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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.spe2 Caxias do Sul  2018  Epub 17-Set-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.especial.4 

Dossiê Educação, Ética e Religião

Religião, ética e educação: experiências e vivências do Quilombo do Mel da Pedreira no Amapá

Religion, ethics and education: experiences and lives of Quilombo of Pedreira Honey in Amapá

Elivaldo Serrão Custódio* 

Célia Souza da Costa** 

*Doutor em Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST) São Leopoldo – RS. Mestre em Direito Ambiental e Políticas Públicas pela Universidade Federal do Amapá (Unifap). Professor na Secretaria de Estado da Educação do Amapá (SEED). : elivaldo.pa@hotmail.com

**Mestra em Direito Ambiental e Políticas Públicas pela Universidade Federal do Amapá (Unifap). : celia.amapa@hotmail.com


Resumo

O presente artigo objetiva discutir sobre religião, ética e educação: experiências e vivências do Quilombo do Mel da Pedreira, localizado no Município de Macapá, Estado do Amapá. Uma comunidade que possui sua história, práticas culturais e identidade marcadas pela religiosidade de matriz afro-ameríndia e posteriormente protestante. Nas últimas décadas, a religiosidade protestante, nessa localidade, tem se intensificado com o surgimento de outras denominações cuja base é o pentecostalismo. Neste estudo, são abordadas questões voltadas aos discursos religiosos, a ressignificação de práticas culturais, a aplicabilidade da Lei 10.639/2003 no currículo escolar, entre outros aspectos que envolvem a cultura local, a religiosidade e a identidade negra. Trata-se de um estudo etnográfico de abordagem qualitativa que utilizou a pesquisa bibliográfica, a análise documental, a observação in loco e a entrevista semiestruturada como formas de investigação. Os resultados da pesquisa revelam que as mudanças nesse quilombo não aconteceram somente por influência de fatores religiosos, mas, sobretudo, por reflexões sociais e interculturais da comunidade como espaço coletivo. Sobre a implementação das políticas de educação escolar quilombola no Amapá, essas estão caminhando a passos muito lentos, pois são normalmente ações pontuais e fragmentadas, sem articulação com a realidade regional. No que diz respeito ao currículo escolar, observa- se, na escola local, ausência de um currículo construído a partir de valores e interesses da comunidade, da mesma forma, ausência de projetos pedagógicos articulados com os conteúdos previstos pela Lei 10.639/2003, bem como uma educação escolar quilombola de qualidade. É urgente o desenvolvimento de uma educação diferenciada, de qualidade, bem como a valorização e permanência de professores quilombolas e implementação de práticas pedagógicas e de cursos de formação continuada para atender à necessidade local.

Palavras-chave:  Religião; Ética; Educação; Quilombo; Amapá

Abstract

This article aims to discuss religion, ethics and education: experiences and experiences of the Mel da Pedreira quilombo, located in the Municipality of Macapá, Amapá State. A community that has its history, exerts culture and identity marked by the religiosity of the mother and, later, Protestant. The last decades have a Protestant religiosity in the locality has intensified with the appearance of other denominations whose base is the Pentecostalism. This study deals with the voltages for the religious debates, the resignification of practice culture, the applicability of Law 10.639/2003 in the school curriculum, among other functions that involve a local culture, a religiosity and a black identity. This is an ethnographic study of a qualitative approach that uses bibliographical research, documentary analysis, in situ observation, and semi-structured interview as a form of investigation. The results of the research revealed how the changes in kilograms were not only fulfilled by the influence of religious factors but, above all, by social and intercultural reflections of the community as a collective space. On the implementation of school education policies in quilombolas in Amapá, these are moving in very slow steps, since they are particularly punctual and fragmented actions, without ar ticulation with a regional reality. With regard to the school curriculum, like the local school, the absence of a curriculum is included in community values and interests, in the same way, without the existence of a pedagogical bill on the process of coverage of Law no. 10.639/2003, as well as quality quilombola school education. The quality of an education differentiation, quality, well-to-value and permanent education, and implementation of pedagogical practice and of training courses continuation to meet the local service.

Keywords:  Religion; Ethic; Education; Quilombo; Amapá

Introdução

O crescente número de pesquisas e estudos acerca das chamadas “Comunidades Remanescentes de Quilombos”, nas últimas décadas, vem ganhando força em estudos das ciências humanas, principalmente devido às reivindicações do “Movimento Negro Brasileiro” e das “Políticas Públicas de Ações Afirmativas” por parte de órgãos governamentais e não governamentais.

A população negra no Brasil foi a principal executora dos trabalhos de construção da sociedade brasileira tanto nos aspectos social e econômico quanto culturais, porém percebemos que por muitos anos essa população não foi enxergada e valorizada como uma população-cidadã participante em igualdade, de condições e oportunidades, pois, até hoje, as lutas pelo acesso aos direitos são constantes.

As “Comunidades Remanescentes de Quilombos” no Brasil são o símbolo de resistência que, através de suas lutas, têm tentado preservar suas memórias e identidade. Além disso, é o testemunho vivo da população afrodescendente contra o processo de escravidão e opressão desde o início do processo escravista no Brasil.

Observamos que, na atualidade, as disputas por representação religiosa em comunidades quilombolas veem chamando a atenção de muitos pesquisadores. A questão religiosa que separa comunidades de religiões de matriz africana e afro-brasileira, de comunidades e de religião protestante, reacendeu discussões sobre religião, cultura, identidade e ética.

Destacamos que este trabalho é um recorte de um estudo etnográfico de natureza qualitativa que adotou a pesquisa bibliográfica, a análise documental e a entrevista semiestruturada no âmbito da Tese de Doutorado em Teologia (Religião e Educação) defendida em 2017 no Programa de Pós-Graduação da Faculdades EST – São Leopoldo – RS – Brasil.

Nessa perspectiva, buscamos analisar as repercussões na educação escolar a partir do processo de inserção do protestantismo, bem como as mudanças culturais e religiosas no cotidiano dessa Comunidade Remanescente de Quilombo do Mel da Pedreira (CRQMP) no Estado do Amapá.

Nossa investigação, portanto, está focada na tentativa de analisar as relações em torno do espaço escolar de escola pública estadual localizada na comunidade, bem como as relações em torno do espaço sagrado e do ambiente da Igreja Presbiteriana, que se encontra instalada na comunidade desde a década de 1960 e do Ministério do Deus Vivo e Verdadeiro e da Igreja Evangélica Assembleia de Deus que veem ganhando espaço desde 2012 e 2014, respectivamente.

Esse novo fenômeno religioso, pelo qual vem passando a CRQMP, em particular, abre caminho a uma série de reflexões, uma vez que essa identidade religiosa protestante vem sendo fortalecida pelo grupo como uma possível forma simbólica de marcar e reforçar sua especificidade como unidade étnica diferenciada.

Trajetória metodológica: as trilhas da investigação

A pesquisa encontrou seu fundamento no método etnográfico com abordagem qualitativa. Privilegiamos a pesquisa qualitativa, por nos permitir compreender melhor como os integrantes da CRQMP constroem e reconstroem seus saberes e fazeres ao levar em conta os aspectos religiosos e as relações étnico-raciais em seu cotidiano escolar. (LÜDKE; ANDRÉ, 1986).

Para as técnicas e procedimentos de coleta de dados desta pesquisa, além da observação direta in loco, orientada pelos pressupostos da abordagem qualitativa em pesquisa educacional, utilizamos também a pesquisa bibliográfica, a pesquisa documental e a entrevista semiestruturada como formas de investigação. O Quadro 1 – dos participantes da entrevista, ficou assim estruturado:

Quadro 1  Caracterização do grupo de entrevistados 

Nome Fictício Instituição que representa Cor ou Raça Quilombola? Religião Sexo Idade Formação
Acadêmica
Participante A Igreja Presbiteriana Negra Sim Protestante M 57 anos Estudou até a 4ª série do antigo 1° Grau
Participante B Igreja Assembleia de Deus Negra Sim Protestante M 37 anos Ensino Fundamental completo
Participante C Ministério do Deus Vivo e Verdadeiro Parda Sim Protestante M 45 anos Ensino Médio incompleto
Participante D Presidente da AMORQUIMP Preta Sim Protestante M 30 anos Ensino Superior completo
Participante E Direção escolar Parda Não Católica M 33 anos História
Participante F Professora na CRQMP Negra Sim Protestante F 55 anos Pedagogia
Participante G Professora na CRQMP Parda Não Católica F 28 anos Pedagogia
Participante H Morador mais antigo da CRQMP Negra Sim Protestante M 81 anos Estudou até a 3ª série do antigo 1° Grau
Participante I Morador mais antigo da CRQMP Negra Sim Protestante M 70 anos Estudou até a 4ª série do antigo 1° Grau
Participante J Moradora mais antiga da CRQMP Negra Sim Protestante F 66 anos Estudou até a 4ª série do antigo 1° Grau

Os participantes da entrevista assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, sendo informados de que os procedimentos adotados na pesquisa obedecem aos Critérios da Ética em Pesquisa com Seres Humanos conforme Resolução 466/2012 – item IV do Conselho Nacional de Saúde. Os participantes envolvidos nas entrevistas receberam uma codificação, a fim de garantir anonimato. Optamos por designá-los de “Participante” no corpo do trabalho, adicionando-lhes, após o uso do termo, uma letra maiúscula do alfabeto.

Para a análise e interpretação dos dados coletados nos valemos do aporte teórico advindo do sociointeracionismo dialógico de Bakhtin (2000). O interacionismo sociodiscursivo “é um quadro teórico que entende as condutas humanas como ações situadas cujas propriedades estruturais e funcionais são, antes de tudo, um produto da socialização”. (BRONCKART, 2003). Lembramos que o sociointeracionismo, antes de ser uma categoria de análise, é uma tendência pedagógica, pois, no campo da educação, o psicólogo russo Lév Semenovitch Vygotsky, no século XX, desenvolveu impor tantes estudos sobre o sociointeracionismo. Para ele o sociointeracionismo tem como principal elo a interação entre os indivíduos, ou seja, o autor entende o desenvolvimento do ser humano numa perspectiva sociocultural, isto é, uma relação dialética, onde o ser humano não somente internaliza, mas também intervém e transforma. (RESENDE, 2009).

O Quilombo do Mel da Pedreira: retratos do cotidiano

Essa CRQMP existe desde 1954, sendo que no ano de 1968 passou a se declarar protestante, particularidade, essa, que marca a identidade dessa comunidade, pois foi a única, no Estado do Amapá, reconhecida e titulada como uma comunidade quilombola evangélica. O título de domínio foi entregue no dia 21 de março de 2007, durante uma cerimônia no Palácio do Planalto, em Brasília – DF.

O território ocupado atualmente pela CRQMP é de 168,9090 ha, porém, em virtude das áreas destinadas a atividades agrícolas e reservadas à ocupação das futuras famílias compostas pelos descendentes dos atuais moradores locais, a área pretendida e demarcada, inicialmente, era de 2.199,4570 ha. De acordo com o Diário Oficial da União (DOU) de 2/2/2007, Seção 1, fl. 98, a área correspondente ao território da CRQMP foi reconhecida e declarada em 2.629,0532 ha. (BRASIL, 2007).

Quanto ao quantitativo de moradores na CRQMP, esse vem variando nos últimos anos, devido à constante migração para a zona urbana em Macapá – AP das pessoas mais jovens em busca de educação e melhor qualidade de vida. A maioria das famílias nasceu na comunidade, exceto os primeiros ocupantes que vieram de outras comunidades afrodescendentes do Estado do Amapá. A seguir, tecemos considerações a respeito de alguns aspectos que consideramos relevantes ao entendimento de nosso objeto de pesquisa.

Aspectos históricos, socioculturais e econômicos: garimpando vestígios da memória local

A preservação da memória é um tema que vem se destacando nos últimos anos, principalmente quando se trata da preocupação com a conservação e o registro da memória oral. Somos conhecedores de que a memória de um povo está baseada não somente nas recordações do passado, mas nas influências exercidas por várias instituições, como, por exemplo, a família, a religião, a comunidade local, dentre outras organizações sociais. Assim, o trabalho de reconstrução da memória se dará sempre a partir do coletivo, isto é, das noções comuns de um povo. Para Maurice Halbwachs

não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado para obter uma lembrança. É necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade. (1990, p. 34).

Portanto, salvaguardar a memória quilombola é preservar a memória histórico-cultural desse povo que, por muitos anos, esteve esquecida, mas viva na memória dos moradores mais antigos dos quilombos amapaenses. Para isso se faz necessário um preâmbulo histórico a respeito da CRQMP.

A CRQMP nasceu há mais de sessenta anos. Seus fundadores foram Antônio Bráulio de Souza e sua mulher Auta Augusta Ramos de Souza (já falecidos), ambos descendentes de negros escravizados. É pertinente ressaltar que esse resgate da memória local está fundamentado nos relatos orais e documentos primários de posse dos seguintes entrevistados: Participante I,1 Participante H2 e Participante J3 – os três atuais quilombolas considerados pela comunidade como os principais narradores, detentores e guardiães da memória da CRQMP.

Cabe destacar que o Participante H foi a primeira pessoa da CRQMP convertida ao presbiterianismo. Segundo ele, quando seu sogro Antônio Bráulio de Souza se mudou para a comunidade, sua família (que era da comunidade São Pedro dos Bois), também veio junto para ocupar essa região (avô, avó, mãe, pai e seu tio Manoel Maria).

De acordo com seu relato, observamos que o Participante H, antes da conversão, era católico e costumava frequentar as festas religiosas católicas que aconteciam nas comunidades de São Pedro dos Bois e de São Raimundo, mas, depois que passou a morar na CRQMP, começou a sentir desejo e curiosidade de conhecer a Bíblia Sagrada. Depois de algumas visitas de uma senhora vinda da cidade de Altamira, Município do Estado do Pará, em um culto em sua casa, autorizado por ele, o Participante H e seu irmão se converteram ao protestantismo. Uma semana depois, sua esposa também se converteu.

Passado algum tempo, após reflexões e relutância por parte de Antônio Bráulio de Souza, o Participante H perguntou ao seu sogro se ele não gostaria que trouxessem um pastor para realizar um culto em sua residência. De posse da autorização, convidou o pastor Paulo Araújo da Igreja Presbiteriana de Macapá para a celebração do culto. Nesse dia, estiveram presentes 12 pessoas. Por essa ocasião, Antônio Bráulio de Souza foi uma das pessoas presentes que se converteram ao presbiterianismo.

Antônio Bráulio de Souza, antes de 1968, era devoto de Santo Antônio, resoluto de ladainha, praticava a pajelança e, de vez em quando, fazia consultas aos espíritos para atender a pedidos de pessoas que o procuravam na comunidade. Por ocasião dessas consultas, Antônio Bráulio de Souza sempre acendia um charutão feito de casca de madeira de Tauari (planta nativa da região) e tocava um instrumento em formato de chocalho, confeccionado com miçangas e cuia, matérias-primas retiradas da mata amazônica.4

O Participante H ratifica as afirmações citadas quanto às práticas religiosas que eram realizadas antes da conversão ao protestantismo, pois, segundo ele, “rezavam missas e ladainhas, tinha um velho que rezava ladainhas, o meu sogro rezava ladainhas, meu irmão rezava ladainhas, o mais velho também”. Sobre as festas de santos católicos celebradas na comunidade, afirma que eram “festas do São Raimundo, a festa do São Sebastião, a festa de São Pedro”.

Dentre os diversos quilombos existentes e/ou reconhecidos no Estado do Amapá, nunca um quilombo sofreu tanta influência e/ou interferência em sua cultura como a CRQMP. Em relação à estrutura e organização econômicas, os moradores da CRQMP trabalham na produção extrativista, pois ainda vivem da pesca, da caça, da coleta de raízes e frutos. Além disso, trabalham na produção de mel com abelhas sem ferrão, produção de farinha, produção agrícola (plantação de milho e abacaxi) e criação de animais (porcos, búfalos, galinhas e peixes).

Alguns moradores também desenvolvem o artesanato em pequena escala para venda e/ou consumo próprio. Observamos que não há distinção entre mulheres e homens quanto à participação, no trabalho, de atividades de produção na comunidade, pois trabalham unidos, com respeito e cooperação. Nos últimos anos, as mulheres têm ganhado espaço nas atividades de produção artesanal, agrícola e pecuária.

Embora haja uma relação harmoniosa de cuidado e respeito entre as pessoas de ambos os sexos, do ponto de vista institucional e religioso, a CRQMP apresenta uma prática de organização patriarcal, já que os líderes políticos e religiosos da comunidade são todos do sexo masculino. Além disso, há respeito e obediência muito grandes para com os mais velhos e a liderança política da comunidade.

Ressaltamos que esses trabalhos desenvolvidos na CRQMP referidos, muitas vezes, estão voltados apenas ao consumo da população local, devido à comunidade enfrentar dificuldades na falta de apoio logístico e econômico para fazer o escoamento desses produtos. Além disso, a CRQMP fica distante do centro comercial da cidade de Macapá.

Esses problemas e dificuldades enfrentados pela comunidade nos fazem refletir sobre os estudos de Alain Touraine quando questiona a abordagem cultural que não contempla a economia. O autor nos ensina que falar de uma cultura sem mencionar os aspectos econômicos, é colocar mais peso na vida do pobre. (TOURAINE, 1998). Para o autor, “o enfraquecimento dos valores e das normas comuns acaba resultando no triunfo dos mais fortes e no aumento das desigualdades sociais”. (1998, p. 160).

Segundo Alain Touraine, “uma cultura democrática é aquela onde o regime [...] reconhece os indivíduos e as coletividades como sujeitos, isto é, os protege e encoraja em sua vontade de ‘viver sua vida’ e dar unidade e sentido à sua experiência vivida” (1998, p. 254), o que, a nosso ver, não vem acontecendo ou se efetivando na CRQMP.

Alain Touraine fala da importância de se compreender os movimentos sociais – nesse caso, as comunidades quilombolas – como movimentos que constroem sua própria identidade, movimentos de ações coletivas, que buscam alcançar mudanças, promovendo, assim, melhores condições de vida à comunidade. (TOURAINE, 1998).

Concordamos com Boaventura de Sousa Santos quando expressa bem a ideia de que precisamos reinventar a emancipação social, isto é, dar visibilidade às experiências e alternativas disponíveis (Sociologia das Ausências), evidenciando uma nova forma de entender a mudança social através de experiências e alternativas possíveis (Sociologia das Emergências). O autor afirma que devemos transformar as ausências em presenças, ou seja, atentar à diversidade local e/ou regional que tantas vezes é invisibilizada e/ou ignorada pelo saber ocidental. Assim, precisamos valorizar as práticas e experiências cotidianas, na perspectiva de entender as novas formas e mudanças sociais que vêm ocorrendo. Nesse sentido, a riqueza das experiências sociais não pode ser desperdiçada. (SANTOS, 2004).

Outra característica presente no imaginário dos moradores diz respeito à preocupação com a preservação ambiental. Brito (1999) lembra-nos de que a natureza sempre esteve ligada ao campo religioso, não pela sua magia e mistério, mas devido à natureza ser caracterizada como algo sagrado, separado do profano, sendo objeto de uma crença definida. É por isso que a identidade da CRQMP está muito ligada à questão religiosa e à posse da terra.

Tomando como referência alguns escritos já produzidos em relação à população negra no Estado do Amapá como as de Foster (2004), Videira (2009), Maciel (2001), Silva (2014), entre outros, percebemos, nesses estudos, que há indícios na cartografia da cultura quilombola, mais precisamente em relação aos seus rituais, uma cultura, cuja identidade é marcada pela herança de matrizes africanas, de tradição católica e indígena.

Para Manuel Castells (1999, p. 84), “as comunidades locais, construídas por meio de ação coletiva e preservadas pela memória coletiva, constituem fontes específicas de identidades”. Assim, acreditamos que a afirmação da identidade em comunidades locais, perpassa ainda pelo valor de suas expressões culturais, expressões essas que, em muitos casos, desapareceram por força da violência física, violência simbólica e/ou outros mecanismos de dominação como é o caso das condições impostas pela globalização e pelo sistema capitalista.

Ao perguntarmos aos participantes da pesquisa sobre a questão da identidade quilombola, sobre o que significava para eles ser quilombola, alguns responderam:

Primeiramente quilombola é a nossa raiz, somos descendentes de africanos [...]. Somos vistos hoje de uma forma melhor [...]. Hoje nós temos esse reconhecimento legal perante a lei que nos garante a segurança das nossas terras [...]. Então hoje por sermos quilombola é uma questão de orgulho. (PARTICIPANTE B – REPRESENTANTE DA IGREJA ASSEMBLEIA DE DEUS).

É muito importante porque nosso surgimento né aonde Deus fez a gente nascer. A gente valoriza muito isso porque a origem nossa vem daí do quilombo né [...]. A gente fica muito feliz porque muita gente é quilombola e fica negando a raça, a cor, mas nós ficamos felizes né a gente dá valor às nossas origens. (PARTICIPANTE C – REPRESENTANTE DO MINISTÉRIO DO DEUS VIVO E VERDADEIRO).

Primeiro, a alta afirmação das minhas origens da onde eu vim, o que eu sou, da minha consciência, essa minha alta afirmação. Tem a ver totalmente com isso, com a minha origem, da onde eu vim quais são nossos costumes, ser quilombola pra mim é isso. (PARTICIPANTE D – REPRESENTANTE DA AMORQUIMP).

As afirmações mencionadas demonstram que para os participantes da pesquisa, a questão do que é ser quilombola é uma questão de orgulho, uma questão que está muito ligada ao reconhecimento e à titulação da terra, das origens e da autoafirmação da identidade negra.

Quanto às práticas religiosas cristãs dos quilombolas da CRQMP, observamos que são diversas, mas a base está em apenas um livro: a Bíblia Sagrada. Na pesquisa de campo in loco, verificamos que há muito incentivo e estímulo por parte da liderança religiosa à leitura dos textos sagrados. Desse modo, essa prática ganha um lugar privilegiado nas discussões dentro da comunidade. Daí a importância da educação religiosa dos membros da comunidade no espaço das igrejas locais.

Religiosidade protestante diante da União dos Negros do Amapá: a prática da ética e a experiência do afro-protestantismo no evento “Encontro de Tambores”

A CRQMP passou por grandes transformações ao se tornar evangélica. Observamos que essa particularidade da CRQMP - não manifestar práticas religiosas africanas e/ou afro-ameríndia - tem levantado algumas discussões em torno das demais comunidades quilombolas no Amapá, que chegam a questionar a veracidade da titulação, do reconhecimento e da real identidade como comunidade tradicional africana.

Detectamos, por exemplo, em nossas visitas in loco, que, em algumas comunidades quilombolas de religiosidade de matriz afro, há muitos questionamentos por parte dos quilombolas sobre os hábitos, os costumes e os rituais africanos em torno da CRQMP que não são mais praticados. Lembramos que as comunidades tradicionais no Amapá, além de valorizarem sua cultura africana, têm conservado a matriz africana (candomblé e umbanda), a religiosidade afro-ameríndia e/ou o sincretismo religioso afro- católico como instrumento de tradição religiosa.

Assim, tendo como base esse contexto, perguntamos aos participantes da pesquisa na CRQMP se eles eram bem-recebidos nas comunidades quilombolas de matriz afro pelo fato de serem protestantes. Como resposta, o representante da Igreja Presbiteriana (Participante A) respondeu:

Nem todas, em algumas somos bem recebidos, mas nem todas não. Porque dizem que a gente perdeu a identidade que ninguém faz parte do mesmo grupo [...], mas é assim, nós não vamos agradar a todos né? [...] Sempre vai haver e sempre há pessoas que estão contra e outros que nos aceitam. (PARTICIPANTE A – REPRESENTANTE DA IGREJA PRESBITERIANA).

Já o representante da Igreja Assembleia de Deus (Participante B), informou-nos que a receptividade em outras comunidades quilombolas, é totalmente amigável. Segundo ele:

Sim. Até porque desperta muita curiosidade nos demais ou nas demais comunidades quilombolas né? [...] Não há nenhuma dificuldade da Comunidade do Mel em ser recebida em outras comunidades quilombolas. (PARTICIPANTE B – REPRESENTANTE DA IGREJA ASSEMBLEIA DE DEUS).

Entretanto, devido a essa particularidade e a grandes mudanças culturais e religiosas, por não atender mais aos preceitos africanos, a CRQMP ficou de fora, por muito tempo, dos eventos realizados pelas Comunidades Negras do Amapá denominados de “Encontro dos Tambores”, retornando somente no ano de 2013 com apresentações pautadas agora, pela sua identidade quilombola protestante.5

Segundo entrevista com os respondentes sobre a participação no evento “Encontro dos Tambores”, alguns responderam:

Meu comentário é que isso é uma das oportunidades mais que especial que Deus colocou em nossas mãos né? [...] Ali as pessoas estão realizando os seus trabalhos, sejam da magia negra, da macumba, seja do candomblé, [...] nós também temos a oportunidade de mostrar a cultura quilombola através do Evangelho. (PARTICIPANTE B – REPRESENTANTE DA IGREJA ASSEMBLEIA DE DEUS).

Tem discriminação pelo fato da gente ser protestante. Eles nos descriminam, até tentaram barrar a gente nesse evento [...] a gente ver a descriminação pelo fato da gente ser evangélico. (PA RTICIPANTE C – REPRESENTANTE DO MINISTÉRIO DO DEUS VIVO E VERDADEIRO).

Ouve muita resistência na realidade. Nós éramos excluídos do calendário cultural do estado né [...] houve uma abertura quando passamos a incluir esses instrumentos [...] eles viram nossa atividade e disseram agora vocês são adequados a se enquadrar. (PARTICIPANTE D – REPRESENTANTE DA AMORQUIMP).

Os entrevistados enfatizam, ainda, que, no primeiro ano, a resistência foi muito mais forte. Entretanto, a partir do segundo ano, o relacionamento ficou mais amigável, pois eram aplaudidos quando cantavam em apresentações. Além disso, ressaltam que isso se deve também à questão das leis brasileiras que os amparam por serem uma comunidade quilombola.

Observamos, no discurso dos pastores entrevistados, certa ênfase e orgulho da situação relatada por eles, ou seja, da experiência da primeira participação no “Encontro dos Tambores”, espaço voltado às celebrações e manifestações de religiosidade africana e afro-brasileira.

Durante a realização desse evento, por ocasião da “Semana Nacional da Consciência Negra” na capital do Estado do Amapá, há venda de comidas e bebidas típicas das comunidades negras. No evento, também há um momento de intensa religiosidade, que conta com a presença de descendentes diretos de escravizados que ainda moram nos quilombos, como no Quilombo do Curiaú no Amapá, o segundo quilombo mais antigo do Brasil.

O evento “Encontro dos Tambores” é um dos mais tradicionais do Amapá, reunindo comunidades de todo o Estado, que têm como principal expressão cultural a dança do Marabaixo,6 o Batuque,7 a Zimba,8 o Tambor de Crioula e o Sairé. A capoeira e outra manifestação cultural negra que faz parte dos festejos do Marabaixo. Em 2017 foi realizada a 23ª edição do evento no Centro de Cultura Negra do Amapá (CCNA) localizado no Município de Macapá - AP.

É pertinente destacarmos que a dança do Marabaixo, no Amapá, segundo Piedade Lino Videira, é hoje uma manifestação cultural popular afro-amapaense, que nasceu de diferentes etnias que foram transportadas de suas terras de origem para o Brasil. É uma mistura de dança, religiosidade e ancestralidade africanas que tem orgulho, determinação e resistência. É, ainda, um ritual que compõe várias festas católicas populares em oito comunidades negras da área metropolitana de Macapá e Santana no Estado do Amapá. (VIDEIRA, 2009).

Tendo como pressuposto que a religiosidade é um fenômeno que está presente em todas as sociedades, pois é tida como suporte para convivência, entendemos que embora a CRQMP apresente princípios protestantes em sua forma de vida, nos hábitos e nos costumes, não podemos desconsiderar seu reconhecimento como comunidade quilombola, pois demonstra, em sua essência, uma herança cultural negra.

Percepções sobre a educação escolar na CRQMP: experiências e vivências da escola quilombola Antônio Bráulio de Souza

Esse tópico está fundamentado em nossas observações in loco, análise documental, bem como nas entrevistas realizadas no período de setembro a outubro de 2016. Nesse período de obser vações no espaço escolar, percebemos que, embora seja uma escola de pequena estrutura física, é um espaço muito receptivo. Em todas as nossas visitas, fomos muito bem- recebidos, com carinho e atenção por todos.

Em se tratando especificamente do sistema educacional vigente na comunidade, percebemos que o mesmo não atende à demanda do quilombo, pois existe apenas uma escola em funcionamento. É a Escola Quilombola Estadual Antônio Bráulio de Souza, que oferece somente o Ensino Fundamental (do 1º ao 5º anos da Educação Básica) como modalidade de ensino.

Atualmente a escola conta com um total de 21 alunos matriculados no Ensino Fundamental. O ensino é oferecido no horário da manhã (das 7h30min às 11h40min) na forma de multisseriado9 devido à escola possuir somente duas salas de aula e três professoras em atividade de classe, sendo que uma fica na biblioteca para auxiliar nos trabalhos e pesquisas dos alunos. Entretanto, em situações pontuais, alguns alunos retornam no horário da tarde (das 14h às 17h30min) para reforço escolar e/ou reposição de aulas.

Segundo a direção da escola (Participante E), muitas vezes essas atividades que acontecem no contraturno também são prejudicas porque o mesmo transporte que leva o aluno pela manhã não pode fazê-lo à tarde, porque já tem compromisso para deslocar outros alunos a outras comunidades vizinhas.

Lembramos que, embora a modalidade de ensino multisseriado tenha diminuído nos últimos anos na educação brasileira, ainda é uma realidade muito presente em muitas localidades. Em algumas regiões, como é o caso de escolas localizadas na zona rural do Amapá, as classes multisseriadas são a única alternativa de estudo, devido a uma série de fatores como: falta de investimento em infraestrutura, espaço físico inadequado, número de professores reduzido, evasão escolar ou quantitativo muito baixo de alunos matriculados, entre outros fatores.

Esse tipo de oferta de ensino é um desafio para o professor, pois ele precisa lecionar diferentes conteúdos para meninos e meninas com idades diversas. Além disso, muitos profissionais não estão qualificados e preparados para esse tipo de ensino, enfrentado muitas dificuldades ao realizar atendimento individual e planejamento para segmentos diferentes numa mesma turma.Veja-se a Figura 1 que mostra os alunos em atividade de sala de aula:

Fonte: Acervo pessoal/pesquisa de campo – 2016.

Figura 1 – Alunos em atividade de sala de aula 

Segundo relatos dos participantes da pesquisa (Participantes E, F e G), a escola da CRQMP desenvolve suas atividades educacionais seguindo as diretrizes curriculares da base nacional. E, na escola, são feitas algumas adaptações para trabalhar temáticas sobre quilombo e religião. Além disso, um dos principais instrumentos de trabalho em sala de aula é o livro didático recebido do Ministério da Educação (MEC) que não é específico para a educação escolar quilombola.

Segundo um dos entrevistados (Participante E), as atividades didáticas voltadas à questão quilombola na escola são muito pontuais, acontecendo somente por ocasião de datas comemorativas, como, por exemplo, o “Dia Nacional da Consciência Negra”, o “21 de abril” (descobrimento do Brasil), entre outras.

Para os representantes da escola, a dificuldade na implementação da Lei 10.639/2003 no ambiente escolar se dá pela de conhecimento sobre as leis para a educação das relações étnico-raciais. Para o gestor escolar e uma das professoras (Participantes E e G), a dificuldade também se dá pela falta de experiência em áreas ou escolas quilombolas. Segundo eles, essa é a primeira vez que se deparam com esse tipo de ensino.

No decorrer das entrevistas, também perguntamos aos participantes sobre a existência de discriminação racial e intolerância religiosa na escola. As respostas foram as seguintes:

Não. Felizmente não, eles têm uma certa harmonia entre os alunos, a gente até elogia e a gente percebe questões de desavenças mais são coisas de crianças, com relação à religiosidade, de preconceitos. (PARTICIPANTE E – REPRESENTANTE DA DIREÇÃO ESCOLAR).

Já teve muito, quando eu cheguei aqui na escola pra trabalhar em 2009 nós tínhamos alunos que eles ficavam super inquietos tipo assim: [...] como eu tenho cor mais clara eu não sou negro, como eu tenho uma tia que é loira não é negra, entendeu? Então os outros que eram mais brancos, os quilombolas começavam a apelidar, aí eu comecei a observar, aí comecei a trabalhar com eles. (PARTICIPANTE F – PROFESSORA).

A maioria dos nossos alunos aqui o que eu percebo são evangélicos [...] eles perguntam “professora a senhora é crente? [...] Olha tem que ser crente”. [...] Eles perguntavam mesmo né. Mas não algo que eles sejam intolerantes é porque eles já estão acostumados com esta cultura, eles cresceram na cultura evangélica, mas não há coisa de intolerância de não aceitar. (PARTICIPANTE G – PROFESSORA).

Essas afirmações fazem lembrar Freire e Fagundez (1985), dois dos principais teóricos da área da educação, que explicam que a dimensão cultural, no processo educativo, é muito importante para a vivência da diversidade e da alteridade.

Quanto à questão específica do Ensino Religioso no espaço escolar da CRQMP, lembramo-nos de Junqueira (1995, p. 14) que expressa que não é “função do Ensino Religioso escolar promover conversões, mas oportunizar ambiente favorável para a experiência do Transcendente, em vista de uma educação integral, atingindo as diversas dimensões da pessoa”.

Além disso, o papel do Ensino Religioso Escolar não é discutir e/ou ensinar religiões, até porque alguma poderia ficar de fora. A perspectiva é discutir o elemento religioso, isto é, as manifestações religiosas na sociedade, a partir de temas (eixos norteadores), como, por exemplo, rituais, textos sagrados, entre outros temas dentro das religiões.

Assim, entendemos a educação escolar como um processo de desenvolvimento global da consciência e da comunicação entre educador e educando. E à escola compete integrar, numa visão de totalidade, os vários níveis de conhecimento: o sensorial, o intuitivo, o afetivo, o racional e o religioso. (PCNs, 2009, p. 44).

Em prol da diversidade religiosa, do respeito e da boa convivência, entre iguais e diferentes é necessário desconstruir certas pré-noções difundidas oralmente e através de poderosos meios de comunicação de massa sobre a importância do Ensino Religioso no espaço escolar. Cabe, sobretudo aos educadores (mas não apenas a eles), discutir a importância das religiões na formação da cultura e da sociedade brasileiras. Lembramos que diversidade, como afirma Cavalleiro (2001, p. 145), “é uma das principais características da cultura brasileira, causa imprescindível de nossa riqueza cultural”.

Quanto à estrutura física da escola, o estabelecimento, atualmente, não atende mais às necessidades dos alunos, pois conta somente com duas salas de aula, uma sala destinada à direção e secretaria escolar, uma cozinha e dois banheiros (um masculino e outro feminino) com chuveiro. Dentre os equipamentos, há: T V, computador, impressora entr e outro s equipamentos como: armários em aço, mesas, cadeiras, ventilador e objetos de cozinha (fogão, freezer, geladeira). A Figura 2 mostra um único espaço destinado à direção escolar e à secretaria da escola:

Fonte: Acervo pessoal/pesquisa de campo – 2016.

Figura 2 – Sala da direção escolar e secretaria da escola quilombola 

Quanto à biblioteca da escola, esse espaço é dividido com uma das salas de aula. O local é separado por uma parede de madeira. Segundo o Participante F,10 a biblioteca funciona como suporte para os trabalhos do professor em sala de aula. Entretanto, são encontradas algumas dificuldades devido ao espaço ser inadequado, pois há falta de equipamento, deficiência de livros e de outros materiais para complementação dessas atividades. A

Fonte: Acervo pessoal/pesquisa de campo – 2016.

Figura 3 mostra esse espaço: 

A escola, nos últimos anos, tem enfrentado alguns problemas, entre eles, a rotatividade de professores que têm passado por essa instituição. Segundo relatos dos entrevistados, desde o ano de 2010, a situação vem se agravando, pois a escola teve pelo menos a mudança de três pessoas que passaram pela direção escolar e de uns dez professores pela sala de aula, com exceção de uma professora quilombola que é efetiva e mora na comunidade. Somadas a isso, ainda há dificuldades de acesso à assistência, à saúde, aos programas sociais, provocando evasão dos estudantes e moradores que buscam esses serviços públicos na capital do Estado.

Considerações finais

Através da presente pesquisa, foi possível averiguar que os integrantes da CRQMP e ela mesma existem desde 1954. Eram devotos de Santo Antônio, resoluto de ladainha e práticas de pajelança, mas, no ano de 1968, passaram a se declarar protestantes, particularidade que marcou a identidade da comunidade, pois foi a única, no Estado do Amapá, reconhecida e titulada como uma comunidade quilombola evangélica.

Verificamos in loco a relevância da pluralidade cultural e religiosa em sua amplitude, trazendo a compreensão de que as crenças, valores culturais, memória, história e costumes de cada grupo são decisivos para a autoafirmação de sua identidade. Por meio da caracterização realizada dos sujeitos envolvidos nesta pesquisa, identificamos quem são eles, como vivem, como trabalham, como se relacionam, quais são suas crenças, dentre outros aspectos.

Ou seja, detectamos que na CRQM vivem 28 famílias, num total de mais de 142 habitantes. São pessoas bastante simples, pois moram em casas construídas, em sua maioria, de madeira de lei e suas atividades econômicas estão voltadas à agricultura, pecuária, apicultura e confecção de artesanatos.

A pesquisa possibilitou a percepção de quanto os laços familiares são fortes entre eles, assim como o valor e a importância do trabalho coletivo, da preservação da terra, em especial, a prática religiosa protestante, que faz todo o sentido a essa harmonia e vivência em grupo, pois a religião legitima as relações amigáveis por meio de suas crenças e da espiritualidade.

Os discursos, presentes nas falas dos entrevistados e demais moradores do quilombo, contribuem para a ressignificação da identidade local. Os conhecimentos, os valores ancestrais e a linguagem dos quilombolas da CRQMP levam a crer que as práticas culturais e religiosas atuais, nada mais são que uma releitura, ressignificação e/ou recriação que foram sendo feitas, ao longo desse processo de conversão, inclusive práticas como estratégias de evangelização, sobrevivência e manutenção da cultura negra na região.

Sobre as políticas de educação para as relações étnico-raciais, em especial para a educação escolar quilombola no Amapá, essas estão caminhando em passos muito lentos, pois são normalmente ações pontuais e fragmentadas, sem articulação com a realidade local de cada comunidade quilombola e que, muitas vezes, quando se apresentam, são de maneira genérica e superficial.

No caso específico da CRQMP, o que chama a atenção é que somente em 1977, oficialmente, chegou a educação escolar na comunidade, com a primeira etapa do Ensino Fundamental (antigo Ensino Primário – 1ª a 4ª séries), o qual permanece até hoje, não atendendo à necessidade local. Além disso, o ensino é ofertado na modalidade multisseriada, e o livro didático recebido pelo MEC – que não é específico à educação quilombola – é o principal instrumento do trabalho pedagógico.

No que diz respeito ao currículo escolar, observamos, na escola local, ausência de um currículo escolar construído a partir de valores e interesses da comunidade, da mesma forma, notou-se a ausência de projetos pedagógicos articulados sobre os conteúdos previstos pela Lei 10.639/2003, bem como uma educação escolar quilombola de qualidade. Acreditamos que a valorização da cultura e da religiosidade africanas, no currículo escolar quilombola da CRQMP, seria um elemento essencial para uma proposta pedagógica voltada a uma educação antirracista, plural e solidária.

Quanto à educação escolar quilombola, percebemos que muita coisa ainda precisa ser feita, pois a estruturação da educação quilombola, no Estado do Amapá, e a aplicabilidade da Lei 10.639/2003 se deparam, ainda, com um sistema educacional complexo e deficitário já que a maioria das escolas quilombolas não tem suporte e nem acompanhamento adequados. Igualmente, o acesso à continuidade da educação quilombola é muito difícil, pois muitos adolescentes, jovens e adultos saem da CRQMP por não terem acesso adequado à educação e/ou a possibilidade de dar continuidade a seus estudos. Ainda: a realidade da educação no campo é precária e muitas vezes somente na modalidade multisseriada. Ademais, há escassez de profissionais qualificados e com experiência em educação escolar quilombola.

Diante desse contexto, acreditamos que pensar em educação quilombola no Amapá implica, portanto, entender as relações existentes no dia a dia das pessoas e a relação delas com a terra, com o sagrado, com a cultura e as diversas formas de organização.

1Entrevista concedida aos autores no dia 29 de setembro de 2016, às 10h30min, na CRQMP.

2Entrevista concedida aos autores no dia 6 de outubro de 2016, às 11h, na CRQMP.

3Entrevista concedida aos autores no dia 28 de outubro de 2016. Atualmente a entrevista está morando na comunidade de Campina Grande, Km 21, no Estado do Amapá.

4As entidades oriundas da pajelança são muito comuns na Região Amazônica, sendo que as entidades espirituais incorporam, falam e interagem com as pessoas.

5O evento faz parte da programação da “Semana Nacional da Consciência Negra” realizada no mês de novembro, no Estado do Amapá.

6De acordo com o Calendário de Festas Populares do Estado do Amapá, em 16 de junho, comemora-se o “Dia Estadual do Marabaixo”.

7É a segunda manifestação cultual tradicional no Amapá. Dança praticada com mais intensidade na zona rural de Macapá - AP. Ao contrário do Marabaixo, que é o lamento do povo negro através dos seus “Ladrões”, o Batuque é alegria, é festa com ritmo forte, onde o homem, na dança, protege sua parceira, sempre a cortejando. A influência religiosa, assim como o marabaixo, está na ladainha, seguida da folia. (SILVA, 2014, p. 92).

8Dança típica do município de Calçoene, no Estado do Amapá. Praticada principalmente no distrito de Cunani. É uma dança de matriz africana que utiliza tambores confeccionados pela própria comunidade.

9As classes multisseriadas são uma forma de organização de ensino na qual o/a professor/ a desenvolve suas atividades, na mesma sala de aula, com várias séries do Ensino Fundamental simultaneamente, tendo de atender a alunos/as com idades e níveis de conhecimento diferentes.

10Professora na Escola Quilombola Antônio Bráulio de Souza responsável pelo apoio pedagógico na biblioteca, mas que, atualmente, está em sala de aula substituindo a professora que se encontra em licença-maternidade.

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Recebido: 04 de Julho de 2018; Aceito: 01 de Setembro de 2018

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