Considerações iniciais
A confiança tem sido abordada a partir de uma série de perspectivas. É um conceito indispensável quando pensamos no ser humano como ser social, interagindo com outros sujeitos, pois nos auxilia a refletir sobre a ordem política e a cooperação social. Torna-se relevante em Epistemologia ao considerarmos a transmissão de conhecimento por testemunho. A principal questão: Podemos confiar em outras pessoas para adquirir conhecimento com base em seus atos de fala? Muitos filósofos buscaram definições em outras áreas, como na sociologia ou filosofia política. Já outros, como Foley (2001), tentaram formular uma definição estritamente epistêmica.
Consideramos necessário estabelecer um conceito de confiança que dê conta das discussões em epistemologia. Entretanto, seria viável uma definição de confiança epistêmica? Ou podemos simplesmente transpor um conceito de outra área? O conceito é oriundo da filosofia moral. A confiança é a base da moralidade, visto que a moralidade é uma atitude cooperativa, que só é possível na medida em que as pessoas confiam umas nas outras para tentar ser morais. É ela que viabiliza as relações interpessoais.
O uso de conceitos morais em epistemologia não é novidade. Tradicionalmente, filósofos buscaram auxílio na filosofia moral para resolver questões epistemológicas. (LOCKE, 1975; CHISHOLM, 1966). Por outro lado, muitos teóricos questionaram a redução de conceitos epistêmicos a conceitos morais. Firth (1978), por exemplo, defendeu a irredutibilidade de conceitos epistêmicos, afirmando que esses podem ser concebidos de maneira análoga na filosofia moral e na epistemologia, podendo-se até dizer que são similares, mas são irredutíveis um ao outro.
A preocupação com a redutibilidade dos conceitos epistêmicos a conceitos morais permeia a epistemologia. Em relação ao problema de confiança em testemunho, há três possibilidades: a redução do conceito à confiança moral; sua utilização de maneira análoga, ou ainda, um uso não analógico. A proposta de Foley segue a última via; entretanto, veremos que falha em alguns pontos precisamente por ignorar aspectos morais da confiança.
A confiança possui uma dimensão normativa e uma dimensão descritiva, que convém denominarmos fiar-se (rely). Confiança (trust) é algo mais profundo, origina-se em relações interpessoais e pressupõe entrega e boa vontade por parte dos envolvidos nessa relação em que o sujeito espera sinceridade do outro e em que, caso não a receba, sente-se traído. A sensação diante do desapontamento da confiança é a de traição, gerando ressentimento. (BAIER, 1986). Já fiar-se é mais básico, tratando-se de uma relação que estabelecemos com o mundo e com as coisas do mundo. Quando a fiabilidade (reliability) no mundo não se efetiva, a sensação que se tem é apenas de desapontamento.
A confiança é um tipo de relação interpessoal que se estabelece entre seres humanos. Entretanto, fiar-se (rely) é o tipo de relação que torna a moralidade possível, na medida em que possibilita relações sociais básicas, como a sinceridade e o cumprimento de regras de convívio. Acreditamos que as pessoas, em geral, não estão mentindo quando nos dão informações, não vão violar nossos corpos quando saímos às ruas, e assim por diante, porque nos fiamos no funcionamento do mundo. Fiabilidade torna possível a instituição da moralidade na sociedade, mas confiança (trust) é o tipo mais profundo de relação entre as pessoas.
Para McLeod (2011) confiança exige um otimismo em relação às habilidades da pessoa confiada. Já Baier (1986) define confiança como fiabilidade (reliability) na competência do outro, boa vontade e preocupação com aqueles que confiam. A boa vontade, que Baier coloca na base da confiança, não é unilateral, mas é também daquele que confia para com o que é confiado. A autora considera que, quando a confiança é testada, ela é enfraquecida, pois confiar é aceitar a vulnerabilidade da relação. Não se pode avaliar as bases da confiança sem desestabilizá-la; a não aceitação da vulnerabilidade enfraquece a relação.
Mas por que esse conceito é relevante à epistemologia? Ora, muitas de nossas crenças diárias são adquiridas através de atos de fala de outros seres humanos. O problema, precisamente, é saber por que e quando aceitar esses atos de fala como fontes epistêmicas. Quando, afinal, podemos conceder autoridade às palavras dos outros? Quando podemos, basicamente, confiar no falante. Confiança essa que pode ser de dois níveis: um nível básico de fiabilidade e/ou uma relação interpessoal de confiança. A característica peculiar do trabalho de Foley, ante a outras discussões sobre confiança, é sua tentativa de oferecer uma contribuição exclusivamente epistêmica do conceito. Desse modo, iremos apresentar a proposta do autor com o objetivo de analisar a viabilidade de um conceito de confiança epistêmica.
Confiança em nossas próprias faculdades intelectuais
Foley, em seu livro Intellectual trust in oneself and others (2001), defende a tese de que a confiança1 que temos em nós próprios é transferida às outras pessoas, bem como às nossas crenças do passado e do futuro. Mas o nível de confiança2 que podemos garantir a nós próprios é um problema filosófico que permeia a história da filosofia. Desse modo, se quisermos legitimar confiança3 no testemunho, a partir da autoconfiança,4 como pretende Foley (2001, p. 3), antes precisamos responder à pergunta: “Qual é o grau de autoconfiança que o indivíduo deve ter para atingir seus objetivos epistêmicos?”, sendo que o principal de nossos objetivos epistêmicos é ter um sistema de crenças abrangente e acurado. A preocupação de Foley (2001) é com a racionalidade da crença, de modo que o autor busca apresentar uma definição acerca do que torna nossas crenças racionais. Nossas crenças são racionais na medida em que são imunes à autocrítica, respeitando o objetivo epistêmico básico de ter um sistema de crenças abrangente e acurado.
O problema da autoconfiança (self-trust) coloca-se a partir de objeções céticas. O cético levanta a possibilidade de que nossas crenças sejam amplamente erradas, mas, para isso, faz uso das mesmas faculdades e métodos que questiona. Qualquer investigação epistêmica que pretendemos realizar utiliza nossas faculdades intelectuais; desse modo, uma das tentativas de refutação do ceticismo foi acusá-lo de incoerência, visto que usa as mesmas faculdades e os métodos que questiona. Entretanto, Foley (2001) não concorda com essa posição; para ele o cético pode (ou não) estar correto, mas não é incoerente. O cético pode, por exemplo, assumir que nossas faculdades não são fiáveis e demonstrar isso através delas. Para Foley, o erro do Fundacionalismo Clássico foi, exatamente, atribuir relevância excessiva às objeções céticas.
Outra tentativa de refutação do ceticismo, no que tange à confiança que podemos depositar em nossas faculdades e métodos, defende que, considerando a Teoria da Referência e a Teoria da Verdade, não há espaço para que o mundo seja assim tão diferente do modo como nossas crenças o representam. Essa defesa aparece em Putnam, no livro The many faces of realism (1988), e em Davidson, A coherence theory of truth and knowledge (1986). Segundo essas teorias realistas, o que causa nossas crenças são seus objetos, de modo que a própria natureza da crença exclui a possibilidade de cairmos em erro massivo. Sobre essa tentativa de refutar o ceticismo, Foley (2001) afirma que uma análise mais aprofundada dessas teorias poderia deixá-las sujeitas a argumentos céticos.
Na história da epistemologia, encontramos também a tentativa cartesiana de refutação do ceticismo. Descartes pretendia limpar o terreno da dúvida e garantir a fiabilidade (reliability) global de nossas faculdades e métodos intelectuais. Para isso, em suas Meditações (1641 [1973]), o autor lança mão de um argumento teísta, segundo o qual a existência de Deus é indubitável. Esse Deus não é um deus enganador e dele dependem todas as coisas. Graças à existência de Deus, tudo que é concebido como claro e distinto não pode ser falso. Ainda que o sujeito deixe de pensar naquelas razões que o levaram a julgar algo como verdadeiro, desde que ele se lembre de ter compreendido clara e distintamente, não há mais razão para dúvidas. Aquilo que é claro e distinto é indubitável, e a indubitabilidade não pode ser falsa, pois Deus, em sua infinita bondade, não permitiria isso. Essa proposta também não dá conta do ceticismo, visto que a existência de Deus não impediria que fôssemos psicologicamente constituídos de modo a acreditar em falsidades impossíveis de duvidar.
Locke (1975), por outro lado, defende que Deus nos dotou de faculdades através das quais podemos adquirir crenças precisas, principalmente quando se trata de moralidade e religião, bastando que façamos uso apropriado de nossas faculdades intelectuais. Para Locke, o que caracteriza o “uso apropriado das faculdades intelectuais” é crer apenas em informações com fiabilidade garantida pela evidência. Crenças testemunhais são a maior fonte de erro, de modo que não devemos confiar no testemunho para adquirir crenças.
Entretanto, Locke reconhece que, apesar de termos sido criados por Deus, com faculdades intelectuais que, se bem-utilizadas nos permitem adquirir crenças precisas, estamos sujeitos a erro, mesmo que regulemos nossas crenças através das evidências disponíveis. Mas certo otimismo é necessário, e, apesar do risco, é pouco provável que venhamos a cair em erro massivo. Deus nos dotou de faculdades intelectuais, principalmente de razão, as quais nos possibilitam gerar opiniões precisas quando bem-utilizadas.
Os argumentos teístas ficaram na modernidade. No século XX, as tentativas de resposta ao problema de confiança que devemos conceder às nossas faculdades intelectuais apelaram à seleção natural. A epistemologia contemporânea substituiu Deus por seleção natural. Afirma-se que, se nós não tivéssemos faculdades intelectuais geralmente fiáveis, não teríamos prosperado, nem evoluído. A nossa sobrevivência, ao longo da seleção natural, seria a prova de que temos faculdades geralmente fiáveis, e de que nossas crenças são, na maior parte das vezes, precisas. Assim, o que nos fornece as bases para o otimismo intelectual agora é a seleção natural.
Existem algumas objeções à Teoria da Seleção Natural que devem ser consideradas. Tal teoria defende que, se nossas faculdades não fossem fiáveis, não teríamos evoluído; entretanto, evolução não precisa ser, necessariamente, causada por seleção natural: pode ser causada pelo acaso. Também não é necessário que as opções genéticas escolhidas pela seleção natural incluam faculdades intelectuais fiáveis. Tampouco podemos assumir que sistemas cognitivos que nos permitiram evoluir na pré-história sejam, hoje em dia, sistemas cognitivos fiáveis. E, por fim, “nada na teoria implica que tudo, ou mesmo a maioria de nossos procedimentos intelectuais, métodos e disposições são produto de evolução biológica, em absoluto. Podem ser culturais e sociais”. (FOLEY, 2001, p. 17).
Mas qualquer uma dessas tentativas de garantir confiança em nossas faculdades e refutar o ceticismo faz uso das faculdades que pretende defender, ou atacar (no caso do ceticismo). Desse modo, nenhuma oferece garantias não circulares. Ainda assim, a dúvida cética de se nossas faculdades e métodos intelectuais são fiáveis é uma questão relevante em epistemologia e não pode ser ignorada.
As dúvidas céticas surgem, naturalmente, em contextos filosóficos, pois são oriundas da mesma habilidade que permite que a epistemologia seja possível. Quando o cético questiona as faculdades intelectuais, faz uso delas, e quando se tenta responder a ele, também; é nisso que consiste a circularidade epistêmica. Por isso, Foley (2005, p. 19) afirma que “nunca seremos bem-sucedidos em descartar a possibilidade de que nossas crenças podem estar ampla e profundamente erradas”. Toda vez que tentarmos descartá-la, utilizaremos o mesmo processo pelo qual formamos as crenças que estamos questionando.
A circularidade epistêmica caracteriza-se pela impossibilidade de erradicar a dúvida acerca da falibilidade de nossas faculdades e métodos; visto que, se não houver autoconfiança, inviabiliza-se qualquer tipo de conhecimento. Assim, não pode haver garantias não circulares de que nossas crenças sejam verdadeiras, nem de que sejam provavelmente fiáveis, tampouco de que sejam amplamente fiáveis. Qualquer tentativa de oferecer tais garantias depende dessas faculdades, de modo que a dúvida acerca de sua fiabilidade não pode ser eliminada com investigação adicional, a menos que haja alguma evidência para a não fiabilidade.
O argumento de Foley deriva autoconfiança de ameaça cética. Quando o cético questiona sobre a falibilidade de nossas faculdades, respondemos que qualquer investigação depende delas, e, por isso, é necessária a autoconfiança. A alternativa viável em face da dúvida cética, é aceitá-la como parte de nossa vida intelectual. Devemos admitir nossa vulnerabilidade ao erro, como seres humanos falíveis que somos. E mais, devemos aceitar que só podemos realizar investigações na medida em que confiamos em nossas faculdades intelectuais e nas crenças adquiridas através delas. A confiança é necessária se quisermos realizar alguma investigação epistêmica significativa, mas o problema é: Quanta confiança é aceitável?
O cético questiona se estamos garantidos quando nos fiamos em nossas faculdades, uma vez que não podemos oferecer garantias não circulares dessa fiabilidade. Por outro lado, se não nos fiarmos nelas, inviabilizamos qualquer investigação epistêmica. Desse modo, podemos permitir uma autoconfiança injustificada? Foley (2001) defende que nossos projetos intelectuais sempre requerem confiança,5 e que os limites dessa confiança estão entre as questões mais importantes em epistemologia. Nós devemos aceitar o ceticismo e admitir que toda investigação envolve um componente de confiança que não pode ser eliminado por investigação adicional, mas essa confiança não precisa e não deve ser irrestrita.
Para tentar estabelecer tais limites, Foley propõe que a autoconfiança deva ser proporcional ao grau e à profundidade da segurança (confidence) epistêmica6 que se tem na fiabilidade das crenças. A profundidade7 da segurança é que determina o quanto de confiança estamos justificados a depositar. Possuímos algumas crenças das quais estamos deveras seguros, mas não as mantemos profundamente, por isso a exigência de que, além de segurança, haja profundidade. Mas como determinar a profundidade da segurança? Como diferenciar entre crenças profundamente seguras e superficialmente seguras? Foley (2001) salienta que revisibilidade não pode servir como critério, dado que todas as nossas crenças tornam-se revisáveis com o passar do tempo.
Segurança e profundidade vêm em graus e podem ser medidas pela vulnerabilidade da crença quando essa for submetida à reflexão crítica, de modo que algumas crenças podem ser eliminadas através de uma reflexão superficial, outras necessitam de uma reflexão longa e profunda, e há ainda aquelas que, mesmo quando submetidas a reflexões prolongadas e aprofundadas, permanecem. Isso porque os modos como adquirimos crenças também são variados: algumas de nossas crenças são adquiridas através de reflexão minuciosa, logo, são mais estáveis; outras são adquiridas sem muita reflexão e, quando submetidas a um escrutínio crítico, são eliminadas; mas há ainda aquelas que, apesar de não terem sido adquiridas através de reflexão, são profundamente mantidas. Nestas últimas, encontram-se nossas crenças perceptuais, que prosseguem mesmo após reflexão.
Foley (2001) desenvolve uma contribuição de autoconfiança buscando estabelecer quais são os graus de confiança que alguém pode ter em suas crenças e faculdades, mesmo sob reflexão rigorosa. Se estivermos sempre vulneráveis à autocrítica, ficarmos impossibilitados de realizar investigações, pois qualquer investigação esbarra na dúvida; por isso, necessitamos de autoconfiança. Mas até onde deve ir a autoconfiança? Uma das formas de avaliá-la é através da proporcionalidade entre o nível de segurança e a profundidade das crenças em questão.
Foley (2001) apresenta uma teoria de crença racional e uma teoria de graus de autoconfiança; entretanto, considera que ambas as teorias são independentes uma da outra. Sua teoria dos graus de confiança visa a responder qual é o grau de confiança que se pode ter em nossas próprias faculdades e métodos, sem nos tornarmos vulneráveis à autocrítica, considerando que o objetivo epistêmico é ter um sistema de crenças abrangente e acurado. Desse modo, o filósofo esboça o início de sua teoria de graus de confiança, mas também o início de uma teoria sobre crença racional, visto que um dos sentidos de crença racional é definido como crença invulnerável à autocrítica.
As principais questões relativas à autoconfiança são referentes aos seus limites: Até onde a autoconfiança deve ir? E o que pode eliminá-la? Essas perguntas são perguntas sobre justificação. Elas indagam: Até que ponto estamos justificados a confiar em nossas faculdades intelectuais? Qual é o limite que separa uma autoconfiança racional de ingenuidade e negligência epistêmicas? Foley define racionalidade epistêmica como crenças que são capazes de se manter mesmo em reflexão aprofundada. Sabemos que mesmo nossas crenças mais arraigadas podem ser revistas com o passar do tempo quando submetidas a uma análise criteriosa.
Foley (2001) apresenta um conceito amplo de racionalidade no qual não apenas nossas crenças podem passar pelo escrutínio crítico da investigação racional, mas também nossas ações, decisões, intenções e métodos. A investigação consiste em analisar se tais ações, decisões, intenções e métodos promovem os objetivos a que se propõem.
Ele também admite a possibilidade de uma análise de racionalidade internalista e outra externalista. De uma perspectiva externalista, a decisão é racional se condiz com o contexto em que é tomada, considerando a perspectiva8 do grupo de indivíduos que constitui uma comunidade. A análise também pode ser feita considerando um observador ideal, que conhece todas as consequências envolvidas em cada uma das possibilidades de decisão. Nesse caso, a decisão será racional se promover os objetivos em questão, levando em conta os valores relativos a esses objetivos, considerando o contexto.
Porém, nós sabemos que não existe tal observador externo omnisciente (verific believer) capaz de prever todas as consequências de cada uma das decisões. Uma pessoa normal, com capacidades cognitivas normais, não é capaz de prever as consequências de cada decisão, mas pode analisar as informações, considerar hipóteses e, assim, avaliar os possíveis resultados. Quando estamos avaliando a racionalidade/irracionalidade das ações de outras pessoas, parece mais correto considerar o contexto. Pode ser que a pessoa não possa acessar as mesmas informações no tempo ou no espaço em que está situada da forma que podemos, ou que um observador ideal poderia (o que seria uma exigência consideravelmente mais forte). Essa é uma concepção externalista do padrão de racionalidade, mas se pode considerar a racionalidade do ponto de vista do indivíduo, em uma perspectiva internalista.
Uma decisão pode ser racional mesmo quando for errada. Para avaliar isso, é preciso levar em conta as informações que estavam disponíveis ao sujeito quando ele tomou a decisão. Se o sujeito foi suficientemente reflexivo e não poderia ter chegado a uma decisão correta com base nas informações disponíveis, então ele foi racional. Por outro lado, se, apesar das informações escassas, o sujeito pudesse ter sido mais reflexivo, então ele teria sido irracional. Mas ele não foi irracional por não ter agido conforme os padrões de sua comunidade, mas porque ele próprio poderia ter sido mais cuidadoso e reflexivo. Esse é o padrão de racionalidade avaliado da perspectiva interna do sujeito.
De uma perspectiva individual, podemos definir uma crença como racional se, sob reflexão, o sujeito avalia que a crença cumpre o objetivo epistêmico de ser/gerar um sistema de crenças abrangente e acurado; em contrapartida, é irracional se, sob reflexão, o sujeito torna-se crítico da crença, tendo em vista o mesmo objetivo epistêmico. Entretanto, uma questão que vale pontuar como objeção a essa definição de crença racional, formulada por Foley é: Quais são os limites dessa reflexão? Se permitirmos, uma reflexão pode seguir ad infinitum, questionando a validade e precisão de todo nosso sistema de crenças?
Para Foley (2001) é preciso encontrar um ponto estável que garanta a crença, no qual não haja reflexão nem crítica anteriores. Algumas crenças encontram essa estabilidade em seu estado ocorrente, nenhuma reflexão é capaz de abalá-las. Outras precisam de uma reflexão breve para alcançar tal estabilidade, enquanto algumas exigem reflexões aprofundadas e longas. Há também aquelas que, mesmo quando submetidas a longos processos reflexivos, não encontram sua estabilidade; essas são epistemicamente irracionais.
Nós temos muitos interesses, logo temos muitos objetivos, alguns desses são intelectuais, outros, pragmáticos. Em decorrência disso, a nossa dedicação e o esforço em prol da realização de objetivos intelectuais são limitados, sendo que alguns projetos recebem mais importância e devoção, e outros, menos. A dedicação a determinado projeto varia conforme a importância do tópico e a relação com os objetivos globais do sujeito. É racional dar mais atenção àqueles tópicos que julgamos mais importantes, e dedicar tempo e esforço a tópicos irrelevantes é irracional.
A partir dessas considerações, podemos compreender a distinção que Foley (2001) apresenta entre crença responsável e crença racional. Uma crença pode ser responsável sem ser racional. Podemos pensar em uma crença que, sob reflexão, seria abandonada e, mesmo assim, é uma crença responsável, pois, ao avaliar os objetivos epistêmicos do sujeito, nota-se que para ele não era relevante engajar-se em tal reflexão. Crença responsável é uma crença que leva em conta os objetivos epistêmicos do sujeito; crença racional é, não apenas, aquela que sobrevive à reflexão, mas aquela que, mesmo sob reflexão, continua imune à autocrítica.
A distinção de Foley entre Teorias do Conhecimento e Teorias da Justificação livra a crença racional das objeções céticas. O autor assume uma concepção externalista ao conhecimento e uma concepção internalista para justificação, de modo que, diante de objeções como cérebros em cubas, podemos manter a racionalidade da crença, mesmo submetidos a erro massivo. Ele quer demonstrar que a noção de racionalidade não pode ser entendida apenas em termos de fiabilidade das fontes externas, como pretende o externalismo. Pode-se ser racional a despeito das objeções céticas como a de cérebros em cubas, desde que se possua um sistema de crenças seguro e que resista a um exame minucioso e crítico.
O filósofo propõe uma concepção de crença racional segundo a qual o que determina a racionalidade são condições psicológicas do sujeito, que não envolvem referência direta a condições externas. Assim, não é necessário se fiarem em algo externo para gerar uma autocrítica em relação à racionalidade da crença, uma reflexão minuciosa dá conta disso. O acesso ao que faz uma crença ser racional ou irracional é interno. O que determina a racionalidade de uma crença é a possibilidade de mantê-la imune à crítica quando nos submetemos à reflexão. Mas ele não considera que o acesso ao que faz uma crença racional esteja sempre disponível ao indivíduo, porque não é possível avaliar o quão reflexivo alguém está sendo.
Foley (2001) apresenta um conceito de racionalidade epistêmica que não depende da conformidade com a comunidade em que se está inserido e, tampouco, da fiabilidade das fontes de crença. O conceito proposto depende, exclusivamente, de uma coerência entre as crenças ocorrentes e as crenças mais profundas, quando submetidas à reflexão. Pode-se acreditar que sonhos são a forma mais fiável de adquirir crenças sobre o mundo externo. Desde que essas crenças estejam de acordo com as crenças profundas que o sujeito tem, ele está sendo racional. (FOLEY, 2001, p. 41). Mesmo que existam falhas intelectuais, ou erro massivo, se existe conformidade entre as crenças do sujeito, há racionalidade.
Foley não nega a influência de práticas sociais para formação de crenças e mesmo de padrões intelectuais, mas admite essa influência de forma apenas indireta e contingente. A racionalidade, por sua vez, ainda que possua certa influência das comunidades e práticas sociais, é assegurada pelo indivíduo, mesmo em casos de grande dissonância entre suas crenças e aquelas da comunidade. Basta que as opiniões do sujeito sejam capazes de suportar uma crítica severa dele mesmo para serem racionais.
Se a racionalidade é dependente das práticas sociais, qualquer tentativa de ruptura do status quo é considerada irracional. Se esse for o caso, não se pode romper com o padrão vigente de racionalidade, e qualquer revolução científica fica inviabilizada. Admitindo que a racionalidade seja dependente das práticas sociais e comunidades em que se está inserido, alguém que questiona o padrão de racionalidade da comunidade será considerado irracional.
A proposta de Foley permite que, mesmo se as crenças de alguém forem seriamente não confiáveis ou diferentes da tradição ou da comunidade, elas podem ser, epistemicamente, racionais. Mas como determinar que alguém está sendo racional a partir dessa proposta? Se a racionalidade depende somente da coerência entre crenças ocorrentes e profundas, e da invulnerabilidade à crítica quando submetidas à reflexão, ela depende, exclusivamente, do sujeito. Desse modo, quando o sujeito é irracional, afinal?
Sob reflexão suficiente, alguém pode perceber-se insatisfeito com suas crenças ocorrentes e, desse modo, dar-se conta de sua irracionalidade. Todavia para Foley (2001) a autocrítica não significa apenas uma “limpeza” no sistema de crenças, podendo ser muito mais ampla. Nosso processo de aquisição de crenças é, no mais das vezes, pouco rigoroso, de modo que se torna muito difícil acessarmos nossos padrões epistêmicos mais profundos; por isso, a autocrítica deve ser extensiva e profunda.
Nosso objetivo epistêmico é ter um sistema de crenças abrangente e acurado, mas temos muitos outros objetivos não epistêmicos. Temos outros desejos e necessidades e não podemos gastar todo o nosso tempo preocupados em adquirir apenas crenças abrangentes e acuradas. Existem alguns tópicos que são irrelevantes, seja para objetivos pragmáticos, seja para objetivos intelectuais, e não faz sentido dedicar tempo a eles. O tempo razoável a dedicar a um tópico é relativo à importância do tópico e às nossas necessidades e objetivos. Desse modo, se submetidas à reflexão, nem todas as crenças que possuímos serão abrangentes e acuradas, pois podem ser fruto de tópicos não importantes, aos quais seria tolo dedicar-se cuidadosamente. Ainda, em alguns casos, podemos ser epistemicamente responsáveis, dedicando muito tempo a determinado tópico, mas isso não garante a racionalidade de nossas crenças.
Foley pretende desenvolver uma contribuição a respeito dos graus de confiança que alguém pode ter em suas opiniões e faculdades sem ficar vulnerável à autocrítica, na medida em que o objetivo aqui é ter um sistema de crenças abrangente e acurado. E, a partir disso, o autor deriva a viabilidade de confiarmos em outras pessoas pela necessidade de confiarmos em nossas próprias faculdades. Ora, se a confiança se faz presente em quaisquer de nossas investigações epistêmicas, mesmo nas mais simples, que não envolvem outras pessoas, não se trata de um grande passo estender essa confiança a outros seres racionais.
Confiança em outros seres humanos
Foley procura legitimar a confiança nos outros a partir da autoconfiança. Sua argumentação se apoia em duas teses: 1) é razoável para o sujeito acreditar na fiabilidade de suas faculdades e crenças, mesmo que ele não possa fornecer garantias não circulares para essa fiabilidade; e 2) derivada da primeira, afirma que, se o sujeito pode fiar-se em suas faculdades e crenças, ele deve conceder confiança prima facie às crenças dos outros e às próprias crenças do passado e do futuro, sob o risco de ser acusado de incoerência se não o fizer.
É a união dessas duas teses que permite que a transmissão de crenças seja possível. A partir da autoconfiança, podemos atribuir confiança prima facie a outras pessoas, criando um clima de confiança mútua entre os seres humanos. Isso explica muitas de nossas práticas epistêmicas, que poderiam ser questionadas, como, por exemplo, confiar em completos estranhos.
Foley apresenta duas maneiras de pensar a questão da confiança em outras pessoas: 1) considerando questões sobre a sinceridade do testemunho, e 2) considerando questões que pressupõem que podemos determinar, de maneira fiável, o que os outros acreditam e, então, perguntar-lhes se e como sua crença pode afetar a nossa. O autor opta por levar em conta o segundo tipo, que considera a questão da credibilidade das crenças dos outros.
Foley irá argumentar em prol de uma teoria da confiança antirreducionista, segundo a qual podemos conceder confiança epistêmica prima facie a outras pessoas. Assim como podemos confiar em nossas próprias faculdades intelectuais na maior parte do tempo, mesmo sabendo que estamos sujeitos a erro e sendo incapazes de fornecer defesas não circulares da fiabilidade dessas faculdades, também podemos nos fiar nas faculdades intelectuais de outras pessoas na maior parte do tempo, ao menos prima facie.
O primeiro argumento de Foley em favor da confiança epistêmica consiste em afirmar que, tendo formado nossas crenças com base nas crenças de nossos cuidadores e também de desconhecidos, e considerando que confiamos em nossas próprias crenças, temos que conceder confiança epistêmica a outras pessoas. O segundo argumento está embasado na afirmação de que, vivendo em um mundo globalizado, com acesso universalizado à informação, em que os sistemas educacionais e mesmo nossos valores são, em geral, muito semelhantes e, avaliando o equipamento cognitivo dos seres humanos, da mesma forma muito semelhantes, ao confiarmos em nossas próprias crenças e faculdades mentais, somos pressionados a confiar em outras pessoas, até mesmo naquelas que vivem longe de nós, com as quais nunca compartilhamos informações, nunca tenhamos lido algo que tenham escrito e sequer tenhamos ouvido falar sobre suas crenças. Se confiamos em nós, é correto atribuir confiança prima facie a qualquer ser humano, em decorrência da semelhança cognitiva.
Foley (2005) não nega que os seres humanos possuam diferenças cognitivas, o que atualmente tem ficado mais evidente com o maior contato entre as culturas. Entretanto, afirma que as diferenças são pequenas se comparadas às semelhanças ou às diferenças entre outros animais inteligentes. As similaridades entre seres humanos podem ser estendidas às nossas faculdades intelectuais e ambientais. Independentemente do lugar em que vivem, os seres humanos possuem semelhanças cognitivas e crenças em comum. Todos acreditam que “há outros seres humanos, que há coisas vivas diferentes de seres humanos, que algumas coisas são maiores que outras, que algumas coisas são mais pesadas que outras [...] e assim por diante”. (FOLEY, 2005 , p. 6). Mesmo os fatores que influenciam no processo de formação de crenças são, muitas vezes, comuns às diversas pessoas.
Assim, partindo da autoconfiança, sem a qual não somos capazes de levar adiante qualquer raciocínio, e considerando tanto nossos processos de formação de crenças,9 quanto as semelhanças entre o sistema cognitivo da espécie humana, Foley defende que seria incoerente não concedermos confiança prima facie a outras pessoas. É claro que essa confiança pode ser perdida se constatarmos que o sujeito não está em uma posição adequada em relação à crença em questão. Tão logo se faça uma investigação mais aprofundada e se perceba que a pessoa não é capaz de apresentar razões para crença, ou se constatarmos que há evidência derrotadora da crença, perde-se a confiança. Basta obtermos informações sobre as crenças de fundo da pessoa e identificarmos um histórico de erros em relação a esse tipo de crença, ou constatarmos que a pessoa não tem habilidade suficiente para entender a questão, ou ainda diante de evidências que demonstrem que a pessoa não adquiriu a crença através de um processo devidamente reflexivo.
Dessa forma, de que modo podemos alterar nossas crenças com base no testemunho de outras pessoas? Foley salienta que, em primeiro lugar, se queremos alterar nossas crenças com base nas crenças de outro, temos que acreditar que a pessoa possui aquela crença. É muito difícil determinar em que uma pessoa acredita. Minha evidência sobre as crenças de outra pessoa pode ser mais forte ou mais fraca, e isso vai determinar quão boa é a razão que tenho para modificar minhas crenças com base nas crenças do outro.
Outra dificuldade para conceder confiança epistêmica são os casos de desacordo. Se não temos crença em p, mas alguém tem, podemos assumir p prima facie. Entretanto, se há discordância entre duas ou mais pessoas em relação a p, como podemos assumir a crença? Se não temos evidência de que uma das pessoas seja mais confiável que outra, ficamos impedidos de crer em p, e a atitude epistêmica correta é a suspensão do juízo. Contudo, se temos evidências para confiar mais nas crenças de uma pessoa do que nas de outra, podemos fazê-lo, mas a força de nossas razões é diretamente dependente da evidência.
Para garantir as crenças do passado e do futuro, Foley utiliza o mesmo argumento. Se temos autoconfiança, então temos que confiar em nossas crenças do passado e do futuro, afinal, nossas crenças atuais foram formadas a partir dos mesmos métodos e faculdades que nossas crenças do passado e foram influenciadas por essas. E, certamente, nossas crenças do futuro serão formadas através das mesmas faculdades e métodos que nossas crenças atuais e serão também influenciadas por elas.
Foley apresenta uma proposta às questões de confiança epistêmica em geral (autoconfiança, confiança em crenças do passado e do futuro, e confiança em outras pessoas). Ele fundamenta a autoconfiança sob o argumento de que, se não confiarmos em nossas faculdades e métodos, impossibilitamos qualquer raciocínio, pois raciocínios dependem de nossas faculdades e métodos. Assim, garante autoconfiança mesmo que não possamos fornecer garantias não circulares para nossas faculdades e métodos, pois qualquer garantia também fará uso dessas. Disso deriva que podemos confiar em outras pessoas, pois, se podemos confiar em nosso sistema cognitivo, podemos confiar no de outros seres humanos, que são semelhantes a nós, e que, ademais, contribuíram à formação de nosso sistema de crenças. Além disso, podemos confiar também em nossas crenças do passado e do futuro, pois elas fazem uso do mesmo sistema cognitivo.
Dessa forma, Foley garante autoconfiança, a confiança prima facie na crença de outras pessoas, e a confiança em nossas crenças do passado, sem que para isso seja preciso reafirmá-las cada vez, o que tornaria inviável o progresso do conhecimento. A autoconfiança cria uma atmosfera de confiança, que se irradia e permite a transmissão de informação através dos tempos e, assim, torna possível que nos engajemos em projetos epistêmicos mais longos e confiemos prima facie nas pessoas, mesmo sendo completos estranhos.
A impossibilidade de uma definição de confiança epistêmica
Quando Foley afirma que podemos derivar confiança nos outros da autoconfiança, ele não está legitimando a confiança no testemunho de outras pessoas, mas a fiabilidade nas faculdades intelectuais de outras pessoas. Nota-se que existe uma lacuna em decorrência da qual essa analogia parece falhar. Há um problema em relação à metodologia argumentativa utilizada, que decorre de uma diferença básica entre a confiança que tenho na fiabilidade (reliability) de minhas faculdades e a confiança que deposito em outras pessoas.
Foley utiliza o conceito de autoconfiança (self-trust), mas a relação que estabelecemos com nossas próprias faculdades é uma relação de fiabilidade (reliability). Se buscarmos as origens de ambos os conceitos, encontraremos diferenças consideráveis entre fiar-se (rely) e confiar (trust). Ele ignora essas diferenças e utiliza ambos os conceitos como sinônimos, fazendo uma analogia entre a fiabilidade que temos em nossas próprias faculdades e a confiança que depositamos nos outros. Não apresenta nenhuma definição explícita de confiança, mas parece assumir que confiança é crença na fiabilidade de minhas faculdades intelectuais e, logo, também nas faculdades de outros seres humanos.
Sua analogia entre autoconfiança e confiança em outras pessoas falha porque desconsidera o viés moral da confiança que deposito nos outros, ignorando a distinção entre confiar e fiar-se. Quando minhas faculdades cognitivas me enganam, é porque estão funcionando mal; já os outros podem me enganar ou porque suas faculdades cognitivas falharam, ou deliberadamente, em função de algum conflito de interesse. (ORIGGI, 2004).
Foley desconsidera o tipo de acesso especial que eu tenho às minhas faculdades, mas que não tenho em relação às faculdades de outras pessoas. Mesmo que minhas faculdades cognitivas sejam muito semelhantes às de outros seres humanos, nada nessa semelhança implica que, quando os outros fazem declarações, eles estejam expressando suas crenças. As pessoas podem escolher não expressar suas crenças, mas, quando expressam, ainda podem escolher mentir ou enganar. Mesmo que eu possa confiar nas faculdades de outras pessoas, posso confiar no que elas dizem? Confiança implica mais do que fiabilidade. Confiar é fiar-se na boa vontade e competência do outro. Não é uma relação análoga a que estabelecemos com nossas próprias faculdades, porque é uma relação interpessoal por definição.
Para Origgi (2005) Foley deixa a desejar em sua análise de confiança, pois desconsidera que confiar nos outros não depende de algo que sabemos sobre eles (que suas faculdades cognitivas são muito semelhantes às nossas, por exemplo), mas envolve um comprometimento com a fidedignidade (trustworthiness) do outro. A autora defende que uma análise motivacional da confiança pode ser mais promissora do que uma análise exclusivamente cognitiva. Ainda, para Origgi (2005), nós devemos esse tipo de comprometimento mesmo para autoconfiança, ou seja, a autoridade de meus próprios estados cognitivos não depende de algo que eu descubro sobre mim. A analogia entre confiança epistêmica e autoconfiança não nos possibilita um entendimento claro da confiança em outras pessoas.
Por sua vez, McMyler (2011) destaca a importância da distinção entre confiar e fiar-se quando abordamos a confiança em outras pessoas. Fiabilidade (reliability) aparece em uma perspectiva mais individualista e é considerada o suficiente para formar uma razão epistêmica, tratando-se de uma espécie de dependência epistêmica entre os agentes e suas fontes de conhecimento. Fiabilidade (reliability) é o que confere status de evidência a algo, e fiar-se é a atitude do agente para aceitar algo como evidência. Já confiar (trust) implica uma motivação do falante em prol das necessidades do ouvinte e está em uma perspectiva interpessoal.
Foley, ao desconsiderar as características morais da confiança, desconsidera, igualmente, a distinção entre os conceitos confiar e fiar-se e utiliza ambos os termos como sinônimos. Em decorrência disso, algumas críticas são levantadas à sua teoria. Defendemos que o problema mais relevante oriundo dessa desconsideração da diferença conceitual é que o filósofo acaba por obscurecer a discussão ao fazer um uso indiscriminado de ambos os conceitos.
O conceito fiar-se é um conceito já estabelecido na literatura epistemológica desde a década de 70, quando foi cunhado por Goldman. Na filosofia moral, ele é utilizado em um sentido bastante próximo. Podemos nos fiar em coisas ou em pessoas, entretanto fiar-se não pressupõe nenhuma relação voluntária, intencional, interpessoal, apenas uma relação de dependência, na qual as coisas ou pessoas servem como evidência para a crença. Já a confiança assume outras características, como explicitado, que incluem relações interpessoais e dão origem a sentimentos de traição e ressentimento quando desapontadas.
O conceito moral de confiança, da forma como está constituído, vai na contramão da concepção defendida em epistemologia, que pressupõe que devemos considerar as evidências de forma proporcional. McLeod (2011) defende que a consideração de evidências contrárias à pessoa confiada, juntamente com a reflexão racional, tende a enfraquecer a confiança. Mas, se existem evidências contra o confiado, desconsiderá-las viola a integridade epistêmica do sujeito. Desse modo, nota-se que o conceito de confiança moral não é dirigido à verdade, não podendo contribuir para os debates em epistemologia, por não maximizar os fins epistêmicos de adquirir crenças verdadeiras e evitar crenças falsas.
Ainda, se considerarmos a exigência de otimismo em relação às habilidades da pessoa confiada, que, segundo alguns autores, é necessária para que possa haver confiança (McLEOD, 2011), acresce-se aí outra objeção ao uso desse conceito em epistemologia. Vejamos o exemplo apresentado por Müller:
Considere, agora, o caso do ouvinte otimista. Suponha que você está conduzindo o seu carro em direção ao litoral, mas não sabe onde fica a entrada da praia em que deseja veranear. De repente, à margem da estrada, você avista alguém (um estranho), pára o carro e pergunta: “Onde é a entrada para a praia...?” Ocorre que o sujeito lhe fornece a informação p. Nesse caso, o informante é o prefeito da praia que você procura e é uma pessoa de grande credibilidade para os cidadãos da cidade; é alguém cujo desempenho como falante é suficientemente conducente à verdade. Naquela situação, você passa a crer que p por causa e com base no que ele lhe disse e não tem qualquer derrotador invicto. Suponha, ainda, que seja fato que p. Todavia, suponha que você seja um otimista epistêmico irresistível. Ocorre que você sempre superestima a avaliação que faz sobre a credibilidade do informante ou da probabilidade de p ser verdadeira. Nessa ocasião, você não tem qualquer crença ou evidência disponível para não crer na declaração do informante (o prefeito) de que p ou, ainda, crer que p é falsa. O testemunho do informante (o prefeito) é de fato digno de crédito, mas você creria mesmo se não fosse, porque você tem uma sensibilidade defectiva em relação aos derrotadores. O primeiro aspecto a considerar no caso do ouvinte otimista é que o fato de você superestimar a avaliação que faz sobre a credibilidade do informante ou da probabilidade de p ser verdadeira torna você basicamente uma pessoa crédula. (2010a, p. 139).
Conclusão
Nota-se que, em epistemologia, o otimismo tanto quanto o pessimismo são posições questionáveis, visto que se afastam da racionalidade ao esperar demais ou de menos. Considera-se que uma posição racional é uma na qual se avaliam as evidências para crer, e crê-se na medida dessas evidências, não depositando mais ou menos expectativas do que a avaliação nos permite. Assim, a própria definição de confiança, como tem sido apresentada, levanta problemas epistemológicos de fundo.
Sendo que o conceito de fiar-se é um conceito já consagrado em epistemologia, e que o conceito de confiar não traz contribuições epistêmicas por não ser conducente à verdade, defendemos que o uso não analógico é um erro, pois, ao desconsiderar os aspectos morais, ele acaba por inflar o debate com um conceito a mais (trust) que poderia ser dispensado.
A discussão, assim, se polariza entre as visões cognitivistas, de um lado, que reduzem a confiança à fiabilidade, e, de outro, os defensores das concepções interpessoais, que salientam a distinção entre confiar e fiar-se e que alegam que os aspectos morais da primeira devem ser considerados. Broncano expõe o problema em seu artigo Trusting others:
Pode-se argumentar que esta confiança (trust) deve também ser justificada por razões epistêmicas relativas à fiabilidade (reliability) do falante. Se assim for, exigir uma espécie de confiança epistêmica iria enfrentar o mesmo dilema que qualquer outra explicação de justificação testemunhal. Pois, se ela está fundamentada em uma estimativa probabilística de fiabilidade, confiança não seria necessária, porque o cálculo faz todo o trabalho. E se não é fundamentada em qualquer razão, a confiança se tornaria uma atitude cega, levando a consequências desastrosas. (2008, p. 14).
Reduzir confiança (trust) à fiabilidade é desconsiderar peculiaridades que caracterizam o conceito. O conceito de confiança (trust) acaba por não desempenhar nenhum papel diferenciado do conceito de fiar-se (rely). Uma terceira via seria, ainda, reduzir o conceito ao seu uso em filosofia moral, o que nos colocaria em uma posição crédula e ingênua, que não pode ser aceita em epistemologia. O uso exclusivo de fiar-se para os debates sobre testemunho colocará os mesmos problemas já encontrados nos debates tradicionais sobre justificação, pois reduz o falante a uma fonte de crenças. Tal uso desconsidera características interpessoais, mas preserva os objetivos epistêmicos de obter crenças verdadeiras e evitar crenças falsas, sem confundir o debate com a inserção de mais um conceito.
A consideração dos aspectos morais da confiança é importante justamente à identificação do problema. O conceito de confiança passou a ser utilizado em epistemologia em decorrência da crescente preocupação com a aquisição de crenças através de testemunho; entretanto, notamos que ele não pode contribuir para o debate se não desempenha um papel epistêmico. E ele não desempenha esse papel, inclusive, por ser resistente a evidências. Já o conceito de fiar-se não apresenta essa característica, podendo ser utilizado nos debates em epistemologia do testemunho, assim como vem sendo utilizado em outros debates epistemológicos. Analisar o conceito de confiança em filosofia moral permite-nos ser parcimoniosos no debate sobre testemunho, pois notamos que o conceito de confiança é inadequado à discussão e podemos ficar apenas com o conceito de fiabilidade, sem multiplicar conceitos desnecessários que só acabam confundindo o debate.