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Conjectura: Filosofia e Educação

versión impresa ISSN 0103-1457versión On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.spe2 Caxias do Sul  2018  Epub 17-Sep-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.especial.6 

DossiÊ Educação, Ética e Religião

A inserção dos Programas de Pós-Graduação em Teologia no sistema Capes: consequências para o campo#

La insersión de los Programas de Posgrado en Teología al sistema Capes: consecuencias para el campo

Evandro Ricardo Guindani* 

Elisa Maria Quartiero** 

Lucídio Bianchetti*** 

*Graduado em Filosofia pela Unifai - SP. Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor-Adjunto na Universidade Federal do Pampa (Unipampa). : evandroricardo1@gmail.com

**Pedagoga pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutora em Engenharia de Produção na linha de Mídia e Conhecimento pela UFSC. Professora aposentada pelo Centro de Ciências Humanas e da Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). : elisa.quartiero@gmail.com

***Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professor aposentado. Voluntário no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSC. Pesquisador 1B do CNPq. : lucidiob@gmail.com


Resumo

Neste artigo discutem-se as induções e os tensionamentos gerados pelo Sistema de Avaliação e Fomento da Capes nos processos de produção de conhecimento dos Programas de Pós-Graduação em Teologia (PPGTS). Problematiza-se a influência dos critérios de avaliação da Capes na produção/veiculação de conhecimento no campo epistemológico da Teologia, tendo como aporte teórico o conceito de campo de Bourdieu. Constata-se que o campo de conhecimento teológico – que na sua origem e essência trata da fé e do mundo transcendente – gradativamente, assume um lugar no campo científico, na busca do reconhecimento/credenciamento e do protagonismo no ranking dos Programas de Pós-Graduação com notas máximas na avaliação da Capes. Para a análise, realizou-se pesquisa em seis PPGTs do País, existentes em 2011 e um estudo de caso múltiplo em três desses programas com conceitos iguais ou superiores a 5 e com cursos de mestrado e doutorado reconhecidos pelas suas igrejas – católica ou protestante – em período anterior à inserção na Capes. A coleta de dados teve como base os seguintes documentos: fichas de avaliação dos programas emitidas pela Capes, proposta dos PPGTs em análise, produção docente e discente veiculada nos Currículos Lattes, análise das publicações nas revistas científicas dos Programas pesquisados, além de entrevistas com 22 professores dos PPGTs, que avaliaram os ganhos, as perdas e os embates decorrentes desse processo de reconhecimento. Os resultados da pesquisa apontam que a inserção no Sistema de Avaliação e Fomento exigiu dos Programas mudanças, estruturais e epistemológicas, tais como: alterações nas linhas de pesquisa, nas temáticas das teses e dissertações, bem como transformações nos tempos e meios de veiculação da produção docente.

Palavras-chave:  Programas de Pós-Graduação em Teologia; Campo de conhecimento; Capes; Avaliação stricto sensu

Resumen

En este artículo se discuten las inducciones y tensionamientos generados por el Sistema de Evaluación y Fomento de la Capes en los procesos de producción del conocimiento de los Programas de Posgrado en Teología (PPGTs). Se problematiza la influencia de los criterios de evaluación de la Capes en la producción/divulgación del conocimiento en el campo epistemológico de la Teología, teniendo como aporte teórico el concepto de “campo” de Bourdieu. Se constata que el campo de conocimiento teológico – que en su origen y esencia trata de la fe y del mundo trascendente – a los pocos asume un lugar en el campo científico, en la búsqueda del reconocimiento/acreditación y del protagonismo en el ranking de los Programas de Posgrado con calificaciones máximas en la evaluación de la Capes. Para el análisis, se ha realizado investigación junto a los seis PPGTs del país y un estudio de caso múltiple en tres de esos Programas con conceptos iguales o superiores a cinco con cursos de maestría y doctorado reconocidos por sus iglesias – católica o protestante –, en período anterior a la inserción a la Capes. La colecta de datos tuvo como base los siguientes documentos: fichas de evaluación de los Programas emitidas por la Capes, propuesta de los PPGTs en análisis, producción docente y discente vehiculada en los Currículos Lattes, análisis de las publicaciones en las revistas científicas de los Programas investigados, además de entrevistas con 22 profesores de los PPGTs, que analizan las ganancias, pérdidas y embates provenidos de ese proceso de reconocimiento. Los resultados de la investigación señalan que la inserción en el Sistema de evaluación y fomento ha exigido de los programas cambios, estructurales y epistemológicos, tales como: alteraciones en las líneas de investigación, en las temáticas de las tesis y asimismo transformaciones en los tiempos y medios que vehiculan la producción docente.

Palabras clave:  Programas de Posgrado en Teología; Campo de conocimiento; Capes; Evaluación strictu sensu

Introdução

O debate sobre as repercussões do Sistema de Avaliação e Fomento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), implementado na década de 1990 para organização e configuração da Pós- Graduação brasileira e, dentro dela, da Pós-Graduação em Educação,1 está presente em diversos estudos e pesquisas realizados na primeira década deste século, englobando diferentes focos: política pública (SGUISSARDI, 2006; HORTA; MORAES, 2005), avaliação e fomento (KUENZER; MORAES, 2005; DIAS SOBRINHO, 2004), gestão da Pós-Graduação (BIANCHETTI, 2009; BIANCHETTI; SGUISSARDI, 2009), produtivismo acadêmico (SGUISSARDI; SILVA JÚNIOR, 2009), produção do conhecimento (MOREIRA; VELHO, 2008), entre outros. O modelo de avaliação e fomento da Capes tem sendo implementado de tal forma que a Pós-Graduação brasileira, gradativamente, vem se tornando, cada vez mais, homogênea com a naturalização de ações, comportamentos e estratégias de avaliação e financiamento.

A despeito de contarmos com mais de 60 anos de existência desse órgão de avaliação e financiamento, persistem e aparecem novos focos de análise que demandam pesquisas na relação entre a atual proposta de avaliação, gestão e fomento da Capes e os Programas de Pós-Graduação. Nesse contexto, consideramos pertinente investigar como o campo de conhecimento da Teologia que – historicamente trata da fé e do mundo transcendente – gradativamente, assume o status de ciência, buscando o reconhecimento/credenciamento e passando a figurar no ranking dos Programas de Pós-Graduação que alcançam notas máximas na avaliação da Capes.

Na busca de adaptar-se aos critérios de avaliação da Capes, os PPGTs foram conquistando uma posição favorável no rankeamento da pós-graduação brasileira ao mesmo tempo que vieram passando por um processo de adaptação, caracterizando-se por uma transformação epistemológica, na qual vai havendo a passagem de um discurso sobre Deus para uma ciência de Deus, servindo a interesses terrenos.

Neste artigo, discutimos resultados de uma pesquisa de doutoramento em Educação, realizada no período de 2009 a 2012, sobre as induções geradas nos processos de produção de conhecimento dos PPGTs a partir da sua inserção no sistema Capes. Na pesquisa problematizamos a influência dos critérios de avaliação da Capes nos processos de produção do conhecimento no campo epistemológico da Teologia, tendo como aporte teórico o conceito de campo de Bourdieu (2005).

A metodologia envolveu entrevistas com professores/pesquisadores dos PPGTs no Brasil – seis no total – e um estudo de caso múltiplo2 em três desses programas em Teologia com conceitos iguais ou superiores a 5 (cinco) no período de realização da coleta de dados e que ofereciam cursos de Mestrado e Doutorado reconhecidos pelas suas Igrejas – católica ou protestante – em período anterior à inserção no Sistema Capes. O Quadro 1 permite visualizar o ano de início do stricto sensu em Teologia no Brasil, com as datas de institucionalização dos Mestrados e Doutorados, bem como o ano de inserção dos programas no sistema Capes.

Quadro 1 – IESs que oferecem cursos de Pós-Graduação Stricto Sensu em Teologia 

Instituição de Ensino Superior (IESs) Criação do Mestrado/Doutorado Inserção na Capes
Escola Superior de Teologia (EST) 1981 (M) 1990 (D)
2001 (M. Profissional)
1989
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) 1950 (M e D) 2002
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje) 1987 (M)
2002 (D)
1997
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRio) 1972 (M)
1979 (D)
1979
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) 1991 (M) 1993
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) 2008 (M) 2008

O estudo de caso múltiplo envolveu três PPGTs: o PPGT da EST, situado no Município de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul; o PPGT da Faje, localizado em Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais; e o PPGT da PUCRio, situado no Município do Rio de Janeiro. A coleta e análise de dados (entrevistas e análise documental) incidiram sobre um recorte temporal que envolveu três momentos dentro da constituição desses programas:

1) Primeiro momento: Pré-Capes (1983 a 2000)

Investigação do período inicial de inserção do modelo Capes de avaliação entre os programas. Nos três programas analisados, a inserção ocorreu entre 1987 e 2002. Consideramos, a partir da análise dos documentos disponíveis nos programas (relatórios anuais, produções nas revistas dos programas, proposta curricular) que, nesse período, a pressão ainda era pequena e sem grandes alterações na organização e no funcionamento que vinham implementando antes da entrada no modelo. Constatamos, nesse período, o predomínio de produções endógenas nas revistas dos programas e voltadas a temáticas tradicionais da Teologia (cristologia, mariologia, sacramentos, dogmas da Igreja, vida de santos, entre outros). Algo coerente se considerarmos que os PPGTs de estudo de casos iniciaram suas atividades na Pós-Graduação Stricto Sensu com o reconhecimento exclusivo de suas Igrejas. O período de 17 anos (entre 1983 e 2000) contempla, portanto, uma proximidade tanto com a criação dos PPGTs, que ocorreu entre 1972 e 1987 (PUC-Rio em 1972, EST em 1981 e Faje em 1987) quanto com o período de meados dos anos de 1990, em que a Capes, conforme Kuenzer e Moraes (2005) e Bianchetti (2009), adotou um modelo de avaliação que induz a uma maior produtividade, com uma base forte na regulação e no controle. Esses fatores induziram os PPGTs a reorganizarem-se não apenas por critérios de sua própria área, mas considerando critérios avaliativos da Capes como um todo.

2) Segundo momento: consolidação do modelo Capes (2001 a 2006) Esse momento refere-se ao período em que os PPGTs procuraram criar novas formas de organização na busca pela adaptação aos critérios mais acirrados e rígidos da avaliação implantada pela Capes, principalmente a partir de 2000. Esse momento contempla as duas avaliações trienais (2001 a 2003 e 2004 a 2006) realizadas pelos programas analisados dentro do modelo Capes.

3) Terceiro momento: as mudanças nos PPGTs a partir do modelo Capes (2007 a 2010)

Esse momento compreende o período referente à avaliação trienal analisada, no qual foi possível perceber os efeitos da indução da Capes nos PPGTs, principalmente nos aspectos referentes às temáticas das produções dos pós-graduandos e docentes, sua aproximação com as demandas teológicas mais atuais e a abertura de cursos de Pós-Graduação em “Ciências da Religião”. Salientamos que o objetivo, ao realizar a investigação e análise nos períodos acima descritos, esteve centrado na averiguação das diferenças e tensionamentos entre o processo de institucionalização – quando os PPGTs estavam unicamente sob a regulação de suas Igrejas – e o processo de inserção na Capes – principalmente a partir de 2007 quando os resultados do trabalho de adaptação aos critérios de avaliação da Capes estavam concluídos.

As entrevistas foram realizadas com dois grupos de sujeitos: dez pesquisadores da área da Teologia não vinculados aos PPGTs do estudo de caso múltiplo, com o objetivo de obter uma aproximação, um olhar privilegiado sobre o campo de conhecimento teológico e um segundo, composto de 12 professores, quatro de cada um dos três PPGTs do estudo de caso. Os critérios para a escolha dos três programas que seriam objeto do estudo mais aprofundado eram dois: o tempo de vinculação ao programa e ter atuação antes e depois da inserção no sistema Capes. As entrevistas foram centradas nos seguintes aspectos: a) a constituição do campo epistemológico da Teologia; b) as mudanças nas linhas de pesquisa e na produção docente dos programas a partir da entrada no Sistema Capes; e c) a avaliação que realizavam sobre esse processo.

Por meio desta pesquisa, foi possível evidenciar como um paradigma avaliativo pode afetar determinado campo de conhecimento, causando uma inflexão epistemológica, principalmente quando os programas buscam alcançar o topo do ranking do Sistema Capes. Há uma zona de tensão entre a produção de conhecimento religioso e as determinações indutoras do organismo de avaliação, regulação e financiamento da Pós-Graduação no Brasil.

Neste artigo, centramos a discussão em dois movimentos: a constituição do campo de pesquisa teológico e as implicações da inserção no sistema Capes. Para esse segundo momento, utilizamos os depoimentos de docentes/ pesquisadores dos programas selecionados para o estudo de caso múltiplo dentro dos objetivos da pesquisa.

O campo da Teologia na gênese e expansão da universidade

A Teologia constituiu-se, no Medievo, como um campo definido e delimitado, com objetivos claros e determinados sobre sua função no mundo do conhecimento naquele contexto histórico. Durante mais de nove séculos, a Teologia conseguiu manter-se como um campo praticamente imutável e endógeno, no sentido de produzir e alimentar um mesmo conhecimento voltado estritamente aos interesses intraeclesiais do cristianismo.

Ao fazer uma análise da trajetória da Teologia, é possível compreender essa dialética entre posições adquiridas e uma posição a ser conquistada por meio da concorrência e da competição que hoje verificamos na busca dos PPGTs de alcançar um “lugar ao sol” no mundo competitivo da Pós- Graduação. Para Bourdieu (2005, p. 69) a teoria geral da economia dos campos permite descrever e definir “a forma específica de que se revestem em cada campo, os mecanismos e os conceitos mais gerais como capital, investimento e ganho”. Ou seja – no nosso caso específico – Quais serão os mecanismos usados pela Teologia para manter e conciliar seu capital adquirido em lutas anteriores com a busca de novos ganhos no mundo atual?

A Teologia (como campo de conhecimento), tem passado por grandes transformações e, mais recentemente, veio empreendendo a busca por um status acadêmico. No período medieval, é a busca de fundamentos filosóficos às elaborações teológicas que vai fazer com que a Teologia procure um perfil de ciência. Como analisa Zeuch, “foi o interesse constitutivo do pensamento cristão de certificar-se de sua verdade no campo do pensamento universal”. Para esse autor, a Teologia apresenta-se como “uma proposta viável de conhecimento da verdade e da realidade do mundo e do homem, da sua origem, do seu sentido e fim e de sua tarefa neste mundo”. Em decorrência, a “questão da cientificidade da Teologia, então, não é tema secundário, mas ocupa um lugar preponderante para a autocompreensão da fé cristã desde o século XIII”. (2006, p. 7).

Ao abordar a especificidade do campo religioso, Bourdieu assinala que a racionalidade, entrando no campo religioso, tem a função também de auxiliar no processo de exegese feita em cima dos textos bíblicos pelos sacerdotes. Dessa forma,

houve a necessidade de conferir a mitos ou ritos tornados obscuros um sentido mais ajustado às normas éticas e à visão de mundo dos destinatários de sua prédica. Assim a filosofia e a teologia passam a ser instrumentos dessa adaptação de um saber “desorganizado” para um saber sistematizado e teleologizado, ou seja, com uma finalidade implícita. (2005, p. 35).

É importante destacar que essa caminhada de um saber transcendente (espiritual) que se aproxima do saber imanente (racional) se dá a partir de uma finalidade. Para Soares e Passos (2008) a busca de recursos racionais pela Teologia, para elaborar seu discurso, se articula a finalidades éticas decorrentes da fé processada. O campo de investigação da Teologia vai se estruturar, buscando a ciência e a razão como suas servas, ou seja, para atender às suas finalidades, sendo que, dentre elas, a principal é tornar compreensível a Revelação e entender como ela se manifesta no mundo.

Na trajetória da estruturação do campo de conhecimento teologia, algo fundamental foi sua institucionalização. Ao atingir o status de um conhecimento superior e único, estabelece seu método de ensino expresso na escolástica e, posteriormente, alicerça suas bases em duas instituições congêneres: a Igreja e a universidade nascente. A Teologia consegue, então, atender a duas demandas: uma mais interna, voltada à formação de sacerdotes e outra na formulação teórica dos dogmas para defender a Igreja dos ataques dos hereges. Ao falar sobre a estrutura da distribuição do capital religioso, Bourdieu (2005) afirma que existem tipos opostos de competência religiosa: de um lado, aqueles que detêm o domínio prático de um conjunto de esquemas de pensamento numa modalidade pré-reflexiva e, de outro, aqueles que detêm o domínio erudito formado por especialistas pertencentes a uma “instituição socialmente incumbida de reproduzir o capital religioso por uma ação pedagógica expressa”. (p. 40). Aqueles que detêm o domínio prático seriam os sacerdotes; de outra parte, os detentores do domínio erudito seriam os intelectuais teólogos que atenderiam a funções externas da instituição religiosa.

Ao abordar a especificidade da legitimação de um campo religioso, Bourdieu (2005) ressalta a necessidade de uma ação pedagógica, o que nos faz entender, então, o surgimento da universidade nesse contexto. De acordo com Rossato (2005), a universidade foi inspirada no Medievo cristão, sob a proteção da Igreja, tendo como base a Teologia, o que acarretou, mais tarde, o interesse eclesial em fundar universidades com o objetivo específico de garantir a integridade da fé católica contra as heresias.

No final da Idade Média, a Teologia torna-se a responsável pela estruturação e legitimação da universidade. De acordo com Rossato (2005, p. 26), para mostrar fidelidade à Igreja Católica a universidade se autodenominava “mãe de todas as ciências e madrasta das heresias”. A universidade como uma importante instituição que se perpetua até os dias atuais torna-se, por intermédio da Teologia, um novo espaço de sobrevivência e legitimação dos interesses da Igreja. Para Bourdieu (2005, p. 52) as crenças e práticas designadas cristãs devem sua sobrevivência, ao longo do tempo, “à sua capacidade de transformação à medida que se modificam as funções que cumprem em favor dos grupos sucessivos que as adotam”. Ou seja, para um público mais erudito e elitizado que busca um conhecimento universitário, a Igreja passa a exercer, por meio da função do teólogo, não mais e simplesmente a administração de rituais e cultos, mas a transmissão de uma verdade teologizada. Há, assim, a continuidade de um trabalho teológico que perpetua o capital religioso.

Consoante Rossato (2005), no final do século XIII, havia 22 universidades constituídas por toda a Europa gozando de grande prestígio, fomentando o desenvolvimento da Teologia como uma relevante área do conhecimento. No entanto, principalmente a partir do século XVIII, as novas descobertas, no campo das ciências naturais, passam a interessar mais do que as disputas de fé, e a Teologia perde a centralidade que havia conquistado na Idade Média: fica reduzida à esfera da Igreja. A ciência torna-se praticamente independente da Igreja,3 canalizando todos os esforços em áreas do conhecimento compatíveis com o desenvolvimento econômico. E, nesse novo contexto, a Teologia vai disputar espaço com outras ciências dentro das instituições de ensino ou ficar reduzida à Igreja.

No Brasil, as faculdades de Teologia, desde os primórdios, foram fundadas com o fim específico de assumir a formação de sacerdotes ou pastores. De acordo com Anjos (1996, p. 19), na Igreja Católica, “a destinação do esforço teológico que mais aparece se endereça à formação do clero e das pessoas integrantes das comunidades”. Posteriormente, abriram- se à formação de leigos e também foram criados cursos de Mestrado e de Doutorado em Teologia, antes mesmo da própria criação e funcionamento da Capes. Interessante é observar que a preocupação da Igreja com a formação de leigos reflete a necessidade que o catolicismo percebe de certa secularização. Bourdieu (2005) aponta que a manutenção do campo religioso como um poder temporal e não apenas espiritual, depende da forma como a instituição Igreja mobiliza os leigos para desempenhar esse papel de disseminadores e tradutores dessa dimensão espiritual para a dimensão temporal. Daí se compreender a importância que a Igreja vai dando ao fato de ocupar o espaço das instituições, mais precisamente, da universidade.

De acordo com Passos (2008, p. 170), no Brasil, a Teologia esteve praticamente fora da universidade desde a criação dessa na década de 1920. Com a implantação das universidades católicas, a Teologia é inserida, porém, fica na “condição de estranha e distante das dinâmicas acadêmicas universitárias, a começar por sua condição de curso livre e ligado diretamente às Igrejas”. Para o autor, a Teologia permanece na universidade, todavia reforçando uma separação entre conhecimento teológico e conhecimento científico em que a “justificativa institucional de sua presença outorgou- lhe uma legitimidade mais eclesial do que epistemológica entre as áreas de conhecimento e os demais cursos universitários”. Pode-se dizer que com “a inserção institucional e até geográfica no seio das universidades, a Teologia continuou reproduzindo a separação moderna entre racionalidade científica e racionalidade teológica em termos clássicos, entre razão e fé, e em termos modernos, entre Igreja e Estado”. Nesse sentido, permaneceu “diretamente subordinada às políticas eclesiais e pastorais das Igrejas, reproduzindo (e até produzindo) um saber sem os vínculos epistemológicos e políticos com a dinâmica universitária” (p. 170).

Percebemos que a Teologia, mais especificamente na universidade brasileira, vai travando uma luta pelo seu reconhecimento civil e pela defesa de sua identidade acadêmica. Com relação ao stricto sensu em Teologia, que é o objeto de análise neste texto, existem atualmente, no Brasil, quatro IESs que oferecem Mestrado e Doutorado, e duas que oferecem apenas Mestrado, totalizando seis programas. Desses, cinco são de confissão católica e um, protestante.

A trajetória da Pós-Graduação em Teologia, no Brasil, possui uma especificidade em relação a outros programas, pelo fato de estar sob a regulação e o financiamento da Igreja, seja ela protestante, seja ela católica. Alguns Mestrados e Doutorados tinham uma caminhada de mais de 50 anos de atividade, antes de serem inseridos na Capes, como é o caso do Mestrado e Doutorado em Teologia da PUCSP, que foi institucionalizado eclesiasticamente, em 1950 e apenas em 2002 se inseriu na Capes. A Faje de Belo Horizonte também abriu seu Mestrado em 1987 e foi recomendado pela Capes em 1997.

Oliveira (1996) analisa que a busca pelo reconhecimento civil dos cursos de Teologia deve-se mais às suas vantagens econômicas do que propriamente a um interesse da Igreja em abrir-se ao diálogo com outras ciências, pois tanto a Capes quanto o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) têm estimulado a área com concessão de bolsas e viagens aos estudantes e professores. Para o autor, esse reconhecimento deve-se a vários fatores, dentre eles, à qualificação do corpo docente, que, com o investimento da Igreja, tem se formado em importantes universidades europeias. Podemos concluir que a busca pela inserção no sistema Capes garante legitimidade e propicia financiamentos. Em contrapartida, paga-se um preço: tem que se submeter a um padrão praticamente único de parâmetros uniformes de avaliação. (BIANCHETTI, 2009).

Um novo espaço para a Teologia: a Pós-Graduação brasileira e o Sistema Capes de Avaliação

Neste item, destacamos a percepção dos professores/pesquisadores que atuam nos PPGTs sobre a busca de reconhecimento civil da Teologia com a consequente inserção no Sistema Capes. Entre esses sujeitos, é consenso que a Teologia, no Brasil e na América Latina, possui uma longa caminhada e trajetória na produção e transmissão de conhecimentos. Independentemente do reconhecimento civil, a Teologia estrutura-se como campo de conhecimento e exerce um importante papel tanto na formação dos quadros para suas Igrejas como na oferta de subsídios para movimentos sociais por meio de reflexões teológicas.

Os teólogos entrevistados defendem que, antes de se falar em reconhecimento civil da Teologia, é preciso reconhecê-la na sua densidade teórica e relevância social. Para uma das entrevistadas, a Teologia já possuía um rigor metodológico, que seguia padrões alemães, no caso das instituições protestantes. Segundo ela, “havia um rigor que não veio com a Capes, era anterior”. Ela lembra, por exemplo, “de artigos publicados na revista do programa que apresentavam discussões com réplicas e debates entre autores alemães e latino-americanos, criando toda uma cultura científica”. Outro entrevistado, do mesmo programa, de orientação luterana, ressalta que a Teologia no Brasil estava totalmente inserida no Exterior, recebendo apoio financeiro, bem como em constante diálogo com os campos educacional e social. Segundo ele, “olhando em retrospectiva, a demanda que estava se colocando no mestrado era em nível de doutorado, com dissertações bem profundas, densas”.

Nas instituições católicas também é possível perceber uma longa trajetória de produção de conhecimento, anterior à entrada dos PPGTs na Capes, conforme relata um professor: “Em 1986 começou a abrir mestrado e doutorado em Teologia com reconhecimento eclesiástico”.

Todos os entrevistados manifestaram-se favoráveis à busca de reconhecimento civil da Teologia tanto em nível de graduação como no stricto sensu. Porém traçam considerações críticas quando se referem à forma como a Teologia buscou legitimidade nos campos científico e acadêmico. Um dos entrevistados entende que essa legitimidade possui dois caminhos que precisam ser percorridos paralelamente, que é o político e o epistemológico: “Esse processo de legitimação tem um lado epistemológico, estatuto suficiente, tem que ter teoria, método e tem um lado político, institucional, comissões, grupos de pesquisa, universidades que permitem a uma área existir ou não”.

É possível constatar que os pesquisadores da área de Teologia estavam convictos da necessidade de enfrentar o desafio de adaptação à Pós-Graduação brasileira, e a Capes foi entendida por muitos como uma aliada nesse processo, principalmente na visão de professores vinculados aos PPGTs que atuaram, também, como avaliadores de programas pela Capes:

A Teologia não estava habituada com o meio acadêmico, sempre teve uma cidadania acadêmica, mas estava distante nos últimos anos, dialogava mais com a Igreja e depois com a academia. Muitos professores hoje reclamam da ditadura da CAPES, que tem que produzir para atender aos critérios da avaliação. Então, duas coisas, primeiro: se nós queremos as bolsas, a gente tem que entrar no sistema.

A entrada na Capes apareceu como uma possível e vantajosa saída encontrada pelos programas para não ficarem no isolamento de suas Igrejas, principalmente na sua dependência financeira. Porém essa entrada teve um preço, como declaram alguns professores entrevistados ao falarem sobre essa inserção: “Do ponto de vista da organização, entraram uma série de exigências. Do ponto de vista do ensino, sinto uma pressão muito forte, no sentido de ser menos teológico. Nem sempre quem avalia tem uma ideia do que seja Teologia”. Constatamos, no discurso dos entrevistados, algumas contradições na compreensão do que a Capes representou para seu programa: ora uma mão amiga que ajuda na “organização da casa”, ora um estranho que entra na casa alheia querendo dar conselhos e realizar mudanças. Observamos a partir desses relatos, que a maioria reconhece que houve um grande esforço dos PPGTs nesse processo de adaptação, de mudança de práticas e aquisição de nova cultura acadêmica, algo estranho aos teólogos. Cabe aqui retomar o conceito de campo que fundamenta nossa análise dos programas, especificamente, quando Bourdieu (2004) se refere às vantagens que posições adquiridas, em lutas anteriores, podem trazer à luta concorrencial dentro de um campo científico.

O lugar que a Capes oferece à Teologia – uma subárea da Filosofia – provoca nos professores/pesquisadores que atuam nos programas uma preocupação a mais, pois cria um tensionamento que resulta da necessidade de diferenciação e autojustificação que antes não eram necessárias, como analisa um deles ao observar que “a área é uma subárea da filosofia que reúne duas epistemologias: Teologia e Ciências da Religião”. Mesmo reconhecendo que há “uma tensão criativa e positiva, porque a Teologia sempre praticou a interdisciplinaridade”, considera que as “Ciências da Religião olha(m) a Teologia com suspeita, como se não fizesse uma ciência séria porque é confessional”. Nesse sentido, avalia que estão todos juntos, no mesmo barco, “mas, há uma tensão”. Segundo ele, “muitos em Ciências da Religião queriam uma comissão só deles, mas não existe na árvore do conhecimento Ciências da Religião, apenas Teologia. Acho que poderá ser criada, no futuro, uma subcomissão de Ciências da Religião”.

Para um dos coordenadores dos programas analisados a relação entre Igreja e Capes é um pouco tensa: “A Capes privilegia muito o quantitativo, essa é a preocupação, indexação, produtividade e não necessariamente qualidade. Então, a tensão é como você equaciona isso”. Ressalta que isso contraria o perfil dos professores dos PPGTs: “Meus professores não foram formados nessa tradição, assumem uma missão de teólogo, de vocação e para a Capes isso não conta”. Para ele, a tensão é forte quando é preciso cobrar e ao mesmo tempo respeitar o professor, pois: “Tem professor que escreve menos ou o que ele produz e escreve não entra no perfil curricular”.

Com relação aos PPGTs católicos, um fator que envolveu bastante esforço conciliatório entre as duas instituições reguladoras – Igreja e Capes – foi a seleção dos candidatos às vagas nos programas. Segundo um dos entrevistados, “a Sapientia Christiana4 vai dizer que ninguém pode ter acesso ao mestrado em Teologia sem ter graduação em Teologia. Por isso, dentro do programa, não aceitávamos alunos sem graduação em Teologia”. Segundo ele, “antes das exigências da Capes, isso permitia que alunos que vinham de seminários entrassem diretamente no nosso mestrado”, porém, após a inserção na Capes, não foi mais possível fazer isso, pois “o candidato ao mestrado precisa ter uma graduação reconhecida e isso acaba incidindo no perfil dos nossos alunos, pois para a Capes basta ter qualquer graduação”. Para um ex-coordenador de programa, Roma é mais maleável que a Capes. Ao explicar sua afirmação, comenta que “em nível de pós- graduação, nós temos muita liberdade na esfera romana. Não sentimos dificuldade em termos de conteúdo”. E complementa: “Roma tem poucas exigências formais, e a Capes tem muitas. A nomenclatura mudou, nós usamos um nome para Brasília [sede da Capes] e outro para Roma”. O que lhe permite concluir: “O mais importante é Brasília, em função do reconhecimento”.

Um aspecto em que Roma parece se preocupar mais do que a Capes é em relação ao corpo docente. Um dos coordenadores de um dos programas afirmou: “Para manter o título eclesiástico eu tenho que ter um número x de professores com diploma eclesiástico”. Para a Capes, segundo ele, é irrelevante a questão de o diploma ser eclesiástico ou não. Outra diferença, entre as exigências da Santa Sé e as da Capes refere-se aos conteúdos e à preocupação com a manutenção da confessionalidade. Segundo enfatiza um dos depoentes,

a Sapientia Christiana tem preocupação com conteúdo e a CAPES não. A questão da confessionalidade, por exemplo. A Santa Sé bate na tecla da confessionalidade, do conteúdo, da estrutura dos cursos que estão sendo oferecidos. O corpo docente tem que ser católico. Isso, como coordenador, dá para administrar bem, pois a CAPES não interfere no conteúdo. Isso ajuda a gente a não ter maiores problemas. Por outro lado, a forte exigência da CAPES quanto à periodicidade da produção, está mais livre para a Sapiencia Cristiana.

Essa indiferença da Capes com relação à confessionalidade parece não ser algo tão tranquilo assim, na opinião de outra entrevistada, que comenta a declaração de um dos coordenadores da Comissão de Filosofia da Capes: “Na primeira vez que fui à Brasília, o coordenador veio conversar com a gente, com a subárea de Teologia, e disse que era preciso descristianizar essa Teologia”. Houve, então, necessidade de mudança nas nomenclaturas das linhas e disciplinas oferecidas. Como exemplo, cita uma alteração realizada no seu programa: “De Bíblia sagrada passamos para textos sagrados.”

Ao relacionar as mudanças ocorridas em vista da inserção na Capes, uma ex-coordenadora falou sobre o número de créditos necessário para ser cursado no seu programa, que foi alterado em virtude da entrada no sistema Capes e destaca as diferenças do que chama “períodos pré e pós Capes”:

A CAPES pode interferir quando diz que os mestrados devem ser em dois anos. Então ela não olha com bons olhos para o mestrado que tenha um grande número de créditos, acha que isso vai atrapalhar a qualidade da tese, que não vai dar tempo de fazer a dissertação. Eu acho que deveríamos ter um maior número de créditos para qualificar melhor nosso docente. [...] A exigência da CAPES atrapalhou um pouco isso. Nós estaríamos totalmente dentro do que a Santa Sé exige, quando tínhamos um maior número de créditos. Mas não dentro do que a CAPES coloca.

Para essa ex-coordenadora, houve uma perda de qualidade no processo de formação dos pós-graduandos, pois, ao cursarem um menor número de créditos, ela analisa, que eles têm menos condições de aprofundar os conteúdos.

Vale ressaltar que as manifestações acima foram de entrevistados vinculados aos PPGT católicos. É preciso entender que os protestantes possuem uma relação diferente com sua confessionalidade, que é muito mais ecumênica, avessa à centralidade de poder. O coordenador do PPGT de confissão protestante, em análise, quando questionado sobre quais são as necessidades e formas de “prestação de contas” que se tem para com a Igreja que mantém seu programa, respondeu: “Não, absolutamente nada, nem mandamos relatório. O que acontece, mas aí não posso informar com detalhes, é que pode haver algum relatório por parte da Instituição Igreja”. Ao que ele se refere é que a Igreja local, onde a IES está inserida, pode mandar relatórios para Genebra (sede da Igreja) com relação às atividades desenvolvidas pelo PPGT, se quiser.5 Foi possível constatar que o corpo docente do PPGT protestante é bastante heterogêneo, no que se refere à confessionalidade.

Ao avaliar a inserção dos programas na Capes, todos os entrevistados consideram que foi um passo importante à Teologia no Brasil, tanto no que se refere a uma maior visibilidade civil quanto à organização das atividades dentro do PPGT. Um dos fatores que tornou a inserção vantajosa, segundo o grupo de entrevistados, foi a ajuda financeira recebida a partir dos altos conceitos atingidos pelos programas em análise. Outro aspecto ressaltado foram os efeitos positivos da incorporação dos critérios da Capes, que ajudaram os programas a ser mais profissionais: “Essa questão das linhas de pesquisa, do Lattes, ninguém tinha preocupação com isso. A Capes foi fundamental para nós, o antes e o depois. Durante muitos anos, fazíamos como nós achávamos.” O mesmo entrevistado também aponta à questão do tempo de titulação como um aspecto que melhorou com a pressão da Capes: “Do ponto de vista do tempo de titulação, antes éramos mais flexíveis, e, graças à pressão da Capes, melhorou”. Houve, segundo ele, uma maior regularidade na entrada e saída dos pós-graduandos.

Os ganhos financeiros e a necessária reorganização interna são um discurso uníssono entre os entrevistados. Salientam que a Teologia nunca tinha vivenciado a experiência de ser olhada por alguém de fora. Como explicita um dos coordenadores: “A Teologia não estava habituada com esse tipo de avaliação externa, com exigências externas, que às vezes soam estrangeiras para a Teologia, como produzir em periódicos indexados.” No entanto, com relação à avaliação da produção científica dos pós-graduandos e docentes dos PPGTs, a maioria dos entrevistados tece críticas à metodologia da Capes, ao afirmar que essa avaliação pode ser tão perversa a ponto de fazer com que a Teologia perca sua essência, sua alma, como analisa um dos entrevistados: “A Teologia é uma ciência que tem uma epistemologia, não deve ter medo de ser avaliada, mas não estamos acostumados com isso, por isso enquanto não correspondemos às exigências, a lógica pode ser perversa”. E conclui: “Se entrarmos em uma ideia de que só tem que produzir, produzir, perde-se o foco”.

Considerações finais

O campo de conhecimento teológico tinha uma história, e agora, após sua inserção no sistema Capes, está em processo de reconstrução dessa história e precisa conservar determinado habitus que o identifique com a Teologia. Necessita incorporar um novo habitus que permita desenvolver dispositivos para disputar um novo jogo: a disputa pelo ranking dos conceitos na Capes.

Ao abordar a passagem de um campo para outro, Bourdieu (2004) afirma que, para entrar no jogo, na lógica desse novo campo é necessário converter o habitus originário em um habitus específico, requerido pela própria entrada no jogo. A lógica desse novo campo vai se instituir em estado incorporado na forma de um habitus específico.

Podemos então considerar que a adaptação do campo de conhecimento teológico ao campo dos critérios de avaliação da Capes, para os nossos entrevistados, apresenta-se no geral como algo natural, como uma continuidade, ou seja, a aquisição de um novo habitus esconde o essencial: o estatuto teórico de um campo de conhecimento. Aqui podemos resumir várias falas dos coordenadores quando afirmam que as áreas do conhecimento, por exemplo, continuam as mesmas, a despeito da inserção na Capes, que as mudanças que ocorreram foram apenas em relação a nomenclaturas, ou seja, mudou “a nomenclatura sim, mas o perfil não”, afirma um deles. Ora, quando em um dos PPGTs analisados, conceitos tão caros à Teologia como Teologia Moral e Cristologia deixam de ser nomeados nas linhas de pesquisa e áreas de concentração, significa que esses grandes temas poderão não ser mais alimentados teoricamente, uma vez que os programas são o espaço de produção de conhecimento e qualificação de pesquisadores para a área teológica.

O fato de a avaliação ser realizada pelos próprios pares dos Programas também torna essa imposição mais leve e com uma roupagem caseira, em que, segundo um docente entrevistado “entramos em outro campo, mas continuamos em casa”. Outro fato é os docentes olharem para a Capes como uma instituição que está ajudando, como afirma outro professor em uma perspectiva que pode ser considerada tautológica: “a grande vantagem da Capes foi ajudar a gente a entrar no sistema da Capes”.

Sobre esse discurso de aceitação e da indiferença com as mudanças, Bourdieu (2004, p. 117) considera que quando se aceita o ponto de vista constitutivo de um campo, “é inviável assumir a seu respeito um ponto de vista externo”, ou seja, há uma simbiose entre o corpo docente e as determinações desse novo campo – Capes – que dificulta o questionamento. Essa atitude, Bourdieu remete à aceitação do nomos, uma palavra que para o autor, pode ser traduzida por lei, “mas seria preferível compreendermos como constituição, que lembra um ato de instituição arbitrária”. (2004, p.111). Esse nomos, permanece impensado, não produz questionamentos.

Podemos retomar várias declarações dos entrevistados que exprimem a aceitação desse arbitrário CAPESiano que se legitima como uma lei fundamental, como um nomos. Às vezes as declarações são enfáticas: “se nós queremos as bolsas, a gente tem que entrar no sistema”, nos diz um coordenador. O nomos foi incorporado e aceito como algo que não permite uma antítese, como podemos verificar no depoimento de um dos docentes de um dos Programas: “Desde nossa inserção até hoje, houve uma série de mudanças nos critérios da Capes, e nós tivemos que nos adaptar a eles”.

Essa adesão ao nomos, Bourdieu (2004, p. 117) define como uma forma de crença, é a “illusio, a qual supõe a suspensão dos objetivos da existência ordinária em favor de novos móveis de interesse, suscitados pelo próprio jogo”. (p. 123). A illusio é estar preso ao jogo, preso pelo jogo, “acreditar que o jogo vale a pena [...] é dar importância a um jogo social, perceber que o que se passa aí é importante para os envolvidos, para os que estão nele [...]. É ‘estar em’, participar, admitir, portanto, que o jogo merece ser jogado, e que os alvos engendrados no e pelo fato de jogar merecem ser perseguidos”. Os jogos sociais “são jogos que se fazem esquecer como jogos e a illusio é essa relação encantada com um jogo que é o produto de uma relação de cumplicidade ontológica entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do espaço social”. (BOURDIEU, 1996, p. 139).

A illusio passa a fazer parte da ação, da rotina, das coisas que fazemos porque sempre se fez assim. Podemos considerar que a illusio se manifesta nos discursos que consideram a entrada no Sistema Capes uma continuidade, presente na fala de um coordenador: “Na realidade, nós sistematizamos o que já fazíamos, demos nome a coisas que já fazíamos com outra forma de organização”, ou seja, sempre foi feito assim. No caso do seguinte depoimento de outro docente entrevistado: “A estrutura do nosso PPGT é clássica, divide-se em duas áreas, sistemático-pastoral e a bíblica: Essas áreas continuam sempre as mesmas, a Capes não interfere no conteúdo”, observamos que, nesse programa, as áreas continuaram as mesmas, mas as linhas mudaram, pois as tradicionais áreas de estudo foram suprimidas.

A illusio é essa atitude que contribui para uma total apropriação de novo habitus, a ponto de essa incorporação se tornar algo simbiótico, onde Capes e PPGT ajudam-se mutuamente, fazem parte agora de um mesmo campo. Isso é constatado quando um dos entrevistados comenta “que a própria Capes foi construindo seu modelo neste período”. O ex-coordenador de um dos programas analisados afirma que houve, entre seu programa e a Capes, uma relação de troca, pois, ao atingir o conceito 7, tornou-se um padrão a ser seguido. Percebe-se, aqui, um dos efeitos da illusio que é a relação de cumplicidade ontológica entre aqueles que fazem parte do jogo.

Com relação ao efeito da illusio, os exemplos são muitos entre as falas dos entrevistados, desde o reconhecimento das vantagens das bolsas proporcionadas pela Capes até a oportunidade concedida à Teologia de sair de dentro da sacristia, conforme salienta um dos questionados: “Foi importante participar das reuniões de coordenadores da grande área de ciências humanas e da área de filosofia, no sentido do intercâmbio que ali se deu”. Outro ganho destacado foi com relação aos diplomas, pois agora “podemos distinguir o título eclesiástico do acadêmico brasileiro, e isso pode ser mais atraente para pessoas de outras confissões religiosas e leigas”, como afirma outro entrevistado.

Para finalizar, é preciso entender que esse discurso que adere ao “campo Capes” (BIANCHETTI, 2009) com pouco constrangimento, é consequência de um processo que revela o que Bourdieu (2004) definiu como a tirania de um campo sobre outro. A tirania, segundo ele, ocorre quando um poder ligado a um campo interfere no funcionamento de outro campo. Para que exista tirania, é necessário haver o reconhecimento, por meio de uma justificação, da necessidade de haver essa imposição externa. Um dos entrevistados afirmou, por exemplo, que a questão financeira foi se tornando algo muito grave e limitador para o andamento do programa. Por isso, quando avalia a inserção na Capes afirma que “houve vantagem nisso, com a chance de maior número de estudantes”.

Em síntese, evidenciamos como um modelo de avaliação e fomento torna-se homogeneizador a tal ponto que um campo do conhecimento, alicerçado na fé, possa ser equiparado, dentro de um ranking, a outro campo de conhecimento essencialmente lógico-racional. Conforme enfatiza Bourdieu (2004, p. 22), “todo o campo, o campo científico, por exemplo, é um campo de forças e um campo de lutas para conservar ou transformar esse campo de forças”. Segundo esse autor, quanto maior for a autonomia de um campo, mais ele conseguirá refratar as imposições externas, isto é, poderá transfigurar essas imposições, a fim de torná-las irreconhecíveis.

Aqui, é interessante observar que o conceito de refração aponta para uma autonomia que não se fecha na lógica de seu campo, mas que se abre ao exterior, na busca de traduzir para sua estrutura interna as determinações do meio externo. Nesse sentido, neste trabalho, constatamos como um PPGT refratou para seu campo o paradigma e os critérios de avaliação da Capes e como esse processo de refração determinou mudanças no interior desse campo. E mais, entendemos como esse processo de refração das determinações externas afetou os locais e formas de divulgação do conhecimento teológico, como, por exemplo, aquele expresso nas revistas dos programas.

Os resultados da pesquisa apontam à importância do aprofundamento dessas investigações que problematizam a relação entre processos de conhecimento e induções promovidas pelos órgãos de avaliação e fomento.

#Uma versão reduzida e modificada deste texto foi apresentada no decorrer da XXXIII Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), realizada em Porto de Galinhas, Pernambuco, em outubro de 2012.

1Embora os programas em análise sejam da (sub)área de Teologia – integrantes da grande área de Filosofia – esta pesquisa de doutorado foi desenvolvida em um Programa de Pós- Graduação em Educação, em uma universidade federal do Sul do Brasil, no período de 2008 a 2011.

2Utilizamos as definições metodológicas propostas por Yin (2005) ao caracterizar os modelos de estudo de caso e afirmar que, dentro do desenho de estudo de caso, pode haver uma ou mais unidades de análise. Parte, então, do princípio de que os casos podem ser únicos ou múltiplos.

3Cabe salientar que, no período moderno, onde começa a imperar a hegemonia do racionalismo, é possível perceber a influência do pensamento teológico nos clássicos da Filosofia moderna.

4Diretrizes da Santa Sé que organizam o ensino de Teologia nos aspectos relacionados à duração dos cursos, às áreas de conhecimento, entre outros.

5Para os católicos, uma universidade pontifícia deve prestar contas à Diocese que jurisdiciona aquela região onde está sediada a IES católica. Os protestantes, no caso os Luteranos, com muito menos rigor e hierarquia, pertencem à Igreja Luterana local mais próxima, presente na região onde está sediada a referida IES.

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Recebido: 19 de Março de 2018; Aceito: 01 de Setembro de 2018

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