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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.2 Caxias do Sul maio/ago 2018  Epub 26-Ago-2019

 

Traduções

As ciências e as humanidades1

Henri Poincaré


NOTA DOS TRADUTORES

– Um esforço de filosofia prática

Henri Poincaré é um cientista clássico dos melhores que a França produziu entre o final do século XIX e o início do século XX, e seu perfil tem algo de especial. Ele antecipa a história de Thomas S. Kuhn, de Ludwig Wittgenstein e de Michael Polanyi, que começaram sua biografia de curiosidade trabalhando no campo científico-tecnológico e foram como que arrastados (dragged) para problemas filosóficos, ficando todos eles muito conhecidos na área da filosofia.

Nessa conferência que traduzimos, mostra-se, com clareza, o estilo de trabalhar dentro do que estamos denominando de filosofia prática. Entra-se com uma discussão racional muito discreta, tentando traçar orientações aos programas de dentro de áreas da ciência, nesse caso, da formação da classe científica.

– Poincaré e o desenvolvimento

Especificamente, a pergunta a que Henri Poincaré tenta dar uma resposta a esta pergunta: Qual é a relação existente entre cultura humanista e cultura tecnológica? É interessante observar, a propósito, em primeiro lugar, que ele escreveu isso quando a França se encontrava numa encruzilhada, qualificando-se para entrar na onda da industrialização que se anunciava, nos albores do século XX. Poincaré denuncia profeticamente, com muita cautela, alguns perigos. Ora, esses perigos podem ser ainda vistos, como se verá, e como tentaremos fazer ver com alguns comentários em margem ao brilhante texto.

Umas palavras sobre a edição desta tradução. Conservamos a numeração das páginas originais entre parênteses e em negrito no exato momento da secção, para facilitar a eventual consulta ou cotejamento, uma vez que o trabalho de Poincaré encontra-se disponível e aberto na Rede Mundial de Computadores, na Biblioteca de Paris (www.gallica.bnf.fr). Além disso, apenas para facilitar a leitura, acrescentamos títulos às seções do discurso. Se eles são insuficientes ou inadequados, o leitor pode nos tributar a culpa; se eles são úteis para um melhor entendimento da conferência, o mérito.

IIntrodução: O que ganha um estudioso com o estudo das humanidades? Primeiras observações e colocação do problema

Entre os homens que, com muita utilidade e com maior ou menor brilho, têm servido à ciência. Alguns deles receberam, na juventude, uma educação clássica sólida, às vezes refinada, enquanto outros tiveram apenas uma formação literária improvisada, incompleta, sumária. Seria, então, tentador concluir, a partir desse fato, que o estudo das letras é inútil aos sábios, já que muitos deles podem passar sem ele. Mas isso seria andar rápido demais com as coisas. É certo que não se poderia fazer diferença entre as obras de uns e de outros, reconhecendo de certa marca sua origem. Essa é uma comparação que eu não quero (-5-) fazer aqui, pois seria necessário citar nomes de pessoas vivas e eu não quero expor pessoas, nem mesmo mortas. Em assuntos desse tipo, as apreciações são difíceis, mas, no máximo, se demonstraria que uns são tão sábios quanto outros. E o que isso prova? O fato se explicaria naturalmente. Por longos anos, terá sido difícil (*percer) sem ter assistido às aulas e, em geral, de sair do meio de grupos. (*de sortir de son rang). Aqueles que conseguiram foram capazes apenas, graças a uma energia excepcional, que os ajudava a compensar [a ausência de] outras vantagens, e que pôde igualá-los àqueles espíritos mais cultivados, mas, eventualmente, servidos por um caráter não tão bem temperado.

O que é certo, porém, é que os estudiosos que se beneficiaram de uma educação clássica se congratulam disso, tanto que aqueles que não tiveram a oportunidade lamentam-se, pelo menos a maioria deles (digo a maioria, pois, depois de algum tempo, aparecem pessoas que vêem, em suas origens mais primárias, certo título de glória ou mesmo uma longínqua promessa de representação). Por que uns se congratulam, enquanto outros se lamentam tanto? É somente (-6-) porque a ciência não é tudo, porque, primeiro, é preciso saber viver, e porque a cultura nos faz descobrir ao mesmo tempo, novas razões e novas fontes de vida? Não, todos sabem, intuitivamente, que não é apenas ao homem [em geral], mas ao próprio sábio, que as humanidades são úteis.

Eu gostaria de explicar, aqui, as razões desse sentimento vago, do qual, talvez, seja difícil tomar consciência, àqueles que o experimentam. A fim de trabalhar a questão, sou obrigado a dividi-la: nós falamos dos sábios em geral; ora, existem várias espécies de sábio, e as qualidades do matemático não são as mesmas do fisicista [médico (*physicien)], e menos ainda as do biólogo. E sempre se encontram pessoas que afirmariam que essas qualidades são incompatíveis, e que a formação que convém a uns não serviria a outros.

Por outro lado, quando se trata de enumerar as vantagens e os ganhos dos estudos clássicos, encontram-se bens diversos, cuja ação acaba sendo bem diferente. Eles exercitam o espírito de análise e nos forçam a comparar as formas de linguagem, afirmam os estudiosos de gramática. Eles desenvolvem em nós o espírito de fineza (*l´ésprit de finesse), afirmam outros. (-7-)

Elas nos elevam para além das vulgaridades de uma vida utilitarista diriam outros ainda. Os defensores de uma cultura literária, portanto, invocaram os argumentos mais variados. Se eles têm ou não razão, isso é algo que saberemos apenas e tão somente se e quando examinarmos seus argumentos um após outro. E isso me obriga a entrar, a seguir, em alguns detalhes.

IIO matemático. O que ganha com versões e traduções?

O caso do matemático é o primeiro que examinarei. E o meu exame começa do ponto de vista mais terra-terra. Eu me interrogarei: É útil que um matemático faça ensaios (*thémes) e versões?2 A resposta pode ser dada por uma observação pessoal de M. Vacquant, inspetor-geral da Instrução Pública para as Matemáticas. Um dia ele inspecionava uma classe de ensino moderna, um tipo de ensino que, creio eu, não era exatamente aquilo que hoje se tornou. (-8-)

Ele solicitou a um aluno a demonstração de um teorema célebre, cujo enunciado é conhecido por todos: o produto não depende da ordem dos fatores. O jovem lhe faz a demonstração que aprendeu de seu livro; no seu texto, ele modifica apenas uma pequena palavra. Mas isso é suficiente para que o raciocínio seja falso.

Explico-me melhor: o sinal algébrico de multiplicação pode ser enunciado de diversas maneiras: às vezes se diz multiplicado por, pode-se dizer também que multiplica, ou ainda o qual multiplica. O autor do livro gostaria que se dissesse multiplicado por, ou que multiplica; o aluno tinha o hábito de enunciar sob a forma de o qual multiplica. E ele não mudou sua maneira de ser segundo a circunstância.

Para a demonstração de outro teorema, isso não teria tido qualquer importância: a, que multiplica b, é a mesma coisa que a, o qual multiplica b, uma vez que se sabe que se pode inverter a ordem dos fatores.

Mas para a questão proposta, a situação é diversa. Não sabemos se se tem o direito de inverter a ordem dos fatores, uma vez que isso é exatamente o que se deve demonstrar. Nós (-9-) ainda não sabemos se a que multiplica b, ou seja, um produto no qual o multiplicador é a, e o multiplicando é b, é a mesma coisa que a, o qual multiplica b, ou seja, um produto no qual o multiplicador é b, e o multiplicando é a; nós não temos o direito de tomar um pelo outro, ou a nossa demonstração torna-se falsa.

Apesar de todos os esforços do inspetor, o jovem não conseguiu compreender seu erro. E o que é mais surpreendente: nenhum dos seus colegas pareceu ser capaz de compreender melhor que ele. E o professor ficou desolado por ter sido obrigado a fazer análise gramatical. Na verdade, a análise gramatical daqueles jovens andava bem longe.

Numa sala de literatura, disse-me M. Vacquant, não poderia ter acontecido nada parecido. O erro poderia ter sido cometido, mas o aluno teria condições de tê-lo compreendido assim que viesse a ser explicado, tendo-o corrigido assim que tivesse compreendido.3

IIIA língua e seus matizes ou o francês como o chinês4

Talvez o exemplo seja um pouco tosco, e o nosso ensino esteja bem-organizado, o suficiente para evitar que até mesmo o mais embrutecido de seus representantes venha a cair em semelhante armadilha. A anedota é instrutiva: ela nos ajuda a ver, como através de um vaso engrossado (*verre grossissant), a natureza das dificuldades que os jovens matemáticos terão que enfrentar se não estiverem bem-familiarizados com a análise das formas verbais.

A nossa língua exprime, por suas flexões e até mesmo pela ordem de suas palavras, matizes infinitamente mais delicados que as que o pequeno herói da nossa aventura não foi capaz de entender. O menor desses matizes pode viciar totalmente um raciocínio matemático, no qual se deve seguir rigorosamente a linha reta. O menor desvio é proibido. Para entender todos esses matizes, é necessário ter aprendido a senti-los; é necessário ter adquirido um longo hábito de familiaridade, (-11-) para compreendê-los desde o primeiro olhar, sem hesitação e sem qualquer esforço.

A criança compreende as frases em bloco, por assim dizer e, se alguém solicitar, ela escreve tudo ao mesmo tempo, numa só palavra. Cada palavra é como se fosse um centro de associação de ideias, como um facho de luz que clareia todo um canto escuro da consciência; as diversas palavras de uma mesma frase reluzem ao mesmo tempo, e sua luz se confunde; os campos que elas clareiam, respectivamente, as espalham umas sobre outras, sem que se possa dizer de qual dos faróis este ou aquele ponto está recebendo mais ou menos luz.

Daí se entende como os míopes enxergam. Para eles, os diversos pontos do objeto aparecem com limites transbordando uns sobre os outros e de forma semelhante àquelas que se podem ver em alguns mapas modernos.

É esse tipo de iluminação contínua que, ordinariamente, se denomina como a inteligência ordinária de uma frase. Muitas pessoas, mesmo adultas, não exigem mais; mesmo entre as pessoas mais refinadas, nove em cada dez se contentam; essa maneira de entender o francês é suficiente, de fato, para os usos ordinários da vida. Cada frase sugere, pelo simples jogo (-12-) da associação de ideias, os movimentos apropriados; quando alguém nos diz: “Vá para a direita”, os músculos que nos dirigem em direção ao lado direito se preparam por si. Assim acontece com a vida.

Mas isso ocorre com a maior parte dos homens civilizados; é, no entanto, muito insuficiente para algo tão sutil como o raciocínio matemático. Nessa delicada rede, as frases em bloco não podem bastar; é necessário apresentarmos materiais menos grosseiros, por assim dizer, reduzidos em pequenos fragmentos, mediante a análise verbal.

Para a pessoa que não está habituada a esse tipo de ginástica verbal, que multiplica, ou o qual multiplica, não representa, assim de partida, a ideia de um pronome relativo que está no nominativo ou no acusativo, mas eu não sei que vaga noção de multiplicação; ora, com essa vaga noção, o matemático nada tem a fazer. Ouvi dizer que a língua chinesa (talvez porque ela seja monossilábica e, consequentemente, não possui uma gramática) é incapaz de exprimir certos matizes delicados, aquelas que expressamos mediante flexões, e que, por falta de um instrumento que lhes permitam raciocinar com precisão, os Celestes estão, e permanecerão fechados (-13-) às matemáticas. Para aqueles (dentre os nossos compatriotas) que não entendem o francês pelo menu, mas somente como criança, ou as pessoas sem cultura, o francês não é diferente de um chinês.

IVA tradução como mecanismo de internalização da percepção da cultura

Como passaremos, então, dessa maneira de compreender – que é a da criança – àquela forma mais sutil, em que a frase não é mais um todo, mas o lugar em que a pessoa pode discernir o papel das diversas palavras e os muitos matizes que nascem a partir de suas flexões e de suas relações, o lugar em que se pode distinguir tudo isso sem esforço e como se fosse através de um hábito longamente enraizado? Não pode ser por outra forma, senão abrindo o espírito à análise das formas verbais. Para que isso aconteça, o pedagogo imaginou dois caminhos de procedimento: o primeiro é a análise gramatical; o segundo é a prática de temas (redações, ensaios) e versões e traduções.

Análise gramatical! Lembrança ingrata da infância. (-14-) Na minha época, a gente fazia muitos desses trabalhos, e era muito chato, porque cada palavra exigia muitas linhas de escrita, nas quais as mesmas fórmulas eram repetidas sem cessar, com uma monotonia desesperadora. Mas essas fórmulas eram abstratas, e nada diziam ao espírito das crianças. Creio que a maior parte dos alunos das classes primárias termina por ser aprovada, mas se servindo de regras empíricas;5 para eles, por exemplo, a palavra que está antes do verbo é o sujeito. Aquela que está depois é o objeto direto, mas não toma consciência das relações reais expressas por essas palavras.

Não é a mesma coisa o que acontece com as redações e versões; não se aceitam, aqui, artifícios desse tipo, mas o aluno deve substituir algumas palavras por outras, escolhendo as mais apropriadas para cada caso, o que o obriga a refletir sobre suas relações mútuas. Não se tratam, então, de fórmulas abstratas, mas de palavras; cada uma possui uma fisionomia própria, são vivas de certa forma.

Comparem o proveito que se tira de uma tradução de uma página apenas com a pilha de papel que é preciso desperdiçar, se se quisesse (-15-) fazer uma análise gramatical do mesmo texto. Isso permitiria comparar o rendimento de ambos os métodos. Assim, a prática de redação e traduções é o que nos ensina a compreender, verdadeiramente, o sentido das frases, tornando-nos, assim, mais aptos a nos apropriar dele em nossos raciocínios pessoais.

A propósito, eu lembro que o célebre estudioso da geometria, M. Hermite, sempre que tem uma chance de lembrar a importância do tema, exercício que nos faz recordar da disciplina, sempre em boa hora, nos exorta à aplicação de alguma regra. Ora, o sábio, como qualquer outra pessoa, e ainda mais do que qualquer outra, tem necessidade de aplicar uma regra a cada instante.

VMétodo direto para o alemão, talvez para o francês, mas não para o latim

Esse tipo de exercício é particularmente proveitoso com as línguas antigas, por conta da riqueza de suas flexões, das inversões frequentes que invertem a ordem das palavras. E acontece que, depois de certo tempo, (-16-) ensinam-se as línguas modernas tratando o trabalho como tradição, como um proscrito. Domina o que se chama de método direto, e ele parece justificado por vantagens realmente significativas. De qualquer forma, mesmo tendo ele passado a ser praticado universalmente, as línguas modernas não desempenham mais o mesmo papel que as línguas mortas do nosso ponto de vista.

Isso mostra como seria absurdo querer aplicar o método direto ao estudo do latim; não se aprende latim para falar latim, como se a pessoa fosse perguntar um endereço a um contemporâneo de Cícero num bairro de uma de nossas cidades; aprendemos o latim para tê-lo aprendido. Isso porque não se pode aprender certa língua sem se aplicar a uma ginástica muito útil, da qual eu tenho tentado explicar algumas vantagens. No dia em que as pessoas aprenderem o latim por um método direto, tornar-se-á supérflua a tarefa de aprendê-lo.

E o francês será ainda pior de se ensinar pelo método direto, porque as pessoas que não sabem latim, ou que o conhecem pouco, perdem a chance de compreender o francês pelo menu. O método direto nos permite (-17-) entender, da língua alemã, tudo aquilo que os alemães entendem, sem precisarmos ir à escola, e isso não é pouca coisa; quantos dentre nós, tendo imprudentemente atravessado a fronteira, vão rugir em sua ignorância diante dos garçons dos cafés. O alemão de um garçom de café já seria uma conquista, mas o francês de um garçom de café pode ser um pouco mais fraco. Eu já afirmei que isso não convém ao geômetra.

VIPreparar a ferramenta linguagem também na matemática

No entanto, se poderia afirmar que se trata de um desvio inútil, que, se o objetivo é desenvolver o espírito analítico entre os futuros geômetras, seria mais simples envolvê-los diretamente com a matéria com a qual eles vão realmente trabalhar em seguida, ou seja, a quantidade, os números e as figuras; mais tarde, as dificuldades relativas à plena inteligência da linguagem científica não serão para eles mais que um jogo, uma vez que não têm a tarefa de realizar grandes esforços de análise (-18-) análogos àqueles que se tornaram familiares e, ao mesmo tempo, muito mais simples. É assim, com efeito, que procede o aprendiz de matemático que não recebeu, na sua juventude, a preparação clássica que mencionei. Ele enfrentará o estudo das ciências não possuindo mais que um conhecimento intermediário da linguagem, intermediário entre o conhecimento grosseiro da criança que vê a frase inteira, em bloco, e o conhecimento refinado do literato, que é capaz de discernir todos seus recursos.

Isso deverá ser suficiente para iniciarem, na condição de passar rapidamente pelos princípios que constituem a parte mais delicada da ciência. Esses primeiros princípios são aceitos de saída como artigos de fé, que poderá deixar quando estiver mais seguro de si. Nesse momento, ele se lançará à análise; as frases que lhe tinham parecido tão misteriosas terminam se explicando, uma vez que ele como que refinou um olhar que sabe ver os detalhes. Mas a que preço?

As noções usadas no trabalho com a matemática são prodigiosamente abstratas, quer dizer, elas são o resultado de uma elaboração muito avançada. É natural começar (-19-) pelo mais fácil e deixar para abordar esta análise avançada apenas ao completar a análise mais imediata. As formas verbais, que são uma espécie de produto delas, conservam, ainda, algo de concreto; elas são, por isso, menos repulsivas aos jovens estudantes, que podem ir se familiarizando com elas em uma época na qual as matemáticas ainda não lhes são acessíveis. Quando, enfim, o seu estômago estiver pronto, o alimento que ele receberá estará, por assim dizer, já mastigado. Sim, existem pessoas que têm estômago de ferro, que podem bem digerir sem mastigar, o que não impede que a faculdade lhes recomende mastigar com cuidado.

VIILinguagem e literatura: ferramentas a outros saberes

Eu me estendi um pouco acerca do caso do matemático, e pode ter surgido a pergunta: E em que medida isso tudo se aplica ao físico ou ao biólogo? Aplica-se, respondo, exatamente na medida em que os sábios entendem a necessidade de ser matemáticos. Em geral, o biólogo tem (-20-) pouca disposição às matemáticas, e, às vezes, as ciências exatas chegam mesmo a inspirar-lhe alguma repugnância e desconfiança. As formas puras do geômetra, que lhe parecem normalmente vazias, sem cor e sem vida, causam-lhe um tédio mortal e são sem interesse; ele vê nelas um aparato tanto fútil quanto repetitivo. No entanto, é impossível ao cientista sobreviver sem, pelo menos, um componente mínimo do espírito matemático; trata-se do espírito de análise, por meio do qual, aprendemos a distinguir os diversos elementos dos objetos que estamos estudando; a separá-los uns dos outros mediante o pensamento; a compará-los e a combiná-los. É apenas dessa forma que se torna possível a uma mente humana reunir os materiais para um pensamento qualquer, por mais distante que ele seja, em aparência, do pensamento matemático propriamente dito. Ora, não existe um observador tão puro, que não precise raciocinar, pelo menos uma vez ou outra.

O estudioso de biologia não poderá, no entanto, adquirir essa espécie de hábito de análise no estudo das matemáticas, se o seu estudo lhe parecer tão incômodo quanto ao literato mais avesso ao exercício da ciência. E, talvez (-21-), não lhe seja, realmente, tão importante chegar até a análise do nível do geômetra. Para nós o estudo comparado e gramatical das línguas gera um modelo menos refinado, mas suficiente, como exercício, ao mesmo tempo que é menos chocante e uma vez que apresenta ao estudante ou estudioso os objetos ainda não esvaziados de sua cor e de sua vida.6

Giard foi um biólogo de primeira ordem, pois recebeu uma educação literária muito cuidada; sua memória era prodigiosa, e sua mente, mobiliada por uma multidão de textos latinos e gregos aprendidos de cor. Aí está, entre parênteses, um serviço que os estudos literários podem prestar ao biólogo; ajudam-no a cultivar sua memória, e se sabe muito bem como, nesse gênero de ciência, uma boa memória verbal é um poderoso auxiliar.

Como quer que seja, Giard é autor de um interessante artigo acerca da educação do morfologista. Ele exige, antes de qualquer coisa, que isso fique claro, que se ajude a criança a desenvolver o espírito de observação ou, pelo menos, que não a atrapalhe, pois ele sustenta que esse espírito já existe, naturalmente, na maior parte (-22-) dos adolescentes, e que os métodos universitários atuais têm, por resultado, abortar ou reduzir a pó esse espírito. Ele critica vivamente, portanto, nossos novos programas e a insistência, segundo ele excessiva, que se põe sobre as matemáticas. Afirma o que segue, que reporto integralmente:

Por muito tempo existia ao menos uma compensação a este triste estado de coisas. Ao concluir seus estudos das humanidades, o jovem possuía certo conhecimento das línguas antigas. Isso, além de uma utilidade moral superior, podia trazer grandes vantagens para o futuro naturalista. Esses estudos literários, se conduzidos com habilidade, poderiam até mesmo prover o espírito do aprendiz de morfologista de uma excelente preparação para os seus futuros trabalhos. A análise linguística revela muito cedo, a uma inteligência alerta, as leis da estrutura e de evolução das formas da linguagem, de alguma forma comparáveis àquelas que se pode deduzir da observação dos seres vivos.

Que fique claro que não subscrevo suas reservas expressas contra as matemáticas. Assim mesmo, a citação que acabamos de ler pode (-23-) fornecer alguns elementos para uma reflexão. As línguas evoluem, elas vivem; as palavras têm sua história, elas se transformam; podem-se encontrar, nas palavras francesas, traços das palavras latinas das quais aquelas derivam, como se pode encontrar, em Giard e em outros teóricos transformistas, traços de seus ancestrais simiescos. Seu aspecto exterior pode ter se modificado, mas a pessoa aprende, pelo exercício, a não se deixar enganar pelas aparências, encontrando-os por baixo do seu disfarce. Da mesma forma, o biólogo deve ser capaz de reconhecer um tipo zoológico ou botânico sob as diferentes vestes com as quais ele se cobre.

VIIIMatemático: aprenda a observar!

Eu acrescentaria que as letras, se forem bem-ensinadas, podem ser uma escola muito útil ao observador. Os poetas também sabem observar; aqueles que são dignos desse nome não vão errantes aplicando seus adjetivos e epítetos. Eles os escrevem após terem olhado. Se o professor conhece o seu trabalho, ele não deixa passar a ocasião para mostrar, ao seu aluno (-24-) a adequação de um adjetivo e, a fim de julgá-lo com justiça, é necessário que o aluno aprenda por sua vez. Bem, isso pode ser inútil justamente para o futuro biólogo. Se ele é um biólogo nato (e se o contrário for o caso, ele está destinado a jamais fazer algo de bom), ele saberá observar desde o nascimento, não saberá fazer de outra forma e não será necessário a ninguém revelar-lhe os segredos dessa arte.7 É precisamente o matemático que precisa de que alguém o ensine; isso é tão indispensável a ele quanto aos outros. É importante ao observador aprender a raciocinar, é fundamental para raciocinar e aprender a observar.

IXO espírito de sutileza como diferencial no cientista

Estamos de acordo em afirmar que o estudo literário, obviamente sem aquele aparato inútil de pedantismo ou de erudição, é o mais adequado a desenvolver, em nós, o espírito de sutileza.8 E como o espírito de sutileza é necessário a todas as pessoas, uma vez que todas (-25-) devem viver, disso se conclui que a cultura literária é importante às pessoas sábias, da mesma forma que a todos os seres humanos. A questão é que normalmente se crê que as pessoas precisam dela para se tornarem humanas, mas não para se serem sábias.9 Aí é que reside um engano.

Alguém sempre poderá dizer que é possível ser um sábio e, até mesmo um grande sábio, sem nenhum espírito de sutileza. E a prova disso seria a constatação de que a maior parte dos cientistas está nessa condição. Mas isso seria contentar-se com uma visão muito superficial das coisas, sendo possível encontrar tanto geômetras quanto naturalistas que, nas relações naturais da vida, têm uma conduta que, às vezes, é surpreendente. Isso se deve ao fato de que, distraídos em seus pensamentos acerca das contingências que os cercam, eles não veem aquilo que está ao seu redor. Mas se eles não veem, não é porque não têm bons olhos; é muito mais porque não estão olhando. Isso não os impede, de forma alguma, de ser capazes de empregar alguma sutileza, quando se trata do único objeto que lhes parece interessante.

O espírito geométrico, com efeito, nos permite concluir, a partir de premissas completas, certas e bem-aceitas, mas o espírito de sutileza se torna necessário todas as vezes que a pessoa (-26-) tenha que errar entre múltiplos dados e incertos, entre os quais seja necessário escolher. Sua abrangência é, na verdade, muito maior do que normalmente se pensa. Não se restringe, de modo algum, apenas àquilo que se refere às coisas da literatura ou das relações gerais entre as pessoas. Não é possível crer que o estudioso (que tem um problema a resolver) não se encontre, de fato, diante de dados imprecisos.10 Podemos deixar de lado o físico e o biólogo, pois a prova seria fácil demais. Tomemos como exemplo o matemático puro. É necessário que ele demonstre, é necessário que suas demonstrações repousem sobre bases incontestáveis e constituam monumentos sólidos; para isso, bastará a ele o espírito geométrico, mas, antes de demonstrar, será necessário inventar.11 Não se inventa a dedução pura; se a totalidade da conclusão já estiver contida nas premissas avançadas no início, então não se trata mais de invenção nem de criação; será, muito mais atuação e transformação. O geômetra inventa mediante a indução como o físico. Isso já foi discutido antes. Mas para inventar, mediante a indução, é necessário adivinhar, improvisar, escolher. Não se pode esperar ter sempre certeza; às vezes, é necessário se contentar com a intuição. Aqui o espírito geométrico puro é insuficiente. É (-27-) necessário algo a mais. Esse algo mais é o espírito de sutileza ao qual me referi.

E é por isso que, entre os geômetras, existem aqueles que são desprovidos de espírito de sutileza, e outros que o possuem, senão na vida exterior, pelo menos na vida científica. Os primeiros poderão compor uma obra bastante útil. Poderão complementar as descobertas de outros; poderão extrair consequências de outras consequências; poderão acumular teoremas, mas não poderão ser criadores verdadeiros, senão, talvez, uma vez durante sua existência por um feliz acaso. Já os outros saberão escolher, saberão improvisar, saberão criar. Talvez sua obra venha se reduzir a umas poucas páginas. Mas se tratarão de páginas a partir das quais um operário que tenha um pouco de habilidade saberá extrair facilmente inteiros volumes.12 Certamente, não quero afirmar que os cientistas sem espírito de sutileza são todos produtos do ensino moderno, tanto que se podem encontrar espíritos criadores entre pessoas que assistiram às suas aulas, como alguém já notou. Longe disso! Existem pessoas naturalmente abençoadas por um espírito de elevada sutileza e que nem precisam de grande ajuda para desenvolvê-lo, enquanto há outros que não conseguem atingir algo assim, nem mesmo com vinte ou mais penosos anos de estudos. E nem é menos verdade que a maior parte (-28-) dos homens possui em botão tal espírito e que, com um pouco de cultivo, ele acaba desabrochando.

Eu creio não ter afastado a expressão espírito de sutileza de seu sentido originário. Não se trata apenas do conhecimento das pessoas e, no entanto, esse conhecimento não é desprezível, mesmo para o cientista. Se ele não pode ver tudo por si mesmo, às vezes, fica forçado a basear-se em testemunhas.

1Tradução de Josemar de Campos Maciel, João Alberto Mendonça Silva da Universidade Católica Dom Bosco em Campo Grande – MT. E-mails: <maciel50334@yahoo.com.br> e <giambattista1025@gmail.com>

2O francês usa a palavra théme; o inglês, essay ou paper. É interessante notar, aqui, a relevância dada à experiência criadora do trabalho de escrita. No Brasil, quando se estudava redação, falava-se, nos anos 70, em redação com tema livre.

3A discussão e o exercício de determinados problemas ou áreas teóricas cria, na mente de quem se exercita, categorias capazes de apreciar e de se posicionar diante desses problemas ou áreas, ou de questões que os envolvem. O conhecimento que funciona de um jeito, numa determinada área, é capaz de fecundar e melhorar a percepção do conhecimento que funciona de outra forma, em outra área. Isso se torna um problema crítico quando as áreas se encontram. Aqui o exemplo é patente: é preciso saber gramática para entender um enunciado algébrico. Nem sempre a coisa é tão clara assim. O papel do especialista em Teoria do Desenvolvimento Local, justamente porque na sua área as diferentes áreas teóricas se tocam e se trançam no sentido da tematização de agendas actanciais, é o de saber orquestrar as diversas linguagens e lógicas assim interseccionadas (NT).

4 Esta seção do texto pode parecer sutil demais, ou repetir a mesma ideia do exemplo dado por Poincaré. Mas veja-se como ele introduz, sem se aprofundar, a ideia de que a língua, ou seja, a forma específica através da qual um idioma articula o pensamento, influi na capacidade de os seus falantes desenvolverem o próprio pensamento. Como esta tradução é para o português, e em plena polêmica de aberturas comerciais às relações com a China e a Coreia, caberia a pergunta: O que está acontecendo põe diante dos olhos de quem observa o que está acontecendo um processo de enriquecimento ou de perda de flexibilidade? Sem perceber, Poincaré antecipou, aqui, o que aconteceu na troca da língua diplomática, do francês, com todos seus pronomes, pelo inglês, com suas question tags curtas, objetivas e monolíticas.

5Interessante é notar o uso do termo empírico por um matemático como sendo oposto ou contraposto a sistemático. Aqui Poincaré usa essa contraposição para mostrar que a criança, quando não entende bem algum conteúdo obrigatório, ou exercício, tenta superar o problema a partir da busca de uma experiência que faça sentido para ela mesma, através da sucessão de tentativas e erros, ou seja, com o recurso único à experiência empírica. Poincaré nada diz aqui para desmerecer a ciência empírica ou a pesquisa empírica, que é outra coisa.

6Mediante técnicas de abstração matemática, geram-se objetos cuja beleza é constituída basicamente da proporção entre elementos estruturais. Por mais que isso pareça estranho, também gerou uma estética, justamente quando Poincaré escreveu este texto. Na Áustria nasce o movimento da Bauhaus; em seguida, vêm a poesia concreta, o cubismo e, na música, Schöenberg cria um modelo de extrema precisão, mas difícil de ouvir: a Teoria Musical Dodecafônica.

7Passagem obscura que parece indicar que Poincaré prefere situar o olhar no campo moral, ou seja, atribuindo-o a disposições humanas inatas. A habilidade matemática seria treinável; o olhar do naturalista, não. O que parece uma contradição em termos, pois ele mesmo indicou, mais atrás, que existe uma correspondência entre as estruturas da matemática e as das línguas (NT). Daqui aos tempos atuais, a teoria andou em vários sentidos.

8Poincaré usa, aqui, como Pascal, a expressão Esprit de Finesse. Fineza é uma palavra que também seria adequada, mas possui ressonâncias com a moda, por isso preferimos evitá-la.

9No século XXI, quando pelo menos se entende a relação entre a cultura clássica e uma boa formação tecnológica, já se terá superado um abismo que se abriu no século XX e que, melhor para ele, Poincaré não teve o desprazer de conhecer.

10Sobretudo nesse exemplo, Poincaré ilustra o funcionamento do que temos denominado de conhecimento derivado da experiência humana imponderável, ou seja, que é incalculável, mas que permanece fatalmente relevante para o bem ou para o mal da pesquisa desenvolvida, ou da reflexão intentada.

11A recuperação de assuntos subjetivos, como imprecisão e criatividade, no âmbito de estudos matemáticos e físicos, levou a várias áreas novas de investigação nas ciências matemáticas, no início do século XX e, ultimamente, a imaginação brilhante de Wilhelm Turing levou à “máquina que pensa”, ao computador e à revolução da informática.

12Assim: Gödel produziu uma famosa demonstração matemática da existência de Deus, em uma página. Wittgenstein, no seu Tractatus logico-philosophicus que passa pouco das sessenta páginas; há páginas extremamente importantes de vários autores, que são pouquíssimas. Apenas para sair do mundo da ciência: os estudos para violão, de Villa Lobos, não passam de umas trinta páginas.

Recebido: 06 de Junho de 2018; Aceito: 18 de Junho de 2018

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