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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.2 Caxias do Sul maio/ago 2018  Epub 21-Ago-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.n2.3 

Artigos

Entre a conservação da memória e a possibilidade de novas fundações: o que permanece da tradição em Hannah Arendt?

Between the conservation of memory and the possibility of new fundations: what remains in the conception of tradition by Hannah Arendt?

Daiane Eccel* 

*Graduada em Pedagogia pelo Centro Universitário de Brusque. Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Filosofia pela UFSC, com estágio de doutorado-sanduíche na , na Friederich Alexander Universität em Erlangen/Nürnberg. Atua como professora de Filosofia da Educação (Adjunta 1) no departamento de EED da UFSC. : <daianeeccel@hotmail.com>


Resumo

Já é lugar comum, entre os comentadores e estudiosos de Hannah Arendt, enfatizar que ela diagnosticou o ocaso da tradição do pensamento ocidental, cujo limiar é encontrado nas teses de pensadores como Kierkegaard, Nietzsche e Marx. O que importa, nesta breve investigação, é, no entanto, averiguar no que realmente consiste tal ocaso e o quanto ainda permanece ou necessita permanecer daquilo que ela chama de main tradition? O que, no final das contas, se conserva? É possível pensar em uma refundação em termos de tradição? Para tanto, cabe investigar, primeiramente, o real papel que a tradição exerce para Arendt e, para isso, se remete também a alguns escritos de Karl Jaspers que podem ter exercido influência sobre Arendt. Em um segundo momento, investiga-se o papel da expressão cunhada como “pensar sem corrimão” (denken ohne Geländer), que contribui para pensar em uma espécie de refundação ou renascimento da tradição.

Palavras-chave:  Hannah Arendt; Karl Jaspers; Filosofia política; Tradição

Abstract

The loss of western tradition and its end with the theories of Kierkegaard, Nietzsche and Marx that was diagnosed by Hannah Arendt is recognized and commented by most comentators. In this essay we would like to asking what it is this loss of tradition and, most important: what remains of this tradition or what is needed to remains? Why we need to keep from her? Is it possible to imagine a new fundation of a new tradition? To answer these questions is necessary to investigate wich is the role of tradition for Arendt. In this sense there are some aspects in the Karl Jaspers work wich influenced the Arendts conception on tradition and they will be investigated. After we will inquire what means the expression denken ohne Geländer and how it contribues to think a kind of refundation or rebirth of the tradition.

Keywords:  Hannah Arendt; Karl Jaspers; Political Philosophy; Tradition

Introdução

Em seu texto The loss of tradition, Kohn (2007, p. 37-50) usa a imagem de Jano, o deus romano dos inícios – o deus de duas faces, uma que mira o passado e outra, o futuro, como metáfora para se referir à ideia de tradição de Arendt. Heller, também tratando da tradição em Arendt, cita o poema de Goethe1 que canta a magia de estar em casa, depois que a herdamos e a reconstruímos. (HELLER, 2001, p. 19-32). Ambas as representações, apesar de diferentes, são bastante adequadas para expressar as diversas facetas que a ideia de tradição recebe em Arendt. É ludibriado tanto o leitor que avista a palavra tradição nos textos arendtianos e imagina, na esteira de Heidegger, uma espécie de apologia ao desmantelamento da tradição em Arendt, como aquele leitor que, desavisado, espera encontrar, por algum motivo ou frases de efeito da autora, estar de frente com alguém que busca reabilitar a tradição e voltar aos gregos e romanos com uma espécie de nostalgia demodé.

A relação que Arendt estabelece com a tradição em si e com seu ocaso é complexa, entre outras coisas, porque o que está jogo é a forma como a autora compreende a própria relação com a história, com a cronologia do tempo, com a lacuna entre passado e futuro, com a dicotomia entre modernidade e tradição, com aquilo que já não é mais e ainda não é, instalada na própria modernidade pela modernidade. Sob esse ponto de vista, mesmo sendo uma crítica ferrenha da modernidade que engendrou, em seu próprio bojo, dois regimes totalitários, Arendt é quase a mais moderna de todos os modernos.

Nesse sentido, ela não é uma modernista relutante, como afirma Benhabib (2003), referindo-se ao caráter inevitavelmente moderno da autora e às suas constantes referências aos antigos. Arendt é completamente moderna na medida em que concebe, conscientemente, a existência de uma tradição de pensamento e o seu fim, situado justamente na modernidade. Ora, só reconhece isso quem é capaz de lançar uma mirada retrospectiva, e isso só se dá a partir da modernidade em direção ao passado. Porcel, em sua excelente elaboração do verbete tradição, no Vocabulário Arendt (MARTIN; PORCEL, 2016), afirma que “ruptura da tradição, ‘ruína’, ‘desmantelamento da tradição’, ‘crise’ remetem em Arendt a um campo metafórico mais amplo com o que ela tenta dar conta dos aspectos negativos da modernidade e do mundo contemporâneo”. (2016, p. 222).

A maneira como Arendt lança seu olhar à tradição é, por um lado, completamente diferente de como faziam os medievais e, por outro, crítica com relação aos iluministas, por exemplo. Novamente Porcel (2016), chama a atenção para uma possível diferença entre ideia de passado e ideia de tradição. Parece não ser adequado identificar ambos como se fossem, de fato, o mesmo. Ela faz menção à posição de Draenos,2 que afirma que o que Arendt deseja realmente salvaguardar é o passado e não a tradição. Essa perda poderia significar, no final das contas, segundo as palavras de Porcel (referindo-se a Draenos), um esquecimento de quem somos. (2016, p. 213).

Seria possível erigir uma nova relação com o passado, embora não mais por meio da grande tradição (main tradition)? De fato, passado e tradição não são sinônimos, mas é inegável que o segundo depende diretamente do primeiro. É esse o problema apontado também por Heller no texto supracitado, no qual faz uso do poema de Goethe: herdamos casas e as recriamos, as reformarmos ou então as reconstruímos a partir de algo. Heller deixar claro que o novo, os novos inícios tão caros à Arendt sempre assumem um caráter relativamente contraditório, porque a ação é reconhecida como o novo, como algo que irrompe numa cadeia e recebe o status de, quase por si só, mais nobre do que a cadeia de acontecimentos que ajudou a interromper. Por outro lado, assinala Heller (2001), que se não fosse a existência dessa cadeia anterior de fatos, o novo seria impossível. Um novo regime só é possível porque existe um antigo. Assim, parece que a tradição erigida no passado e pelo passado mantém-se, razoavelmente, longe de nós porque perdemos o fio que nos liga à ela. Não obstante, por outro lado, permanece a pergunta: Seria realmente possível o novo irromper quase como um deus ex machina?

Ficasse Arendt ao lado da tradição, assumindo uma postura conservadora e tradicionalista ou louvasse o fato de a tradição ter chegado ao seu fim, criticando a autoridade como fizeram os iluministas, teríamos nós, seus leitores, uma tarefa menos complexa, mas Arendt é ex-aluna de Jaspers e Heidegger, amiga próxima de Benjamin e contemporânea de Gadamer, nomes todos que, de alguma forma, lidaram com o fim da tradição e foram influenciados por isso. Com exceção de Gadamer que, em seu Verdade e Método (1999), dedica uma subseção para tratar da reabilitação da tradição e da autoridade e com quem Arendt não teve uma relação próxima, todos os demais a influenciaram (e foram influenciados por ela) a ponto de sua concepção de tradição adquirir um caráter múltiplo e nada óbvio.

Muito já se pensou a respeito da questão da tradição em Arendt e, por isso, a tarefa de escrever algo novo, que realmente contribua para o debate sem que faça “mais do mesmo”, torna-se um desafio difícil de ser cumprido. Nesse sentido, a partir de contribuições de comentadores, tenta-se mostrar que é possível encontrar duas concepções paradoxais e quase antagônicas de tradição em Arendt: uma como conservação e preservação (a despeito da ruptura que nos conduz até ela) e outra como superação e abertura para o novo.

1.

Os anos de Arendt em Heidelberg foram, segundo sua biógrafa Young - Bruhel, bastante diferentes dos anteriores que ela havia passado em Marburg. O espírito cosmopolita da cidade, a inserção na comunidade acadêmica e a relação que a jovem Arendt estabeleceu com seu novo orientador, Jaspers, a influenciariam sempre. Jaspers e Arendt mantiveram uma amizade que atravessou o tempo e as fronteiras geográficas. A troca de cartas revela uma preocupação mútua, o cuidado de um para o outro diante das sombras do século passado e, mais do que isso, denota uma troca intelectual profícua que, muitas vezes, é ignorada tanto por parte dos comentadores de Arendt quanto do próprio Jaspers. A relação Arendt/Jaspers não é a mesma que Arendt/Heidegger. Enquanto com seu antigo professor de Marburg, Arendt continuava na posição de musa inspiradora, com Jaspers, ela trocava ideias em um nível de igualdade. O resultado disso é uma troca intelectual mais honesta e mais intensa daquela que ambos tiveram com o próprio Heidegger. Suas considerações em Origens do totalitarismo (1998) e A condição humana (2010) influenciaram nas reflexões jasperianas sobre a bomba atômica, problema que assolava, constantemente, os pensamentos do seu antigo professor de Heidelberg. Também não deixa de ser importante que o próprio Jaspers, antes de Arendt, trata da ideia de tradição de pensamento e cita Kierkegaard e Nietzsche como estando no limiar da tradição, insight que Arendt parece adotar em suas considerações.

Nesse viés, parece que ambos aderem a uma parecida concepção de passado e ideia de tradição. Apesar de não se poder considerar a posição de Arendt como alguém que emula a tradição, como se argumenta em seguida, também não há, por parte dela, qualquer movimento no sentido de desconstrução ou desmantelamento da tradição. O que existe, e isso salta aos olhos, é uma evidente crítica aos rumos que a tradição de pensamento político tomou desde Platão, mas o fato é que a tradição está dada, e Arendt não trabalha a fim de desconstruí-la ou erradicá-la. Diferentemente disso, gostaria de argumentar, neste primeiro momento, a favor de uma ideia de conservação da tradição. Tal conservação não tem maiores pretensões e se deve entendê-la em sua forma mais elementar: a de conservar, por meio da memória, aquilo que foi oferecido ao longo da história, sempre tendo em conta, evidentemente, que, conservada ou não, o fio que nos ligou a ela já foi rompido, e essa situação é irremediável.

Kohn (2007) está correto ao afirmar que Arendt já parte do pressuposto de ruptura da tradição, ou seja, de forma geral, a relação que a autora estabelece com os problemas que rondam a tradição se dá por meio da ruptura. Mesmo levando em conta esse pressuposto básico, por qual motivo ainda resolvemos nos ocupar com uma suposta preocupação de Arendt com uma espécie de “conservação da tradição”? Tem-se, sob esse ponto de vista, uma tarefa difícil: tentar mostrar que, apesar do ponto de partida de Arendt ser a ruptura, há, por parte dela, uma ideia de conservação ou de preservação da tradição, sem que a isso se dê o nome de conservadorismo ou tradicionalismo, e sem que essa conservação seja entendida no sentido de forte. A argumentação se dá via Jaspers, bem como em algumas passagens escritas por Arendt, sobretudo em Entre o passado e o futuro (2005), que atestam a importância de certa base sólida, para que o mundo permaneça erigido.

Segundo Abbagnano (2007, p. 966), tradição corresponde à “Herança cultural, transmissão de crenças ou técnicas de uma geração para outra. No domínio da filosofia, o recurso à Tradição implica o reconhecimento da verdade da Tradição que, desse ponto de vista, se torna garantia de verdade e, às vezes, a única garantia possível”. Arendt, na mesma esteira de Jaspers, tenderia a concordar com tal definição, ou seja, é na autoridade da tradição que habita uma verdade, e foi assim desde que o Ocidente, com os romanos, tomou consciência de uma tradição. Jaspers deixa claro, em alguns de seus escritos, sobretudo em O que é a educação? (1999) que a tradição mostra o caminho para a verdade ou para a possibilidade dela, ou, em outras palavras, que deve haver uma espécie de atenção genuína e uma retomada profunda dos elementos do passado que a tradição ocidental nos trouxe. Jaspers, no entanto, enfatiza que os conteúdos da tradição não devem permanecer vazios, mas ser pensados, levando em consideração questões do nosso tempo. Além disso, apesar de uma ideia de emulação presente em Jaspers (que está ausente em Arendt), não se pode buscar nele uma espécie de tentativa de obediência cega à tradição, pois há, evidentemente, limites a tal obediência, sobretudo quando Arendt trata do “pensamento sem corrimão” (denken ohne Geländer).

A diferença é que, na modernidade, segundo Arendt, a garantia de verdade trazida pela tradição, ao longo de séculos, não existe mais, e isso se consumou com a ascensão dos regimes totalitários. Embora o fim da tradição e a ruptura com o fio da tradição que conduz aos conteúdos do passado não são a mesma coisa,3 a perda ou inversão do morus, os espaços preenchidos pelas lacunas causadas pelo fim da tradição foram substituídos por dois regimes totalitários – mas em princípio, a tradição é, em parte, garantia de uma verdade ou, como afirma claramente Jaspers (1999), significa não somente uma única verdade ou a escolha de um cânone fechado para eleger como verdade dogmática, mas a possibilidade de abertura para muitas verdades. Em tese, Arendt discordaria de Jaspers em sua perspectiva de emulação da tradição, mas concordaria com a preservação da tradição como memória ou, ao menos, como fragmentos de memória, mesmo que tal memória já não exerça autoridade sobre nós como outrora. Além disso, em O que é a educação, Jaspers (1999) lamenta o fato de nos distanciarmos das origens dos conceitos que a tradição trouxe, superficializando-os. Ao que parece, Arendt atenta para certo perigo desse distanciamento, quando afirma em seu Entre o passado e o futuro:

O fim de uma tradição não significa necessariamente que os conceitos tradicionais tenham perdido seu poder sobre as mentes dos homens. Pelo contrário, às vezes parece que esse poder das noções e categorias cediças e puídas torna-se mais tirânico à medida que a tradição perde sua força viva e se distancia da memória de seu início. (2005, p. 52).

Isso, certamente, não significa dizer que Arendt gostaria que a tradição não tivesse chegado ao seu fim, mas que há um diagnóstico que associa o puir da tradição à corrupção dos seus conceitos, ou seja, na medida em que nos afastamos de seu caráter mais originário, ocorre a abertura para, por assim dizer, seu lado mais tirânico. Ou seja, se há uma necessidade de preservação ou de conservação da tradição, ela deve se dar privilegiando a proximidade da memória viva do seu início, endossando, mais uma vez, a importância que o início (arché) ou o novo tem no pensamento de Arendt.

Arendt se apropria da própria tradição que a palavra tradição carrega. Ela a concebe segundo o latim traditio e, em princípio, a autora a define como um fio condutor conduzido por meio do passado e a “cadeia à qual nova geração intencionalmente ou não ligava-se em sua compreensão ao mundo e em sua própria experiência”. (2005, p. 52).4 Não é à toa que a autora associa diretamente o conceito de tradição ao de religião, originário do latim re-ligare, ou seja, aquilo que é responsável por religar algo com o passado. É por esse motivo que, ao iniciar seu prefácio a respeito da quebra de tradição, ou seja, do espaço aberto no tempo, a autora compara o aforismo de Char (apud Arendt, 2005, p. 29): “Nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento”, com aquele que fora escrito anos antes por outro francês, Tocqueville (Tocqueville apud Arendt, 2005, p. 32): “Desde que o passado deixou de lançar sua luz sobre o futuro, a mente do homem vagueia nas trevas.”

Ambas as metáforas servem para indicar o diagnóstico de Arendt, ou seja, o fio da tradição ocidental, aquele que conduz ao passado foi rompido. Os sintomas e o diagnóstico parecem estar claros, mas o problema que se coloca é outro: Qual é o juízo que a própria Arendt faz sobre tal diagnóstico? Em princípio, parece haver, em seus textos, um tom de crítica e de preocupação com a ruptura do fio que liga à tradição. As pistas aparecem quando nos deparamos com suas observações acerca da perda de tradição em áreas pré-políticas, como é, justamente, o caso da educação, por exemplo. Sobretudo no que diz respeito à educação de crianças, a autora mostra, em tom de crítica, que a falta de autoridade pode ter consequências desastrosas à educação, bem como o fim da tradição.

Esse aspecto parece evidente tanto nos textos que introduzem a problemática da perda de tradição quanto em A crise da educação (2003). Em todos esses escritos, a temática sobre a autoridade ou sua moderna perda também vem à luz e, da mesma forma como acontece com a ideia de religião, o conceito de autoridade assume um papel central nas discussões arendtianas sobre tradição. A perda de autoridade está diretamente associada à perda de tradição.

Segundo Arendt, “podemos dizer que a perda da autoridade é meramente a fase final, embora decisiva, de um processo que durante séculos solapou basicamente a religião e a tradição”. (2005, p. 130). A autoridade é definida por Arendt como aquilo que se assenta “sobre um alicerce no passado como sua inabalada pedra angular, [que] deu ao mundo a permanência e a durabilidade de que os seres humanos necessitam precisamente por serem mortais – os mais instáveis e fúteis seres de que temos conhecimento”. (2005, p. 131). Uma de suas mais ferrenhas críticas acerca da crise atual da educação consiste, justamente, no fato de que essa autoridade – o domínio que os mais velhos têm sobre o passado quando comparados aos mais novos – foi completamente perdida. Segundo Carvalho (2017), “afirmar a existência de uma crise na educação significa, inicialmente, reconhecer que perdemos as respostas sobre as quais nos apoiávamos no que concerne aos procedimentos, às escolhas e, sobretudo, ao significado público que atribuímos ao processo educacional. Significa, ainda, que perdemos os critérios nos quais acreditávamos de poder recorrer na busca de tais respostas; que não compartilhamos regras ou princípios que possam nos guiar nessas decisões urgentes. (2017, p. 5). Na medida em que autoridade e tradição são perdidas, não perdemos o passado em si, que, onde está, sempre permanecerá, “mas perdemos o fio que nos guiou com segurança através do vastos domínios do passado” (2005, p. 130) para que ele pudesse, como afirma Tocqueville, lançar luz sobre nosso presente.

A preocupação de Arendt, em A crise na educação (2005), revela-se através do problema da perda do mundo, preocupação que é a origem daquilo que se conhece como amor mundi – tema sobre o qual Arendt tinha planos de escrita, mas que não chegaram a se concretizar. Em última instância, está em jogo a permanência e a manutenção do mundo que criamos e chamamos de nosso. No epílogo de A promessa da política (2008), Arendt alerta ao perigo de não atentarmos para o problema da perda do mundo: “O moderno crescimento da ausência-de-mundo, a destruição de tudo o que há entre nós, pode ser também descrito como a expansão do deserto”. (2008, p. 266).

2.

Em A promessa da política, Arendt cita Tocqueville como um dos autores que prepara o terreno para o fim da tradição de pensamento político e, em seus escritos sobre o judaísmo, a autora trata de uma tradição oculta, aquela que não foi celebrada pelo Ocidente. Dois elementos se repetem constantemente em sua análise: o fato de que ela teve seu início com Platão e seu fim em Marx, sendo seu limiar precedido por Kierkegaard e Nietzsche. Há, ainda, outro dado evidente: o de que seu início foi paradoxalmente maculado por Platão, que, ao mesmo tempo que a fundou, preteriu a política e se colocou ao lado da filosofia, de forma que política e filosofia permanecessem ao longo da tradição como dois elementos quase incompatíveis.

O fim da tradição completou o ciclo com Marx que anunciou, mais uma vez, a separação das duas, preterindo, dessa vez, por meio de Feuerbach, a filosofia. Arendt assume uma postura crítica tanto com relação ao início (na figura de Platão) como ao fim (na figura de Marx). É preciso atentar para o fato de que ela comentou, em uma carta a Jaspers, que talvez houvesse, em Platão, algum sinal, mesmo que remoto, daquilo que levou a tradição ao ocaso, a saber, os regimes totalitários modernos:

Eu tenho a suspeita de que a filosofia não está inteiramente livre de culpa nisso tudo. Não, é claro, no sentido de que Hitler tivesse algo a ver com Platão [...], mas no sentido de que a filosofia ocidental nunca teve um conceito puro de política e não poderia ter tal conceito porque sempre falou do homem e tratou de forma marginal da pluralidade humana. (ARENDT, 2013, p. 126-127).5

Arendt não culpou Platão pelo totalitarismo, mas levou adiante a ideia de que a tradição cunhou o homem pensante ao invés dos homens políticos, e esse é, claramente, segundo ela, um resquício platônico. O que parece livrar Platão de uma acusação mais contundente por parte de Arendt, ou seja, “no sentido de que Hitler tivesse algo a ver com Platão”, é o fato de ela mostrar claros indícios de que o nascimento dos regimes totalitários tem suas fontes na própria modernidade.6 Interessante é notar que ela investiga esses elementos totalitários no marxismo.

Da mesma forma que a acusação não recai diretamente em Platão, mas nas consequências dos seus postulados, ela não se situa diretamente em Marx, mas nos posteriores desdobramentos de suas teorias. De qualquer forma, início e fim da tradição parecem ser alvos constantes de Arendt. Com relação a Platão, parece ser ainda mais grave em vista do peso que tem a ideia de início. Já que foi ele, em sua obra mais tardia, As Leis, que, afirmou que em cada início, mora um deus. A palavra grega arché, mais do que denotar um simples início em um suposto processo de fim e reinício, marca mais do que isso: a ideia de princípio, de que tudo se inicia naquele momento e terá seu desdobramento, em forma de progresso ou não. Para além disso, Jaeger, seu clássico Paideia (2003), afirma que “‘começo’ não quer dizer aqui início temporal apenas, ainda arché, origem ou fonte espiritual, a que sempre, seja qual for o grau de desenvolvimento, se tem de regressar para encontrar orientação”. (2003, p. 5).

Neste sentido, a arché funda um continum que será preservado e perpetuado ao longo dos tempos. A própria Arendt aponta ao fato de que arché tem dois significados, começo e poder, no grego clássico, mas anteriormente indicava que aquele que toma a iniciativa é o líder natural de uma empreitada que necessariamente requer a prattein de seguidores para ser realizada. (2008, p. 91).

O fato de Arendt ter travado críticas a Platão e Marx e, em parte, à tradição que se deu entre eles, faz notar que não há, por parte dela, uma espécie de desejo latente de reabilitação da tradição ou qualquer sinal para emulação.7 Não se trata de uma retomada da tradição nos moldes conservadores ou tradicionalistas ou tampouco de uma superação dela.

Qualquer afirmação desse teor trairia a letra dos próprios textos e contrariaria uma evidência: o fato de ela ser uma moderna. Devemos compreender moderna não no sentido de que ela cultive algum projeto à modernidade, ou ainda, como sinônimo de iluminista ou positivista, como frequentemente se faz, mas como alguém que, por um lado, olha à própria tradição guardada em um passado mais remoto e estabelece alguma relação crítica com ela quanto alguém que também não aceita cegamente os preconceitos difundidos no Iluminismo, com relação à descrença total na autoridade da tradição. Arendt supera essas duas forças antagônicas e parece fazê-lo justamente em razão do tipo de evento político que presenciou no século passado. Ela constatou que as ferramentas que a tradição ofereceu, durante anos para pensar a política, já não cumpriam mais seu papel diante de um século assombrado como atesta a própria autora em seu diagnóstico de época: “Duas guerras mundiais em uma geração, separadas por uma série ininterrupta de guerras locais e revoluções, seguidas de nenhum tratado de paz para os vencidos e de nenhuma trégua para os vencedores”. (1998, p. 11).

Nem as formas de governo inauguradas por Platão, nem as teorias do contrato dos modernos e nem a separação dos três Poderes de Montesquieu ou mesmo as análises políticas de Tocqueville foram capazes de evitar ou alertar à ascensão dos regimes totalitários e tampouco foram úteis para pensá-las posteriormente. É por esse motivo que as últimas linhas do esclarecedor prefácio de Origens do totalitarismo (1998) excluem as dúvidas daqueles que tendem a encontrar, em Arendt, qualquer resquício de uma tradição de pensamento político que deva ser reabilitado:

Já não podemos nos dar o luxo de extrair aquilo que foi bom no passado e simplesmente chamá-lo de nossa herança, deixar de lado o mau e simplesmente considerá-lo um peso morto, que o tempo, por si mesmo, relegará ao esquecimento. A corrente subterrânea da história ocidental veio à luz e usurpou a dignidade da nossa tradição. Essa é a realidade em que vivemos. E é por isso que todos os esforços de escapar do horror do presente, refugiando-se na nostalgia por um passado ainda eventualmente intacto ou no antecipado oblívio de um futuro melhor, são vãos. (1998, p. 13).

Não há, por parte da pensadora, qualquer eleição de um cânone rígido guardado na tradição que possa servir de aporte à investigação e reflexão acerca do nosso tempo. Não há verdade na tradição ou, ao menos, nenhuma verdade que deva ser levada a sério no momento de pensar sobre os novos problemas. Aqui está presente parte da influência recebida de Heidegger (2012). Arendt parece não postular uma desconstrução da tradição no sentido forte, como faz Heidegger ao tratar do desmantelamento da metafísica, mas há uma constatação irrevogável de que insistir em pensar nos problemas, a partir da tradição, tornou-se uma tarefa obsoleta e quase de irresponsabilidade com o mundo, já que a própria tradição de pensamento político obnubilou a política relegando-a a uma categoria de fins e meios. Daí decorrem três pontos fundamentais: a) que a tradição, em parte, tem um caráter problemático com relação à política, na medida em que nunca pensou nos homens, mas no homem; b) que a tradição já não oferece mais as ferramentas conceituais necessárias para pensar em nossos tempos; e c) que já não há uma continuidade da tradição, visto que seu fio foi rompido. É por esse motivo que parece muito claro o fato de Arendt reconhecer que nos encontramos jogados em uma espécie de vácuo entre o passado e o presente como aparece em seus escritos posteriores.

Arendt é, novamente sob esse ponto de vista, uma pensadora inserida em seu próprio tempo. A maneira como ela opera quanto à dicotomia instalada entre modernidade e tradição não é de otimismo e nem de pessimismo com relação ao passado, ao presente e ao futuro. Ela não cultiva qualquer projeto de modernidade a la Habermas, que afirma que denuncia a incompletude de tal projeto e guarda esperanças com relação a ele. Ela tampouco lança a modernidade contra uma tradição no passado. Seu modus operandi de pensamento está mais relacionado com os acontecimentos e não, necessariamente, com o tempo em sua forma cronológica. Há crítica em seu julgamento com relação à tradição, mas tal crítica não é fruto do otimismo dos séculos XVIII e XIX que enxergaram, nos novos tempos, as luzes que estavam apagadas no passado. Sua crítica à maneira como a tradição lidou com a política é fruto do rumo que os acontecimentos políticos tomaram no século XX e do fato de que a própria tradição de pensamento político velou a política.

Nem sempre os mal-entendidos relativos à ideia de que Arendt incitasse uma volta ao passado e reabilitasse a tradição são advindo de recorrentes voltadas aos gregos e romanos, mas também de alguns de seus argumentos, quando trata do fim da tradição. Em alguns momentos, Arendt imprime um tom de desalento e preocupação em seus textos ao tratar dessa problemática, o que pode levar o leitor a entender que ela anseia por uma volta ao passado ou busca reabilitar a tradição, ora tentando retomá-la de alguma forma, ora tentando superá-la.

Gadamer (1999) também dedica boa parte de seu Verdade e método ao problema da tradição, e é tentador traçar uma associação direta entre ele e Arendt, já que a fonte do problema é o mesmo, e uma das influências também: Heidegger. Com a intenção de elencar subsídios e argumentar a favor de uma hermenêutica filosófica, Gadamer (1999) recupera uma série de questões que devem ser rediscutidas à luz da hermenêutica.

O problema da tradição não é o único ponto partilhado com Arendt, pois que ele retoma, também, a problemática do sensus communis quando trata dos conceitos fundamentais do humanismo, que recebe especial atenção de Arendt em A vida do espírito (2009). Ao tratar da tradição, Gadamer e Arendt partem do mesmo diagnóstico, a saber, que a tradição, ou a autoridade, não tem nenhum grau de dificuldade de continuar se estabelecendo conscientemente no mundo moderno. Arendt, no entanto, é mais radical do que seu conterrâneo e não hesita em falar de um fim da tradição, enquanto Gadamer insiste em outro ponto. Ele reconhece que, em vista sobretudo do Iluminismo, se difundiu um preconceito que afirma que razão e autoridade e, portanto, também tradição, são incompatíveis. (1999, p. 368). Por outro lado, como tentativa de salvação, surge o Romantismo como opositor a Aufklärung e com uma guinada a favor da tradição que assume contornos tradicionalistas. (1999, p. 375). Como cita o próprio autor, “é uma reflexão crítica própria, que aqui se volta de novo para a verdade da tradição, procurando renová-la, e que pode ser chamada de tradicionalismo”. (1999).

Ao invés do antagonismo entre as duas posições extremadas afirmando que “tanto a crítica da Aufklärung à tradição quanto sua reabilitação romântica, ficam muito aquém de seu verdadeiro ser histórico”. (1999, p. 374). A tradição em Gadamer pode ser entendida como conservação, mas há, sobretudo e aí reside a diferença com a autora, a certeza de que a tradição de pensamento se encontra atuando em nosso meio. Seu argumento é que tanto nos momentos em que nos propusemos a emulá-la ou mesmo quando adotamos posturas revolucionários com relação à tradição,

encontramo-nos sempre inseridos na tradição, e essa não é uma inserção objetiva, como se o que a tradição nos diz pudesse ser pensado como estranho ou alheio; trata-se sempre de algo próprio, modelo e intimidação, um reconhecer a si mesmos no qual o nosso juízo histórico posterior não verá tanto um conhecimento, mas uma transformação espontânea e imperceptível da tradição. (1999, p. 374).

Tomando as palavras de Gadamer como ponto de referência, é possível notar quão radical é o diagnóstico de Arendt com relação à tradição. Para Gadamer a tradição está inserida, atua na investigação filosófica e é um ponto fundamental à hermenêutica, mesmo quando a transformamos, pois todos estamos inseridos em uma finitude e uma relação ativa com o passado. Para esse pensador, está pressuposta uma espécie de esperança com relação à tradição que vai além da ideia de conservação, já que a própria tradição é mediadora da investigação filosófica e há uma relação direta entre o pesquisador, seu problema de investigação e ela. Para Arendt, ao contrário, deparamo-nos com uma espécie de limbo e uma falta de perspectivas. Enquanto Gadamer nos fala de uma inserção, um não estranhamento ou uma não alienação quanto à tradição, Arendt faz uso do aforismo de Char (apud Arendt, 2005, p. 29) para descrever nossa situação: “Nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento”.

Contrapor Arendt à tradição conservadora ou mesmo àqueles que não se filiam a nenhuma escola, mas em algum grau desejam partir de pressupostos contidos na tradição e a partir disso realizar um diagnóstico da modernidade com base nos antigos como Jacques Maritain ou Eric Voegelin – para citar os nomes lembrados pela própria Arendt,8 talvez seja elementar demais e não nos ajude a perceber as peculiaridades do pensamento de Arendt com relação à tradição. Nesse viés, contrapor Arendt a Gadamer pode, justamente, ser uma boa estratégia na medida em que as próprias considerações de Gadamer coincidem, em parte com as de Arendt (quando tratamos da ideia de conservação em seu sentido mais fraco), mas se distinguem dela neste ponto fundamental: Arendt parece assumir uma radicalidade aparente quanto ao fim da tradição.

O visível limbo no qual nos coloca Arendt com relação à tradição deve ser entendido como diagnóstico crítico, mas nunca como uma espécie de pessimismo exagerado. O fato é que nossa autora não espera nada na e da modernidade, já que não há um plano a ser cumprido. Ela rejeita qualquer tipo de filosofia da história que pressuponha algum modelo de progresso ou regresso. Diferentemente do que havia sido prometido pelo Cristianismo, a saber, que seríamos conduzidos à salvação eterna, e que nosso ethos era formado nesse sentido, ou na mesma esteira, o que prometia o famigerado otimismo do Iluminismo com relação à razão e depois o positivismo comteano com relação à ciência, agora caminhamos todos juntos para lugar algum, sem rumo, com a única vantagem de não mais padecermos sob um determinismo histórico ou qualquer coisa parecida. Há somente as consequências dos nossos discursos e feitos de caráter imprevisível. Nesse sentido, Arendt funda uma espécie de teoria da ação em sua A condição humana, como afirma Schittino:

O que Arendt quer defender com sua teoria da ação, que nos parece realmente uma teoria da história, mas não uma filosofia da história, é que a história não está determinada por nenhum sentido prévio e nem mesmo pode ser controlada pelo homem. Na concepção arendtiana, esse é o preço da liberdade. Garantir a possibilidade de contingência é o mesmo que assegurar a possibilidade de liberdade. O homem só é livre porque não há nada determinado em relação aos feitos e eventos. Por destacar a presença de um quinhão de causalidade em toda ação humana, e, com isso, afirmar a própria liberdade da ação, a autora aufere que todo acontecimento guarda afinidade com um milagre. (2010, p. 194).

A história não caminha para lugar nenhum: nem para um infinito progresso, nem para uma regressão, nem para o fim da política, nem necessariamente para algum recomeço. O modelo de ciclos traçado pela tradição desde Platão, o plano linear do Cristianismo que tinha como fim último a escatologia, a filosofia da história de Hegel ou o progresso a custa da realização da ciência como previa Comte e mais algumas seguranças que nos eram oferecidas pela tradição, caíram por terra na modernidade. Eis o paradoxo tempo no qual vivemos. Essa nova e paradoxal perspectiva instalada no seio da modernidade remete, sempre mais, ao que é contingente, do que é necessário e, a partir dela, é que parece fazer com que Arendt chegue à conclusão de que o máximo que conseguimos (e deveríamos fazer) em termos de tradição é conservá-la, mas não recuperá-la, emulá-la, superá-la ou utilizá-la como uma espécie de modelo ou ferramenta que nos ajude a pensar no nosso tempo.

Conclusão

O fato de que a tradição se encerrou com Marx e teve seu rompido definitivamente com a ascensão dos regimes totalitários conduz a duas percepções: a primeira aponta que há um diagnóstico fechado de Arendt com relação a esse fim, a saber, é irreversível por mais que possa ser lamentável em algum grau, sobretudo por parte dos conservadores. Essa percepção fecha o caminho, já que, a partir dela, não é possível seguir adiante. Por outro lado, no entanto, parte dos comentadores de Arendt apresentam duas outras maneiras de encarar esse diagnóstico: a) a própria letra do texto da autora indica que é possível “ouvir a tradição de uma forma” e, nesse sentido, reforçamos o argumento de que ela deve ser conservada; e b) com o fim e certa liberação da tradição antiga, indicamos a abertura para pensar o novo, pois, justamente, se libera da antiga tradição. Esse é um tipo de raciocínio que transforma o diagnóstico razoavelmente pessimista de Arendt dando-lhe uma coloração mais otimista. Aqui valem as observações de Carvalho (2017) que apontam ao fato de que o termo grego krisis, não necessariamente, conduz a algo negativo que indique “declínio ou degeneração” (2017, p. 8), mas diferente disso, pode remeter “a alguns dos usos primeiros que o termo grego krisis comporta: ação de separar, distinguir; escolha, seleção; ação de julgar, decidir, donde sua vinculação etimológica com o termo kriterion, que poderia ser definido como: critério, faculdade de julgar ou norma para discernir o verdadeiro do falso”. (2017, p. 8-9).

No primeiro caso, ou seja, na medida em que o passado, de alguma forma, nas palavras da própria autora, “se abra para nós com inesperada clareza e nos conte coisas que ninguém tivera ouvidos para ouvir”, está “implícita nisso a grande chance de olhar o passado com olhos isentos da tradição”. (2005, p. 35). Esse tipo de relação a ser estabelecida com o passado, depois do ocaso da tradição, só é possível se esse ainda chegar, se nos for transmitido e, portanto, deve manter-se preservado de alguma forma.

Para além disso e para se contrapor à tradição que chegou preservada, Arendt alude, em outro texto, aquilo que a autora chama de tradição oculta. Este conceito tradição oculta é utilizado de maneira específica para designar um tipo de tradição que o Ocidente ocultou ou mascarou como sendo seu, aquilo que permanece não dito ou não narrado ou que escolhemos não contar e não preservar, ou então, que caracterizamos como sendo própria do Ocidente, mesmo tendo como fundamento a tradição judaica. Arendt recupera uma série de textos e ideias de alguns pensadores judeus, bem como excursos sobre o sionismo e imperialismo e faz certa tentativa de inserir autores judeus na pauta da modernidade ocidental, já que essa os havia relegado à periferia do pensamento.

A retomada de uma tradição oculta, ou seja, algo que já existia e era conhecido por um grupo minoritário, mas desprezado pela grande tradição ocidental, é o meio do caminho a outra possibilidade sugerida por Arendt: a abertura para o novo. Ou seja, ainda para além de nos relacionarmos de outra forma com a nossa antiga tradição e, além de atentar para tradições ocultas de pensamento, a saída mais radical e promissora indicada por Arendt é que o pensar sem corrimão, guarda uma ambiguidade: sua forma negativa está no fato de que não há nada para nos apoiarmos, já que não há escoras da tradição, fato causado pela ruptura. Sua forma positiva encontra-se justamente na possibilidade de fundação do novo. Curiosamente, aqui aparece, novamente, na figura de Jaspers que, quando mal-interpretado aparece como um conservador em termos de tradição, já que atribui certa sabedoria à autoridade do passado, mas que, por outro, Jaspers (1999) alerta para o fato de termos de estar abertos àquilo que ele chama de exceções, ou seja, a possibilidade de algo surgir de fora da tradição. Em termos políticos, isso se concretiza por meio das revoluções e, sobretudo por meio de refundações. Importa, aqui, novamente, atentar àquilo que já assinalamos acima: trata-se de lançar um olhar positivo – embora cauteloso à ruptura da tradição conforme afirme Porcel:

Assim como na natalidade e a capacidade de inovar através da ação permitem romper o continuum biológico da vida humana, assim também as rupturas são ocasião para que a capacidade humana de pensar sem categorias prévias permita aos seres humanos a compreensão do novo que surge na brecha entre o passado e o futuro. (2016, p. 222)

1Wer aud die Welt kommt, baut ein neus Haus, Er geht und lasst es einm zweiten, Der wird sich’s anders zubereiten, Und niemand baut es aus.

2Beatriz Porcel faz menção à obra de Stan Pyros Draenos, “Thinking Without a Ground”, presente na obra organizada por Melvin Hill, Hannah Arendt: the Recovery of the Public World, New York, St. Martin’s Press, 1979, p. 213-214.

3Importa, aqui, fazer a distinção entre o fim efetivo da tradição com os escritos de Marx, cuja anunciação já se dava com Kierkegaard e Nietzsche e a ruptura com a tradição causada pelos regimes totalitários. No primeiro caso, parece se tratar de um movimento interno da própria tradição e no segundo, um movimento externo a ela, a saber, algo contingencial da modernidade de forma que não é completamente possível pressupor uma relação clara ou direta de causa e efeito entre o fim da tradição e a ascensão dos movimentos totalitários. Isso significa afirmar que os regimes totalitários não surgiram porque a tradição chegou ao seu fim, já que é crucial lembrar o diagnóstico arendtiano de que o totalitarismo tem suas causas na própria modernidade e não fora dela, ou seja, não em uma continuidade ou interrupção da tradição. Diferentemente disso, significa que o fio da tradição foi rompido em razão dos movimentos totalitários.

4Gostaríamos também de assinalar a singularidade da palavra alemã Überlieferung. Em princípio, o termo Tradition é o mais utilizado, sobretudo quando se trata de Arendt, mas a etimologia da palavra Überlieferung, sinônimo de Tradition, também é capaz de expressar exatamente a semântica de tradição, já que Lieferung denota fornecimento ou entrega, enquanto a preposição über indica a forma como isso é feito. Überlieferung significa, portanto, algo que é entregue, que atravessa, que passa por, que perpassa um caminho e chega, é dado em algum lugar. Trata-se de um conceito difícil, porque a noção de história grega é muito alheia. A palavra parádosis, que é usada por Tucídides e por Platão, é a base do latim traditio. Pará significa, nesse caso, “para frente, além de, adiante”, estando em consonância com trans; e dósis, originário do verbo dídomi (dar), que se reflete no latim ditio (trans+dare), donde traditio ser uma tradução literal de parádosis, que vem do verbo paradídomi. Em alemão apenas se troca o verbo “dar” pelo verbo entregar, transportar.

5Texto no original: “Nun habe ich Verdacht, dass die Philosophie na dieser Bescherung nicht ganz unschuldig ist. Nicht natürlich in dem Sinne, dass Hitler etwas mit Plato zu tun hätte [...] Aber wohl in dem Sinne, dass diese abendländische Philosophie nie einen reinen Begriff des Politischen gehabt hat und auch nicht haben konnte, weil sie notgedrungen von dem Menschen sprach die Tatsache der Pluralität nebenbei behandelte.”

6Isso parece ficar claro em Origens, já que tais regimes não podem ser desvinculados do “homem de massa” ou de uma “sociedade de massa” tipicamente moderna. Não obstante, importa notar que por mais que Arendt insista no fato de que a origem dos regimes totalitários se deu dentro da própria modernidade, essas especulações, com relação a Platão e Marx, podem colocar o leitor diante de uma aporia: se levada até as últimas consequências a constatação de Arendt de que o totalitarismo é, em parte, fruto do não reconhecimento da pluralidade humana e esta falta de reconhecimento tem suas origens já em Platão, então, seria possível afirmar que Platão tem um grau de culpa com relação aos regimes totalitários modernos. Caso aceitássemos isso, a tese de que o totalitarismo tem suas origens engendradas exclusivamente na modernidade e não fora dela, teria que ser abandonada. As interpretações para suas considerações sobre o totalitarismo teriam que ser revistas sob esta ótica, e isso naturalmente, exerceria grande impacto sobre o que entendemos por tradição em sua obra. Ainda para além disso, teríamos outro entendimento acerca das concepções arendtianas sobre a história. Talvez fosse possível colocar a autora em debate com Hans Blumenberg, autor de Die Legitimität der Neuzeit (A legitimidade da modernidade), que postula a tese de que, apesar de a modernidade não ser uma criação ex nihilo, ela é nova e legítima ante à tradição. O que estaria em jogo aqui seria a modernidade como continuação ou não da tradição.

7Nesse sentido, tendemos a concordar com Duarte (2003) que reitera este aspecto.

8Presente no texto “O interesse pela política no recente pensamento filosófico europeu”, em Compreender: formação, exílio e totalitarismo. Belo Horizonte: Companhia das Letras; Ed. da UFMG, 2008.

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Recebido: 23 de Maio de 2018; Aceito: 07 de Junho de 2018

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