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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.2 Caxias do Sul maio/ago 2018  Epub 21-Ago-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.n2.2 

Artigos

Progresso e não determinismo científicos, a partir de conceitos-chave da epistemologia de Thomas Kuhn

Progresso and no scientific determinism from key concepts of Thomas Kuhn’s epistemology

Marcello Ferreira* 

André Luís Silva da Silva** 

Maria de Fátima da Silva Verdeaux*** 

**Licenciado em Ciências Exatas. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências da Universidade Federal do Pampa (Unipampa). : <alss.quimica@gmail.com>

***Núcleo de Pesquisa em Ensino de Física. Programa de Pós-Graduação em Ensino de Física. Instituto de Física. Universidade de Brasília (UnB). : <flettere@gmail.com>


Resumo

O presente texto busca, na epistemologia de Thomas Kuhn, aportes teóricos sobre a forma como a ciência progride, os quais sugerem uma aproximação com aspectos históricos de uma ciência, por definição, não determinista. Foram discutidos os conceitos de paradigma, incomensurabilidade, ciência normal, anomalias e crises, revolução científica e ciência extraordinária, com base na obra A estrutura das revoluções científicas, em literatura correlata e fontes secundárias. As consequências desse encadeamento teórico levam, à luz da epistemologia de Kuhn, a fundamentos que permitem uma discussão sobre o caráter temporal, condicional, suscetível, incerto – e, portanto, não determinista – do conhecimento científico.

Palavras-chave:  Thomas Kuhn; Progresso científico; Determinismo; Epistemologia

Abstract

This papper searches, in the epistemology of Thomas Kuhn, the contributions that sustain its vision regarding the way in which the science would progress; these contributions suggest an approximation with historical aspects of a science understood as non-deterministic. The concepts of paradigm, incomensurability, normal science, anomalies and crises, scientific revolution and extraordinary science were discussed, based on the work The structure of scientific revolutions, in correlative bibliography and secondary sources. The consequences of this theoretical linkage lead to the obtaining, in Kuhn's epistemology, foundations that allow a discussion of the temporal, conditional, susceptible, uncertain – and therefore nondeterministic – character of scientific knowledge.

Keywords:  Thomas Kuhn; Scientific progress; Determinism; Epistemology

Aproximações históricas sobre a perspectiva de um conhecimento científico não determinista

Partimos da perspectiva de exato como o intrinsecamente definido e imutável. Dessa forma, ao mencionar um conhecimento como não determinista e, sobretudo, ao aproximá-lo da definição de conhecimento científico, entende-se que ele deva conter elementos que o tornem suscetível a alterações, em vista dos distintos nichos contextuais e da inexistência de uma visão consensual dos praticantes de determinada ciência.

Esse conhecimento não deve ser interpretado como definitivo ou imutável e que se aproxima, de modo hermenêutico, de uma concepção epistemologicamente contemporânea do conhecimento científico.

As escolhas, as possibilidades, a incerteza, são ao mesmo tempo propriedades do universo e (também) são próprias da existência humana. Elas abrem novas perspectivas para a ciência e uma nova racionalidade, aonde a verdade científica não mais é sinônimo de certo, ou determinado, e aonde o incerto e o indeterminado não estão baseados na ignorância, no desconhecimento. [...] A marca do nosso tempo é uma ciência em que o ser e a estabilidade deram passagem para a evolução e a mudança. (PRIGOGINE, 2002, p. 21).

Essas proposições podem caracterizar percepções mais contemporâneas e menos ingênuas sobre a ciência, sobre seu papel na sociedade e sobre o trabalho desempenhado pelos cientistas. Verifica-se que, desde as primeiras décadas do século XX, a mecânica quântica vem questionando as exatidões cartesiana e newtoniana supostamente existentes na ciência – preocupadas com o método científico em si, preponderantemente, e esse, com os efeitos dos fenômenos da natureza a despeito de suas causas.

Compreende-se, a partir desse panorama questionador, que o observador não é neutro em relação ao que observa, incluindo-se, aí, não somente a dinâmica existente nos sistemas orgânicos, mas também aquela que interfere e esbarra em questões sociais. Como expressou Heisenberg (1971), o mundo aparece como um tecido de eventos, no qual conexões de diferentes tipos se alternam, se sobrepõem ou se combinam e, por meio disso, determinam a textura do todo.

No formalismo da teoria quântica, essas relações são expressas em termos de probabilidades, nunca de exatidão, e essas probabilidades são determinadas pela dinâmica sistêmica do sistema. De acordo com Heisenberg (1971), o que observamos não é a natureza em si, mas a natureza exposta ao nosso método particular de questionamento e análise. Esse princípio filosófico, quando aplicado à ciência, encerra a importância da interpretação na aceitação das teorias científicas, tanto com relação aos métodos empregados, como na fundamentação teórica que os sustenta.

A esse respeito, Descartes (séc. XVII), em seu célebre Discurso sobre o método, pondera que, quando as ciências tomam emprestado da filosofia seus princípios, nada de sólido pode ser construído sobre tais fundamentos movediços. (DESCARTES, 2001). Trezentos anos mais tarde, Heisenberg (1971) mencionou, em sua obra Física e filosofia, que o próprio edifício que Descartes construíra estava se movendo: a reação violenta diante do recente desenvolvimento da ciência moderna só poderia ser entendida ao se compreender que seus fundamentos começaram a se mover.

Einstein (1953), em sua autobiografia, descreveu seus sentimentos em termos muito semelhantes aos de Heisenberg, quando mencionou que sentia, em relação ao conhecimento científico, o início de uma construção cognitiva a partir de nova concepção; ainda, via-se, na época, sem qualquer segurança sobre os fundamentos balizadores e das primícias da ciência, um conhecimento puramente científico.

Uma investigação acerca das concepções de Heisenberg em ciência justifica-se por seu caráter inovador, elucidativo e contextualizado tanto de suas abordagens científicas como das filosóficas. Particularmente com relação à ciência, Heisenberg (1971) argumenta que esse conjunto de conhecimentos não mais permanece estático como na Renascença, mas busca estruturar-se em um constante e dinâmico processo de ir e vir, de se construir e reconstruir. Nessa busca incessante, tem-se como objetivo primordial tentar tornar inteligível o mundo e atingir um conhecimento sistemático do universo. (KOCHE, 1982).

Em contrapartida, cabe lembrar que a humanidade enfrentou muitas crises em sua história recente, como também protagonizou inúmeras revoluções sociais, e isso não desviou os rumos e as abordagens dos conceitos científicos. Entretanto, parecem, hoje, vigir os fundamentos que por muito tempo ofereceram sustentação à ciência em meio a crises estruturais, tendo marcado seu início ainda no século XX, nos trabalhos de Einstein e Planck sobre o abraçamento da mecânica quântica. (CAPRA, 1996).

É imprescindível, portanto, que nova concepção em ciência seja pretendida e oportunizada, de modo que acarrete aspectos não essenciais de uma relação teórico-experimental (T-E) constante e exata. Essa concepção deve estruturar-se a partir de diretrizes amplas e adaptáveis a novas concepções relacionais T-E, de uma forma capaz de absorver inevitáveis inconsistências e se alterar a partir delas. Conforme menciona Kuhn, seria possível denominar de paradigmas tais imposições, ou regras teóricas, metodológicas, experimentais e de iniciação dos neófitos à comunidade científica, no sentido de exercer autoridade sobre sua comunidade de praticantes. “O que caracteriza esse jogo a que damos o nome de ciência é um acordo tácito entre todos os cientistas de que nele só se pode falar sobre experiências abertas à verificação intersubjetiva. Na verdade, é essa verificação que garante a objetividade do conhecimento”. (ALVES, 2010, p. 144).

Nessa direção, o que se propõe é buscar, na epistemologia de Kuhn, perspectivas acerca de uma ciência genuinamente não determinista e capaz de progredir. Isso se dará a partir de uma discussão de seus aportes teóricos, ou conceitos-chave, que sustentam que o conhecimento científico é, por essência, capaz de se reposicionar.

A epistemologia kuhniana

O primeiro a ser apontado neste texto – e, talvez, o mais conhecido conceito-chave da epistemologia kuhniana – é o por ele cunhado de paradigma. Como uma possível definição para o termo, pode-se mencionar as realizações científicas universalmente reconhecidas, as quais, durante algum tempo, fornecem problemas acompanhados de soluções exemplares para uma comunidade de praticantes de uma ciência. (KUHN, 1998). Conforme apontam Sacristán e Gómez (1998, p. 100), é o próprio Paradigma que define “o objeto de investigação, o tipo de problema que se coloca e resolve, a própria essência dos processos de investigação, as estratégias, as técnicas e os instrumentos que se consideram mais adequados e os critérios de validação e legitimação do conhecimento produzido”.

Essa abordagem deixa claro: o paradigma não se constitui em um conjunto de regras específicas para se fazer ciência; antes, as promove, precedendo a pesquisa científica, mesmo em casos de ausência total de regras. Desse modo, Kuhn particulariza-se ao assumir uma visão sociológica da ciência, por meio da qual uma comunidade de praticantes compromete-se com conjuntos de compromissos paradigmáticos e trabalha em prol de compatibilizar a natureza ao paradigma, e jamais o contrário.

Não há que se falar, portanto, na premência da localização de um conjunto de regras para a determinação de um paradigma; essa busca, capaz de constituir uma tradição determinada do que fazer e do que não fazer em ciências, é uma fonte inesgotável de frustração epistemológica.

De acordo com Kuhn (1998; 2001; 2002), os paradigmas adquirem seu status científico porque são mais bem-sucedidos de que seus competidores na resolução de alguns problemas que um grupo de cientistas reconhece como graves. Segundo Chalmers (1999), o paradigma incorpora um arcabouço conceitual específico, por meio do qual o mundo é visto e no qual ele é descrito, além de constituir um conjunto de técnicas experimentais e teóricas para tornar possível a correspondência entre o paradigma e a própria natureza.

Contudo, não há razões, tampouco expectativas, de que essa correspondência seja a mais adequada e insuperável. É, nesse momento, que se pode destacar uma primeira visão kuhniana a respeito de um eminente não determinismo científico, argumento que este texto pretende sobressaltar em conteúdo.

A importância teórica do paradigma para a ciência está longe de ser trivial. Embora o mundo não se altere com a mudança de paradigma, a partir dele, o cientista passa a trabalhar em uma perspectiva por ele alterada. Segundo Moreira e Massoni (2011), Kuhn reconheceu, em um pós-escrito de sua obra principal, que nela havia usado o conceito de paradigma de maneira ambígua, tornando-se possível sua compreensão conceitual sob duas perspectivas diferenciadas: uma mais geral, que ele denominou de matriz disciplinar, e outra mais restrita, que ele cunhou como exemplar. (OKI, 2004).

O termo disciplinar refere-se a uma posse comum aos praticantes de determinada disciplina; o substantivo matriz associa o paradigma a ser composto de elementos ordenados por várias espécies, cada uma das quais exigindo uma determinação pormenorizada. Com isso, matriz disciplinar abrangeria os elementos próprios de dada disciplina, isto é, o paradigma deveria abranger um conjunto de conhecimentos com suas metodologias e regras próprias.

Com o termo exemplar, Kuhn faz menção às soluções concretas para determinados problemas inerentes às ciências, encontrados desde o princípio da educação científica, seja nos meios acadêmicos, seja naqueles não formais. Desse modo, se poderia associar o termo à capacidade do paradigma de se constituir como um modelo às soluções para determinada cadeia de problemas.

Ao se considerar que a principal característica de uma ciência, concebida como madura por Kuhn, é sua adesão a um único paradigma, a normalidade interna de uma comunidade científica implicaria tentativas detalhadas de desenvolvê-lo, no intuito de refinar a correspondência da natureza com suas bases teóricas, metodológicas e experimentais (e, ainda, ontológicas), na diligência de uma verificação cientificamente fundamentada (cientificamente aceita, validada objetiva ou subjetivamente, ou em ambos os vieses).

Cabe, nesse ponto, destaque às imposições de vínculo do paradigma em uma significação, mesmo que ainda insipiente, de aceitação, de adesão, de conversão de seus adeptos, na capacidade de seus defensores em atrair os praticantes de determinada área de conhecimento.

Essa correspondência, portanto, aponta a uma direção na qual a própria ciência não deve ser concebida como um conjunto definitivo de concepções, ou ainda, cercada de verdades absolutas, mas, por essência, apresenta o encargo de permanecer suscetível a novas conjecturas teóricas, metodológicas e experimentais, em um processo de dinamismo fundamental ao seu progresso como perspectiva de construção do conhecimento pelo homem.

Assim, esse ponto ratifica a inexistência de determinismo científico; como produto de uma construção humana, a ciência não poderá chegar a uma expressão eminentemente impecável da realidade, com determinações de caráter definitivo, não sendo esse, por sua vez, seu compromisso. Epistemólogos contemporâneos a Kuhn trazem, em seus discursos, elementos que se alinham a esse escopo, como é o caso de Popper.

A ciência não é um sistema de declarações certas e bem esclarecidas; nem tampouco um sistema que avança para um estado final. Nossa ciência não é conhecimento (episteme): ela nunca pode pretender haver atingido a verdade, nem mesmo um substituto para ela, como a probabilidade. (1968, p. 278).

Neste desenrolamento, a Figura 1 pretende representar a centralidade que o conceito kuhniano de paradigma desempenha diante de outros, dos quais se passará a tratar, evidenciando, ainda, seu apriorismo ante aqueles.

Fonte: Elaborada pelos autores.

Figura 1 – Conceitos kuhnianos abordados neste texto 

A impossibilidade de coexistência com teorias ou paradigmas distintos sugere o próximo conceito-chave, neste texto, abarcado para a obra kuhniana, denominado pelo autor de incomensurabilidade. Segundo Kuhn (1998), a tradição científica normal, que surge de uma revolução científica, é não apenas incompatível, mas também incomensurável em relação àquela que a precedeu. Considera-se que a incomensurabilidade entre paradigmas tem relação com diferentes maneiras de ver o mundo e nele praticar ciência. (MOREIRA; MASSONI, 2011).

Sendo assim, não se pode demonstrar, sob qualquer entendimento, a superioridade de um paradigma sobre outro. Tampouco se pode apontar que uma teoria supera outra em qualidade. Notoriamente, isso se verifica quando ambos – paradigma e teoria – buscam descrever um mesmo fenômeno. Assim, o objetivo de argumentos e discussões entre partidários de paradigmas rivais é mais a persuasão do que a logicidade. Partidários de paradigmas competitivos aderem a conjuntos diferentes de padrões, veem o mundo de forma diferente e o descrevem em uma linguagem também distinta. (CHALMERS, 1999).

Anunciar que dois paradigmas são incomensuráveis relaciona-se à afirmação de que não há alguma linguagem – que não pode ser neutra – da qual ambos possam traduzir-se de modo preciso, sem omissão ou perda. Cabe salientar, no entanto, que o cientista-padrão é comumente formado a praticar uma ciência em caráter normal, jamais uma ciência tida como extraordinária (isto é, que não é regida pelo paradigma dominante). Como consequência, esse cientista pratica, corriqueiramente, o trabalho de buscar dados de confirmação ao paradigma vigente, sob uma perspectiva neoindutivista, independentemente de uma contundente leitura e interpretação da realidade. Isso poderia ser ingenuamente conceituado como veracidade dos fatos, ou verdade científica, expressões amplamente difundidas e aceitas pelo senso comum e socializadas nos meios educacionais.

Em oposição, o próprio conceito de verdade é, em não raras ocasiões, intencionalmente ignorado por Kuhn. Com isso, pode-se, hermeneuticamente, considerar a superação qualitativa interparadigamas como arbitrária e subjetiva, não havendo qualquer critério objetivo que permita compará-los quanto à sua eficácia. Sendo assim, não é exequível decidir se um paradigma é melhor do que outro, pois essa comparação é impossibilitada por sua própria conceituação. (RODRIGUES, 2008).

Dessa forma, Kuhn não admite a possibilidade de teorias ou paradigmas concomitantes, visto sua concepção de incomensurabilidade e as próprias bases teóricas utilizadas para demarcação do conhecimento científico, ou da ciência de modo geral. Para ele,

os defensores de teorias diferentes são como membros de comunidades de cultura e linguagem diferentes. Reconhecer esse paralelismo sugere, em certo sentido, que ambos os grupos podem estar certos. Essa posição é relativista, quando aplicada à cultura e seu desenvolvimento. Mas quando aplicada à ciência, ela pode não sê-lo e, de qualquer modo, está longe de um simples relativismo, num aspecto que meus críticos não foram capazes de perceber. (KUHN, 1998, p. 251).

Kuhn, portanto, endossa a ideia de ciência madura como se tratando de uma atividade de natureza eminentemente humana e sociológica, respaldada por sua capacidade de resolver problemas, a qual tem de ser objetivamente regida pelas regras de um único paradigma. Chega-se, então, a uma atividade científica tida como normal, caracterizada como um período necessário ao seu progresso, a partir da concepção kuhniana de uma ciência dotada de aspectos dinâmicos e, em tempo algum, utilizando-se de bases teóricas, metodológicas e/ou experimentais sob caráter definitivo.

Isso posto, outro conceito-chave da epistemologia de Kuhn trata-se de sua proposição de ciência normal, que se refere ao período científico estabilizado pela existência de um único paradigma dominante. Esse é o momento no qual a maioria dos cientistas emprega seu tempo quase integralmente, e suas atividades centralizam-se à consolidação desse paradigma.

Na proposição denominada por Kuhn de ciência normal, determinada comunidade científica possui teorias e modelos confiáveis sobre como o mundo se apresenta ou sobre qual deverá ser o seu posicionamento perante a forma com que se supõe que ele se apresenta. Segundo Moreira e Massoni (2011), esse período científico deve ser amplamente não crítico, pois grande parte de seu sucesso depende da disposição de seus praticantes em defender esse pressuposto. Assim, “a ciência normal caracteriza-se pela existência de uma comunidade de pesquisadores que trabalham num conjunto de problemas que têm entre si um ar familiar, e que podem receber uma solução”. (ANTUNES; ESTARQUEIRO, 1999, p. 213). Segundo Duarte (2006), a ciência normal é cumulativa, uma vez que parte de um conjunto estável de fundamentos para se praticar ciências.

Em uma fase de ciência considerada normal, a pesquisa deve estar orientada em direção à adaptação dos novos conhecimentos aos fenômenos e às teorias já fornecidos pelo paradigma que lhes dá suporte. Até então, não há cenários de caracterização para fenômenos que venham a exigir novas teorias científicas para sua elucidação. De acordo com Kuhn (2000), nesse período, os fenômenos que não se ajustam ao limite do paradigma, frequentemente, são ignorados, e os cientistas, muitas vezes, se mostram intolerantes com teorias externas a seus domínios.

As atividades desenvolvidas no interior protetivo de uma ciência normal esmeram-se para aproximar, tanto mais os fatos da teoria predominante. O propósito-cerne é claro: adaptar, sempre que necessário, a realidade à forma pela qual está sendo interpretada e descrita. Tal ação poderia ser vista como uma testagem ou uma constante busca de confirmação ou falseamento; entretanto, Kuhn concebe sua finalidade como sendo a de resolver um puzzle (quebra-cabeça), cuja existência supõe a validade do paradigma, para o qual o fracasso em encontrar uma solução desacredita somente o cientista, jamais a teoria. (MOREIRA; MASSONI, 2011).

Surge, nesse ponto da discussão, nova perspectiva teórica que se aproxima das imposições em não determinismo científico. Pode-se, simplesmente, argumentar, a partir das concepções kuhnianas das quais aqui se trata, que a ciência não é capaz de, com neutralidade, expressar uma hipótese ou teoria que estabeleça uma relação com fenômenos genuinamente naturais, sendo que deles, muitas vezes, sequer se aproxima em sua representação. Em contrapartida, a ciência progride pela substituição de teorias, a partir da sucessão contínua entre períodos compreendidos como ciência normal. Nessa direção, Kuhn (1998, p. 114) infere que “normalmente os cientistas não têm por objetivo inventar novas teorias [...], a ciência normal não busca novidade de fato ou de teoria e, quando é bem sucedida, não encontra nenhuma”.

Nota-se, então, que a ciência normal, frequentemente, suprime novidades fundamentais, visto que elas, necessariamente, subverteriam seus compromissos básicos. Exemplificam bem essa posição determinados contextos dos modelos planetários imbuídos no geocentrismo/heliocentrismo. “Dada uma discrepância particular, os astrônomos invariavelmente eram capazes de eliminá-la por meio de pequenos reajustes nos sistemas de círculos compostos por Ptolomeu. [...] Os filósofos da ciência chamam de explicações ad hoc esse tipo de artifício”. (ALVES, 2010, p. 56-57).

Em Mendonça e Videira (2007, p. 171), lê-se que “sob a égide de um paradigma, certa comunidade científica não discute mais sobre quais fatos devem ser investigados, quais métodos a serem empregados, e o que se aceita como solução”, o que reforça atributos de conformidade e resistência ao novo. Com isso, esse período tende a se estender ao máximo possível, até que ecloda nova fase à ciência, de modo inequívoco, desencadeada por um momento de alta instabilidade dos pressupostos teóricos, metodológicos e experimentais vigentes. Isto é, notou-se uma peça não encaixável aos moldes do quebra-cabeça dominante. Tem-se o surgimento de anomalias e crises.

A ciência começa a deixar de ser compreendida como normal no surgimento de anomalias e crises. Ocorre que os paradigmas, em determinado tempo, sempre encontrarão alguma dificuldade na resolução dos problemas que a realidade apresenta. Isso não quer dizer que a simples existência de problemas não resolvidos, nas fronteiras do paradigma, irá instaurar uma crise na ciência; entretanto, a existência de anomalias sérias e duradouras pode levar o paradigma a uma crise, conduzindo-o à sua rejeição e posterior substituição. (CHALMERS, 1999). Para Kuhn, uma anomalia será considerada particularmente séria se for entendida como nociva aos próprios fundamentos do paradigma e, por sua vez, se resistir, persistentemente, às tentativas dos membros de uma comunidade científica normal de removê-la.

A instauração de uma anomalia gera uma proliferação de várias versões de um único paradigma, o que acaba por enfraquecer as regras de como se resolver os quebra-cabeças da ciência normal. Por conseguinte, possibilita, paulatinamente, o surgimento de novo candidato à paradigma. Entretanto, uma anomalia, não necessariamente, impõe um fim ao paradigma, ou ao período de ciência normal. Segundo Kuhn, as anomalias podem se processualizar de três modos distintos:

(1°) Algumas vezes, a ciência normal acaba revelando-se capaz de tratar a anomalia que provoca a crise; (2°) em outras, a anomalia resiste até mesmo a novas abordagens aparentemente radicais, permanecendo sem solução e posta de lado para ser resolvida por uma futura geração que disponha de instrumentos mais elaborados; (3°) a crise pode terminar com a emergência de um novo candidato a paradigma e com uma subsequente batalha por sua aceitação. (MOREIRA; MASSONI, 2011, p. 32).

Com relação à primeira possibilidade, nenhuma modificação é imposta ao período de ciência normal, mantendo-se a aceitação do paradigma dominante sem se considerar esse período de turbulência na produção de conhecimentos científicos. Tampouco irá se desconfiar desse paradigma balizador da ciência normal com a segunda contingência de encaminhamento da anomalia, pois se reconhece o despreparo técnico de momento para uma averiguação mais aprofundada, capaz de, inequivocamente, avariá-lo. Mas, na terceira vicissitude, instaura-se uma crise, e então tudo começa a mudar.

Segundo Kuhn (1998), essa é a maneira que carrega maior importância, pois o progresso da ciência está diretamente implicado a ela. A ciência progride (conceitual, metodológica e experimentalmente) caso se estabeleça uma crise aparentemente sem solução e surja novo paradigma, que irá suprimir o antecessor e resolver, mais apropriadamente, as contingências.

Essa sucessão entre paradigmas pressupõe ou nela subjaz a inexistência de um conhecimento científico de caráter definitivo, o que vai ao encontro de uma concepção de ciência, não definitivamente fundamentada, mas sempre passível de adequações. Tendo em vista essa argumentação, encontra-se novo momento que aponta ao indeterminismo científico, independentemente de quantos períodos de ciência normal se apresentem e se alternem.

Conforme se pôde constatar, uma anomalia pode ser seguida por uma crise, mas essa não é uma condição premente. Há casos de maior simplicidade, como o de se resolver (primeira possibilidade) ou de se ignorar (segunda) a anomalia emergente. Entretanto, uma crise, quando desencadeada, é sempre seguida por uma revolução científica, o que acaba por integrar os praticantes científicos em uma fase temporal apontada por Kuhn como ciência extraordinária.

Mas, objetivamente, o que são as revoluções científicas, quais são suas funções para o desenvolvimento da ciência e no que se caracteriza a prática da ciência dita extraordinária? De modo especial, a discussão precedente indicou que revoluções científicas devem ser consideradas como episódios de desenvolvimento não cumulativo de conhecimentos cientificamente demarcados, nos quais o paradigma mais antigo é, total ou parcialmente, substituído por um novo, incompatível – ou incomensurável – com o anterior. (KUHN, 1998; 2001; 2002). Sendo assim, quais são os principais indícios de surgimento de uma revolução científica com prossecusção de ciência extraordinária?

Kuhn (2002) atribui o conceito de Revolução Científica à mudança descontínua de um paradigma por outro. Quando dada comunidade científica não consegue mais se desviar das anomalias que minam o paradigma ao qual aderiu, começam as investigações extraordinárias, ou de ciência extraordinária, que, finalmente, a conduzirão a novo conjunto de embasamentos teóricos, metodológicos e experimentais, isto é, à nova base para a concepção de se praticar ou de se fazer ciência.

As revoluções científicas iniciam a partir de uma sensação crescente, seguidamente restrita a uma pequena subdivisão da comunidade científica, de que o paradigma existente deixou de funcionar adequadamente na exploração de determinado aspecto da natureza, cuja exploração foi anteriormente dirigida por ele. Assim, as leituras da realidade não mais se mostram adequadas, tendo em vista sua adequação a compromissos de amplitude teórico-experimental.

Justamente porque os paradigmas exercem uma grande influência persuasiva sobre a ciência praticada sob seu âmbito, é que sua substituição deve ser, necessariamente, revolucionária. Essa proposição configura-se como um respaldo ao uso dessa terminologia por Kuhn. Contudo, a ciência deve sempre conter meios de romper com um paradigma e passar a outro mais adequado, em vista de sua inquestionável necessidade de progresso científico. Essa, em suma, é a função das revoluções científicas. (CHALMERS, 1999).

Esse processo é dinâmico, mesmo que Kuhn o trate como esporádico, pois o cientista emprega a maior parte de seu tempo e de seus esforços fazendo uma ciência dita como normal. O novo paradigma, por sua vez, será, em algum momento, defrontado por uma anomalia; entrará em crise – assim como acontecera ao seu antecessor – e dará sucessão a outro, novo, mais adequado, por meio de nova revolução científica.

A ciência mantém-se continuamente múltipla em seu trabalho e na análise de seus produtos; contudo, seus procedimentos devem incentivar argumentos que conduzam à lógica hermenêutica. Isso posto, não se pode abdicar da capacidade potencial que apresenta a ciência em substituir o velho pelo novo, uma menos qualificada por uma mais apropriada forma de compreensão dos fenômenos que são observados. Em outros termos, faz parte da natureza do conhecimento científico seu caráter não definitivo, sendo, esse, o atributo que permite à ciência, conforme argumentos de Kuhn, progredir com relação ao mérito da descrição que oferece daquilo que se convencionou denominar de realidade.

A concepção de Kuhn sobre o progresso do conhecimento científico

Na Figura 2, intenciona-se representar as principais fases pelas quais atravessa a ciência, na concepção de Kuhn, em uma perspectiva de garantia efetiva de progresso. Para tanto, se utilizou de seus principais conceitos, já discutidos neste texto, e de proposições emergentes desse encadeamento teórico.

Fonte: Elabora pelos autores.

Figura 2 – Progresso científico na perspectiva kuhniana 

Podem-se buscar demarcações bem-estabelecidas em etapas conceituadas por Kuhn, por meio das quais o progresso científico se desencadeia. Vê-se, ainda, a notoriedade do conceito de paradigma nesse cenário, uma vez que é determinante à ruptura de uma em outra fase. De modo geral, Kuhn apresenta estruturas teóricas que determinam quatro fases de progressão do empreendimento científico, sendo elas: ciência normal; anomalias e crises; substituição de paradigmas; e revolução científica.

A primeira fase é denominada ciência normal, e é marcada por práticas teóricas e experimentais, em que o crescimento do saber científico é cumulativo e regido pelo paradigma vigente. A segunda fase é chamada de anomalia; é quando se encontram resultados experimentais não assimilados pela teoria: as anomalias são a princípio marginalizadas e só abalam a solidez dos respectivos paradigmas quando surge um novo paradigma capaz de explicá-las. A terceira fase é quando ocorre a substituição de um paradigma, isto é, quando, após um período de competição entre o paradigma precedente e o seu sucessor, o sucessor acaba se tornando o paradigma vigente. Nas próprias palavras de Kuhn, quando se decide rejeitar um paradigma é sempre decidir simultaneamente aceitar outro. A quarta e última fase é a revolução científica propriamente dita. Quando o crescente número de anomalias não é absorvido pela ciência normal, gera-se uma crise, que é resolvida pela mudança de paradigma, acarretando a revolução científica. (EPSTEIN, 1990, p. 108).

A partir dos argumentos de Moreira e Massoni (2011, p. 67), os termos que conceituam, de modo global, uma sequência de etapas do progresso científico podem ser apresentados como: “pré-ciência – ciência normal (dentro de um único paradigma) – crise – revolução científica (mudança descontínua de paradigma) – nova ciência normal (dentro do novo paradigma) – nova crise – nova revolução”. Nesse enovelamento, a ciência progride revolucionariamente, isto é, progride, não evolui. Apontar uma evolução científica opor-se-ia, em acepção, à proposta kuhniana de revolução.

Nesse cenário, considera-se como pré-ciência uma atividade desorganizada e diversificada que precede o amadurecimento científico caracterizado pela adesão a um único paradigma. Nesse período, inúmeras teorias coexistem, e não se pode caracterizar seus enunciados e/ou produtos como científicos. É na adesão, a seu tempo, a um único paradigma, que se poderá identificar e categorizar um momento de ciência madura. É ela que poderá servir como critério de demarcação entre o que é ou não é ciência, isto é, o critério que, na perspectiva kuhniana, distingue ciência de pseudociência é o comparecimento de um único paradigma, capaz de apoiar uma tradição de ciência normal. Ao tomar esse aporte como uma pré-suposição teórica, determinado conhecimento não sustentado por um único paradigma não pode ser considerado como de âmago científico.

Não obstante, passado algum tempo, surgirão imposições efetivas – as anomalias – que enfraquecerão o paradigma em suas bases teórica, metodológica e/ou experimental, e se instaurará uma crise. Sob esse enfoque, quantos paradigmas científicos foram abandonados ao longo do tempo? “O Sol girando em torno da Terra, as harmonias de Kepler, a química do flogístico, a física do éter, a eletricidade como fluido engarrafável, as sínteses químicas só realizáveis por organismos”. (ALVES, 2010, p. 1.840).

A partir de então, se poderá verificar a substituição por novo paradigma, que consistirá de subsídio à nova fase de ciência normal. Kuhn aborda a existência de quatro condições à mudança de paradigmas, as quais são indispensáveis, mas ainda não suficientes para a garantia de sua efetivação.

(1°) Insatisfação com o paradigma existente. (2°) Inteligibilidade de um novo paradigma. (3°) Plausibilidade do novo paradigma (parece ter a capacidade de resolver anomalias não resolvidas pelo paradigma existente). (4°) Potencialidade no que se refere a um novo período de ciência normal frutífero. (Apud MOREIRA; MASSONI, 2011, p. 71).

Outrossim, essas quatro condições são ainda insuficientes à garantia de uma substituição entre paradigmas concorrentes, pois essa troca envolve um processo de escolha, no qual cada grupo de cientistas utiliza de seus próprios princípios para argumentar em favor desse ou daquele paradigma. (KUHN, 2000). Vinculando o conceito de paradigma às teorias científicas, vê-se que

novas teorias científicas não são um produto de acumulação de informação, não são a simples adição de novas ideias, fatos vindos das teorias antigas. São antes o resultado de processos de construção e de elaboração árduos e laboriosamente pensados por investigadores frequentemente em discórdia, com argumentos e contra-argumentos. São quase sempre fruto de dezenas de anos em busca de afirmação e não um simples processo de substituição e de revisão. Acrescente que as novas teorias são (quase sempre) recebidas com bastante cepticismo. (CACHAPUZ et al., 2005, p. 75).

Tem-se, também, de considerar fatores sociológicos e psicológicos envolvidos no processo, de persuasão e conversão, e não propriamente de compulsão, pois, conforme advertem Sacristán e Gómes (2007, p. 59), “a ciência é considerada como um processo humano e socialmente condicionado de produção de conhecimento”. Portanto, não se pode restringir essa substituição simplesmente a argumentos puramente lógicos e racionais, ou meramente a fatores objetivos, que demonstrem a superioridade de um paradigma sobre outro e que force, assim, um cientista racional a proceder a essa mudança. Uma subjetividade deve ser levada em contemplação, destacando-se, em não raros casos, como fator de maior impacto de realocação. (CHALMERS, 1999).

E, assim, no momento em que dada comunidade científica considera não mais haver possibilidade de continuidade para o paradigma vigente, estabelece uma revolução científica, isto é, uma mudança descontínua de paradigma, que dá início a novo período de ciência normal, sob a tutela desse novo campo teórico/metodológico/experimental, capaz de oferecer perguntas e respostas necessárias à sistematização científica. Isso será mantido até o surgimento de nova crise, e, então, esse ciclo será reiniciado em uma perspectiva de continuidade temporalmente indefinida ou atemporal. Esse constante reinício configura-se como garantia de progresso à ciência e demarcação de um conhecimento, caracterizado por Kuhn como eminentemente científico.

Apesar das numerosas críticas que recebeu ao longo de sua produção acadêmica, Kuhn criou uma imagem clara e bem-definida acerca do progresso científico. Mostrou que ele se dá em duas direções distintas, mas complementares. Isso o levou a advogar a tese de que o desenvolvimento da ciência dar-se-ia por intermédio de uma tensão essencial, que ocorre, invariavelmente, entre o normal e o revolucionário. Dessa forma, por uma sequência de etapas bem precisas, ilustradas na Figura 3, a ciência, revolucionariamente, progride.

Fonte: Elaborada pelos autores.

Figura 3 – Resumo das etapas de progresso científico, segundo Kuhn 

Conforme se pretendeu mostrar na Figura 3, o aceite de uma unidade de paradigma, sob pressupostos e derivações previamente apresentados neste texto, estabelece um período de ciência normal. Em prosseguimento, anomalias, em alguns casos (quando) seguidas por uma crise, desencadeiam uma revolução científica, que culmina na ruptura do paradigma vigente e estabelece novo grupo teórico-metodológico e experimental de se pensar e de se fazer ciência, passando aquele grupo a ser identificado como novo paradigma. E, assim, a ciência avança, como um produto humano de conhecimento, uma representação sociológica da realidade, sem compromissos com verdades subjacentes ou independentes, contínua e indefinidamente, isenta da presunção de estabelecimento de algo não passível de alteração, preso a uma imutabilidade fantasiosa e irreal. Conforme bem adverte Alves (2010, p. 47), “a ciência não nos oferece cópias do real. Ela nos dá apenas modelos hipotéticos e provisórios”.

Uma breve recapitulação da epistemologia de Thomas Kuhn

Merecem destaque dois pontos centrais, apresentados ao longo deste texto, sob a forma de proposições, extraídos da epistemologia de Kuhn: o caráter revolucionário da ciência e as bases sociológicas inerentes aos fazeres científicos. Conforme endossa esse posicionamento, verifica-se, em Chalmers, que

uma característica-chave de sua teoria é a ênfase dada ao caráter revolucionário do progresso científico, em que uma revolução implica o abandono de uma estrutura teórica e sua substituição por outra, incompatível. Um outro traço essencial é o importante papel desempenhado na teoria de Kuhn pelas características sociológicas das comunidades científicas. (1993, p. 123).

Ao se buscar um detalhamento desses pontos gerais, considera-se que a atividade desorganizada e diversa que precede à consolidação da ciência, torna-se, eventualmente, estruturada e dirigida quando sua comunidade científica se atém a um único paradigma. Esse, por sua vez, é composto de suposições teóricas e metodológicas amplas e gerais, bem como de leis e técnicas à sua aplicação, adaptadas às especificidades objetivas e subjetivas no que tange a pensar e fazer ciência.

Aqueles que trabalham dentro do paradigma, seja ele a mecânica newtoniana, a óptica de ondas, a química calórica ou qualquer outro, praticam aquilo que Kuhn denomina de ciência normal. Os cientistas articularão e desenvolverão esse paradigma em sua diligência em compreender e explicar fenômenos naturais (em suma, a realidade) e de nele acomodar o comportamento do que consideram representar alguns aspectos relevantes deste mundo real. Ao fazê-lo, experimentarão, inevitavelmente, dificuldades e encontrarão falsificações aparentes. Se dadas dificuldades fugirem ao controle, um estado de crise se manifestará. Uma crise será resolvida no surgimento de um paradigma inteiramente novo, que atraia a adesão de um número crescente de cientistas, até acarretar o abandono do paradigma original.

A mudança descontínua entre paradigmas constitui uma revolução científica, estando inserida em um período denominado por Kuhn de ciência extraordinária. O novo paradigma, aparentemente não assediado por dificuldades supostamente insuperáveis, passará a orientar nova atividade científica (em seus pensar e fazer), em caráter normal, até que também encontre dificuldades que resultem em nova revolução.

Cada paradigma perceberá o mundo como composto de diferentes tipos de elemento. Por exemplo, o paradigma aristotélico via o universo dividido em dois reinos: a região lunar, incorruptível e imutável, e a região terrestre, corruptível e mutável. Paradigmas posteriores passaram a concebê-lo como integralmente composto dos mesmos tipos de substância material. Na química anterior a Lavoisier, afirmava-se que o mundo continha uma substância chamada flogisto, expulsa dos materiais quando queimados. O paradigma imposto por Lavoisier implica que não há semelhante ente, ao passo que existe o gás oxigênio que desempenha um papel muito diferente no processo de combustão. A teoria eletromagnética de Maxweel implicava um éter que ocupava o espaço entre a matéria, enquanto a recolocação teórica (e radical) de Einstein elimina completamente o éter. (KUHN, 1998).

A ciência deve sempre conter meios de romper com o paradigma anterior, passando a outro de maior apropriação. Essa é a função das revoluções nas ciências. Ao se analisar com profundidade e em condições adequadas, se perceberá que todos os paradigmas serão inadequados, em alguma medida, no que se refere à sua correspondência com a natureza ou com a realidade das coisas.

Quando esse nível de compatibilidade se torna baixo, isto é, quando se instaura uma crise, o método revolucionário de substituir todo paradigma por outro torna-se essencial ao efetivo progresso da ciência. Sendo assim, essa natureza progressiva da ciência, derivada dos supracitados conceitos-chave kuhnianos e seus aportes teóricos derivados concorrem para sustentar o caráter não determinista do conhecimento científico, escopo deste texto, especificamente sobre o qual se passa a tratar.

Perspectivas, em Kuhn, de um conhecimento científico não determinista

Na perspectiva de Kuhn, a ciência progride sem que se possa compreendê-la de modo definitivo, ou determinista, mas como um conjunto de conhecimentos – ou de fatos – sempre abertos e mutáveis. E essa progressão é de natureza revolucionária, não linear, não evolucionária.

Considerando-se como pressuposto maior da ciência consistir de um conjunto de dados, teorias e métodos, aceitáveis e corroboráveis, amplamente difundidos pelos textos científicos atuais, então os cientistas são sujeitos que, com ou sem sucesso, empenham-se em contribuir com um ou outro(s) elemento(s) específico(s) para o incremento desse compêndio geral.

O desenvolvimento científico passa a ser visto como um processo gradativo, por meio do qual esses itens são adicionados, isoladamente ou em combinação, à compilação, sempre crescente, da qual se constitui o conhecimento e a técnica das ciências. E a história da ciência, nesse cenário, pode ser concebida como a disciplina que registra tanto esses acréscimos factíveis sucessivos como os obstáculos que inibem sua acumulação conceitual.

No entanto, como se sabe, os instrumentos dos quais a ciência se utiliza, sempre carregam consigo uma alta possibilidade de interferência naquilo que se pretende mensurar,

diferindo dos fatores linguísticos, os instrumentos sempre têm vida própria sem serem necessariamente dominados pelo paradigma ou pela teoria. Em acréscimo às orientações do conhecimento teórico, o desenvolvimento dos instrumentos está baseado em uma cultura material, a qual inclui fatores não-linguísticos tais como técnicas experimentais, procedimentos, habilidades e expertise. Na história da ciência, muitos instrumentos foram de fato projetados e construídos antes das formulações das teorias relevantes, e o avanço dos instrumentos (incluindo as técnicas e habilidades relacionadas) molda continuamente a formulação da teoria. (CHENG, 1997, p. 270).

Esse argumento corrobora a visão de Kuhn de que uma pesquisa em ciências jamais é neutra ou inicia sem pressupostos. A pesquisa eficaz raramente começa sem que uma comunidade científica pense ter adquirido respostas seguras para perguntas como: Quais são as entidades fundamentais que compõem o universo? Como interagem essas entidades umas com as outras e com os nossos sentidos? Quais questões podem ser legitimamente feitas a respeito de tais entidades, e que técnicas podem ser empregadas na busca de soluções? Nas especificidades das ciências exatas, respostas a questões como essas estão firmemente arraigadas no conjunto teórico-metodológico da iniciação profissional que, comumente, visa a preparar o estudante para a prática científica. Entretanto, essa rigorosidade não pode ser tida como um determinismo, no sentido de sua correspondência exata com os objetos que se deseja demonstrar e/ou representar.

A aproximação com a verdade depende da intencionalidade e esta é sempre social e histórica; assim, a exatidão não se coloca nunca como absoluta, eterna e universal, pois a intencionalidade também não o é. A intencionalidade está inserida no processo de as mulheres e os homens produzirem o mundo e serem por ele produzidas e produzidos, com seus corpos e consciências e nos seus corpos e consciências. (CORTELLA, 2011, p. 92).

Desse modo, fatores subjetivos, presentes tanto nas aceitações padronizadas como em suas causas, devem ser considerados como enraizados aos saberes e aos fazeres atribuídos à ciência nas escolhas feitas pela comunidade de cientistas. E essa subjetividade não acarreta perdas ou inconsistências teóricas, metodológicas ou experimentais, mas reafirmam o comprometimento de aceitação do que de mais racional dispõe, cognitiva e empiricamente, aquela comunidade.

No que tange aos aspectos históricos das ciências, na perspectiva de endosso de tal posicionamento de não determinismo e de progressão, verifica-se que dois meios se destacam: a linearidade no ganho de conhecimento imbuída a determinado paradigma dominante, no seio de uma ciência normal, e a ruptura desse modo para aceitação de um paradigma mais sofisticado em sua adequação às novas exigências reais. Esse, por sua vez, diferentemente do anterior, mas não necessariamente melhor (incomensurável, é aqui a terminologia de maior adequação). Tomando a centralidade argumentativa de Kuhn, o segundo meio se sobrepõe ao primeiro, em todo e qualquer mérito aceitável.

Considerações finais

Neste texto, fez-se, fundamentalmente, a partir de aportes teóricos encontrados na epistemologia de Kuhn, uma discussão ampla sobre o caráter não determinista do conhecimento científico.

Como aproximação, partiu-se dos conceitos kuhnianos de paradigma na perspectiva de uma visão científica partilhada por uma comunidade em determinado contexto, tempo e espaço; considerou-se, ainda, o conceito-chave da incomensurabilidade entre dois paradigmas para argumentar a impossibilidade de comparação ou de sobreposição entre paradigmas na confrontação teórica ou experimentação de determinada cadeia de problemas.

Sequencialmente, trouxe-se o conceito de ciência normal como se referindo ao período científico marcado pela estabilidade em face da existência de um único paradigma dominante. À sua bancarrota, quando não mais é capaz de responder satisfatoriamente aos problemas de interesse da comunidade que o partilha, operam forças de anomalias e crises, que promovem uma revolução científica.

Essa revolução leva à substituição do paradigma da ciência normal por outro, definindo o que Kuhn denomina de “progresso do conhecimento científico”. As marcas centrais desse encadeamento de fenômenos são a temporalidade, a condicionalidade, a suscetibilidade e, portanto, a incerteza e o caráter indeterminista do conhecimento científico.

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Recebido: 25 de Outubro de 2017; Aceito: 28 de Fevereiro de 2018

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