo que eu experiencio, a saber: a experiência fática da vida mostra uma indiferença em relação ao modo de experimentar. (HEIDEGGER, 2010, p. 17).

A indiferença da experiência fática da vida em relação ao como do experienciar revela sua autossuficiência, que se estende a todo viver fático sem estabelecer diferenças ou ênfases. A peculiaridade dessa indiferença, de acordo com Heidegger, revela “um determinado sentido dominante do mundo circundante, do mundo compartilhado e do mundo próprio, a saber: tudo o que é experimentado na experiência fática da vida carrega o caráter de significância”. (2006, p. 43). Todo conteúdo carrega a caracterização de significância em si, mas é na forma de significatividade que experiencio todas as minhas situações vitais.

Conteúdo e modo do experienciar, autossuficiência e significatividade ficam mais claros na medida em que me pergunto sobre como me experiencio a mim mesmo na experiência fática da vida. Com a colocação dessa pergunta, certos conceitos e problemas, normalmente tidos como importantes na filosofia, não são relevantes para Heidegger, pois não respondem ao que realmente é experienciado. Eu não experiencio meu mundo próprio como alma, corpo e alma, complexo de atos, complexo de vivências, conglomerado de atos e de processos, como objeto entre objetos. Antes, segundo Escudero, “experiencio-me concretamente naquilo que faço e sofro, naquilo que me confronta com meus distintos estados de ânimo e com os demais, no mundo imediato que me circunda”. (1999, p. 391-392). Nenhuma teoria, reflexão teórica ou percepção interna correspondem ao experienciar-se, pois não tenho como me separar do mundo: “Eu mesmo, em momento algum, experimento meu eu em separado, mas já sou e estou sempre preso ao mundo circundante” (HEIDEGGER, 2010, p. 18). O experienciar-se a si mesmo possui um caráter mundano, por estar voltado à significatividade, de tal modo que mesmo o mundo próprio experienciado não fica ressaltado de fato ante o mundo circundante. Nesse sentido, o existente humano é o Ser-aí que jamais pode sair das fronteiras do mundo em que se encontra submerso, que jamais pode experienciar-se separado do mundo.

O histórico como fenômeno nuclear – experiência fática da vida

Heidegger apresenta o histórico como fenômeno nuclear que proporciona o nexo de sentido das três palavras do título da primeira parte de seu curso: introdução, fenomenologia e religião. “A razão que justifica a escolha do histórico é que está presente de alguma maneira nas três partes do título do curso”. (SÁNCHEZ, 2001, p. 7). Em que medida introdução, fenomenologia e religião são fenômenos históricos, e o que significa afirmar que um fenômeno é histórico? O que quer dizer aplicar a determinação histórico a um fenômeno, ou seja, que o fenômeno da experiência fática da vida é histórico? Nos parágrafos dedicados a essa questão, Heidegger procura mostrar que a problemática filosófica está motivada no histórico, e que a caracterização da filosofia como fenômeno histórico incide na experiência fática da vida. Quando Heidegger faz a pergunta: “Não possui o histórico uma validade semelhante para a filosofia que procura validade eterna?” (2010, p. 32), está colocando, em xeque, o conceito habitual de histórico, utilizado no estudo cognoscitivo para caracterizar complexos objetuais, sempre determinado como uma propriedade de transcorrer no tempo.

O ponto de partida de Heidegger é o uso habitual do histórico que designa algo que transcorre no tempo, que chega a ser, que surge. É assim empregado, por exemplo, quando se aceita que as proposições científicas são a-temporalmente válidas, mas que seu processo de introdução ocorre no tempo. Pelo mesmo motivo se diz que a filosofia e a religião, da mesma forma, ocorrem no tempo. O histórico não pode ser determinado por um pré-conceito de uma objetualidade, como acontece quando alguém faz um estudo cognitivo de complexos objetuais.

Quando se afirma que algo é histórico enquanto discorre no tempo, parece, à primeira vista, que é uma descrição geral, ou seja, que o histórico é um conceito que se pode aplicar a todo objeto temporal. Todos os objetos teriam, sob essa perspectiva, este algo em comum. Mas para Heidegger, segundo Sánchez, o histórico não pode ser tomado como algo deduzido dos objetos: “Não se pode considerar que é o produto que permanece sob um processo pelo qual se foram eliminando as diferenças entre os objetos”. (2001, p. 8). Trata-se de combater incisivamente a concepção de histórico como sendo uma propriedade de um objeto.

Contrapondo-se ao sentido comum, Heidegger busca um conceito originário do histórico. Com isso, quer fazer justiça à historicidade viva, já que o conceito de histórico que provém do uso habitual desconsidera propositalmente essa dimensão da temporalidade. Quando defende que um fenômeno é histórico, não está afirmando que o fenômeno transcorre no tempo, mas que é vivacidade. (FIGAL, 2005). Há uma diferença radical entre histórico como propriedade de um objeto e histórico como vivacidade imediata. Em contraposição com o histórico teórico, Heidegger propõe o histórico vivaz:

Nós pensamos o histórico como encontramos na vida; não na ciência histórica. “Histórico” não diz apenas ocorrer no tempo, isto é, não é apenas uma caraterização que provém de uma relação objetiva. Nessa concepção do histórico, conserva-se, então, o caráter de aplicação dessa concepção de histórico enquanto propriedade de um objeto à mudança temporal, na experiência fática da vida e no aperfeiçoamento linear e ordenado da filosofia. O histórico é vitalidade imediata num sentido muito mais amplo do que apenas fato histórico subsistente no cérebro de um lógico, que resulta apenas do esvaziamento teórico-científico do fenômeno da vida. (2010, p. 33).

Heidegger reconhece o pensamento histórico como uma marca, determinação da cultura da sua época, que ocorre por meio de duas maneiras habituais de pensar o histórico: 1) apoio ou fundamento para a vida dentro da pluralidade do histórico; e 2) peso que precisa ser carregado. Em ambos os casos, “o histórico é um poder frente ao qual a vida luta por afirmar-se”. (HEIDEGGER, 2010, p. 33). Como apoio à vida atual, num sentido positivo, essa determinação preenche a vida mediante o estudo e a compreensão teóricos da história. Compreende-se o atual a partir de configurações e tipificações da história, oferecendo uma lógica e uma metodologia da história que não tem sensibilidade alguma para a historicidade viva. Por outro lado, num sentido negativo, pode-se ver o histórico como um “peso” que inibe e paralisa a capacidade criativa do homem. Nesse sentido, o homem estaria preso ao histórico, e isso limitaria sua visão da atualidade e sua criatividade.

Tal pensamento histórico, duplamente determinador da cultura, é consequência de um tomar e pensar o histórico como propriedade de um objeto. Como propriedade, o histórico pode ter as mais variadas configurações. Mas Heidegger está buscando um sentido originário: o histórico na vida fática, no aqui e agora. Mostra que as maneiras habituais de pensar querem livrar o histórico do seu caráter intranquilizador. O sentido verdadeiro do histórico está justamente relacionado com esse caráter intranquilizador. As maneiras habituais de pensar estão querendo eliminar do histórico o que lhe é próprio. O histórico como uma propriedade não responde às peculiaridades do histórico como historicidade viva.

Na sequência, Heidegger procura esclarecer o sentido que tem o conceito de histórico. A saber, que a compreensão própria da filosofia é facilitada pelo fenômeno do histórico.

O histórico é um fenômeno que deverá facilitar-nos o acesso à compreensão própria da filosofia. A questão fenomenológica do método não é uma questão do sistema metodológico, mas uma questão de acesso que conduz para a senda da experiência fática da vida. Para a compreensão de nossa consideração é importante considerar o complexo metodológico. É um complexo metodológico no sentido de um acesso aos problemas mesmos. O acesso aos problemas desempenha uma função de primeira ordem na filosofia. O que importa é extrair da experiência fática da vida os motivos para a compreensão da própria filosofia. (HEIDEGGER, 2010, p. 34).

A filosofia é, segundo seu sentido, independente de como ela se realiza historicamente. A ciência acredita que a validade de suas proposições não depende do histórico, o que significa que, para ela, o histórico tem uma função e uma importância secundárias. Em contrapartida, Heidegger destaca “a importância do histórico para o sentido do filosofar em geral, antes de todas as questões da validade”. (2010, p. 35). O histórico precisa ser obtido da vida fática. O conceito habitual do histórico está carregado de uma variedade de significados, e nenhum deles expressa seu sentido autêntico por se distanciar da vida fática. Heidegger acredita que esse sentido autêntico só será alcançado por meio de esclarecimento fenomenológico. Esse esclarecimento segue com a pergunta: O que estamos designando quando atribuímos a uma objetualidade a propriedade de “ser historicamente”?

O emprego da palavra objetualidade precisa ser esclarecido. Heidegger faz uma distinção entre objeto (Objekt) e objetualidade (Gegenstand), pois entende que esses termos, que possuem sentidos distintos, estão sendo confundidos e nivelados pelo uso habitual do histórico. Para Heidegger, toda objetualidade é um objeto, mas não ocorre o inverso. Formalmente, um fenômeno, qualquer fenômeno, até mesmo a filosofia é um objeto, mas jamais uma objetualidade. Frise-se o formalmente. Um fenômeno é um algo em geral, e um algo em geral pode ser tomado como um objeto. Mas isso não diz nada essencial sobre o fenômeno, pois, numa formalização, é deslocado do seu campo original para o campo conceitual. O que faz a fenomenologia tão sumamente difícil é que, conforme Heidegger, “objetualidades, objetos e fenômenos não devem ser colocados uns ao lado dos outros no mesmo nível, como num tabuleiro de xadrez”. (2010, p. 36). Não se podem sistematizar fenômenos da mesma forma como se sistematizam objetos e, além do mais uma doutrina categorial ou um sistema filosófico são absurdos do ponto de vista da fenomenologia.

Por conseguinte, pode-se compreender que aquilo que se designa como “propriedade de um objeto”, na verdade, deveria ser designado como “propriedade de uma objetualidade”. Conforme Heidegger, por essa diferenciação, pode-se chegar ao conceito mais geral possível do histórico: “A um objeto corresponde-lhe ser determinado temporalmente; com isso, ele é histórico”. (2010, p. 36). Significa que uma caracterização de uma objetualidade é histórica. No entanto, esse conceito não foge ainda do uso habitual, pois continua sendo usado como uma propriedade de algo. Cai-se ainda no conceito objetual de histórico, ou seja, no conceito de sentido comum. “Porém a filosofia não é uma luta contra o bom-senso humano”. (HEIDEGGER, 2010, p. 36). Assim, apenas aparentemente se teria chegado, por esse caminho, a um conceito geral de histórico.

Contrapondo-se à filosofia da história da época, Heidegger propõe que partamos, pois, da vida fática. Na experiência fática da vida, o histórico desempenha uma função expressa por duas correntes principais: uma que atribui ao histórico um sentido positivo (apoio) e uma que lhe atribui um sentido negativo (peso). Numa perspectiva, completa a vida; noutro sentido, impede a completude da vida. Nas duas correntes totalizantes, se busca superar o caráter intranquilizador do histórico: a vida luta por afirmar-se contra ele e assegurar-se. A consciência histórica, num sentido oneroso, impede toda nova tentativa criadora: “Atualmente se descobre com maior força o histórico como um peso que inibe nossa ingenuidade de criar. A consciência histórica acompanha continuamente como uma sombra todo intento de uma nova criação”. (HEIDEGGER, 2010, p. 37). Tal consciência histórica precisa ser extirpada para se chegar a uma nova cultura espiritual, que salvaguarde a criatividade humana e o entusiasmo pelo absoluto.

A vida contra o histórico e as tendências à afirmação do Ser-aí

Depois de afirmar que a vida luta por afirmar-se contra e se assegurar diante do histórico, Heidegger lança uma suspeita: é realmente contra o histórico que a vida luta ou luta contra outra coisa? A suspeita fica em aberto e sugere que a luta é contra determinada concepção de histórico. Essa concepção dá origem a certos mecanismos de defesa, que são vias de afirmação da vida contra o histórico. Heidegger estabelece uma classificação das vias de defesa, quais sejam: a via da aversão ou via platônica, a via da entrega radical e a via do compromisso entre a via da aversão e a via da entrega.

As três vias se referem a determinada forma de consideração do histórico como ser objetivo, pelo caminho da consideração objetiva (conhecimento). Procura-se esclarecer cada uma das três vias. A via platônica se afirma contra o histórico renunciando a ele. A realidade histórica não é nem a única nem a mais fundamental. Por essa via, através do conhecimento teórico e da lógica, procura-se descobrir um mundo supratemporal, remetendo ao mundo das ideias: mundo de substâncias, valores e princípios eternos e racionais. Os processos cognitivos transcorrem no tempo, mas o conteúdo cognitivo, a verdade e as proposições teóricas estão num mundo ideal, supratemporal, de normas e valores. Segundo Sánchez, para Heidegger, nessa posição o histórico se converte em algo secundário: “Ao tentar chegar a um conceito de verdade por meio das ideias, converte em secundário o mundo sensível no qual a história tem lugar”. (2001, p. 9).

A via da entrega radical é aparentemente o extremo oposto da anterior. Tem como sua maior expressão, conforme Heidegger, a postura de Spengler. Nesse caminho, o histórico é estendido a todo tempo: “Trata-se de entregar-se radicalmente ao histórico e não querer renunciar a nenhuma de suas manifestações”. (SÁNCHEZ, 2001, p. 9). Spengler (1941) quer afirmar a ciência da história enquanto tal, o que para ele significa uma elevação da história. Sob a forte influência das ciências naturais, defende que a ciência da história deve fazer-se independente do condicionamento histórico do presente. O presente deve ser colocado em meio a um processo objetual do acontecer histórico e não ser absolutizado. Sua postura está basicamente fundamentada na teoria do conhecimento, pois tal inclusão do presente somente pode ser feita por meio de uma disposição gnosiológica. Dessa forma, a história torna-se para Spengler (1941), a expressão da alma da cultura. Para Heidegger “à história não se contrapõe nenhuma realidade supratemporal, mas o asseguramento do presente contra a história se alcança fazendo com que o presente mesmo seja visto historicamente”. (2010, p. 42). No entanto, na medida em que Spengler estende o histórico ao ponto de historicizar o presente, acaba por absolutizá-lo. Essa é a conclusão de Heidegger, que acredita que as duas primeiras vias, num sentido mais radical, acabam por assumir o esquema platônico. Além disso, as duas vias procuram se afirmar contra o histórico sem compreendê-lo suficientemente.

Por fim, a via do compromisso entre a renúncia e a entrega também se fundamenta na teoria do conhecimento. Dilthey, Simmel, Rickert e Windelband são aqui incluídos por Heidegger. Pretende-se combater a posição extrema de Spengler (1941), pois se entende que a segunda via, ao configurar a história como objetualidade dada no conhecimento, tem como norma o valor da verdade. “A história é uma realização contínua de valores, que, não obstante, nunca se realizam plenamente”. (HEIDEGGER, 2010, p. 42). Numa posição extrema, como a de Spengler (1941), os valores são uma realidade absoluta, que se realiza e se deixa transparecer na história. Por aceitar esse absoluto, não se pode renunciar radicalmente à primeira via. Mas, ao mesmo tempo, não se pode deslocar a realidade histórica a um segundo plano, como se faz na via platônica, uma vez que é nela que os valores se dão, e é nela que transparece o absoluto. Em vez de, na luta contra o histórico, renunciar à realidade histórica, o importante é configurar o futuro “contemplando tudo desde o acervo universal do passado, dentro de um processo que tem a realizar o humano em geral por sua própria constituição”. (HEIDEGGER, 2010, p. 42).

Heidegger destaca que, nas três vias, há uma tendência à tipificação, uma tendência da qual quer se afastar. (MACDOWELL, 1993). A primeira via precisa das ideias para referir o histórico ao mundo absolutamente válido, isto é, trabalha com tipos ideais. Na segunda via, como a história é a realidade última, o que importa é seguir as distintas configurações da conformação. Em sintonia com as ciências naturais, a realidade fundamental é um conceito morfológico. Nas ciências naturais, morfologia significa o estudo das formas de um corpo ou de partes dele. Spengler (1941) se vale de uma tipificação morfológica para chegar ao conhecimento histórico. Na terceira via, faz-se necessária uma tipificação histórica, pois importa determinar nitidamente o presente em seu tipo wn face do passado, para determinar o futuro com a ajuda de uma orientação histórico-universal.

Heidegger procura mostrar a referência da tendência asseguradora. Parte da via platônica, acentuando que ela é compreendida somente por meio da relação do temporal com o supratemporal, e não por uma justaposição entre ideia e realidade. Afirma que ainda na atualidade tal tipo de relação se faz presente em certos conceitos, como é o caso dos seguintes: o ser temporal é uma imitação do supratemporal; o supratemporal é protótipo, o temporal é imagem ulteriormente reproduzida; o temporal participa do supratemporal; o supratemporal está presente no temporal. Essas imagens mencionam uma conexão real objetual de ser entre ambos os mundos: o ser temporal e o supratemporal são vistos aqui objetualmente. Essa forma de afirmação se dá pela construção de uma teoria sobre o sentido de realidade do temporal; reconhece o sentido de realidade do temporal como uma configuração do supratemporal.

A mesma forma de afirmação da via platônica está presente na via da entrega radical. Conforme Heidegger, “para Spengler, o mundo histórico é a realidade fundamental, a única realidade: só conhecemos culturas, isto é, o processo formador do destino do mundo”. (2010, p. 44). Como o histórico é a realidade fundamental, absoluta, também o homem deve situar-se na realidade histórica, restando-lhe participar conscientemente de sua cultura e do destino do mundo. A terceira via, que se dá pela filosofia da história e sua tarefa (dialética da história) é para Heidegger apenas um compromisso entre as duas primeiras. Explica que, através do exame das oposições entre o temporal e o supratemporal em sua tensão e mútua superação, essa via busca obter a lei dialética do histórico: “Por um lado, estou na história; por outro, estou ordenado às ideias; realizo o supratemporal colocando-o no temporal”. (HEIDEGGER, 2010, p. 44). Para Heidegger está claro que a terceira via assume um compromisso entre duas vias que não foram suficientemente compreendidas, principalmente no que diz respeito a seus motivos. O compromisso é assumido sem uma compreensão mais radical das vias platônica e da entrega radical. Heidegger chega a defini-la com a “nivelação máxima do problema verdadeiro”, ou seja, a nivelação máxima do problema do histórico.

As três vias buscam destituir o histórico de seu caráter intranquilizador. A afirmação da vida diante do histórico tem como objetivo justamente que se supere o caráter intranquilizador do histórico. Porém, essas vias (teóricas) de afirmação da vida sequer respondem ou tematizam o motivo da inquietação. Tomam a inquietação como algo evidente. Por que elas assumem uma postura defensiva diante da história?

A tese de Heidegger é a de que, nas três vias, domina o esquema platônico. Na primeira, põe-se uma norma absoluta (ideia) como a realidade mais alta ante o histórico; na segunda, faz-se uma renúncia expressa ao âmbito do ideal, mas se absolutiza o histórico; na terceira, o histórico é visto como uma realização do temporal, admitindo valores absolutos, sem explicar a conexão do temporal com o atemporal. A realidade histórica está “posta nas três vias como um ser objetivo. A via é a do conhecimento, a do estudo temático”. (HEIDEGGER, 2010, p. 45). A realidade histórica se objetiva e se torna algo disponível, preparado para uma análise. Essa tendência indica o caráter fundamental da atitude teórica diante da história.

Heidegger quer acentuar o caráter atitudinal da referência ao histórico que tem a tendência asseguradora. No caso do histórico, esse modo é o teorético. Heidegger estabelece uma diferenciação entre atitude e referência. Referência é empregada num sentido geral; atitude é uma referência à objetualidade. Na atitude o comportamento se esgota no complexo temático, o que significa que me dirijo e me aproximo somente ao tema, afastando-me de mim mesmo. Na atitude teórica, a referência do histórico conduz a atenção a um campo já estabelecido e tipificado, suspendendo-se a referência viva ao objeto do conhecimento.

Nesse sentido, nas três “vias”, chamamos “atividade” a referência à história. A história é aqui o tema, o objeto, diante do qual adoto uma atitude gnoseológica. O estudo morfológico de tipos não é senão a consolidação e fundamentação do complexo temático a partir de si mesmo, executando os complexos temáticos num sentido lógico – a tipificação “liquida” a história. Quando se diz que o conhecimento sistematizador é uma compreensão, pensa-se com ele uma compreensão atitudinal que nada tem a ver, em contraposição, com a compreensão fenomenológica. (HEIDEGGER, 2010, p. 46).

O que é que nos intranquiliza? De onde brota a motivação da inquietação? O peculiar das três vias é que o que busca a afirmação não é considerado como problema. O que a afirmação busca e o que é inquietado é uma obviedade. Dentro do esquema platônico, a vida se afirma a si mesma contra, com ou a partir da história. Heidegger esclarece que esse conceito de vida é equivocado, e que uma crítica ao seu sentido se justifica na medida em que se busque apreendê-lo de uma forma originariamente positiva.

Para Heidegger, é importante compreender que o que inquieta é a realidade da vida. Na tendência à afirmação, o Ser-aí do homem, em sua preocupação pela própria afirmação, não é tomado em si mesmo, mas é considerado como objetualidade, sendo colocado em sua realidade histórico-objetual. Dessa forma, não há uma resposta autêntica à preocupação, pois ela é objetualizada. A tentativa de fazer da história uma ciência (Spengler) é a mais extrema expressão dessa tendência asseguradora. Olhada de fora, a história é aniquilada e matematizada; a vida preocupada é situada num contexto histórico (via da entrega radical), sem considerar a autêntica tendência da preocupação. Como é que as três vias são reconhecidas como afirmação da vida?

Na tendência de considerar a vida fática no modo da atitude, a própria preocupação é reinterpretada como atitude (compreensão atitudinal). Assim, a preocupação se converte numa objetualidade. Esse sentido da história, visto como atitude, implica um sentido derivado. Erroneamente, se deduzem desse sentido da história todos os demais fenômenos históricos.

Aqui se oferece a possibilidade de suportar até o final o caráter atitudinal da consideração sobre o histórico e, assim, descobrir a verdadeira inquietação. É necessário evitar que o fenômeno do histórico seja extraído da ciência da história. A instauração da lógica histórica como disciplina fundamental da filosofia da história situa o problema, desde o começo, em contexto falso. (HEIDEGGER, 2010, p. 49).

A questão central em relação ao histórico, para Heidegger, consiste em que a forma habitual de pensá-lo não permite a inclusão das referências vitais que, necessariamente, precisa possuir. Quando se pensa o histórico, já de saída, é pensado com uma série de características, inserido num determinado tipo de problema e relacionado com elementos fixados previamente. (KISIEL, 1993).

Na atitude teorética, a menção ao histórico elimina o traço fundamental que o caracteriza: a possibilidade de uma execução constante, a possibilidade de que a história se faça continuamente. A fenomenologia de Heidegger não quer renunciar ao momento executivo, mas tem como aspiração o acesso e a expressão do histórico em seu caráter latente e imediato. (STAPLETON, 1983). A inquietação, a carência e a insegurança não devem ser combatidas, pois são próprias do histórico. O histórico, quando enquadrado em uma classificação ou num esquema explicativo, se torna apaziguado e inofensivo, mas completamente desfigurado.

E não somente a realidade histórica da vida fica privada do que lhe é próprio, mas também a existência do homem que se dá por uma consideração distorcida. O Ser-aí, nas três vias de afirmação da vida diante da história, é tomado somente como um segmento objetual da grande objetualidade. A saber, Heidegger (2006) quer compreender o Ser-aí preocupado a partir da sua própria experiência de vida fática. Pretende saber como se relaciona o Ser-aí preocupado, enquanto é inquietado pela história; como se relaciona a vida fática por si mesma com a história. Para chegar a tal compreensão, ficam afastadas as teorias e a opinião de que a realidade histórica é a realidade da história que transcorre no tempo. O sentido da história deve ser determinado a partir de experiência fática. Uma ordenação sistemática da história não consegue abarcar a vida com seus aspectos incontroláveis fundamentais. Portanto, a vida e a existência do homem perdem sua força vital.

Ressalte-se que as três vias de afirmação contra o caráter inquietante da história consideram o Ser-aí preocupado como uma objetualidade dentro da história, não se mostrando capazes de chegar àquilo que originariamente intranquiliza. Por isso, Heidegger expressa seu descrédito diante dessa forma dominante de afrontamento da história de seu tempo, que trata de forma insuficiente a vida humana.

Não se pregunta como seria possível explicitar filosoficamente. Parecer ser necessário preencher uma lacuna do sistema categorial filosófico da atualidade. Mostrar-se-á também que, mediante a explicação do ser-aí fático, todo o sistema categorial filosófico cairá em pedaços, tão radicalmente novas serão as categorías do ser-aí fático. (HEIDEGGER, 2010, p. 50).

O Ser-aí fático reclama para si nova cultura capaz de recriá-lo, que realce sua essência e volte todos os seus esforços a ele. Pelo caminho habitual e dominante da afirmação contra o histórico, não se pode chegar a isso que o Ser-aí fático postula, pois são tantos os aspectos que deixa de lado que acaba por desfigurar tanto o histórico quanto a vida em geral. Em suma, para Heidegger não convém confiar no uso inocente da palavra histórico. O uso habitual de histórico como algo que discorre no tempo revela que a linguagem filosófica habitual está carregada teoricamente. Caracterizar o Ser-aí como histórico, de acordo com a atitude teorética, significa dirigir a investigação a partir de uma ideia inadequada.

Considerações finais

Inspirado na fenomenologia heideggeriana, pode-se defender que a filosofia, sendo busca de fundamentos e instauração de pressupostos, não se perde num fixismo objetivista porque é um esforço crítico. Ela é o esforço constante de regresso crítico aos fundamentos, é a busca das condições de possibilidade do real, é a luta constante contra as evidências ingênuas. Seu sentido analítico-crítico lhe determina, tematicamente, uma área própria e lhe confere importância universal.

A filosofia, como exercício maduro do espírito humano, depende dos caminhos, das vicissitudes, das condições pessoais e da orientação impressa às opções de cada homem. O exercício concreto do filosofar exige um progressivo domínio da experiência dos autores da história da filosofia. Essa apropriação leva ao conhecimento dos momentos-chave e traços básicos que perpassam todo o conhecimento filosófico. A filosofia sempre se alimentou dos grandes problemas da humanidade, ou seja, as grandes interrogações plenificam a inspiração e fecundam o domínio técnico dos grandes filósofos. A liberdade das ciências, ante a filosofia, surgiu dentro da dimensão aberta pela interrogação filosófica. Por isso, desde o início do pensamento filosófico-ocidental, confundiram-se as soluções filosóficas e científicas. A situação se complicou quando as ciências conquistaram seu campo específico de problematização e seguiram o caminho mais positivo e eficiente na resposta a muitas interrogações humanas. Desde então, a filosofia sentiu-se relegada a abordar generalidades e a correr zelosamente atrás das ciências, procurando tutelá-las. Entretanto, as ciências passaram a constituir, ao lado do senso comum, a não filosofia, desafiando o sentido da filosofia, que foi obrigada a explicitar os caminhos que, desde o começo, garantiam autonomia e lugar privilegiado em meio ao saber humano.

A filosofia desdobrou, gradativamente, seu método próprio, passou a reconhecer as conquistas exclusivas da ciência e a procurar outra dimensão que a ligasse a todas as áreas do saber científico. A filosofia não conflitua com as ciências, reinvidicando algum objeto que possa disputar com o saber científico. A revelação de seu horizonte próprio de interrogação libertou-a do objetivismo ingênuo. A ciência não vai além do objetivismo, e sua possibilidade como ciência está na constante incompletude de sua objetivação. A filosofia não se dilui no domínio do real objetivo. Seu campo é o próprio âmbito em que a ciência surge como ciência e onde seu objeto se justifica. O espaço que a filosofia preserva, com seu esforço de reflexão, é a dimensão transcendental, condição de possibilidade de exercício crítico-reflexivo de sua consciência aberta à totalidade que sustenta o real objetivável. Isso significa que a filosofia é um conhecimento, mas não nos moldes do saber moderno, notadamente, empírico ou experimental. O confronto entre filosofia e ciência faz sentido se concretizado no horizonte de problemas que nos envolvem. O conceito de ciência que hoje enfrenta a filosofia é aquele que está na base de todo o progresso científico.

A filosofia, no contexto atual, atingiu uma maturidade como pensamento crítico e busca de fundamento, que reflete o real e lhe confere sentido. Ela é a condição de possibilidade, a transcendência, a abertura que sustenta o contato e o sentido da realidade com a consciência. O filósofo descobre que, desde sempre, o sentido é um dado presente no homem, enquanto esse compreende a totalidade que é o ser. O trabalho crítico-reflexivo consiste na elaboração daquilo que o homem traz consigo enquanto tal. O sentido é a própria capacidade de transcendência do homem, é o que permite a ele tomar distância do mundo, experimentar a separação e produzir um corte que o confirma em sua condição única e privilegiada diante do universo.

A filosofia não explica o mundo, o homem e Deus, pois sua tarefa é estabelecer as condições de possibilidade de seu conhecimento e explicação. Já a ciência recolhe dados, organiza-os, calcula, deduz leis. Ocupa-se com a formalização e o cálculo e, quando faz isso, acaba se esquecendo de pensar e atribuir um sentido sobre aquilo que está sendo tematizado. Em razão disso, permanece sempre presa ao limite do operacional. Quanto mais matematizável o universo tanto mais cientificamente conquistável. Essa conquista a filosofia jamais poderá disputar com as ciências. Porém, onde se revela o limite de toda possibilidade de formalização, de sistematização do pensamento operatório, começa o verdadeiro lugar da filosofia. A transcendência, que a filosofia constitui crítica e reflexivamente, é essa força misteriosa e infinita que ultrapassa todos os limites, que rompe com todo cálculo; é a própria vida do pensamento. É esse pensamento que a ciência não pensa.

O estudo sério da filosofia pressupõe uma infindável paciência e um árduo exercício. A filosofia não se presta à vulgarização (simplificação), nem à aplicação a certas áreas (embelezamento), já que ela não é um ornamento. Sua presença universal não é garantia de sua acessibilidade ou confirmação da assertiva de que o homem é, por natureza, um filósofo. O filósofo é responsável pela verdade de um modo único e insubstituível. A verdade, como a única missão do filósofo, não pode ser comunicada a quem não se movimenta nessa esfera. Portanto, a filosofia jamais será acessível a quem não se arrisca no próprio movimento de reflexão. Diferentemente das outras ciências, que constroem verdades parciais, à medida que essas são úteis, o filósofo aspira à verdade total e somente pode falar daquilo que reduziu a um conhecimento determinado, pelo exercício duro de reflexão, dispondo das técnicas e dos métodos que a tradição filosófica acumulou.

1Introdução à fenomenologia da religião é uma das três partes da edição alemã de Phänomenologie des religiösen Lebens (Fenomenologia da vida religiosa) que reúne, ainda, outra preleção de Heidegger: Santo Agostinho e o neoplatonismo – 1921 (Augustinus und der Neuplatonismus) e um rascunho que não chegou a ser um texto elaborado, com o título Fundamentos filosóficos da mística medieval – 1918-1919 (Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik). O título genérico e original da obra, Fenomenologia da vida religiosa, na qual se encontra publicada a preleção Introdução à fenomenologia da religião, que será objeto de análise, no presente texto, foi dado pelos editores.

Referências

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Recebido: 21 de Maio de 2017; Aceito: 07 de Fevereiro de 2018

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