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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.2 Caxias do Sul maio/ago 2018  Epub 22-Ago-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.n2.9 

Artigos

Da magia ao ciberespaço: a imagem como mediação das angústias primitivas

From magic to cyberspace: the image as mediation of primitive anguishes

Marsiel Pacífico* 

Luiz Roberto Gomes** 

*Professor-Colaborador na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) na área de Estágio em Docência e Gestão Educacional. Membro pesquisador no grupo de pesquisa “&quot; LUME – Laboratório e Núcleo de Estudos em Mídia e Educação&quot” (UEPG). Doutor em Educação. Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: <marsiellp@gmail.com>

**Pós-Doutor em Ciências da Educação pela J. W. Goethe Universität em Frankfurt am Main – Alemanha. Doutor em Educação na área de Filosofia, História e Educação pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Mestre em Educação na área de Filosofia e História da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Licenciado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Autor de livros, capítulos de livros e artigos publicados no Brasil e no Exterior. Professor-Associado no Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professor permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFSCar). Professor-Colaborador no Programa de Pós-Graduação Profissional em Educação (Mestrado) da UFSCar. E-mail: <safce.artigo@gmail.com>


Resumo

Para lidar com seus medos primitivos, o homem utilizava a imagem como mediação dessas tensões. Nas pinturas rupestres das cavernas e nas práticas de magia, rituais buscavam apaziguar as decorrências de nossas fragilidades, sobretudo, na dimensão da finitude do homem tensionada pela sua relação com a natureza. A tentativa de superação dessa tensão deu-se, historicamente, sob a égide da razão. Todavia, a falência do plano moderno de esclarecimento pautado pelo no desencantamento do mundo, que se daria pela elevação dos sujeitos a uma ruptura com sua condição de minoridade e sua própria existência, resultou no pacto com as entranhas do pensamento mítico e, por conseqüência, com os fantasmas não superados de seu tempo. Assim, por meio de uma revisão bibliográfica, objetiva-se constituir uma análise de fenômenos como o Youtube, a Selfie, o Twitter, entre outros, para que se possa demonstrar, em sua forma e conteúdo, que a compulsão por tornar a própria vida privada em um espetáculo público, nas redes sociais, denota um contexto no qual existir passa pela mediação simbólica da autoemissão através de imagens, de modo a conjugar o ser à proporção do aparecer; assim, estar fora das plataformas virtuais ganha um peso ontológico de não existir, pois o cogito de nosso tempo resume-se em Apareço logo existo. Contemporaneamente, com a evolução das novas tecnologias, o ciberespaço e suas plataformas se fazem muito presentes nas interações humanas e, nesse contexto, a imagem ganha força de protagonista. Dessa maneira, conclui-se que, travestido em roupagem tecnológica, o uso da imagem ainda guarda as mesmas intenções de sua expressão arcaica: buscar a permanência do sujeito diante dos medos primitivos. Demonstra-se, ainda, que o pensamento crítico pode ser uma importante ferramenta no desvelamento dessas tensões.

Palavras-chave:  Imagem; Ciberespaço; Natureza; Dialética do Esclarecimento; Espetáculo de si

Resumen

Para hacer frente a sus miedos primitivos, el hombre utilizaba la imagen como mediación de estas tensiones. En las pinturas rupestres de las cavernas y en las prácticas de magia, los rituales buscaban apaciguar las consecuencias de nuestras fragilidades, sobre todo, en la dimensión de la finitud del hombre tensada por su relación con la naturaleza. El intento de superación de esta tensión se dio, históricamente, bajo la égida de la razón. Sin embargo, en la quiebra del plano moderno del esclarecimiento pautado en el desencanto del mundo, que se daría por la elevación de los sujetos en una ruptura con su condición de minoridad de su propia existência, resultó en el pacto con las entrañas del pensamiento mítico y por consecuencia con los fantasmas no superados de su tiempo. Así, por medio de una revisión bibliográfica, se objetivó constituir un análisis de fenómenos como el Youtube, la Selfie y el Twitter, entre otros, para que se pueda demostrar, en su forma y contenido, que la compulsión por hacer la propia vida privada en un espectáculo público en las redes sociales, denota un contexto en el que existir pasa por la mediación simbólica de la auto-emisión a través de imágenes para conjugar el ser a la proporción del aparecer; Así, estar fuera de las plataformas virtuales gana el peso ontológico de no existir, pues el cogito de nuestro tiempo se resume en aparezco luego existo. De tal modo, contemporáneamente, con la evolución de las nuevas tecnologías, el ciberespacio y sus plataformas se hacen muy presentes en las interacciones humanas y, en este contexto, la imagen gana fuerzas de protagonista. De esta manera, se concluye que travestido por el ropaje tecnológico, el uso de la imagen aún guarda las mismas intenciones de sus expresiones arcaicas: buscar la permanencia del sujeto frente a los miedos primitivos. Se demuestra que el pensamiento crítico puede ser una importante herramienta en el desvelamiento de estas tensiones.

A modernidade entre os avanços da máquina e as fragilidades da alma

À medida que o desenvolvimento tecnológico e a sofisticação dos meios de comunicação, cada vez mais velozes e próximos do real são disponibilizados, em grande parte da população, tais meios encontram, em um contexto moderno, mais do que a função de suporte auxiliar para as relações interpessoais, mas passam a monopolizá-las e, por consequência, determiná-las em certa medida. O caráter onipresente das imagens é um fator fundamental na construção social, na produção da cultura e das identidades.

Em meio à quantidade e à velocidade das imagens, em um contexto no qual as redes sociais ocupam, cada vez mais, tempo do cotidiano dos homens, produzir representações imagéticas determina, simbolicamente, a intensidade e a qualidade das relações com os outros. Porém, para além das relações interpessoais, os mecanismos tecnológicos protagonizados pela imagem passam a mediar as representações de mundo e também o modo como nos representamos nele. Se, por um lado, há um inegável avanço em aspectos como a disseminação do conhecimento, o encurtamento das distâncias físicas e a acessibilidade a informações em velocidade real, há, por outro, o caráter velado desse momento histórico determinado pelas imagens: o descompasso do avanço técnico se evidencia com as limitações materializadas no fracasso do ideal iluminista, que objetivava superar os grilhões metafísicos da religião e dar aos homens a condição de soberanos de seu percurso histórico. A análise desse cenário paradoxal leva à conclusão de que “no próprio progresso técnico estava inscrita a regressão da experiência subjetiva, cujo desenvolvimento mostrava-se atrofiado ante a objetividade imponente que a subsumia”. (CRIONI, 2010, p. 478).

Sua formatação apelativa e sensualista, aliada ao caráter incessante de sua replicabilidade, coage, de maneira imperiosa, no sentido que lhe apraz, ou seja, o da perpetuação do capital imagético e da lógica de consumo. Não há, nessa configuração do primado da imagem, nada que estimule a criatividade, a liberdade e o pensamento crítico; a aparência da multiplicidade de escolhas é o disfarce sofisticado da determinação objetiva do estágio espetaculoso do capital contemporâneo. Desse modo, antagonicamente, o desenvolvimento técnico – cristalizado pelas imagens – representa, objetivamente, a potencialização das forças semiformativas:1 no plano de fundo da sociedade que protagoniza o desabrochar técnico das imagens, está, travestida em roupagem virtualizada do moderno, novamente posta a radicalização arcaica dos mitos e dos medos:

O aparato técnico e a expressão simbólica (a arte, a estética, enfim, a cultura num sentido estrito), recrudescidam à força do existente tecnificado, impunham-se como uma autoridade abstrata para a qual restava ao indivíduo sujeitar-se. Assim, o sujeito burguês tardio realizava de forma intensificada a reificação mimética esboçada na narrativa mítica, porém, não mais referida a uma natureza aterradora que se impunha como princípio de realidade, mas fundamentalmente numa “segunda natureza” social, transformada e constituída pelo próprio homem. (CRIONI, 2010, p. 478).

Embora as redes sociais sejam, no âmbito do discurso, uma ferramenta para aproximar as distâncias físicas em um contexto atravessado pelos mecanismos de semiformação, a fragilidade dos sujeitos e suas debilidades ficam expostas nas entrelinhas da sociedade da imagem. A compreensão da dimensão ontológica do medo está no cerne de uma análise coerente com a problemática moderna: aquilo que se desenha, hoje, por meio de linhas vivas e coloridas da imagem é a face moderna do signo arcaico do pavor.

A promessa iluminista do ideal de modernidade ditava um cenário que não se concretizou. Tal como aponta a famosa tese de Adorno e Horkheimer,2 o desencantamento do mundo, principal bandeira do plano moderno de civilização que foi erguida por todos os rincões do pensamento positivista, na medida em que “sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 17), acabou por subverter-se em nova ordem de mitificação mais sofisticada e poderosa do que aquelas que ornamentavam os grilhões da religião e para quem sua gênese contra-apontava. O esclarecimento, como ideal formativo, foi sucumbido. Solapado pelas forças de um poderio ideológico e imagético, o campo social da ilustração espiritual perdeu-se nos clichês egoicos das propagandas e na produção subjetiva de novos medos, ídolos e ritos de adoração. A relação imediata entre a falência do plano moderno iluminista e o avançar das forças imagéticas do capital, também são compreendidas por Debord:

O espetáculo é o herdeiro de toda a fraqueza do projeto filosófico ocidental, que foi um modo de compreender a atividade dominado pelas categorias do ver; da mesma forma, se baseia na incessante exibição da racionalidade técnica específica que decorreu desse pensamento. Ele não realiza a filosofia, filosofiza a realidade. A vida concreta de todos se degradou em um universo de espetáculos. (1997, p. 19).

O pensamento da teoria tradicional não expurgou os medos míticos nem suplantou as sublimações ritualísticas que apaziguavam as angústias íntimas. O pensamento, que a tudo questionou, acabou por se enclausurar na medida em que se autodeterminou. Sua lógica matemática e materialista, cuja verdade se determina pelos critérios de calculabilidade e utilidade, esqueceu-se da necessidade de via de mão dupla em suas interrogações: “Sem a menor consideração consigo mesmo, o esclarecimento eliminou seu cautério o último resto de sua própria autoconsciência. Só o pensamento que se faz violência a si mesmo é suficientemente duro para destruir os mitos”. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.18).

Homem e natureza: a utopia da dominação

Mudaram-se, assim, as roupagens, mas a essência de todas as trevas míticas perpetua-se no cenário social e, sobre sua égide, as subjetividades são industrialmente produzidas. Muito embora seja efetivamente o conhecimento que possibilita estabelecer um diferencial fundamental em relação às demais espécies que co-habitam nosso planeta, é sobre o signo do esclarecimento que estabelecemos o cenário da degradação espiritual do homem. Fundamentalmente, isso se deve ao fato de que, na estrutura daquilo que se constituiu como arquétipo de um plano emancipatório, não se superou efetivamente aspectos determinantes da relação humana com a natureza na sociedade e com o saber.

Em sua relação com a natureza, o homem buscou, historicamente, estabelecer uma relação de dominação. Antropologicamente, em seu âmbito individual, os medos perante a exuberância e a grandiosidade da natureza foram mediados por símbolos, e, sobre eles, os homens e seus ritos teciam uma tentativa mística de dominação em um duplo sentido: eram, ao mesmo tempo, tentativas de dominação da natureza e dos sentimentos interiores estabelecidos nessa relação. A projeção subjetiva dessas relações está, para Adorno e Horkheimer, no antropomorfismo:

O elemento básico do mito sempre foi o antropomorfismo, a projeção do subjetivo na natureza. O sobrenatural, o espírito e os demônios seriam as imagens especulares dos homens que se deixam amedrontar pelo natural. Todas as figuras míticas podem se reduzir, segundo o esclarecimento, ao mesmo denominador, a saber, o sujeito. A resposta de Édipo ao enigma da esfinge: “É o homem” é a informação estereotipada invariavelmente repetida pelo esclarecimento, não importa se este se confronta com uma parte de um sentido objetivo, o esboço de uma ordem, o medo de potências maléficas ou a esperança de redenção. (1985, p. 19-20).

Ciente de que “a dominação da natureza se reproduz no interior da humanidade”, (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 92), o homem, constituído e constituinte de sua relação com o meio, tem, em sua experiência, um duplo devir. Desse modo, uma análise verdadeiramente ampla do elo entre homem e natureza deve atentar à multiplicidade de fatores e vetores intrincados no interior dessa relação. O modo e a essência do vínculo estabelecido com a natureza constituem, ao mesmo tempo, a relação do homem com o meio e do homem consigo mesmo. Não se trata, assim, metodologicamente, de pensar tais encadeamentos a partir de uma perspectiva subjetivista ou objetivista; não há, também, a determinação possível de uma hierarquização fundante da experiência humana. Trata-se dos limites metodológicos que o esclarecimento consolidou:

Quanto maior é o número de reações que são reprovadas como supostamente apenas subjetivas, tanto maior é o número de determinações qualitativas das coisas que escapam ao conhecimento. [...] Em seu postulado, ou seja, no postulado da faculdade da experiência do objeto – e a diferencialidade é a sua experiência transformada em forma de reação subjetiva – aquele que conhece e aquilo que é conhecido, encontra refúgio. (ADORNO, 2009, p. 45-46).

O legado do pensamento positivista e o avanço da técnica nas ciências trouxeram inegáveis conquistas às sociedades humanas, não havendo, nesse sentido, um espírito saudosista cuja utopia cultive qualquer regresso a um modelo de sociedade medieval. Todavia, na relação estabelecida com a natureza, a humanidade instituiu um caráter duplo: a almejada superação do homem, se constituindo como senhor do mundo e soberano sobre a natureza em seu processo de dominação e o avanço técnico-científico, lhe imputa, em sentidos cada vez mais profundos e alienados da superfície da razão da ciência comoo ideologia, uma relação de dependência e apequenamento. Tal fenômeno dá-se pelo fato de que não houve, em essência, uma reversão da lógica que permeia qualquer tentativa de exercício de domínio sobre o mundo e, na medida em que “toda tentativa de romper as imposições da natureza rompendo a natureza, resulta numa submissão ainda mais profunda às imposições da natureza” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 24), a dicotomia entre essência e aparência da relação homem-natureza acaba por fundar novos grilhões no espírito humano.

A sociedade da imagem reverbera a transcendência do medo não resolvido como a tônica do caminho histórico que seguimos: o superdesenvolvimento técnico, apartado da resolução de nossos problemas fundamentais. Mesmo tendo notórias raízes no mundo mítico, foi o plano moderno que, processualmente, conotou, com tamanha ênfase, o papel da dominação como essência do poder, hoje, os conceitos são (quase) insuperáveis. A desconstrução dessa relação notadamente necessária dar-se-ia em uma práxis de resistência. Provavelmente, o colapso que vivemos nos obrigará, em um futuro não muito distante, a um novo paradigma à relação homem-natureza, e essa será uma oportunidade com a qual não poderemos negociar.

A consciência crítica dessa dimensão danificada traz a possibilidade de reconstruirmos os conceitos e, assim, talvez, possibilitar uma relação homem-natureza efetivamente pautada por uma dimensão nova. Assim como para tal há a necessidade imanente de um pensamento que se permita criticar, mais desvelamentos se fazem necessários. Assumir que o medo do desconhecido ainda assola nosso espírito (e provavelmente sempre assolará) é o primeiro passo para que possamos lidar, de uma maneira mais saudável, com a natureza. O exercício do poder poderia, assim, operar pelo viés da otimização e preservação dos recursos naturais. Se, por um lado, necessitaríamos executar a difícil superação da obsolescência programada com nova mentalidade de consumo, por outro, o esgotamento dos recursos naturais e a degradação do mundo apontam ao colapso de um sistema que não poderá sustentar-se por muito tempo. A instrumentalização do mundo ao bel-prazer do homem sublimado no consumo, é o caminho irracional-instrumental percorrido pela modernidade em sua semiformação, cuja reversão do processo é um trabalho social urgente e inadiável.

A não efetivação do processo de emancipação dos indivíduos deve ser compreendida na relação entre sujeito e natureza, intermediado pelo processo de instrumentalização da razão. Tal processo está em contraposição às aspirações do Esclarecimento, as quais, historicamente, se enveredaram à dominação de uma razão específica, vinculada às essencialidades das ciências positivas. Desse modo, a constatação de que “o número tornou-se o cânon do esclarecimento” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 20) sintetiza uma derrota das utopias iluministas e a decorrente determinação da relação homem-natureza pelo viés do útil e pelas forças de dominação.

Na sua relação inteligível com a natureza, o homem passa a guiar-se por novo “norte”, na medida em que a legitimação das experiências dos sujeitos com os objetos do mundo natural passa a ser quantificada. Impera, assim, um tipo de razão prático-axiomática que substitui, gradativamente, as relações mais profundas da experiência subjetiva por relações nas quais seja possível quantificar as benesses objetivas que a natureza pode oferecer aos desígnios humanos, na medida em que, “de antemão, o esclarecimento só reconhece como ser e acontecer o que se deixa captar pela unidade. Seu ideal é o sistema do qual se pode deduzir toda e cada coisa”. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 20).

O princípio formador de ideias, como leis matemáticas e natureza-máquina, tem, em contrapartida, a formação de um ideal de modelo de pensamento que possa racionalizar e operacionar a natureza. Com o decorrente avanço histórico do pensamento positivista, o método cartesiano tornava-se, cada vez mais, sinônimo de ciência; todavia, a produção de um novo modelo de pensamento trouxe, concomitantemente, novos paradigmas à relação dos homens com a natureza. A essência da relação obedece a leis primitivas do desejo de dominação, como demonstram Adorno e Horkheimer: “O homem da ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las. É assim que seu em-si se torna para-ele. Nessa metamorfose, a essência das coisas revela-se como sempre a mesma, como substrato de dominação. Essa identidade constitui a unidade da natureza”. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 21).

Todavia, os caminhos, em que magia e ciência apostam para solidificar a dominação do homem sobre a natureza, divergem apenas em atributos específicos:

A natureza desqualificada torna-se a matéria caótica para uma simples classificação, e o eu todo-poderoso torna-se o mero ter, a identidade abstrata. Na magia existe uma substitutividade específica. [...] É a isso que a ciência dá fim. Nela não há nenhuma substitutividade específica: se ainda há animais sacrificiais, não há mais Deus. A substitutividade converte-se na fungibilidade universal. [...] Como a ciência a magia visa [sic] fins, mas ela os persegue pela mimese, não pelo distanciamento progressivo em relação ao objeto. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 22).

Propagandas e ciberespaço: a narração moderna dos medos arcaicos

Com técnicas apuradas, em uma nova estética que requer roupagem e linguagem sui generis, o homem da ciência, cuja aproximação hipotética com o primitivo e o retrógrado lhe causa horror, está produzindo, assim, uma forma coisificada por novos ritos e modalidades de relação com a natureza, que em sua ontologia cultua os mesmos desígnios do xamã, ou seja, a vontade inexorável de dominar a natureza exterior. O como fazer é a grande novidade do processo. Não por acaso, constata-se que o espírito de dominação do mundo, que parece tão moderno, é um atributo ontológico da magia.

A imagem sempre apareceu na história humana como uma forma de mediação dos medos. O papel de mediação é, assim, em um sentido da filosofia hegeliana, um ato de “explicar os vínculos dialéticos entre categorias separadas”. (SIGNATES, 1998, p. 37-38). Assim sendo, na impossibilidade espiritual de se deparar com as origens de seus medos mais profundos, cabia a imagem retratar tais medos e, pelo exercício mimético, estabelecer um vínculo de aproximação com o sujeito. Como explica Türcke:

Sabe-se que toda abstração é deduzida de algo, e as primeiras abstrações [...] devem ter-se concretizado de forma pavorosa: por meio das repetições compulsivas dos choques traumáticos que, no âmbito de todo seu horror, não foram mais o próprio susto original, mas apenas seu eco, sua apresentação ou reapresentação gradativamente ritualizada. [...] Por meio de uma repetição ritualística aquilo que traumatiza é reprimido e canalizado em redes neurais, de tal modo que, custe o que for, não deve mais ser apresentado. (2010, p. 282).

Tal papel se dá de diversas formas, de modos mais ou menos diretos e com cargas mais ou menos intensas de teatralização; todavia, em todas as formas de mediação do medo arcaico tal papel é delegado à imagem. De modo não estático, esse também era o papel da magia e do feitiço em tempos primordiais:

Os ritos do xamã dirigiam-se ao vento, à chuva, à serpente lá fora ou ao demônio dentro do doente, não a matérias ou exemplares. Não era um e o mesmo espírito que se dedicava à magia; ele mudava igual às máscaras do culto que deviam se assemelhar aos múltiplos espíritos. [...] O feiticeiro torna-se semelhante aos demônios; para assustá-los ou suavizá-los, ele assume um ar assustadiço ou suave. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 21).

Ocorre que, em tempos que precedem e sucedem às práticas ritualísticas, o papel da imagem (como mediadora) sempre esteve presente na cultura humana, nos retratos rupestres de animais nas cavernas, nos quais, “pintar um bisão na parede da caverna significava querer privá-lo de vida. Baniam-no para a parede, é verdade que com isso o faziam completamente presente ali, mas com o fito de torná-lo inofensivo” (TÜRCKE, 2010, p. 177) às primeiras impressões dos homens diante de máquinas fotográficas, das quais as pessoas “tinham medo da nitidez dos seres humanos e acreditavam que os pequenos, diminutos rostos das pessoas que haviam sobre o retrato podiam eles mesmos ver alguém”. (BENJAMIN, 1992. p. 120). A imagem sempre guardou sobre nós uma relação de fascinação e magia, que o atual momento do espetáculo no capital soube aproveitar, potencializando-o com a força de seu aparato técnico.

Tal adaptação preserva a natureza do sentido primário de utilização das imagens, ou seja, como mediação dos medos primitivos; mas, em nenhuma hipótese, pode ser considerada uma cópia idêntica em suas características. As imagens primitivas, circunscritas a determinado grupo humano, carregavam expressões de uma cultura, cujos signos estabeleciam um comunicado ao seu próprio grupo de origem. As imagens postadas em ambientes virtuais denotam um gesto narcísico que visa a constituir singularidade em um mundo homogeneizado. Identificar-se é, ainda que pela imagem, uma forma de diferenciação que permite esquivar-se da angústia do não existir produzido pela massificação da cultura, em que o mundo torna-se um lugar reificado pelo seu próprio espetáculo. Tal mediação foi replicada modernamente, em outros contextos, como, por exemplo, a utilização de roupas de marca:

São estes mesmos jovens que, após a aula, vestem as camisas com as propagandas do curso de inglês realizado em Cambridge, da visita à Disney feita no verão passado, do rosto de Che Guevara ou da defesa do meio ambiente. É a posse de logotipos que está em jogo, ou seja, numa sociedade na qual tanto as coisas quanto as pessoas se tornam cada vez mais substituíveis, faz-se necessário a demarcação de algum tipo de ícone que possibilite o reconhecimento imediato daquele que o porta, que deixe algum vestígio. [...] O que verdadeiramente importa é a possibilidade do portador da imagem de determinado ícone ser diferenciado dos demais que não o possuem. É como se ele dissesse para si e para os outros: esse aqui sou eu, esta é a minha identidade! (ZUIN, 2003, p. 40).

Nesse sentido, a soberania cultural da imagem, cuja manifestação contemporânea mais intensa se dá pela propaganda, se constitui a herdeira moderna de uma angústia arcaica, que, dada a opção histórica pelo viés da dominação na relação do homem com a natureza, nos faz necessitar, constantemente, das mediações miméticas da imagem, para que possamos lidar com nossos medos; como corrobora Debord (1997, p. 19), “a filosofia, como poder do pensamento separado e pensamento do poder separado, jamais conseguiu, por si só, superar a teologia. O espetáculo é a reconstrução material da ilusão religiosa”.

Em face do turbilhão de possibilidades que é ofertado incessantemente pelo mercado e pela carga altíssima de estímulos e sensações impostas pelas propagandas, os medos, ainda que herdeiros de uma relação primitiva, ganharam novas formas e cores. Sendo a publicidade uma importante engrenagem aos aparatos da Indústria Cultural (LESSA; MULEKA, 2017), seu papel em oferecer, incessantemente, infinitas fórmulas à felicidade, denota, por conseqüência, que não viver uma vida que seja digna de emissão torna-se um pecado capital no altar profano do espetáculo de si. E a isso a imagem confere uma forma espetacular de verdade. Ao contrário das narrativas e das manifestações da tradição oral, a veracidade dos fatos não podia ser atestada de maneira inquestionável; a bem da verdade, na maioria dos casos, não competia ao interlocutor o exercício de questionar: “Será tal fato verossímil?” O que está posto no ato narrativo é a dimensão da experiência, do conhecimento que será transmitido, dialeticamente, ao ouvinte. Para o resgate do conceito benjaminiano de narração, podemos conceituá-lo da seguinte forma:

O ato narrativo, na concepção do autor, é, por definição, o lugar em que as sabedorias e experiências dos sujeitos, constituídas ao longo da vida, entre si e com as coisas, encontram um lócus para replicar-se e transmitir-se através das gerações. O ato narrativo é então, por excelência, o herdar de todo arcabouço subjetivo que os sujeitos possam transmitir através da linguagem. (PACÍFICO; GOMES, 2015, p. 20).

Em um paradigma concorrencial, a lógica estabelecida nos moldes da narração acabaria por se inflar como estratégia de sobrevivência: seria necessário aumentar os feitos, duplicar os esforços e espetacularizar a trajetória a cada recontar. Desse modo, quando as imagens começam a ser captadas por máquinas, há, aí, um duplo ato que difere das demais formas de transmissão: a impessoalidade e a veracidade.

O caráter impessoal da máquina gera sobre ela a ideia de que não há indução ou ponto de vista em uma fotografia, por exemplo. Obviamente, a compreensão da fotografia como arte demonstra a fragilidade desse argumento; todavia, parece que tal status ainda paira sobre a imagem, mesmo em tempos nos quais técnicas empregadas pelo fotógrafo ou mesmo programas permitem que as imagens sejam manipuladas.

O instante retratado será o mesmo, pese isso a favor ou contra aquele que dispara o flash fotográfico: o que está retratado é a imagem fiel do fato testemunhado a quem o poder da palavra nunca exercerá primazia na construção da verdade. Além disso, há, em contrapartida, a desvalorização das outras formas de autenticação: aquilo que não está constatado pela imagem fotográfica não é, a priori, possível de ser constatado. Tais dimensões são sintetizadas: “Pois o aparelho registra fielmente sempre o que ele vê e certamente retrataria uma chaminé ou um limpador de chaminés com a mesma isenção que retrataria o Apolo do Belvedere”. (TALBOT apud BUSCH, 1989 apud TÜRCKE, 2010, p. 176).

Assim sendo, as experiências dos sujeitos passam a ser atravessadas pela necessidade de registro imagético. O retrato fotográfico como forma de lembrança dá lugar ao desfile de vivências, que, em caráter concorrencial, buscam atestar a qualidade da vida daquele que emite. Viajar ou ir a um show sem que se faça um registro e a posterior emissão virtual dele é a mesma coisa que não ter vivido a experiência. Não à toa, observamos espectros dessa tendência, como, por exemplo, as agências de turismo que têm priorizado pacotes tour, no qual abre-se mão de conhecer a fundo poucos lugares, para que se possa passar por muitos e, assim, registrar quantitativamente mais imagens.

Outrossim, o estado atual do espetáculo demanda o reconhecimento individual por meio de sua reificação. Se o reconhecimento passa pela capacidade de produzir atenção e, para tal, se instrumentaliza pela mesma estética e linguagem da propaganda, não estar emitindo “é equivalente a não ser – não apenas sentir o horror vacui da ociosidade, mas ser tomado da sensação de simplesmente não existir”. (TÜRCKE, 2010, p. 45).

Dessa maneira, Türcke (2010) evidencia como a lógica da autoprodução imagética passa, de antemão, pela mediação da angústia de não existir nas regras do jogo social contemporâneo. A produção material altamente tecnológica reveste, furtivamente, o paradoxo de sua demanda primitiva; novamente encontramos a tentativa de dominação dos medos pela mediação da imagem.

Todo o aparato tecnológico que é produzido no intuito de aproximar as pessoas, de facilitar a vida atribulada do homem moderno, no qual a escassez diária são o mantra e o carma do tempo, acaba por exercer o papel contrário. A formulação acerca do Twitter como um lugar solitariamente cheio é expressão da percepção superficial de um processo, cuja profundidade amplia-se diariamente.

Ao fundo de cada registro imagético, seja de um fato corriqueiro ou de um ato excepcional, está implícita a luta contra a angústia de não ser percebido e, por consequência, de não existir. A dimensão da mediação do medo não está associada à raridade do fato, mas à compulsão que a ele responde: emitir incessantemente. A existência objetivada, paradoxalmente, encontra, no contexto moderno, o principal lócus de sobrevivência em um universo virtual. O ciberespaço se reiventa à medida que esse processo se complexifica, deixando de ser um lugar para estar se transformando em um lugar para ser. O estar virtualmente conectado é um estado no qual se perdem dimensões fundamentais das relações interpessoais. E, assim, em um contexto no qual há a multiplicidade dos bilhões de usuários e de milhares de terabytes de informação emitidas incessantemente, o resultado impele a um progressivo distanciamento da individualidade e instaura a lógica da pressão concorrencial entre os usuários e seus modos de se comunicar neste mundo.

Se a dimensão abstrata do existir sempre esteve, em alguma medida, interligada com o reconhecimento social cristalizado em cada sujeito pelas dinâmicas sociais de cada época, tal relação ganha, modernamente, uma dimensão quantitativo-decisiva em seu caráter. A lógica de substituição da qualidade pela quantidade implica uma aferição da vida individual pelos likes do coletivo. Toda forma de expressão em ambientes virtuais traz consigo dispositivos, nos quais os interlocutores podem expressar-se através do binômio aprovado-reprovado, em alguns casos, de maneira explícita como os botões gostei e não gostei do Youtube e, em outros, de maneira velada. Embora exista somente a opção que expressa uma aferição positiva, a pressão coercitiva é mais poderosa e sutil: omitir-se de aprovar o conteúdo de alguém significa, automaticamente, demonstrar sua reprovação. Assim, o modo de se comunicar tem, de antemão, o intuito de produzir um resultado específico: a aprovação alheia. E o perverso dessa relação está circunscrito na lógica de que a visibilidade está associada ao caráter espetacular da mensagem, ou seja, à sua capacidade de produzir sensação.

A possibilidade de ganhar notoriedade via veículos de comunicação sempre foi expressamente restritiva. Os nichos altamente ensimesmados dos programas de televisão, dos grandes filmes e dos esportes de massa delegavam a notoriedade a uma estação determinada de audiência concentrada. Chegar até tal posto sempre foi uma utopia com a qual a grande massa flerta ininterruptamente, sem, a sério, considerar a concretização de tal possibilidade. Todavia, com o advento da internet e dos grandes portais virtuais de vídeo, sobretudo o Youtube – cujo título expressa justamente esse espírito – se tornou possível ganhar notoriedade a baixo custo e, sobretudo, por outras lógicas. O critério de seleção imposto pela televisão, ainda que altamente questionável, não permitiria que vídeos que fizeram grande sucesso nos portais virtuais fossem reproduzidos em suas grades. O boom dos vídeos nosense, ainda que guardem alguma relação com vídeos de acidentes alheios (que sob o título de humorísticos são retransmitidos por alguns canais de televisão), apresenta uma diferença fundamental: a intencionalidade. Embora o resultado estético seja o mesmo, aquele que tem uma queda acidental gravada e reproduzida não está no mesmo universo linguístico daquele que, deliberadamente, se acidenta para que possa ser visto.

Pelo conjunto da multiplicidade de emissões e do crivo de seleção imposto pela lógica da aprovação, aquilo que se necessita fazer, para que se possa ser percebido é atingido, inevitavelmente, pela pressão concorrencial. Assim, a atenção que a emissão atrai dura até outra emissão mais sedutora surgir: a graça do tombo de hoje dura até o tombo mais espetacular postado amanhã. Ao fundo da lógica competitiva pela atenção não está em jogo a recompensa financeira – tendo em vista que, na maioria dos ambientes virtuais, não há relação de ganhos com a exposição – o que está posto é a nova lógica ontológica do ser: ser é ser percebido:

Quem não emite não é, ou seja, ele pode estar tão vivo quanto possível, ter os melhores parâmetros sanguíneos e o melhor caráter; midiaticamente está morto. E a ilusão midiática, que o faz parecer morto, é irradiada, por sua vez, como se representasse a vida plena, embora seja feita de pixels mortos. (TÜRCKE, 2010, p. 46).

Do mesmo modo que “o xamã esconjura o perigo com a imagem do perigo” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 26), utilizamos, hoje, a imagem como tentativa de paralisar nosso pavor de não estar no próximo espetáculo. Produzir o espetáculo de si, no palco das redes sociais, é uma forma de mimetizar o perigo com a imagem. Se há algo de novo nesse processo recorrente que distancie a pintura rupestre da Selfie, talvez seja o vetor do medo. Se era sobre a tensão com as forças externas da natureza que os ritos xamãs interviam, nossa desesperada compulsão por se emitir, imageticamente, parece ter raízes mais profundas sobre os fantasmas da alma. Quando invertemos a direção das lentes das câmeras, deixando de apontar à aquilo que estava na frente de nossa visão para apontarmos para nós mesmos, estamos demarcando, de maneira reflexa à produção de uma sociedade imagética que se virtualiza nas redes sociais a partir da lógica da concorrência dos espetáculos individuais de cada internauta, a necessidade latente do registro de si como componente do espetáculo.

Se a imagem condensa um sentido cultural de atestar a verdade, nesse sentido, ela extravasa suas dimensões alcançando um patamar ontológico: estar lá onde a câmera aponta significa prender a atenção, ser visto e, em consequência, ser. Essa sensação é, ainda que no sentido inverso, proveniente da mesma natureza do estranhamento comum aos nativos digitais quando se deparam com alguém que não tem perfil nas redes sociais. A busca por estar na imagem contida no comportamento da autoespetacularização da vida tem sua potência amplificada pela capacidade do choque imagético:

O choque da imagem exerce poder fisiológico; o olho é magneticamente atraído pela abrupta alteração luminosa, e dela só consegue se afastar através de um grande esforço de vontade. O choque da imagem exerce fascinação estética; constantemente ele promete novas imagens ainda não vistas. Ele se exercita na onipresença do mercado; seu “olhe para cá” exalta a cena seguinte como um vendedor com sua mercadoria. (TÜRCKE, 2016, p. 33).

Tornar-se imagem nas redes sociais é o exercício de propagandear-se esteticamente e se vender ontologicamente. O pavor de não existir em um contexto social, no qual a mediação da existência ocorre por mecanismos virtuais, concorrer na lógica da audiência das imagens é um jogo de sobrevivência moderno.

Esse é um estado novo na formação sociocapitalista que merece um detalhamento específico diante das suas nuanças. A apreensão estética que a imagem proporciona é decisiva em sua função mediadora. Se, primordialmente, estava posto o pavor das intempéries naturais, das forças alheias ao homem, a recodificação moderna nos direciona a um estado avançado da sociedade do espetáculo. A degradação do ser em ter, do ter em parecer, suscita o momento do parecer em ser percebido e, nele, ainda que mediados na dimensão estética, estamos à mercê de novos medos.

Todavia, a pretensão de dominação faz mais, uma vez, nos abrigarmos em refúgios estéticos que não revelam, a fundo, a raiz do problema. Para que o sujeito não permita a hipótese de sentir o vazio em sua existência, o que lhe cabe é a dinâmica do movimento; só é puxado pela gravidade existencial aquilo que cessa de emitir. Assim, a reificação da mimese imagética é a fuga para seu próprio problema:

O ocultista tira a consequência extrema do carácter feiticista da mercadoria: o trabalho ameaçadoramente objectivado aflora nos objectos com múltiplos esgares demoníacos. O que foi esquecido no mundo congelado em produto, o seu ser-produzido pelo homem, é recordado, mas cindido, desvirtuado, como um ser-em-si que se acrescenta e equipara ao em si dos objectos. Porque estes parecem congelados sob a luz da razão, porque perderam a aparência do animado, o animador – a sua qualidade social – alcança a independência como algo natural-sobrenatural, coisa entre coisas. (ADORNO, 2008, p. 233-234).

Considerações Finais

O adentrar da modernidade anuncia, em seu discurso social, a evolução do mundo material e, sobretudo, do próprio homem. Nesse contexto, a imagem torna-se protagonista da cultura e passa a mediar as relações do homem com o mundo e do homem consigo mesmo. Todavia, ao analisarmos, com profundidade, o uso da imagem, observamos que as mesmas estão postas na relação de mediação das tensões primitivas do homem, principalmente na sua relação com a natureza pelo viés da dominação. Desse modo, é necessário desassociar o avanço científico do avanço espiritual humano; afinal, seja em full HD ou estampado nos desenhos rupestres, ainda tentamos solucionar nossos medos e angústias.

O novo estágio do espetáculo, cujo núcleo aponta à espetacularização pública da vida privada, passa, também, nesse sentido, por uma tentativa de constituir vínculos de identidade. A condensação cibernética dos sujeitos, em um espaço linear e estruturalmente idêntico, como as redes sociais, tem, em contrapartida, o progressivo desmantelamento das instâncias que conectavam o homem ao mundo e lhe produziam sentido. A contradição fundamental do espetáculo de si é a produção de uma coletividade solitária. Assim, a análise do fortalecimento subjetivo do caráter imagético do espetáculo está circunscrita na depreciação objetiva da vida humana, esvaziada de sentido e fragilizada em suas relações, visto que o custo do fazer parte do jogo do espetáculo e envolve “a dissolução do indivíduo ao homogeneizar o que é diverso e diferente”. (LESSA; MULEKA, 2017, p. 325).

Por outro lado, a possibilidade de difusão da informação é inegavelmente ampliada pelas tecnologias. O modo de dominação que impusemos à natureza apresenta seus desastrosos resultados. O consumo desmedido cultivado pela indústria cultural, associado às técnicas modernas de extração de recursos naturais, são a objetivação material dessa intrincada relação. Se “o despertar do sujeito tem por preço o reconhecimento do poder como princípio de todas as relações” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 21), talvez caiba ao pensamento esclarecido ressignificar a natureza e o exercício desse poder. Assim, uma das possibilidades de resistência e de elevação do espírito humano, em sentido formativo, é de que o pensamento crítico promova uma ocupação do ciberespaço a partir de conteúdos reflexivos, propiciando a construção de uma sociedade que priorize novos sujeitos ao invés de novas máquinas.

1A semiformação (Halbbildung) é um conceito cunhado por Adorno (1996) que denuncia o empobrecimento da experiência formativa, no qual o pensamento, no contexto e na forma da Indústria Cultural, perdeu sua capacidade de produzir uma consciência crítica, para favorecer a submissão e produzir a massificação da cultura.

2O texto faz menção à obra Dialética do Esclarecimento (1944-1947), de Horkheimer e Adorno.

Referências

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Recebido: 18 de Julho de 2017; Aceito: 29 de Junho de 2018

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