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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.2 Caxias do Sul maio/ago 2018  Epub 20-Ago-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.n2.7 

Artigos

As crianças participam de corpo inteiro

Children participate of full body

Kátia Agostinho* 

*Doutora em Estudos da Criança pela Universidade do Minho – Portugal. Professora no Departamento de Metodologia do Ensino e no Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). : katia.agostinho@ufsc.br


RESUMO

Resumo

As crianças participam de corpo inteiro dos seus mundos de vida, visibilizando a natureza incorporada da ação humana. A partir de uma pesquisa etnográfica com crianças de 3 a 6 anos, em nível de Doutorado, sua empiria e bases teóricas (FERREIRA, 2009, 2013; FINGERSON, 2009; GIL, 1997; LE BRETON, 2009), vimos que o corpo da criança está na base de toda sua experiência social, mediador das relações, das práticas, dos discursos, das apropriações do outro e do mundo. Tal ideia precisa ser considerada nas práticas pedagógicas, para que vençamos os fortes mecanismos de controle e dominação que instituem e orientam um ordenamento social normativo do modelo ideal de corpo disciplinado e obediente, que marginaliza e exclui o corpo da criança ávido por descobrir e se descobrir na sua relação novidável e embrionária com o mundo. As crianças, como atores sociais de corpo inteiro, têm, na sua ação incorporada, uma de suas formas de participar dos contextos coletivos de educação pela qual expressam seus pontos de vista, sendo imprescindível o desenvolvimento de abordagens adequadas às formas de comunicação das crianças, instaurando uma cultura de comunicação, que comece a partir da posição da criança, a fim de que possamos construir práticas democráticas, estabelecidas no paradigma da escuta, mais especificamente da ausculta, implicadas na comunicação humana. As crianças, como sujeitos de conhecimento e produtoras de sentido, têm “voz”, são legítimas as formas de comunicação e relação que utilizam para se expressar e, ao fazê-lo, contribuem à renovação e reprodução dos contextos dos quais participam quando existe quem esteja interessado em ouvir suas vozes.

Palavras-chaves:  Corpo; Criança; Educação Infantil; Direitos; Direitos de participação

ABSTRACT

Abstract

Children participate whole body in their worlds of life, making visible the embodied nature of human action. From an ethnographic research with children, from 3 to 6 years old, at doctoral level, their empirical and theoretical bases (FERREIRA, 2009, 2013; FINGERSON, 2009; GIL, 1997; LE BRETON, 2009) of children is the basis of all their social experience, mediator of relationships, practices, discourses, appropriations of the Other and the world. This idea needs to be considered in pedagogical practices, so that we overcome the strong mechanisms of control and domination that institute and guide a normative social ordering of the ideal model of a disciplined and obedient body that marginalizes and excludes the body of the child eager to discover and discover- in its new and embryonic relationship with the world. The childrens as full-body social actors have in their incorporated action one of their ways of participating in the collective educational contexts through which they express their points of view, being essential the development of appropriate approaches to the children's communication forms, establishing a culture of communication that starts from the position of the child, so that we can build democratic practices, established in the paradigm of listening, more specifically auscultation, involved in human communication. Children as subjects of knowledge and producers of meaning have “voice”, are legitimate forms of communication and relationship that they use to express themselves and, in doing so, contribute to the renewal and reproduction of the contexts in which they participate when there is who are interested in hearing their voices.

Keywords:  Body; Child; Early Education; Rights; Rights of participation

Nesse texto, discutiremos sobre os modos pelos quais as crianças participam de corpo inteiro, na pré-escola. As discussões aqui tecidas partem de um estudo, em nível de Doutorado, sobre a participação das crianças nos contextos de sua educação, em que realizamos uma pesquisa etnográfica, numa pré-escola pública, com 33 crianças1 (18 meninas e 15 meninos), de 3 a 6 anos, 1 professor e 1 professora esporádica, ao longo de 2 anos, e que tem, como princípio fundador, um projeto emancipatório que contribua para uma sociedade democrática, solidária e com justiça social.

Pela complexidade da temática – desafios, contradições, impasses e paradoxos teóricos, sociais e políticos – é importante manter atenção ao alerta de Rosemberg (2012, p. 22) para o fato de que “na expansão da condição de cidadania, entre aqueles que ocupam os lugares de subgrupos humanos, as crianças constituem um dos últimos grupos, se não o último, a terem seus direitos reconhecidos”. Tal situação se agrava quando nos detemos nos direitos de participação, sendo os que se referem ao status de sujeito das crianças bem mais relevantes. (QVORTRUP, 2010). Essa complexidade é acrescida, ainda, da singularidade com que as crianças concretizam e expressam seu processo de participação na vida social e na construção da própria infância.

Ao realizar o estudo, o corpo das crianças apareceu como grande informante de seus modos próprios geracionais de participar. Os novos enfoques da pesquisa sobre a infância dão grande relevância às crianças como ativas na vida em sociedade, mas “muitas vezes não conseguem perceber a importância da corporificação nos processos por meio dos quais as crianças participam da vida social”. (JAMES et al., 1999, p. 209), evidenciando a necessidade de compreendermos o seu corpo e o papel que desempenha nas relações sociais.

Contudo, nos últimos anos, o corpo das crianças vem aparecendo na reflexão teórica em nossa área. Outras pesquisas (GUIMARÃES, 2008; COUTINHO, 2010; ARENHART, 2012; BUSS-SIMÃO, 2012) realizadas com crianças na Educação Infantil também trazem contributos para o pensarmos, inserindo-o em discussões que relegam o reducionismo biológico e a dissolução do corpo como ente material, carnal. Assim,

aa interseção da relação e da práxis, da linguagem e do símbolo, da instituição e da contestação, da percepção e da ação, da sensação e da emoção sobre o mundo, o corpo acaba por assumir, em termos sociológicos, não apenas o estatuto epistemológico de objeto de poder, mas também de locus de ação (Crossley, 1996, p. 104; Frank, 1995 [1991], pp. 48-49). Daí a necessidade de trazer não só a carnalidade à sociologia, como de repensá-la de uma forma ativa, entendendo o corpo na sua concretude, não apenas como produto de estruturas sociais e culturais, mas também como agente social, como ator e enjeu (Berthelot, 1987, p. 7), como operador social ativo (Crossley, 1996, p. 99). (FERREIRA, 2013, p. 522, grifos do autor).

O corpo das crianças

Sobre o corpo das crianças recai um número significativo de marcas identitárias do pensamento das sociedades ocidentais, daquilo que caracteriza ser criança: estatura, vulnerabilidade, destreza, capacidade, forma. Como um dos elementos identitários da infância e da criança ocidentais, carrega em sua materialidade corpórea a condição geracional das crianças, sendo o seu inacabamento um dos signos no qual, historicamente, se fundamentam muitas das ideias sobre a percepção delas como infant.

Seu corpo está inacabado no nascimento e só será concluído por meio de ação na sociedade. “O filhote de homem necessita ser reconhecido pelos outros como um ser existente, para poder se estabelecer como sujeito”. (LE BRETON, 2009, p. 15). É durante a infância que esse processo de acabamento do corpo é intenso. Explodem rápidas e significativas mudanças corporais, no peso, na estatura e na agilidade. Precisamente porque o corpo da criança é caracterizado por mudanças biológicas aceleradas, e a incorporação delas é muito diferente da dos adultos.

Para o corpo infantil é direcionado um conjunto de sonhos e desejos: de juventude, agilidade, desenvoltura. Esses mesmos atributos também são alvo de recriminações quando se expressam em espaços e tempos que os adultos julgam inadequados, recaindo sobre eles, nesses momentos, limitações e proibições. Paradoxalmente, sua materialidade comporta o sonho de continuidade e vivacidade ao mesmo tempo que sustenta a exigência de comportamento e domesticação.

O corpo das crianças é objeto de controle e regulação intensos por parte das instituições educativas que tendem a assegurar a conformidade das crianças às normas da ordem estabelecida com práticas de disciplinamento e uniformização, colocando limites e efetivando sanções na moldagem e construção de um corpo que corresponda a ideais e expectativas adultocêntricas.

No corpo – um objeto a conhecer e meio de conhecimento – estão os híbridos que constituem nossa humanidade, lugar em que se encontram, mesclam natureza e cultura, corpo e mente, razão e emoção, ação e estrutura, etc. Através dele, podemos vencer os dualismos recorrentes na tradição moderna, (re)conhecer as formas de poder que o social imprime na natureza e o modo como são socializados e/ou explorados, coletivamente, os recursos, às capacidades e os atributos que lhe são naturais.

“O corpo é o lugar de soberania do sujeito, é a primeira matéria da sua ligação com o mundo” (LE BRETON, 2004, p. 16), sendo que o das crianças apresenta-se, geralmente, com um grande ímpeto para se relacionar com o mundo, com vivacidade e energia. Ao participarem de corpo inteiro dos seus contextos, as crianças visibilizam a natureza incorporada/corporificada da ação humana, realizada por pessoas reais, vivas e corpóreas, apontando a necessidade de não negligenciarmos essa sua forma de participação.

O corpo é experimentado, gerido e compreendido socialmente. O corpo é uma fonte direta de agência e pode ser como uma fonte de agência e poder em interação social. Para crianças e adolescentes, em especial, o corpo é saliente em suas vidas e afeta sua interação social. A fim de compreender verdadeiramente a vida das crianças, devemos compreender suas vidas incorporadas. (FINGERSON, 2009, p. 226).

O corpo das crianças participa: seu corpo comunica seus pontos de vista

“Compreender a comunicação é também compreender a maneira como o sujeito, de corpo inteiro, nela participa”. (LE BRETON, 2009, p. 40).

A veemência do corpo das meninas e dos meninos com que me encontrei fez com que considerasse que a primeira e mais contundente informação do estudo é que seu corpo – seus movimentos e expressões – são meios de comunicação, potencialmente informante das formas de participação das crianças, e que, por meio dele, elas expressam seus pontos de vista. Essa constatação corrobora a perspectiva de democracia comunicativa de Young (1997), que reconhece os aspectos não linguísticos da comunicação – nem todas as pessoas têm as mesmas condições e nem utilizam as mesmas vias de comunicação, podendo expressar, de vários modos, seus pontos de vista.

O modo de as crianças se relacionarem com os mundos físico e social daquela pré-escola foi fluido, em movimento de ser-e-estar, construindo, assim, suas relações com e através de seu corpo, com pequenos e grandes movimentos, gestos e expressões, acentuando a vertente do corpo na comunicação que corporifica a relação com os outros. (LE BRETON, 2009).

Os inumeráveis movimentos corporais (gestos, mímicas, posturas, deslocamentos, etc.) empregados nas interações oferecem ao discurso uma corporeidade que lhe acrescenta significações. É o corpo, nas suas atitudes e posturas, que, primeiramente, evidencia a presença do outro na interação. O corpo é parceiro homogêneo da língua na “permanente circulação de sentido, a qual consiste na própria razão de ser do vínculo social – O movimento do corpo metaforiza a palavra. Nenhuma palavra existe independentemente da corporeidade que lhe envolve e lhe confere substância”. (LE BRETON, 2009, p. 42).

As ações na vida cotidiana envolvem a mediação do corpo, que constitui “uma base concreta e material, viva, vivida e em devir, que informa a construção de relações que são culturalmente potencializadas” (FERREIRA, 2009, p. 3). Sua comunicação é um processo dotado de múltiplos canais. O sistema global de comunicação inclui a gestualidade, a mímica, as posturas, a língua, os silêncios, a tonalidade da voz. Incidem, ainda, sobre o corpo, como canal comunicacional, a distância com que são travadas as interações e a relação com o espaço e com o tempo.

Considero que a sequência fotográfica (Figura 1) ajuda a perceber o potencial comunicante do corpo das crianças. Nela podemos acompanhar uma conversa entre Giulia, Giorgia e Margherita, todas com 4 anos de idade e 2 anos de vivência no grupo. Elas estão sentadas num canto da sala, onde estão elementos da casinha de bonecas. Sobre a mesa vemos alguns deles, e, nas mãos de Giorgia, uma boneca:

Fonte: Acervo da autora.

Figura 1 – Sequência fotográfica 1: 13/6/2008 

Giulia, Giorgia e Margherita conversam envolvidamente sobre muitos assuntos: lugares onde vão, praias, sons, som de cavalo, etc. Ao interagirem naquela roda de conversa, as meninas fazem muitas expressões. Ao explicitarem o seu ponto de vista, apoio, dúvida e/ou sua contrariedade à ideia da outra, a expressão vinca-se, incrusta-se com mais força e veemência na face. Por vezes, seus corpos levantam-se da cadeira, e suas vozes aumentam de tom na defesa de suas posições. (Registro de campo, 13/6/08).

Assim sendo, os movimentos, os gestos, as expressões e as posições das meninas inscrevem numa forma simbólica do espaço e do tempo, uma simbologia de rostos e corpos, um uso característico da palavra. Todos esses elementos constituem-se em importantes informantes do que as meninas pensam, sentem e de como agem no mundo. Esse emaranhado complexo de formas comunicacionais demonstra que a interação solicita múltiplos canais, que cada pessoa os explora de acordo com suas particularidades e estilo com seus pares.

As crianças, como atores sociais de direitos próprios, são sujeitos de conhecimento e produtoras de sentido de corpo inteiro; são legítimas suas formas de comunicação e relação e assim, contribuem à renovação e reprodução dos laços sociais nos espaços em que participam. O corpo da criança, como suporte à sua ação social, expressa saberes, dúvidas, aceitação, contraposição, sentimentos, fragilidades, força, agilidade, incapacidade, fraqueza; enfim, seus pontos de vista, nos informando, dessa maneira, os modos de ser criança das meninas e dos meninos.

Viver, experienciar e expressar através do seu corpo é importante às crianças. Durante as observações em presença e a análise dos registros escritos e fotográficos, a intensidade com que elas viviam seu corpo – indo de cá para lá, dançando, correndo, escorregando, se abaixando, pulando, puxando, empurrando, subindo, levantando, deslizando, equilibrando, gesticulando, etc., – chama ao reconhecimento de que nele a vida irrompe, velozmente cresce e se modifica num corpo que vai adquirindo destreza ao explorar e se explorar em inter(ação).

Tal consideração não ignora o fato de que nem todas as crianças o fazem do mesmo jeito. Não reside sobre todos os corpos infantis o mito da vivacidade. Desse modo, não é possível corroborar o imaginário mitificador do corpo ágil que habita em todas as crianças, já que essa ideia comum veiculada não encontra ressonância na realidade. Existem crianças às quais, por escolha ou limitações, a expressão e a experiência de seu corpo, de seus movimentos e gestos são mais contidos, moderados e, em alguns momentos, quase imperceptíveis. As crianças são diferentes entre si, e seu corpo e a forma de expressá-lo também o são.

Ao participarem de suas rotinas cotidianas, as crianças expressavam, a todo momento, seus modos de ser e interagir com o mundo no e com seu corpo, que também é conhecimento e sentido prático. Suas percepções, intenções e ações, nas diferentes relações estabelecidas, marcavam-se em suas expressões, ricas comunicantes de seus pontos de vista. Então: “Que enigmas e revelações pode um rosto desvendar? No fundo, o rosto é um lugar geométrico de conhecimento.” (PAIS, 2006, p. 15). Pergunta e resposta nos ajudam a refletir sobre o potencial das expressões das crianças como elementos de sua participação.

Fonte: Acervo da autora.

Figura 2 – Sequência fotográfica 2 – 2008 e 2009 

Na expressão das crianças que vemos nas fotos “boca, olhos, ouvidos e, em menor grau, o nariz, formam um complexo de órgãos sensoriais que, pela sua disposição (simétrica e à volta da cabeça), induzem um centro de onde vem e para onde vai o sentido da comunicação”. (GIL, 1997, p. 167). Cada sujeito situa, mais provavelmente, o seu eu no espaço de onde olha, ouve e se ouve a si próprio. Sendo assim, o rosto sustenta a identidade pessoal. Nele, o olhar e a expressão, na trama simbólica da interação, cumprem um importante papel; contribuem ao desenrolar da interação, os olhos recebem e, simultaneamente, transmitem informações na troca de enunciados, e as expressões comunicam diferentes conteúdos.

Ao estabelecerem as diversas relações que se cruzavam naquele espaço educativo, as crianças, sujeitos da comunicação e percepção, situavam-se na zona fronteiriça entre o interior e o exterior, no espaço de limiar. É nele – em síntese, em toda a pele que envolve toda a superfície corporal – que acontece nossa relação com o mundo. É na pele e com ela que estabelecemos nossa comunicação com o mundo, ela é a abertura do corpo ao corpo do outro e a consequente conexão afetivo-cognitiva que se estabelece. Gil fala da vocação da pele para a inscrição: “A sua cor, a sua textura, a sua situação no corpo tornam-na um meio privilegiado para inscrever todo tipo de mensagens, quer dizer, um meio único de comunicação.” (GIL, 1997, p. 181).

O corpo das crianças, todo ele (movimentos, gestos, expressões, olhares), como espaço do limiar, é a superfície com que inscreve sua ação diante da estrutura e onde a estrutura inscreve os códigos de sociabilidade eleitos socialmente. Ao entendermos como as crianças vivem seus corpos, podemos apreender aspectos mais amplos de seus cotidianos, como aponta Fingerson (2009, p. 217), ao afirmar que os indivíduos são constrangidos pelas condições em que vivem, e “é através dos seus corpos, através de suas práticas corporais, que podem tornar-se sujeitos, participar na construção dessas condições, transcender essas condições e agir de acordo com seus mundos”.

O corpo da criança e sua incorporação na pré-escola

A presença e participação do corpo infantil, ávido por descobrir e se descobrir na sua relação novidável e embrionária com o mundo, interrogam as práticas pedagógicas em creches e pré-escolas, através de sua incessante comunicabilidade, de modo que possamos refletir: Que corpos de meninos e meninas de 0 a 6 anos estamos construindo?

No corpo da criança reside um conjunto de componentes físicos em plena constituição. Nele a vida explode, e aparece com força a vontade de desbravar e se aventurar. O irromper da vida, com sua força e velocidade, interroga a estrutura que tende a formatar, paralisar, enrijecer, docilizar, disciplinar.

Figura 3 – Sequência fotográfica 3 – 10/3/2009 

Essa sequência de fotografias (2) é assim descrita no registro do diário de campo:

Chiara, com a caneta de raio laser nas mãos, vai jogando a luz e brincando com Cristiano e Tomaso. Giulia se aproxima e também se envolve na brincadeira, eles riem. Chiara faz cócegas nos meninos, eles retribuem com sorrisos e tentativas de também fazer nela, juntos se divertem. Cristiano sai correndo pela sala, e Tomaso o segue, Cristiano vai para debaixo da mesa, e Chiara corre atrás de Tomaso. Cristiano sai debaixo da mesa e se junta a eles assim como Giulia. (Registro de campo, 10/3/2009).

O sorriso e o prazer expressados pelas crianças, na vivência dessa corrida pela sala, são claros e contagiantes. A forma fluida e despreocupada com que meninas e meninos o fazem ajuda a perceber a presença de corpos que expressam a vontade de movimento, aventura, experimento, de conhecer e se conhecer, sem que, necessariamente, estejam confrontando o estabelecido pelas regras adultas, por exemplo, de que não se pode correr na sala. Seus diferentes movimentos, ao participarem das rotinas diárias da pré-escola, indicam sua disposição para conhecer o mundo e a si mesmo, sua capacidade e força. Importa, aqui, trazer para debate a presença dessas expressões de modo que possamos aprofundar nossa reflexão e conhecimento sobre as mesmas, para que possam ser questionados os modos controladores e limitantes que se impõem nos espaços educativos sobre as vivências do corpo das crianças.

Era clara a necessidade que as crianças tinham de viver e expressar seu corpo. Os desafios que a elas se apresentavam – controlar essa expressão, pelo menos no que tange aos movimentos amplos – nos momentos em que o tempo e o espaço não eram para sua expressão, colocam importantes reflexões. Segundo Mayall (1996), para as crianças, o poder na relação com os adultos limita sua capacidade de fazer um lugar e um espaço para sua própria incorporação.

A infraestrutura da sala colocava constrangimentos e limitações à possibilidade de as crianças se movimentarem e poder praticar toda sua expressão corporal. A sala compreendia 35 metros quadrados, com sete mesas, cadeiras, armários, estantes, brinquedos, jogos e materiais em todas as laterais, somando, ainda, as pessoas que ali habitavam: crianças e professores sistematicamente; e familiares e amigos em momentos pontuais. Esses fatos são comumente encontrados nos espaços de educação. Os movimentos mais amplos das crianças eram contidos e constrangidos por um espaço exíguo, bem como pela responsabilidade e preocupação do professor com o bem-estar e a proteção delas. As crianças viviam esses constrangimentos na expressão de seus movimentos de forma diferenciada no tempo e entre si.

Os híbridos que aqui se forjam, tecidos pela ação e participação das crianças que interrogam e reinscrevem a estrutura, também pela estrutura que as força e as constrange a limitações e adaptações a um conjunto de regras socialmente eleito, visibilizam a complexidade que se instaura nas redes de relações e forças que se cruzam na cotidianidade educativa e exige atenção em tê-las em conta.

Assim, é imprescindível o desenvolvimento de abordagens adequadas às formas de comunicação pelas quais as crianças expressam seus pontos de vista, numa cultura de comunicação, que comece a partir da posição da criança, reconhecendo suas diferenças, a fim de que possamos construir práticas democráticas, estabelecidas no paradigma da escuta, mais especificamente, da ausculta, implicadas na comunicação humana.

As ações na vida cotidiana envolvem a mediação do corpo, que constitui uma base concreta e material, viva e vivida, na qual podemos nos inspirar na ideia de que não há limite ao conhecimento, à ação, à experiência que só têm sentido às crianças quando atravessam o corpo. (BENJAMIN, 1992).

Como profissional responsável pelo seu bem-estar, compreendo a importância de mantermos o cuidado e a atenção quanto às necessárias medidas de proteção das crianças. Importante, aqui, é aprender um modo de manter essa tensão, essa ambivalência em equilíbrio. Entendo, ainda, que devem ser convocadas aprendizagens e posturas que tenham a sensatez e o discernimento à vida em sociedade, baseadas no respeito e na partilha com o outro, como parte de processos de aprendizagem sociais e culturais. Podemos, aqui, além de manter a tensão em equilíbrio entre autonomia e proteção, liberdade e disciplina, pensar em instaurar um tempo de aprendizagens mútuas e, assim, acentuar os sentidos de interdependência.

Nas práticas pedagógicas, é importante a atenção ao equilíbrio entre a garantia da possibilidade de expressão de seu corpo e – reconhecendo as crianças como indivíduos novos na convivência coletiva – e a instauração, com sensibilidade, sutileza e bom-senso, de processos de iniciação nos modos próprios das formas societais de expressão e vivência do corpo.

A contundência com que o corpo foi vivido e experienciado pelas crianças faz refletir acerca das ações que questionam a ordem comumente estabelecida do disciplinamento do corpo, da obediência que deseja corpos silenciosos, rijos, dóceis, colocando para nós o desafio de e o empenho em construir corpos desbravadores, flexíveis, fluidos e críticos. As crianças, ao se moverem, expressavam seus modos de participar das rotinas daquele espaço educativo tanto naquelas estruturadas por elas quanto naquelas estruturadas, organizadas, planejadas, direcionadas pelo professor.

No processo educacional, geralmente, as crianças são guiadas a se conformar com os padrões de atividade corporal – eleitos como adequados às situações comuns –, incorporando, assim, uma linguagem do corpo e um código de estilos que devem seguir normas e conveniências. Tem-se o corpo, então, como o destinatário das práticas educacionais do controle, da repressão e do castigo. Ficam os indicativos das crianças pesquisadas, para que práticas diversas se instaurem.

Sensibilidade e perspicácia adulta são necessárias, precisam ser ativadas e cultivadas, para que, atentos ao potencial informante das crianças em suas expressões e pequenos gestos, possamos apreender deles importantes elementos que mostram suas formas de pensar e participar nas ordens sociais do contexto pré-escolar.

Considerações finais

A democracia comunicativa, inscrita na ética do cuidado e da solidariedade para com o outro, reconhece a diferença e favorece a pluralidade, ampliando as possibilidades de práticas democráticas inclusivas e enriquecendo as práticas pedagógicas na Educação Infantil, nos seus princípios éticos e políticos.

Ao dar visibilidade ao corpo das crianças – com sua comunicabilidade híbrida (natureza/cultura, corpo/mente, razão/emoção, etc.), essas, a todo momento, vão dando pistas, comunicando sua forma de pensar e de sentir o mundo que as rodeia – defendo sua potência como elemento constitutivo da participação das crianças em sua vida cotidiana, podendo prover inspiração para pensar e praticar essa participação.

Nas formas próprias de as crianças participarem, de expressarem seus pontos de vista, de maneira vívida e pulsante, utilizando-se do sistema global de comunicação, elas vivem o confronto com os constrangimentos sociais em presença, instaurando um espaço de negociação em que a ação e a estrutura se encontram e forjam a complexidade da realidade. Dependerá da força de uma e de outra o resultado do lado para o qual penderá a balança.

Importa, sobremaneira, construir uma ética comunicativa sem priorizar as vias ocidentalmente consagradas da fala e da escrita. Para isso, precisamos ativar deliberada e conscientemente a sensibilidade, a astúcia e a perspicácia para compreender as diferentes formas como as crianças expressam seus pensamentos e sentimentos, além de apreender a complexidade da participação das crianças em suas rotinas educativas, sua multidimensionalidade, tendo em vista o reconhecimento da presença e da importância de todas as dimensões do humano.

As crianças, sendo atores sociais de corpo inteiro, expressam, na maneira como vivem, com e através do seu corpo suas formas de participar dos seus mundos de vida. Suas experiências são vividas por um corpo que existe de fato, vivo e indivisível entre o sujeito e a carne, ultrapassando as dualidades enraizadas no pensamento sobre o corpo. É importante compreender o que os corpos nos contam de sua pertença geracional, dos seus modos próprios de participar de seus contextos de educação, em que produzem e reproduzem cultura com seus pares e com adultos, num e com um corpo vivido de um sujeito que experimenta e produz o mundo social.

Uma das questões centrais para a construção de uma pedagogia à Educação Infantil é aquela que diz respeito ao lugar que temos destinado ao corpo das crianças, as suas vivências e experiências. É importante pensar e organizar tempos e espaços de possibilidades de vivência rica, plural, aventureira e fluida, em que as crianças possam expressar e experimentar seus corpos nas creches e pré-escolas, uma pedagogia que “precisa resistir bravamente a todas as formas de hierarquia, dominação e poder, para que conquistemos o estatuto de cidadãos”. (SAYÃO, 2008, p. 7).

Ilustrações

Conforme salientado na nota de rodapé n. 1, todas as imagens fotográficas foram autorizadas pelos familiares, para compor a pesquisa, bem como, publicações, em documento escrito e arquivado e pelas crianças durante todo o processo de investigação, na Scuola dell’Infanzia dell’Istituto Comprensivo Statale ”Falcone e Borsellino” – Roma, Itália.

As fotografias foram utilizadas como textos estéticos, sensíveis e narrativos, acrescentadas à nossa capacidade de compreensão do contexto estudado e a do leitor, permitindo captar e transmitir o que não é imediatamente transmissível no campo linguístico. O modo de apresentação em sequências fotográficas atende ao indicativo de Virgínia Morrow (2009).2

1As autorizações para a pesquisa e fotografias foram dadas pelos familiares e pelas crianças durante todo o processo de investigação.

2MORROW, Virgínia. Methods and ethics of research with children about their environments. Conferência no Ciclo de Sociologia da Infância 2008-2009, do Instituto de Estudos da Criança na Universidade do Minho – Portugal.

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Recebido: 17 de Junho de 2016; Aceito: 19 de Junho de 2018

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