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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.2 Caxias do Sul maio/ago 2018  Epub 20-Ago-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.n2.5 

Artigos

Angústia e desespero como possibilidade de construção da existência humana a partir da filosofia de Sören Kierkegaard

Anguish and despair as a possibility of contructing human experience from the Sören Kierkegaard’s philosophy

Luciano da Silva Façanha* 

Leonardo Silva Sousa** 

*Pós-Doutor em Filosofia, Estética do Século XVIII pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Doutor e Mestre em Filosofia pela PUCSP. Bacharel em Direito pela Universidade Cidade de São Paulo. Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Atua na UFMA, como professor Adjunto no Departamento de Filosofia (Defil). Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade – Mestrado Interdisciplinar (PPGCult). Professor nos Programa de Mestrado em Cultura e Sociedade e Mestrado Profissional em Filosofia da UFMA – PROF-Filo/UFMA. Foi coordenador do DINTER em Filosofia USP/UFMA. : <lucianosfacanha@hotmail.com>

**Mestre em Cultura e Sociedade – Mestrado Interdisciplinar pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Graduado em Filosofia pela UFMA. Membro do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciências Humanas, Contingência e Técnica. Membro do GEPI Rousseau da UFMA. Professor no Instituto Florence. Professor substituto na UFMA. : <leonardo.sousa@hotmail.com>


Resumo

O objetivo do artigo consiste em analisar a experiência de angústia e de desespero, tomando como base a filosofia existencial de Sören Aabye Kierkegaard (1813-1855). Ao refletir sobre a angústia e o desespero, intentamos acentuar o caráter positivo de tais experiências. Através da angústia, o homem pode ter o reconhecimento de que é um ser-capaz-de e qu, diante de diversas possibilidades, pode escolher, exercitando sua liberdade. No tocante ao desespero, o homem pode perceber os graus de inautenticidade de sua condição existencial. A partir desse dado, pode tomá-lo como ponto de partida à construção de uma existência esclarecida e autêntica, realizando a síntese do finito e do infinito, do temporal e do eterno, da possibilidade e da necessidade. Para este texto, tomaremos como base as obras O conceito de angústia (1844) e A doença para a morte (1849).

Palavras-chave:  Angústia; Desespero; Liberdade; Construção da existência

Abstract

The objective of this article is to analyze the experience of anguish and despair, based on the existential philosophy of Sören Aabye Kierkegaard (1813-1855). Reflecting on the anguish and despair, we accentuate the positive character of such experiences. Through the anguish, the man can take that recognition is a being-able, and that several possibilities, can choose, exercising your freedom. In desperation, the man can see the degrees of inauthenticity of your existential condition. From that data, can take it as a starting point for the construction of a clear and authentic existence, performing the synthesis of finite and infinite, of the temporal and the eternal, of possibility and necessity. For this text, we shall take as a basis the works the concept of anxiety (1844) and the illness to the death (1849).

Keywords:  Anguish; Despair; Freedom; Construction of the existence

1 Introdução

Como podemos considerar o que é uma atitude filosófica? Bornheim (1998, p. 24), em seu livro Introdução ao filosofar: o pensamento em bases existenciai, parece dar algumas pistas ao retomar as ideias do saudoso pensador Jaspers a respeito de três atitudes que representam o agir filosófico. A primeira delas é a admiração, encontrada na Grécia, em especial com Platão e Aristóteles. Com a admiração, “o homem toma consciência de sua ignorância; tal consciência leva-o a interrogar o que ignora, até atingir a supressão da ignorância, isto é, o conhecimento” (BORNHEIM, 1998, p. 24). A segunda atitude encontra-se na dúvida que tem, em Descartes, seu grande representante. A partir da dúvida, o filósofo é capaz de colocar em questionamento certos conhecimentos ou opiniões que são alimentados por superstições, buscando atingir a clareza da verdade a partir de um rigoroso método, tal como o filósofo francês assim ficou conhecido. Por fim, a terceira atitude que caracteriza o agir filosófico é a insatisfação moral, já que o homem começa a questionar os fatos sociais que o rodeiam e, desse modo, “a filosofia se impõe como a tarefa a partir do momento em que esse homem quotidiano cai em si e se pergunta pelo sentido de sua existência”. (BORNHEIM, 1998, p. 24). O filósofo é, então, aquele ser movido por um impulso de admiração que permite fazer com que ele saia da caverna que é sua ignorância para atingir o conhecimento possível. É, também, aquele que coloca em questionamento certas verdades a partir da dúvida. E, movido por uma insatisfação moral, pode vir a tratar de questões referentes à sua existência e a de outros indivíduos.

É a atitude de insatisfação moral, ou insatisfação existencial, que caracteriza o autor que pretendemos explorar neste trabalho. Sören Aabye Kierkegaard (1813-1855), reconhecido pela sua crítica ao pensamento sistemático, afirmara, em seu famoso Pós-escrito não científico às migalhas filosóficas (1846) que os homens de sua época “esqueceram o que é existir e o que há de significar interioridade”. (2013, p. 254). Segundo esse filósofo dinamarquês, existir equivale a atingir a condição de ser um indivíduo singular na expressão dinamarquesa den Enkelte, que não condiz ao homem visto como representante apenas do gênero humano, inserido em uma sociedade com ritos e práticas sociais. Mais do que isso, significa o homem que tomou a decisão de desenvolver sua individualidade com consciência, comprometido com suas escolhas e decisões, sem se deixar ser absorvido pela multidão ou padronização.

Sua insatisfação nasce diante das circunstâncias de sua sociedade. O filósofo observava o fenômeno da multidão nas ruas de Copenhague, uma capital que se dizia cristã como toda a Dinamarca, pois o protestantismo era a religião oficial daquele país e, consequentemente, nascer dinamarquês era quase sinônimo de nascer cristão. Mas Kierkegaard questiona essa situação. Diz o autor em Ponto de vista explicativo em minha obra de escritor (escr. 1889; publ. póst. 1859):

Que significa que tantos milhares de homens se digam cristãos tão facilmente? Como podem obter este nome inúmeros homens, cuja imensa maioria, segundo tudo leva a crer, vive sob categorias tão diferentes, como o demonstra a mais superficial observação? Como conseguem eles, homens que talvez nunca vão à igreja, nunca pensem em Deus, nunca pronunciem o seu nome, senão para blasfemar? Como conseguem eles, homens que nunca compreenderam que podem ter na sua vida uma obrigação com Deus, e que fazem de uma certa integridade física o máximo do seu ideal, se nem sequer a acham absolutamente necessária? Todos, no entanto, até os que negam Deus, são cristãos, são enterrados como cristãos pela Igreja, são enviados como cristãos pela eternidade! (KIERKEGAARD, 1986, p. 42).

Todos poderiam ser considerados cristãos, até aqueles que blasfemavam ou negavam Deus, pois esses haviam nascido em solo dinamarquês. No entanto, para Kierkegaard, o homem não nasce homem, ele se tornar, e o tornar-se é um processo. Do mesmo modo, o cristão está em constante movimento de tornar-se, buscando realizar a síntese entre eternidade e temporalidade. Tal como a existência, a vida cristã é um movimento e um exercício contínuo e o Cristianismo, segundo o autor, não pode ser alcançado na multidão, mas no esforço e martírio pessoais do homem em estabelecer uma relação com o Pai-Criador.

Kierkegaard é o autor que parte da existência analisando a psicologia do homem. E, para tal atividade, recorre a uma escrita rebuscada valendo-se de pseudônimos que apresentam possibilidades de existência, nomeadas como “estádio estético”, “estádio ético” e “estádio religioso”. Em cada uma dessas possibilidades de existência, o homem pode ser tomado por experiências que o qualificam como ser existencial, tais como: de angústia, de desespero, de tédio e de absurdo.

O filósofo reflete sobre a experiência de angústia e de desespero. A angústia faz parte da existência do homem, assim como a carapaça de uma tartaruga. Ele não pode fugir dela, muito menos ignorá-la. O desespero é uma condição que surge de uma má-relação entre termos que constituem a própria existência do ser humano. De início, são expressões que assustam o homem, afinal, o que muitos indivíduos procuram em sua estada existencial é a tranquilidade e o conforto que o mundo temporal pode lhes proporcionar. E, assim, buscam distanciar-se do sofrimento e da dor, e consequentemente de situações que o levem ao sentimento de angústia ou de desespero.

Entretanto, não estamos falando de uma angústia ou de um desespero qualquer. Pela angústia, o homem pode sentir que está diante de diversas possibilidades, sendo que uma escolha efetuada pode ser decisiva à sua existência. No tocante ao desespero, ele pode ser o ponto de partida à transformação da existência. Sendo assim, o objetivo deste artigo consiste em apresentar a experiência da liberdade a partir do sentimento de angústia e a construção da existência a partir do estado de desespero, recorrendo às reflexões do filósofo dinamarquês Kierkegaard. Trata de caracterizar o que é a angústia e o que é o desespero, destacando como Kierkegaard apresenta sua antropologia da existência, caracterizando os termos que definem o homem através da experiência de angústia e de desespero. Para tal atividade, tomaremos como base as obras O conceito de angústia (2010) e A doença para a morte (1849), assinadas com os pseudônimos Vigilius Halfniensis e Anti-Climacus, marca registrada da escrita filosófica do pensador em estudo.

A experiência de liberdade a partir de O conceito de angústia (1844)

Kierkegaard reflete sobre essa experiência a partir da obra O conceito de angústia também chamada pelo longo título de Uma simples reflexão psicológico-demonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado original. Seu ano de publicação é 1844, mesmo ano de publicação de Migalhas filosóficas assinada por Johannes Climacus, outro pseudônimo de destaque usado pelo filósofo dinamarquês.

Para pensar a respeito da angústia, Vigilius Halfniensis quer partir do pecado ou das possibilidades de pecar. Sobre esse tema, enfatiza que o pecado é assunto da dogmática, mesmo afirmando, já na introdução de seu livro, que “o objeto da nossa ponderação é uma tarefa que interessa à psicologia” (KIERKEGAARD, 2010, p. 11), embora essa só possa analisar o pecado diante da possibilidade e das circunstâncias anteriores ao ato de pecar, em suma, como ele pode surgir. Depois, a psicologia deve devolver o assunto à dogmática.

Na relação entre pecado e angústia, o autor toma como “norte” para discussão, a história de Adão, primeiro homem que vem representar o gênero humano. Em sua dada circunstância, assinala Halfniensis, Adão é aquele que está sob estado de inocência. E, nesse sentido, inocência é sinônimo de ignorância:

A inocência é ignorância. Na inocência, o ser humano não está determinado como espírito, mas determinado psiquicamente em unidade imediata com sua naturalidade. O espírito está sonhando no homem. Tal interpretação está em perfeita concordância com a Bíblia que, ao negar ao homem em estado de inocência o conhecimento da diferença entre o bem e o mal, condena todas as fantasmagorias católicas sobre o mérito. (KIERKEGAARD, 2010, p. 41-42).

Ao estar determinado em uma unidade imediata com sua naturalidade, Adão não tem competência para distinguir aquilo que é bom do que é mau para si, pois o que se manifesta no primeiro homem é um estado de inocência. No entanto, Deus o proíbe de comer os frutos daquela misteriosa árvore. Uma lei foi imposta, mas Adão não sabe o que é uma lei ou uma proibição, já que a linguagem (tal como a concebemos) não faz parte de dada circunstância. Mas como Adão toma conhecimento de que não pode alimentar-se dos frutos daquela árvore? Provavelmente pela forma como a proibição é anunciada, pois um cachorro sabe quando seu dono está insatisfeito com ele ou zangado devido ao tom de sua voz. Esse mesmo cão recua ao cometer um erro novamente, com medo de contrariá-lo.

Adão não é um ser qualquer, não é como os outros animais. A proibição o leva a uma experiência. Mesmo não sabendo a distinção entre o bem e o mal, essa situação o angustia. Adão está de frente a uma possibilidade: comer ou não o fruto e, assim, subverter uma lei. Essa situação incomoda o primeiro homem, gerando um temor diante da possibilidade de contrariar o Criador, mas paralelamente a isso, um tremor ante a possibilidade de conhecer algo totalmente novo. É por isso que, argumenta Halfniensis, a angústia também pode ser reconhecida como uma experiência ambivalente, açoitando a consciência do homem, mas também, convidando-o a tomar conhecimento das possiblidades:

Se quisermos considerar as determinações dialéticas da angústia, mostrar-se-á que esta justamente possui a ambiguidade psicológica. A angústia é uma antipatia simpática e uma simpatia antipática. Vê-se facilmente, penso eu, que esta é uma determinação psicológica num sentido inteiramente diferente daquela da concupiscentia. A linguagem usual o confirma inteiramente, pois dizemos: a doce angústia, a doce ansiedade, e dizemos uma angústia estranha, uma angústia tímida, etc. (KIERKEGAARD, 2010, p. 46).

Doce ou estranha experiência, Adão é tomado pelo caráter ambivalente da angústia. Então, o primeiro homem decide pela infração e toma conhecimento de que pecou contra Deus. Mas também toma conhecimento de que, diferentemente dos animais que não podem se angustiar, está lançado em um mar de possibilidades. O que a angústia apresenta é a possível ideia, embora não tão concreta em Adão, da “realidade da liberdade como possibilidade antes da possibilidade”. (KIERKEGAARD, 2010, p. 45). O primeiro homem percebe uma vertigem de liberdade na possibilidade de cometer a ação e a capacidade de tomar conhecimento de algo que ainda não experimentou ou vivenciou. A angústia, assim, informa que Adão é um-ser-capaz-de, no sentido de realizar possibilidades, como expõe o autor Kierkegaard (2010, p. 48): “O que tinha passado desapercebido pela inocência como o nada da angústia, agora introduziu nele mesmo, e aqui de novo é um nada: a angustiante possibilidade de ser-capaz-de”.

Com a queda, Adão dá um salto qualitativo, pois, embora tenha cometido um erro contra Deus e tomado conhecimento do pecado e de que agora é um pecador, sua consciência começou a manifestar-se e, assim, o primeiro homem já não está em um total estado de ignorância como se encontrava ante a possibilidade de pecar.

A angústia é um sentimento no qual o homem pode experimentar in mente uma diversidade de possibilidades que pode tentar realizar. Adão ainda está em estado de ignorância, e a possibilidade de pecar o leva ao sentimento vertiginoso de liberdade. Mas tudo isso acontece devido a esse simpático e antipático sentimento que só o homem experimenta. Halfniensis não se prende apenas a Adão, mas também recorda de que ela aparece em todas as nações e se encontra até mesmo nas crianças:

Observando-se as crianças, encontra-se nelas a angústia de um modo mais determinado, como uma busca do aventuroso, do monstruoso, do enigmático. Que haja crianças nas quais ela não se encontra, nada prova, pois, o animal também não a tem, e quanto menos espírito, menos angústia. Esta angústia é tão essencial à criança, que esta não quer ver-se privada dela; e mesmo se ela angustia também a cativa com sua doce ansiedade. (KIERKEGAARD, 2010, p. 46).

Essa busca pelo aventuroso (ou monstruoso) que o ser humano vivencia em sua infância não seria a vertigem de liberdade que o homem vislumbra a partir da angústia? O que o autor de O conceito de angústia nos informa é que esse sentimento acompanha, passo a passo, a existência do indivíduo no sentido de que também pode apresentar-se como uma escola de formação do ser humano. Mas em que sentido? Seria interessante nos apropriarmos de um exemplo: Suponhamos que um homem, que carrega uma enfermidade há cerca de 10 anos, toma conhecimento de um procedimento que pode ajudá-lo a ficar curado. Todavia, a cura é totalmente incerta, visto que o tratamento não foi ainda aplicado em seres humanos, podendo, inclusive, ter graves efeitos colaterais que podem prejudicar a condição vital do enfermo. O futuro desse homem é, de certo modo, incerto. Muitas coisas podem estar em jogo, como frustação, capacidade de piora, mas também a possibilidade de curar-se completamente. Sua escolha pode ser decisiva: ele pode optar pelo não ou pelo sim, mas de uma forma ou de outra, consequências virão mediante a possibilidade realizada. Desse modo, no sentimento de angústia, o homem toma conhecimento das possibilidades e dos caminhos pelos quais pode optar e, a partir do momento em que uma possibilidade é efetuada, a angústia logo cessa como recorda Valls (2012, p. 51): “A realidade é uma possibilidade que já efetivamos, e que depois de efetivada não angustia mais. [...] A possibilidade é que angustia”. É por isso que a angústia pode ser encarada como uma escola de formação do homem, pois, diante dela, tomamos conhecimento do quanto estamos lançados em um oceano de possibilidades e, consequentemente, tomamos conhecimento de uma noção de liberdade que, embora não possa ser concreta e radical, apresenta-se como vertigem e nos qualifica como animais superiores aos demais. No exemplo que mencionamos, a vertigem de liberdade na possibilidade de decidir (ou não) pelo estranho tratamento, apresenta-se como exemplo de um ato de escolha. Sobre a questão da angústia como vertigem de liberdade e prenúncio de possibilidades que podem ser realizadas, um adendo se faz necessário: para Valls (2012), Kierkegaard, na posse do pseudônimo que assina essa obra, está desenvolvendo o mesmo método de Kant (1724-1804) quando esse se propôs fazer um exame das condições de possibilidades de nosso conhecimento, tratando de analisar a estrutura da nossa racionalidade, destacando seus limites e suas capacidades.

O autor de O conceito de angústia apresenta aos leitores, “um texto de filosofia transcendental, sobre as condições de possibilidade para que o homem possa agir livremente. Como é que o homem age livremente? Numa liberdade que se enreda, que se enrosca e se atrapalha consigo mesma”. (VALLS, 2012, p. 53). As características dessa liberdade permitem analisar a situação de Adão, representante do gênero humano, que é livre, mas que experimenta essa vertigem de liberdade em sua específica situação o que nos leva a outra importante ideia, pois, embora o livro leve o título de O conceito de angústia, o sentimento de angústia é sempre “sentimento para mim” e Halfniensis não está apresentando um conceito, mas como ela pode apresentar-se em diversas nuanças ou possibilidades.1

É também, no sentimento de angústia que o homem salta do estado de inocência ao de consciência, desenvolvendo o espírito. E quanto maior for a possibilidade de angústia, maior será a possibilidade de manifestação de consciência e de espírito. É essa a situação vivenciada pelo primeiro representante do gênero humano.

Para Kierkegaard, o homem não é apenas uma constituição de corpo e de alma, e Adão não foge disso. Há um terceiro elemento que não apenas reforça a relação entre corpo e alma, como permite ao ser humano o desenvolvimento de sua consciência e, consequentemente, o de sua existência, e esse termo é justamente o espírito, questão à ser discutida na próxima sessão deste texto.

A construção da existência: analisando a antropologia de Kierkegaard em A doença para a morte (1849)

Em O conceito de angústia, Halfniensis define o homem como uma síntese. Sabemos que uma síntese é uma relação entre termos heterogêneos, e a relação deve acontecer, embora nem sempre possa vir-a-ser bem sucedida. Para que possa haver relação, o espírito é necessário, considerado por Halfniensis como uma força amistosa que quer constituir a relação:

O homem é uma síntese de psíquico e corpóreo. Porém, uma síntese é inconcebível quando os dois termos não se põem de acordo num terceiro termo. Este terceiro é o espírito. Na inocência o homem não é meramente um animal. De resto, se o fosse a qualquer momento de sua vida, jamais chegaria a ser homem. O espírito está, pois, presente, mas como espírito imediato, como sonhando. Enquanto se acha então presente, mas como espírito imediato, como sonhando. Enquanto se acha então presente, é de certa maneira, um poder hostil, pois perturba continuamente a relação entre alma e corpo, que decerto subsiste sem, porém, subsistir, já que só recebera subsistência graças ao espírito. De outra parte, o espírito é um poder amistoso, que quer precisamente constituir a relação. (KIERKEGAARD, 2010, p. 47, grifo nosso).

O espírito é o terceiro termo existente no homem que permite uma relação entre alma e corpo. Mas ele necessita ser posto em movimento, e o que permite isso, em se tratando da circunstância de Adão, é a experiência de angústia. O homem não pode permanecer em uma existência vegetativa, pois, como afirma Halfniensis, ele está determinado como espírito.

Ao apresentar o homem como uma síntese, Kierkegaard não se limita a defini-lo como um ser constituído de alma e corpo, pois não estaria introduzindo nada de novo em termos de analise antropológica sobre a constituição do homem. Para o autor dinamarquês, o homem, ao tomar, cada vez mais, consciência de si, pode colocar-se no esforço para tentar relacionar-se, cada vez mais, com os termos que o constituem. É na obra Doença para a morte (1849) que Anti-Climacus, o porta-voz da referida obra, apresenta uma definição mais aguçada do que seja o homem e dos outros termos que o constituem. Vejamos a passagem:

O homem é espírito. Mas o que é espírito? É o eu. Mas, nesse caso, o eu? O eu é uma relação, que não se estabelece com qualquer coisa de alheio a si, mas consigo própria. Mais e melhor do que na relação propriamente dita, ele consiste no orientar-se dessa relação para a própria interioridade. O eu não é a relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento que ela tem de si própria depois de estabelecida. O homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de possibilidade e de necessidade, é em suma uma síntese. (KIERKEGAARD, 1979, p. 195).

Além de ser uma síntese do psíquico e do corpóreo, o homem é também síntese de finito e de infinito, de temporal e de eterno, de possibilidade e de necessidade. Anti-Climacus apresenta já nas primeiras páginas de sua obra, os termos que constituem o homem e que os podemos alcunhar como categorias existenciais, dado que, ao falarmos do indivíduo, não estamos apenas tratando de ser um biológico, submetido ao mundo, mas um existente, um ser psicológico. O homem é uma síntese de termos heterogêneos que devem se relacionar, e o relacionamento nem sempre se dá de maneira harmoniosa, visto que é a tensão que caracteriza a relação. Por isso que, ao analisar o homem, Kierkegaard não quer refletir sobre sua condição a partir de uma noção de essência. O que caracteriza a existência é o devir, o constante tornar-se. O existente desenvolve-se na medida em que adquire, cada vez mais, consciência de si e dos termos da relação. Mas, para que isso ocorra, é necessário que o espírito também se manifeste em intensidade, e que o homem seja capaz de tomar conhecimento da doença que possui, um enfermo muito pior do que a morte.

Esta doença é chamada por Anti-Climacus de desespero ou de “doença mortal”, porque ao invés de padecer de uma enfermidade que prejudica a saúde física, o indivíduo adoece pela falta de manifestação de seu eu, quando não opta por determiná-lo para uma existência com consciência de si mesmo. Em A doença para a morte, Anti-Climacus apresenta diversos desdobramentos de desespero que estão relacionados: 1) aos fatores da síntese do eu; 2) ao desespero gerado pelos níveis de consciência de si; e, por fim, 3) à relação do desespero e sua relação com o pecado. É na primeira parte da obra, que o autor convida o leitor a analisar as formas de desespero em níveis de fatores da síntese e consciência de si, apresentando as categorias que estruturam a constituição existencial do ser humano.

A síntese de finito e infinito pode levar o homem ao desespero quando um dos termos se sobrepõe ao outro. Desse modo, o homem é capaz de se desesperar pela ausência de um ou potência de outro. Mas o que é o infinito? Anti-Climacus responde: “O que há de sentimento, conhecimento e vontade no homem depende em última análise do poder de sua imaginação, isto é, da maneira segundo a qual todas as faculdades se refletem: projetando-se na imaginação”. (KIERKEGAARD, 1979, p. 208).

O infinito está, pois, relacionado ao imaginário, categoria que leva o homem a contemplar a experiência de infinitude. A categoria do finito relaciona-se à temporalidade, cujo existente toma conhecimento da finitude. Quando há o desespero de infinidade ou a carência do finito, o homem perde a finitude e penetra no abismo de seu imaginário e não progride com o eu, pois sua existência também é imaginária. No desespero de finito ou a carência do infinito, o homem considera apenas a vida temporal como sua realidade, estando preso aos ditames dessa vida. O indivíduo tornar-se mais um número agregado no coletivo humano, incapaz de desenvolver sua singularidade e autonomia: “Não ousa crer em si próprio e acha demasiado ousado sê-lo e muito mais simples e seguro assemelhar-se aos outros, ser uma imitação servil, um número confundido no rebanho”. (KIEREGAARD, 1979, p. 210). Essa forma de doença é característica de homens que recusaram a tarefa de desenvolver o eu infinito que podem vir-a-ser.

As categorias da possibilidade e necessidade também são analisadas por Anti-Climacus, e essas são fundamentais ao próprio desenvolvimento da existência. É comum em Kierkegaard, a utilização de metáforas bastante simbólicas para representar situações ou conceitos. Sobre a categoria da possibilidade e necessidade, o autor de A doença para a morte, astuciosamente compara os termos como o tratamento dos pais dada à sua pequena criança: “O possível lembra a criança que recebe um convite agradável e diz logo sim; resta saber se os pais darão licença... E os pais desempenham o papel da necessidade”. (KIERKEGAARD, 1979, p. 212). A possibilidade, nesse caso, caracteriza-se como desenvolvimento da própria existência por meio de escolhas ou opções. Nesse caso, a possibilidade auxilia na manifestação do eu. Por outro lado, a necessidade ocupa o papel de determinar quais possibilidades podem ser escolhidas, e quais devem ganhar concretude, para que o existente não se perca em um turbilhão de possibilidades, correndo o risco de desenvolver sua vida sem consistência.2 Voltando à metáfora trabalhada por Anti-Climacus, uma criança que diz sim para tudo, não é capaz de se orientar sozinha no mundo, necessitando dos pais. Da mesma forma, o indivíduo dotado da categoria possibilidade, precisa da categoria necessidade para que possa desenvolver sua existência com fins objetivos e concretos, reconhecendo os limites e refletindo sobre suas possibilidades efetivadas.

Carecer de necessidade, segundo Anti-Climacus, é também carecer de realidade no tocante à manifestação de seu eu, pois uma possibilidade deve ganhar determinação. Assim, o homem desespera-se pela carência de necessidade. Por outro lado, carecer de possibilidade também leva o desesperado à ruína, pois somente pelo possível um indivíduo pode realizar-se e consequentemente também pôr o espírito em movimento. Sem a categoria do possível, a existência é inativa, e o existente equipara-se a uma pedra que não pode movimentar-se. Fundamental para sua realização e transformação existencial, a possibilidade assemelha-se à respiração e, como bem sabemos, sem respiração, não há vida, muito menos movimento.

Em níveis de consciência, o homem pode, segundo Anti-Climacus, vivenciar o desespero a partir de três possibilidades: na inconsciência de seu desespero; no desespero de não querer ser um eu e, por fim, no desespero de querer tornar-se um eu. Todas essas formas de desespero correspondem a níveis de intensidade de manifestação do espírito. Na primeira forma, o homem ignora não apenas a tarefa de desenvolver o seu eu, como não suspeita de nenhuma manifestação da doença mortal em sua existência, visto que, nessa forma de desespero, o indivíduo “só conhece as categorias dos sentidos, o agradável e o desagradável, e manda passear o espírito, a verdade, etc.” (KIERKEGAARD, 1979, p. 216).

O homem se contenta com o que tem, não questiona nada; para ele tudo aparenta estar em perfeita concordância. Na segunda forma, também alcunhada de desespero-fraqueza, o homem já toma conhecimento de uma instabilidade residindo em sua existência, mas recua diante da tarefa. Nesse caso, há o reconhecimento de um eu eterno. Mas o que acontece? O homem mergulha no populacho, desejando ser cópia ou reprodução de outros homens, jamais buscando desenvolver uma existência autêntica como informa Anti-Climacus: “Ao se desesperar, nem sequer tem eu suficiente para, ao menos desejar ou sonhar ter sido aquilo que não foi. Defende-se então de outra maneira desejando ser outrem”. (KIERKEGAARD, 1979, p. 223).

O desespero-desafio é a terceira manifestação da doença em níveis de consciência e, nesse desdobramento da doença, o homem tem plena consciência de ser um eu infinito, pretendendo realizá-lo. Mas, ainda assim, não consegue ser bem-sucedido em sua empresa, pois busca desenvolver o seu eu pelas próprias forças, querendo eliminar a doença mortal. Não reconhece nenhum poder acima dele e, por isso, trata de estabelecer a relação, movido pelo próprio empenho. No entanto, Anti-Climacus, em sua referida obra, adverte qual é a fórmula para eliminar completamente a doença: “Eis a fórmula que descreve o estado do eu, quando deste se extirpa completamente o desespero: orientando-se para si próprio, querendo ser ele próprio, o eu mergulha, através da sua própria transparência, até o poder que o criou”. (KIERKEGAARD, 1979, p. 196). O desespero, argumenta Anti-Climacus, não é um simples desequilíbrio entre os termos e a falta do terceiro que é o eu. É necessário que haja o estabelecimento de uma relação com o poder que proporcionou ao homem a possibilidade de desenvolver o seu espírito, e esse poder refere-se a Deus.

O desespero é uma relação da síntese que, quando orientada sobre si própria, não reconhece a participação do poder que o criou e, por isso, o ignora. Para que a doença mortal possa ser eliminada, o homem deve mergulhar nessa transparência, entrando em relação absoluta com o Absoluto. Para Anti-Climacus, o desespero, em uma perspectiva religiosa, sempre aparece na condição de pecado e, para o cristão, o pecado assemelha-se a um estado de não verdade e afastamento de Deus. Assim, o cristão se empenha em afastar-se da doença mortal, relacionando os termos tendo como orientação e alicerce a relação com o Absoluto. O homem desenvolve o seu eu, e, consequentemente, torna-se um si mesmo e elimina a doença mortal através dessa experiência, motivado pela inquietação de sua condição, mas também pela seriedade e empenho para realizar uma vida autêntica e para fins determinados, ousando tornar-se si mesmo:

Ousarmos ser nós próprios, ousar ser um indivíduo, não um qualquer, mas este que somos, só face a Deus, isolado na imensidade do seu esforço e da sua responsabilidade: eis o heroísmo cristão, e confesse-se a sua provável raridade; mas haverá heroísmo no iludirmo-nos pelo refúgio na pura humanidade, ou em brincar a ver quem mais se extasia perante a história da humanidade? Todo o conhecimento cristão, por estrita que seja de resto a sua forma, é inquietação e deve sê-lo; mas essa mesma inquietação edifica. A inquietação é o verdadeiro comportamento para com a vida, para com a nossa realidade pessoal e, consequentemente, ela representa, para o cristão, a seriedade por excelência; a elevação das ciências imparciais, muito longe de representar uma seriedade superior ainda, não é, para ele, senão farsa e vaidade. Mas sério é, e vê-lo afirmo, aquilo que edifica. (KIERKEGAARD, 1979, p. 189).

A obra A doença para a morte, de 1849, proporciona a experiência de uma fenomenologia da experiência de desespero, apresentando suas possibilidades de manifestação, bem como seus níveis de intensidade, conforme o reconhecimento do indivíduo. Para Anti-Climacus, essa doença da inautenticidade só pode ser eliminada com a presença do Absoluto na vida de um homem. Tanto a angústia, quanto o desespero são experiências humanas, mas com um diferencial: a angústia é um sentimento que pode acompanhar o homem ao longo de sua estada existencial, anunciando que ele é um ser-capaz-de e de que há diversas possibilidades que podem ser efetivadas. O seu objeto é o nada, e ela é uma experiência ambígua, pois incomoda o indivíduo, mas o atrai para a capacidade de realizar (ou não) uma possibilidade. Consequentemente, a angústia apresenta a experiência de liberdade, mesmo que apareça como vertigem. O desespero é a má-relação da síntese, experiência malsucedida dos termos quando o homem não se orienta ao poder que o criou. Logo, seu empenho deve ser o de desenvolver, constantemente, sua existência, tomando conhecimento de suas ações, mas se esforçando para relacionar os termos da relação sem que haja ausência de uma categoria ou outra. É também necessário que ouse construir uma existência com consciência de si e autenticidade, e isso pode ser possível ao reconhecer a doença mortal e, consequentemente, a desarmonia de sua existência. Logo, o homem pode optar por uma mudança e uma transformação em sua estada existencial. Conforme Anti-Climacus, com a presença de Deus em sua vida, o homem pode realizar a presença da eternidade no tempo, e isso só pode ser possível no devir.

É o devir que caracteriza a vida humana. Valls (2012, p. 51) chama a atenção à forma como Kierkegaard desenvolve sua concepção de espírito: “Eis um filósofo como uma definição não-estática do homem, que não parte do animal racional, mas sim de uma relação: o homem é uma relação”. E o tradutor de Kierkegaard prossegue: “O homem é espírito, espírito é performance. Espírito não é uma coisa, uma ‘aura’ que sairia do cadáver na hora da morte, mas é antes uma realização”. Portanto, o homem participa conjuntamente na construção de seu espírito, que não é concebido como uma substância, mas como uma performance, um processo em devir. O homem é esse processo inacabado, mas por ser inacabado pode empenhar-se para se conquistar cada vez. Isso pode ser possível pela tomada de consciência de que ela não é apenas uma síntese de corpo e alma, mas um espírito, e que esse, por sua vez, anseia desenvolver-se.

4 Considerações finais

É interessante a metáfora da cave apresentada por Anti-Climacus, o autor (pseudônimo) de Kierkegaard em A Doença para a morte de 1849 como forma de representar a condição existencial de certos homens. Gostaríamos de citá-la na íntegra: “Imagine-se uma casa, cada um dos andares – cave, rés-do-chão, primeiro andar – tivesse uma espécie diferente de moradores, e compare-se a vida com essa casa: pois não se veria – tristeza ridícula – que a maior parte da gente preferiria apesar de tudo a cave!” (KIERKEGAARD, 1979, p. 217). Para o autor, muitos homens, vivendo uma existência ordinária preferem ao invés do primeiro-andar, residir na cave. Embora esteja tratando da cave como uma metáfora representando a existência daqueles que habitam as categorias da sensualidade, podemos tratar a cave como a moradia de homens que não se arriscam ao devir da existência, que se lançam na segurança da multidão, buscando conforto e tranquilidade. O indivíduo, desse modo, anula-se no coletivo humano, tornando-se um existente padronizado, vivendo de acordo com o sistema. É necessário buscar um sentido ou fundamento à existência, nas palavras de Kierkegaard, uma verdade que seja expressão de minhas decisões, atos e escolhas, uma verdade pela qual eu possa viver e morrer.

E essa foi a intenção de Kierkegaard com sua obra, buscando demonstrar como a existência apresenta-se no mundo partindo de diversos exemplos como Adão, Abraão, Don Juan ou Fausto. Essas personagens, reais ou fictícias, apresentam diversos olhares sobre a existência, assim como os diversos dramas e conflitos que experimentamos ao longo de nossa jornada como seres existenciais. A essas personagens, somam-se suas diversas vozes como Johannes Climacus, Johannes Sedutor, Johannes de Silentio que, além de convidarem o atento leitor a penetrar nos problemas e nas questões de suas obras, podem estimulá-lo ao aprofundamento na interioridade. Essa é a tarefa da comunicação indireta em Kierkegaard, em que o filósofo dinamarquês sai de cena, para que possa haver uma conversa entre leitor e autor-personagem, cujo leitor será o responsável por retirar as impressões do conteúdo da obra.

Ao nos debruçarmos sobre o conteúdo de obras como O conceito de angústia e A doença para a morte, intentamos proporcionar ao atento leitor a possibilidade de refletir sobre duas experiências que fazem parte de nossa condição humana: a angústia e o desespero. Só o homem pode angustiar-se de sua condição, e Halfniensis já explica isso em boa parte de toda a obra. O desespero, por sua vez, é uma condição que surge diante da desarmonia que reside no interior do sujeito. É uma desarmonia existencial que precisa ser tratada, e Anti-Climacus, em sua profunda investigação sobre a doença do espírito, oferece uma satisfatória possibilidade para que o desesperado possa extirpar totalmente a doença.

Lembremos que Halfniensis alcunha a angústia como uma “antipatia simpática”. E sobre o desespero, Anti-Climacus afirma que ele pode ser considerado tanto uma vantagem quanto uma imperfeição em profunda dialética. (KIERKEGAARD, 1979, p. 197). Angústia e desespero são palavras que podem, de início, assustar o leitor. Todavia, os autores-pseudônimos nos proporcionam a possibilidade de reconhecer a positividade de tais experiências.

Pela angústia, o homem toma conhecimento de que é um ser determinado pelas possibilidades. Halfniensis cita o exemplo de Adão, que, diante da possibilidade de cometer uma infração ou não, penetra no pecado tomando conhecimento de que contrariou uma lei divina. Essa experiência de angústia surge no primeiro homem como vertigem de liberdade, apresentando uma informação para Adão: de que ele é um ser-capaz-de. Após a queda, Adão toma conhecimento da ação que teve, mas o que constatamos é que houve um salto qualitativo, pois sua situação anterior era a de inocência. Na experiência de angústia, experimentamos uma vertigem de liberdade e tomamos conhecimento das possibilidades que podemos (ou não) realizar, independentemente do grau de consciência sobre a própria situação que estamos vivenciando.

Pelo desespero, o homem toma conhecimento da desarmonia que há em sua existência. E o desespero pode manifestar-se sob diversas formas como foi apresentado ao longo deste texto. Na renúncia em desenvolver o si mesmo ou ao tentar desenvolvê-lo de maneira equivocada, o homem pode mergulhar no abismo da doença mortal e jamais alcançar uma existência com fins concretos e com reconhecimento de si mesmo. É necessário que o indivíduo perceba a doença e tente relacionar-se com os termos de sua constituição. Para isso, é necessária a manifestação do espírito. O desespero, nesse sentido, não pode ser ignorado pelo homem, pois ele demonstra sua positividade, na medida em que se apresenta como possibilidade à construção de uma existência autêntica.

É nesse sentido que é oportuno pensar no desespero como experiência de caráter positivo ao indivíduo. É uma abertura, para que ele possa progredir em sua existência, uma vez que o homem só se desespera devido à capacidade de poder desenvolver o espírito. E o tornar-se si mesmo do homem é uma realização, tarefa inacabada, sempre em devir. Relacionando-se consigo mesmo, o homem pode tornar-se um existente subjetivo, consciente dos possíveis que pode realizar. Aliás, é na categoria da possibilidade que o homem pode transformar-se, podendo, inclusive, saltar para outro estádio da existência.

Por fim, evidenciamos que tanto a angústia quanto o desespero podem estimular o homem ao desenvolvimento de sua existência desde que perceba seus aspectos positivos. Pela angústia, o indivíduo pode vislumbrar a experiência de liberdade, reconhecendo os possíveis que pode realizar dado que o homem é síntese de psíquico e corpóreo, e, nessa relação, encontramos o terceiro termo que é o espírito. No desespero, o homem pode aprofundar-se em sua interioridade, reconhecendo e se relacionando com as categorias da possibilidade e da necessidade, da finitude e da infinitude, realizando a presença da eternidade no tempo. Para isso, o espírito tem que se manifestar, relacionando-se com o outro que o colocou. Assim, o homem pode tomar a doença mortal como ponto de partida para sua transformação.

1O autor apresenta diversos desdobramentos desse sentimento, tais como: angústia subjetiva, angústia objetiva, angústia do bem, angústia do mal, angústia da falta de espírito. Desse modo, ela nunca aparecerá da mesma forma para todos os homens, mas a partir de sua circunstância ou especificidade. Gouvêa (2009, p. 348-349) nos explica como esse sentimento apareceu em qualquer época da história do homem, mesmo antes do advento do Cristianismo: “ Manifesta[se] entre os gregos na sua crença e sofrimento diante do destino (Anangke, Fata). Entre os judeus, a angústia se manifesta no conceito de culpa frente à lei moral.”

2Essa parece ser a sina da existência estética, em especial, a de Johannes em Diário de um sedutor (1979). A personagem kierkegaardiana é determinada pela categoria possibilidade. No entanto, é um existente carente de necessidade, categoria capaz de auxiliar, para que as possibilidades possam atingir fins concretos, pois Johannes é presa de seu imaginário e das possibilidades que vislumbra para si. Em uma passagem do Diário, Johannes é descrito como “uma individualidade nem suficientemente rica nem suficientemente pobre para distinguir entre poesia e realidade”. (KIERKEGAARD, 1979, p. 5). O que interessa ao sedutor é atribuir um olhar poético sobre a realidade, lançando-se no mar de suas possibilidades, em que Cordélia é mais uma entre as possibilidades que aparecem em sua jornada existencial. Mas, ao mergulhar nesse oceano de possíveis, Anti-Climacus o recordaria de que ele carece de um eu real, visando a estabelecer a dialética das categorias que o constitui ao invés do eu abstrato que pretende dar para si mesmo.

Referências

BORNHEIM, G. A. Introdução ao filosofar: o pensamento em bases existenciais. São Paulo: Globo, 1998. [ Links ]

GOUVÊA, Ricardo Quadros. A palavra e o silêncio. São Paulo: Fonte, 2009. [ Links ]

KIERKEGAARD, S. A. Diário de um sedutor. Trad. de Carlos Grifo. São Paulo: Abril Cultural, 1979. [ Links ]

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______. O conceito de angústia. Trad. de Álvaro Luiz de Montenegro Valls. Petrópolis: Vozes, 2010. [ Links ]

VALLS, Álvaro Luiz de Montenegro. Kierkegaard, cá entre nós. São Paulo: LiberArs, 2012. [ Links ]

Recebido: 22 de Agosto de 2017; Aceito: 18 de Junho de 2018

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