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Conjectura: Filosofia e Educação

versión impresa ISSN 0103-1457versión On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.2 Caxias do Sul mayo/ago 2018  Epub 26-Ago-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.n2.10 

Artigos

A promoção do desenvolvimento humano de Amartya Sen a partir da releitura smithiana

The promotion of the human development of Amartya Sen from the re-reading smithian

Thaís Alves Costa* 

Evandro Barbosa** 

*Professora na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). : <thaisfilosofias@bol.com.br>

**Professora na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). : <costa.thaisalves@gmail.com>


Resumo

O presente trabalho tem como objetivo avaliar em que medida a releitura que Amartya Sen faz do pensamento smithiano permitiria vislumbrar a economia internacional como promotora do desenvolvimento humano. Com esse intuito, inicialmente, será apresentada a releitura seniana da obra de Smith, focando em suas preocupações éticas, para, em seguida, apresentar o modelo de justiça pautado pelas liberdades como condição para o progresso humano em Sen. Para isso, utilizamos como fio condutor as obras On ethics and economics, de Sem, e An inquiry into the nature and causes of the wealth of the nation, de Smith.

Palavras-chave:  Desenvolvimento humano; Economia; Liberdades; Mercado

Abstract

The purpose of this paper is to evaluate the extent to which Amartya Sen’s re-reading of Adam Smith’s work would provide insight into the international economy as a promoter of human development. To do so, we will firstly present the senian re-reading of Smith's work, focusing on his ethical concerns, and then presenting the Amartya Sen justice model aimed at promoting human development through freedoms. For this, we will use as the guiding thread of this research the works On ethics and economics from Amartya Sen e An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of the Nation from Adam Smith.

Keywords:  Human development; Economy; Freedoms; Market

Introdução

Responsável por um modelo moral pautado pela diversidade humana e pela aproximação da ética com a economia, o filósofo e economista indiano Sen possui inúmeras produções relacionadas a estudos econômicos e políticos que contribuem à criação de diversas políticas internacionais de desenvolvimento humano, bem como propõe novas maneiras de lidar com a igualdade e o problema ético da pobreza.1 Em seus escritos, é possível encontrar grande preocupação em traçar uma teoria política de justiça que é diretamente influenciada por sua interlocução com Rawls, que deu fôlego às discussões acerca da política por meio do livro A theory of justice (2002) e de Smith através das obras The theory of moral sentiments (1759) e An inquiry into the nature and causes of the wealth of the nation (1776).

Dentre as principais contribuições de Sen para a teoria econômica internacional e as ideias de desenvolvimento econômico, encontra-se a releitura que o economista faz da teoria de Smith, levando sua interpretação a patamares muitas vezes esquecidos pela economia moderna, qual seja, a teoria econômica atrelada à psicologia moral, que proporcionará uma ideia de mercado mais complexa do que, simplesmente, deixar que “a mão invisível do mercado” aja livremente.

O trabalho desenvolvido por Sem, a partir de Smith, engendra uma teoria de justiça voltada ao desenvolvimento humano através de novo paradigma da economia, qual seja, a consideração de vários elementos para justificar o comportamento humano. Para essa compreensão, num primeiro momento, apresentaremos a análise de Sen sobre a teoria smithiana que, ao que veremos, não é uma defesa pura da desregulamentação absoluta dos mercados, mas também de preocupações éticas e a busca de resoluções dos problemas sociais. Em seguida, será apresentada a tese de Sem, segundo a qual a promoção do desenvolvimento humano se dá por meio das liberdades. Ao final, podemos verificar se a economia internacional analisada sob o viés smithiano será (ou não) capaz de promover essa pretensão de desenvolvimento humano como requer Sen.

Amartya Sen e a releitura da teoria de Smith

Sen propõe que as sociedades devem orientar suas atitudes políticas e econômicas por meio de uma moral segundo princípios éticos que respeitem todos os indivíduos e valorizem suas particularidades, ampliando o desenvolvimento humano como um todo. Para isso, propõe a aproximação da ética da economia, caracterizando a pessoa na condição de agente2 que, dotado de uma concepção ética, tem condições de minimizar seu autointeresse ao invés de maximizá-lo, como proporia a economia moderna.3 Segundo Sen, a economia e a ética se distanciaram gradativamente, ao longo do tempo, o que influenciou na preocupação humana com o bem-estar e, consequentemente, com as relações de mercado, alterando, negativamente, o comportamento das sociedades que, alicerçadas no pragmatismo, passaram a se preocupar apenas com o acúmulo de bens e riquezas.4 Como consequência, multiplicaram-se as grandes desigualdades sociais e a pobreza absoluta. Para evitar tais problemas e buscar promover o desenvolvimento humano, Sen retoma os clássicos econômicos para instaurar nova concepção de economia internacional mais preocupada com os aspectos individuais.

Partindo dessa perspectiva, Sen traz aspectos da teoria de Smith que são considerados por ele mal-interpretados por muitos economistas, a saber: i) O autointeresse não é o único sentimento que move as relações interpessoais na economia; e ii) O mercado não é totalmente desvinculado de qualquer tipo de instituição de regulação. Considerando tais elementos, a teoria smithiana não endossa uma ideia neoliberal de mercado ou um laissez- faire tout court; pelo contrário, sua teoria seria capaz de solucionar os severos problemas sociais atuais. Isso ocorre exatamente porque não se consegue da teoria smithiana estabelecer uma teoria de autossuficiência do mercado, haja vista que as escolhas econômicas envolveriam um complexo de valores sociais e morais que ultrapassam a simples relação de troca e autointeresse. Para Smith: i), antes do interesse próprio, há um sentimento de confiança mútua, que garante que a economia funcione adequadamente. Segundo ele,

when the people of any particular country have such confidence in the fortune, probity, and prudence of a particular banker, as to believe that he is always ready to pay upon demand such of his promissory notes as are likely to be at any time presented to him; those notes come to have the same currency as gold and silver money, from the confidence that such money can at any time be had for them.5

Para Smith, essa confiança que as relações comerciais requerem nem sempre ocorre, o que acaba por gerar a crise. Utilizando-se desse recorte smithiano, Sen argumenta que a motivação das trocas comerciais no mundo continua sendo a mesma, entretanto, as pessoas estão menos confiantes o que se reproduz na falta de oportunidades de trocas que, por consequência, gera problemas de difíceis recuperações num contexto mundial (2009a).6

A teoria smithiana, segundo Sen, não defende a ideia de mera busca por obtenção de vantagens individuais que está atrelada à teoria da escolha racional,7 consistindo apenas na promoção do autointeresse. Tal dedução veio da má-interpretação da frase: “It is not from the benevolence of the butcher, the brewer, or the baker that we expect our dinner, but from their regard to their own interest”.8 Tal erro acaba promovendo uma interpretação equivocada, uma vez que esse enxerto aparece muito pontualmente na Riqueza das nações somente quando são tratadas as transações comerciais; nesse sentido, o que essa passagem indica é como se dão essas transações no mercado. Em outras palavras, isso mostra, apenas que as transações com vantagens mútuas são comuns e não que somente o autointeresse regeria a economia, sendo o suficiente para uma sociedade boa.9

De fato, quando consideramos as barreiras burocráticas e as trocas vantajosas mediante contratos, o que percebemos é que são movidos pelo autointeresse, porém, existem muito mais atividades econômicas em que apenas há contratos bilaterais e restrições ao comércio. Para essas questões, Smith ultrapassa o mero sentimento de autointeresse. Ademais, Sen ressalta que a palavra utilizada por Smith é exchange (troca) em detrimento de distribuição ou produção, demonstrando que sua proposta é de um intercâmbio sustentável, no qual deve predominar a confiança mútua e não a simples obtenção de vantagem.10

No texto, Adam Smith and the contemporary world, Sen afirma que os escritos de Smith, ao ultrapassarem as explicações da economia através da autossuficiência, inauguram a associação da teoria dos sentimentos morais às escolhas pessoais, trazendo à tona a motivação moral como condição aos progressos econômico e social.11 Nesse movimento, surge a figura do espectador imparcial que havia sido proposto na obra Teoria dos sentimentos morais.12 Esse novo elemento trará as especificidades da psicologia moral para a área das escolhas econômicas. Segundo Sen, o espectador imparcial é uma exigência de justiça designada de imparcialidade que demonstra que, em sociedade, as pessoas estariam mais inclinadas à ideia de “homem bom”13 do que de “Homo economicus”.14

De fato, ao analisarmos a Teoria dos sentimentos morais em conjunto com a Riqueza das nações, percebemos que a motivação das ações no mercado é pautada por princípios morais que ultrapassam a seara da esfera econômica. Smith apresenta seu conceito de espectador imparcial como um modelo balizador das condutas humanas sendo adequado à convivência social. Ademais, seu modelo prevê aspectos de prudência,15 simpatia e caráter cooperativo.

Cabe ressaltar que ii) o fato de Smith ser contrário à restrição do comércio não faz com que ele deixe de se ocupar com a função do Estado na resolução de questões sociais como a diminuição da pobreza e o acesso à educação. Essa é uma área específica do pensamento de Smith, segundo o qual ele afirma que não são os comerciantes que produzem a fome, visto que muitos surtos dela não são provocados por uma real escassez16 atribuída à diminuição da produção de alimentos, mas por outros processos alheios a esse. Por exemplo, “by the waste of war, but in by far the greatest number of cases, by the fault of the seasons”.17 Outra explicação ainda mais relevante às fomes coletivas seriam o valor dos salários, o desemprego e o preço dos alimentos. Tais situações levam ao sobrepeso dos sistemas e associações que compõem a comunidade afetada.18

Por sua vez, a fome coletiva para Smith, relaciona-se intimamente, com o desemprego e com o preço dos alimentos. Isso se dá através da insuficiência do poder de compra (pull failure) ou da insuficiência da resposta (response failure) que ocorre quando os comerciantes manipulam o mercado para obter mais lucros. Segundo Sen, a grande mensagem deixada por Smith, na erradicação da pobreza, é “com respeito às políticas de combate à fome”19 através da “criação de direitos ‘entitlements’ de grupos vitimados mediante a geração de renda suplementar, deixando a cargo do mercado responder à demanda resultante das rendas geradas dos grupos que teriam sido vitimados sem essas providências”.20 Tais defesas suportariam políticas públicas voltadas à produção. De acordo com Sen,

Smith viewed markets and capital as doing good work within their own sphere, but first, they required support from other institutions – including public services such as schools – and values other than pure profit seeking, and second, they needed restraint and correction by still other institutions – e.g., well-devised financial regulations and state assistance to the poor – for preventing instability, inequity, and injustice.21

De acordo com Sen, as instituições estão previstas na teoria smithiana, devendo, elas, solucionar problemas que fossem, eventualmente surgindo, e não simplesmente deixando o mercado seguir livremente. Ao lidar com a questão da pobreza e dos males físicos e psíquicos provocados por ela, é que emerge a importância de solucionar o problema da desigualdade,22 reconhecendo o caráter plural da pobreza, bem como sua complexidade. Para Sen, Smith não lida apenas com a pobreza vista como necessidade de resolução de problemas de subsistência, mas como qualidade de vida e garantia de bens e serviços considerados indispensáveis e que serão o nosso objeto de trabalho no próximo tópico.

Dessa forma, ao fazer essa releitura, Sen defende que o crescimento econômico não pode ser sensatamente considerado um fim em si mesmo, devendo estar relacionado, sobretudo, à melhoria da qualidade de vida que levamos e às liberdades de que desfrutamos. Para ele, o distanciamento entre ética e economia caracterizou a motivação humana de modo restrito, na qual a abordagem ética diminuiu substancialmente com a evolução da economia moderna, deixando de lado uma gama de variáveis de consideração ética que afetam o comportamento humano. As apreciações dessa noção de economia propicia aversão às análises normativas, bem como o descaso pelas influências éticas sobre o comportamento humano. Tal situação é extremamente problemática para Sen, haja vista que “a economia, como ela emergiu, pode tonar-se mais produtiva se der uma atenção maior e mais explícita às considerações éticas que moldam o comportamento e o juízo humano”.23 Assim, Sen reaproxima a economia da ética como forma de promoção do progresso pessoal.

Sen e o desenvolvimento das capacidades como forma de desenvolvimento humano

Sem, ao propor seu modelo político-igualitário, critica, inicialmente, as principais teorias da justiça; para isso, traça um paralelo entre as duas vertentes éticas do iluminismo moderno, a saber: i) as teorias morais transcendentais; e ii) as comparativas. A primeira diz respeito ao que Sen denomina “institucionalismo transcendental” que vem permeando de discurso ético contemporâneo, sendo focado em arranjos (arrangement-focused). Essa corrente teórica tem o limite de não conseguir realizar um julgamento moral sem definir “um único conjunto de princípios”.24 É na análise desse pensamento que encontraremos as principais críticas de Sen à proposta de justiça focada em arranjos do filósofo Rawls,25 haja vista que apresenta, segundo ele, problemas de factibilidade ao buscar soluções transcendentais com instituições perfeitas e não a realidade social.

A segunda ramificação iluminista que é aceita por Sen propõe a “comparação focada em realizações” (realization – focused comparison) que identifica a impossibilidade de construção de instituições políticas perfeitas e se concentra nos critérios estabelecidos, capazes de orientar as escolhas humanas, para que sejam alternativas justas e viáveis.26 Nessa ramificação, são reconhecidas a ineficiência da fundamentação racional capaz de definir critérios perfeitos de justiça, levando-nos a elaborar parâmetros que permitam escolher entre os múltiplos valores éticos existentes em uma comunidade. Essa vertente é considerada por Sen como a adequada para lidar com questões de justiça nos âmbitos macro e micro, devendo essa teoria orientar as decisões políticas capazes de ampliar a justiça global e minimizar as injustiças intoleráveis. Dentre os principais adeptos da justiça substantiva encontra-se Smith.

A teoria seniana aduz a substituição “da lista heterogênea de bens primários, com seu emprego proeminente de recursos (renda e riqueza) como indicadores de bem-estar, por uma lista de capacidades, e todas elas seriam, então, empregadas para medir a qualidade de vida”.27 Com vistas a garantir essa qualidade de vida, seu modelo de desenvolvimento humano pauta-se na capacidade de funcionamento (functionings) do indivíduo, ou seja, mais do que propiciar bens básicos, o sujeito deve ter a capacidade (capability) necessária para alcançar o que é desejado. Segundo Vita, “o que Sen nos propõe não é propriamente uma teoria da justiça, mas uma concepção de justiça distributiva em sentido estrito”,28 e, com base nas ideias de liberdade e funcionalidade que Sen engendra, a teoria de igualdade de capacidades.29

Nesse sentido, é buscado o desenvolvimento econômico30 a partir das ideias de capacidade e liberdade para a busca de bem-estar que, por sua vez, exige funcionalidades,31 que são “a capacidade igual de funcionar”.32 Em outras palavras, estar adequadamente vestido, nutrido, conseguir ler e compreender um texto, estar livre de epidemias, sendo capaz de participar da vida em comunidade (de associações de moradores, partidos políticos), bem como ter desenvolvido o sentimento de autoestima e reconhecimento.33

Somente partindo dessas funcionalidades é que será proporcionada igualdade de capacidade, isto é, a liberdade efetiva de escolha que, aliada às funcionalidades, proporcionarão igual capacidade ao indivíduo. As funcionalidades são o estado das pessoas, e as capacidades são as ações que as pessoas praticam para alcançar os funcionamentos, sendo um reflexo da liberdade para realizar uma funcionalidade, ou seja, um bem-estar.34 De acordo com Sen, cada pessoa tem funções de bem-estar ou utilidades representados por um pacote de bens e serviços. Para saber qual é o pacote adequado para cada indivíduo, Sen propõe uma “mudança de variável focal” para avaliação e comparação interpessoais das vantagens individuais. Nesse sentido, é preciso focalizar diretamente estados e ações que as pessoas realizam ao viver – isso é o funcionamento. Por exemplo, andar de bicicleta pode para uns ser visto como uma atividade prazerosa e, para outros, um meio de transporte.

Para a garantia dessa condição de desenvolvimento humano, Sen atribui à economia o papel fundamental de determinar os meios para promoção do crescimento da renda, consumo e satisfação que garantirão essa justiça. A promoção do bem-estar (não se confunda com a maximização) questiona onde está o valor próprio da vida humana. Obviamente, para Sen certas coisas são mais valiosas que outras; por exemplo, estar livre de doenças e bem-alimentado, pois toda vida digna só se realiza se essas condições forem garantidas. São os funcionamentos básicos que serão os meios para ampliar escolhas e liberdades que promoverão o desenvolvimento humano.

Por sua vez, a capacidade refere-se à habilidade do indivíduo de realizar atos que são importantes e valiosos para ele próprio, ou seja, ações que proporcionam o seu florescimento humano. Dessa maneira, as capacidades são combinações de estados físicos e mentais que uma pessoa é capaz de ser ou fazer,35 sendo “um conjunto de vetores de funcionamentos, refletindo a liberdade da pessoa para levar um tipo de vida ou outro”,36 representando as várias combinações de funcionamento que uma pessoa pode realizar. Em outras palavras, as capacidades não são apenas oportunidades ou “funcionalidades valiosas, elas são as liberdades de usufruir as funcionalidades”37 para o alcance de determinado projeto de vida. O problema para Sen está centrado no fato de que os indivíduos são diferentes, pari passu, almejam e alcançam diferentes tipos de realização e desenvolvimento. Essas diferenciações entre os seres humanos são tanto de tipos pessoais (sexo, idade, características físicas, psicológicas e mentais) quanto sociais (tais como riqueza, pobreza e responsabilidades herdadas).38 A relação entre igualdade e liberdade que se dá por meio das funcionalidades será a responsável pelas oportunidades e capacidades que engendrarão a escolha social do indivíduo.39 Nesse sentido, “a necessidade de focar as capacidades fica especialmente clara quando consideramos os casos em que os indivíduos se encontram limitados de diversas formas atípicas em função da própria estrutura da sociedade”,40 como no caso das sociedades que impediam negros de estudar e que, por isso, necessitarão de esforços extras para o letramento desses.41

Sen diminui o valor dado às instituições sociais básicas para frisar que, para a efetivação da justiça, mais do que ter acesso a esses bens, os indivíduos necessitam ter a real liberdade de escolha, o que lhes proporcionará desenvolvimento. Segundo Sem,

o desenvolvimento pode ser visto, argumenta-se aqui, como um processo de expansão das liberdades reais de que desfrutam as pessoas. Enfocar a liberdade humana contrasta com concepções mais estreitas do desenvolvimento, como as que o identificam com o crescimento do produto nacional bruto ou com o aumento da renda pessoal, ou com a industrialização, ou com o avanço tecnológico, ou com a modernização social. Ver o desenvolvimento em termos da expansão das liberdades substantivas dirige a atenção para os fins que tornam o desenvolvimento importante, antes que meramente para os meios, que, inter alia, cumprem parte proeminente no processo.42

É possível perceber que apenas a garantia de igualdade material é insuficiente ao progresso humano, pois ela, de per si, não é capaz de proporcionar a realização dos projetos de vida dos indivíduos. Para essa concretização, é necessário o desenvolvimento das capacidades e funcionamentos que proporcionarão a condição real de realização pessoal. Nesse sentido, a igualdade de oportunidades e escolhas envolve não somente a disponibilidade de recursos, mas o acesso das pessoas a esses recursos, que dependerão das habilidades individuais, haja vista que esses talentos são considerados por Sen como limitantes da liberdade substantiva de ter e fazer escolhas e, por conseguinte, de lutar por seus desejos. Diante disso, as oportunidades reais dos agentes vale mais que os recursos em si, apesar destes últimos limitarem os objetivos.

As realizações sociais (capacidades/exigências deontológicas) serão avaliadas com relação à capacidade que as pessoas, de fato, têm e não com relação às suas utilidades ou felicidade. O desenvolvimento humano visa à vida com escolhas genuínas, como poder fazer, deixar de fazer, escolher ou abandonar. Nesse sentido, as oportunidades reais são medidas por funções que são valoradas por recursos, talentos, condicionamentos, direitos, expectativas, escolhas anteriores, ações individuais, autoestima, poder de iniciativa, voz na comunidade.

Por outro lado, os governos e a pobreza podem fazer com que as pessoas percebam suas privações distorcidamente, não podendo, assim, fazer a escolha que, de fato, gostariam. Nessa perspectiva, cabe a intervenção das instituições como requer Smith. Nessa perspectiva, quanto maior for o pacote de oportunidades maior será a liberdade individual, que, por sua vez, determinará aquilo que queremos e valorizamos.

Dessa forma, as realizações, bem como a igualdade de capacidades defendida por Sen, podem ser aliadas ao livre-comércio defendido por Smith, porquanto poderá proporcionar o enriquecimento da nação e, com isso, o aumento da produção de mantimentos, dos salários e dos empregos, evitando, assim, a pobreza da nação que impede o desenvolvimento e a liberdade como encetava Sen.

Considerações finais

Por tudo o que vimos, a influência do pensamento econômico-moral de Smith foi determinante à teoria política e igualitária de Sen. Através deste estudo compreendemos que o motor das relações econômicas, no pensamento smithiano, é a confiança entre os indivíduos, que proporcionará relações de trocas. Ademais, o Estado, ao tentar erradicar problemas sociais, como questões envolvendo a pobreza, precisa lançar mão de uma proposta igualitária, como a seniana à promoção do desenvolvimento humano.

Tendo em vista que a globalização e a economia internacional diminuem a desigualdade entre os países, essa contribui para o desenvolvimento que Sen requer aos olhos de Smith. Partindo dessa ideia se mostra satisfatória a aproximação da ética e da economia para a resolução de problemas sociais vigentes. Nesse sentido, a renda e os recursos propiciados pela economia internacional irão alavancar propiciar o desenvolvimento dos funcionamentos e das capacidades mínimas, pois crescem junto com a evolução da economia e o convívio social, haja vista que o progresso propicia paz global através do benefício mútuo. A economia, por sua vez, promove a sensação de comunidade, bem como proporciona a democratização entre os países, configurando a condição para a redistribuição e eliminação das desigualdades.

1Sen recebeu, juntamente com o economista paquistanês Mahbub Ul Haq, o prêmio Nobel de Economia em 1998, tendo em vista a criação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), em 1993. Considerando não somente aspectos econômicos, mas também as características sociais, culturais e políticas dos indivíduos, esse índice, atualmente, é utilizado nos relatórios da ONU. Confira o relatório de Desenvolvimento Humano de 2015. Disponível em: < http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr15_overview_pt.pdf >. Acesso em: 10 maio 2017. Apenas para citar, os artigos XXIV 3 e XXIV 5 do GATT, de 1994, são cláusulas que garantem tratamento preferencialaos países em desenvolvimento, permitindo tratamento preferencial a questões envolvendo comércio e relações aduaneiras. Confira o General agreement on tariffs and trade 1994. Disponível em: <https://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/06-gatt_e.htm>. Acesso em: 10 maio 2017.

2Para Sen, agentes são os “beneficiários e juízes do progresso, mas também são, direta ou indiretamente, os meios primários de toda produção. Esse duplo papel dos seres humanos dá origem à confusão entre fins e meios no planejamento e na elaboração de políticas”. (SEN, Amartya. O desenvolvimento como expansão de capacidades. Lua Nova, n. 28-29, p. 1, 1993).

3Na obra Sobre ética e economia, Sen afirma que a abordagem da racionalidade como autointeresse “tem sido uma das características principais da teorização econômica predominante [...] implica, inter alia, uma decidida rejeição da concepção de motivação ‘relacionada à ética’”. (SEN, Amartya. Sobre ética e economia. São Paulo: Companhia das Letras, 1999b. p. 31).

4Para Sen, a economia tem duas origens distintas: como política e como engenharia. Para ele, a primeira está relacionada à teoria aristotélica e “embora relacionado imediatamente à busca da riqueza, em um nível mais profundo, está ligado a outros estudos, abrangendo a avaliação e a intensificação de objetivos mais básicos”. (SEN, op. cit., 1999b, p. 19). Enquanto a economia como engenharia “caracteriza-se por ocupar-se de questões primordialmente logísticas em vez de fins supremos e de questões como o que pode promover o ‘bem para o homem’ ou o ‘como devemos viver’”. (SEN, op. cit., 1999b, p. 20). Diante disso, a economia deveria afastar-se da engenharia e se aproximar da ideia aristotélica.

5SMITH apud SEN, op. cit., 2009b. Disponível em: < http://www.nybooks.com/articles/2009/03/26/capitalism-beyond-the-crisis/>.

6De acordo com Sen, “there were, in fact, very good reasons for mistrust and the breakdown of assurance that contributed to the crisis today. The obligations and responsibilities associated with transactions have in recent years become much harder to trace thanks to the rapid development of secondary markets involving derivatives and other financial instruments”. (SEN, Amartya. Adam Smith’s market never stood alone. 2009a. Disponível em: < https://www.ft.com/content/8f2829fa-0daf-11de-8ea3-0000779fd2ac >. Acesso em: 28 nov. 2016. 2009a).

7Acerca da teoria da escolha racional, Sen afirma que “consiste apenas na promoção inteligente do autointeresse”. (SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras. 2011. p. 63).

8 SMITH, Adam. An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations. Chicago: The University of Chicago Press, 1776. p. 13.

9 SEN, Amartya. Development as freedom. New York: Anchor Books, 1999a. p. 39.

10Segundo Sen, “unfortunately, in some schools of economics the reading of Smith does not seem to go much beyond those few lines, even though that discussion by Smith is addressed only to one very specific issue, namely exchange (rather than distribution or production), and in particular, the motivation underlying exchange (rather than what makes normal exchanges sustainable, such as trust and confidence in each other). In the rest of Smith’s writings there are extensive discussions of the role of other motivations that influence human action and behaviour”. (SEN, op. cit., 2009a, p. 6).

11Ao sugerir a igualdade de capacidades, Sen propõe uma discussão acerca do bem-estar aliada à avaliação de estados sociais, ampliando o sentido de bem-estar visando a políticas públicas de combate à desigualdade. Nesse sentido, a proposta de Sen parte de crítica ao modelo de teoria da escolha racional que era pautada pelo egoísmo e do teorema da possibilidade geral de Arrow, para apresentar a sua própria teoria da escolha social. Para Sen, a teoria da escolha social sempre esteve comprometida com os princípios democráticos e “julgamentos sociais e decisões públicas [que] têm que depender de uma forma transparente das preferências individuais, entendidas de forma ampla”. (SEN, op. cit., 2011, 32).

12Nessa perspectiva, os agentes sociais necessitam que suas ações sejam aprovadas não apenas por seus pares, mas também pelo espectador imparcial. Para Smith, “jamais podemos inspecionar nossos próprios sentimentos e motivos, a não ser abandonando, por assim dizer, nossa posição natural e procurando vê-los como se estivessem a certa distância de nós”. (SMITH, op. cit., 1999, p. 139).

13A ética de Smith, mais inclinada ao conceito de homem bom de Hutcheson, se funda na simpatia pelo sentido de compartilhar afetos, emoções ou sentimentos. (DARWALL, Stephen. Sympathetic liberalism: recent work on Adam Smith. Philosophy and Public Affairs, 1999).

14Hommo Economicus é aquele que age racionalmente, buscando maximizar o autointeresse. Para Sen não há qualquer comprovação de eficiência para “o chamado ‘homem econômico’ que busca seus próprios interesses. [...] Embora as afirmações de convicção sejam abundantes, raras são as constatações de fatos reais. As garantias de que a teoria do autointeresse ‘será a vencedora’ têm-se baseado em alguma teorização especial em vez de na verificação empírica”. (SEN, op. cit., 1999b, p. 32).

15Confira o texto de Sem: Adam Smith’s prudence, de 1986.

16SMITH apud SEN, op. cit., 1999a, p. 41.

17SMITH, 1776, p. 526.

18De acordo com Sen: “It is also important to recognise that famines can follow from many different types of causal processes. For example, while in a boom famine food prices will sharply rise, in a slump famine they may not. If the economic change that leads to mass starvation operates through depressing incomes and purchasing powers of large groups of people, food prices may stay low – or rise only relatively little, during the process of pauperisation of these groups. Even when the slump famine is directly related to a crop failure due to, say, a drought, there may possibly be only a relatively modest rise in food prices, if the supply failure is matched by a corresponding decline in the purchasing power due to the same drought”. (SEN, Amartya. Adam Smith’s Prudence: theory and reality in development. London: MacMillan, 1986. p. 18).

19SEN, op. cit., 1999b, p. 43.

20Idem.

22Confira a obra de Sen: Poverty and famines (1981).

23SEN, op. cit., 1999b, p. 10.

24SEN, op. cit., 2011, p. 235. De acordo com Sen, são filósofos da corrente de pensamento da justiça transcendental: Hobbes, Rousseau, Kant, Rawls. O problema do institucionalismo transcendental é que “primeiro, concentra a atenção no que identifica como justiça perfeita, e não nas comparações relativas de justiça e injustiça. Ela apenas busca identificar características sociais que não podem ser transcendidas com relação à justiça; [...] Segundo, na busca da perfeição, o institucionalismo transcendental se concentra antes de tudo em acertar as instituições, sem focalizar diretamente as sociedades reais que, em última análise, poderiam surgir”. (SEN, 2011, p. 36).

25Rawls é o precursor do modelo igualitário que oportuniza o acesso a bens primários (primary goods), tais como: liberdades, oportunidades, riqueza, rendimento, entre outros, aliando direitos individuais à ideia de justiça social. Como um deontologista, Rawls não considera justo o modelo utilitarista embasado na concepção de Estado de Bem-Estar Social (welfare state). Sua teoria de justiça, denominada justiça como equidade (justice as fairness), busca desenvolver as bases às instituições sociais e políticas através de princípios de justiça por todos acordados na chamada posição original (original position). Segundo Smith, “a principal ideia da justiça como equidade é que os princípios da justiça para a estrutura básica da sociedade são aqueles com os quais pessoas racionais devem concordar, visando a promover seus interesses, em uma posição inicial de igualdade.” (SMITH, Paul. Filosofia moral e política: principais questões, conceitos e teorias. São Paulo: Madras, 2009. p. 209).

26São considerados por Sen como adeptos da vertente de justiça substantiva, além de Smith, Condorcet, Marx e Mill.

27 NUSSBAUM, Martha. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie. São Paulo: M. Fontes, 2013. p. 202.

28 VITA, Álvaro de. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo: M. Fontes, 2008. p. 92.

29Sen afirma que, em sua teoria, o termo “Capacidade [Capability] não significa o mesmo que ‘Capacidade’ [ability] no sentido ordinário do termo, como quando se diz que ‘A pessoa P é capaz de nadar’ porque neste sentido, ‘capacidade’ não implica ‘oportunidade’: P pode ser capaz de nadar mesmo sem ter a oportunidade de nadar”. (SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 234). As capacidades são definidas derivadamente a partir de funcionamentos e consistem em combinações diferentes de funcionamento, na liberdade substantiva que a pessoa desfruta para levar o tipo de vida que julga razoável.

30Segundo Putnam, a ideia de desenvolvimento econômico em Sen possui um sentido mais amplo do que o comumente adotado. “A sabedoria convencional é que o único problema é aumentar a renda monetária ou, talvez, o rendimento econômico bruto das nações ‘subdesenvolvidas’. Uma maneira pela qual Sen expõe a necessidade de medidas mais sensíveis de ‘subdesenvolvimento’, pobreza e outras formas de privação econômica é observando como são em si mesmas fracas as medidas de quantidade de dinheiro para o bem-estar econômico e do produto econômico bruto e como é seriamente limitada a ‘base informacional’, quando falhamos com obter informação sobre como os resultados flutuam, dados os níveis de renda ou produção, sob várias condições”. (PUTNAM, Hilary. O colapso da verdade e outros ensaios. Aparecida: Ideias e Letras, 2008. p. 83). Para saber mais acerca das limitações das bases informacionais de renda e riqueza, confira o Capítulo 4 da obra de Sen Desenvolvimento como liberdade (2000).

31De acordo com Putnam, a proposta de functionings não é originária do pensamento de Sem. Ele afirma que “é apropriado mencionar que essa noção de ‘funcionalidades’ foi antecipada por Walsh em Scarcity and evil, de 1961. O termo de Walsh era ‘realizações’ e, como Sen, ele conectava uma noção bastante ampla de realizações ou funcionalidades com uma preocupação com o caráter da vida humana como um todo, o que se encontra já em Aristóteles”. (PUTNAM, op. cit., 2008, p. 82). Segundo Sen, “a person’s capability to achieve functionings that he or she has reason to value provides a general approach to the evaluation of social arrangements, and this yields a particular way of viewing the assessment of equality and inequality”. (SEN, Amartya. Inequality reexamined. New York: Oxford University Press, 1992. p. 4).

32VITA, op. cit., 2008, p. 98.

33Segundo Sen, “o desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência de serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos”. (SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 18).

34Acerca disso, Sen afirma que “a abordagem da capacidade está particularmente interessada em transferir esse foco sobre os meios para a oportunidade de satisfazer os fins e a liberdade substantiva para realizar esses fins arrazoados”. (SEN, 2011, op. cit., p. 268).

35Para Nussbaum, essa capacidade frisa a “variabilidade da necessidade de recursos entre os indivíduos [...] e sua capacidade de converter esses recursos em funcionalidades” (NUSSBAUM, op. cit., 2013, p. 202), buscando proporcionar o real desenvolvimento individual e, por consequência, da comunidade.

36SEN, op. cit., 2008, p. 80.

37PUTNAM, op. cit., 2008, p. 85.

38Segundo Gargarella, a teoria de Sen “é algo posterior à igualdade de bens primários e de recursos, mas é anterior à utilização de bens, como Sen exemplifica em relação ao nível nutricional de cada pessoa”. (GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 72).

39Em relação à escolha social, Putnam afirma: “A novidade introduzida por Sen é que, nos casos de privação extrema e duradoura, a satisfação dos desejos pode também ser uma base informacional empobrecida, porque uma consequência frequente desse tipo de privação é a redução no âmbito dos desejos, devido ao desespero da situação”. (PUTNAM, op. cit., 2008, p. 84). De acordo com Sen, “a thoroughly deprived person, leading a very reduced life, might not appear to be badly off in terms of the mental metric of desire and its fulfilment, if the hardship is accepted with non-grumbling resignation. In situations of longstanding deprivation, the victims do not go on grieving and lamenting all the time, and very often make great efforts to take pleasure in small mercies and to cut down personal desires to modest – ‘realistic’ – proportions”. (SEN, 1992, p. 55).

40NUSSBAUM, op. cit., 2013, p. 203.

41Apenas com o intuito de ilustrar, podemos observa a exposição de Sen: “In fact, it turns out that men in China and in Kerala decisively outlive African American men in terms of surviving to older age groups. Even African American women end up having a survival pattern for the higher ages similar to that os the much poorer Chinese, and decidedly lower survival rares than the even poorer Indians in Kerala. So it is not only the case that American blacks suffer from relative deprivation in terms of income per head vis-à-vis American whites, they also are absolutely more deprivetily than the low-income Indians in Kerala (for both women and men), and the Chinese (in case of the men), in terms of living the ripe old age”. (SEN, op. cit., 1999a, p. 21).

42SEN, op. cit., 2000, p. 3. Para saber mais acerca da teoria igualitária da igual capacidade de Sen, confira: Desenvolvimento como liberdade (2000).

Referências

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Recebido: 15 de Junho de 2017; Aceito: 02 de Julho de 2018

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