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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.spe2 Caxias do Sul  2018  Epub 29-Ago-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.especial.8 

Dossiê Educação, Ética e Religião

Religião, ética e psicanálise: um diálogo possível?

Religion, ethics and psychoanalysis:a possible dialogue?

Sandra Maria Krindges* 

Paulo César Nodari** 

*Psicóloga. Mestre em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Pós-Graduanda em Psicanálise pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). : smkrindges@hotmail.com

**Doutor e Pós-Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor no Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Direito da Universidade de Caxias do Sul (UCS). : pcnodari@ucs.br


Resumo

Constatando, na atualidade, uma espécie de vazio ético e tendo presente que a religião deixou de ser fonte articuladora e aglutinadora de sentido, a partir das críticas descerradas por Freud à religião e, também, da evidência do declínio da representatividade da lei paterna e de autoridade, este artigo tem o objetivo de apresentar, por um lado, uma possível conexão entre o vazio ético e existencial e o campo religioso nos dias atuais. Pode, por exemplo, o trânsito religioso ser visto como um comportamento sintomático e revelador do fenômeno religioso como mais uma ideia ou produto de consumo no vasto campo das culturas consumistas. Por outro lado, sustenta-se a tese de que, não obstante terem sido apresentadas e defendidas tantas teses acerca da superação e negação da religião, constata-se, hoje, uma espécie de retorno ao sagrado. Esse, por sua vez, não se dá mais nos moldes da religião tradicionalmente herdada, mas, antes, a partir de um caráter ambivalente e paradoxal, que contrasta tanto com as antigas como com as novas formas de ser religioso. Acaba por se converter (tal modo de ser) em um risco iminente de tornar a religião um recurso de busca do enfrentamento das neuroses e angústias da contemporaneidade mais do que o exercício de uma religiosidade esclarecida e como uma das formas capazes de articular e aglutinar a busca transcendental de sentido à existência.

Palavras-chave:  Fenômeno religioso; Trânsito religioso; Ética; Psicanálise; Função paterna

Abstract

Nowadays, a kind of ethical emptiness is being observed, and, keeping in mind that religion is no longer an articulating and agglutinating source of meaning, based on Freud’s criticism of religion, and also the evidence of the decline of representativeness of the paternal law and authority, this article aims to present, on the one hand, a possible connection between ethical and existential emptiness with the religious field in the present day, for example, religious traffic can be seen as a symptomatic behavior and revealing the religious phenomenon as another idea or product of consumption in the vast field of consumerist cultures. On the other hand, the thesis maintained is that, despite having been presented and defended so many theses on the negation and overcoming religion, there is now a kind of return to the sacred. This, in turn, is no longer in the mold of the religion traditionally inherited, but rather from an ambivalent and paradoxical character, which contrasts with both the old and the new ways of being religious for becoming such a way of being in an imminent risk of making religion a resource of search to the confrontation of the contemporary’s neuroses and anxieties more than the exercise of an enlightened religiosity and as one of the forms able to articulate and agglutinate the transcendental search for meaning to the existence.

Keywords:  Religious phenomenon; Religious transit; Ethics; Psychoanalysis; Paternal function

A religião é uma dimensão humana e uma realidade compartilhada por milhões de pessoas, e sua importância, na existência humana, caracteriza-se como um aspecto imprescindível de análise, especialmente em tempos em que mudanças sociais, culturais, políticas, econômicas e éticas ocorrem e transformam a compreensão da vida, alteram e reconfiguram valores tradicionalmente herdados. As interlocuções entre as diferentes áreas sobre temas da religião e da religiosidade independem e se dão, muitas vezes, à revelia de discussões em torno da dimensão ontológico-teológica da existência ou não de Deus.

Nesse contexto, e, principalmente, nesses dois últimos quarteis de século, não obstante o reconhecimento tratar-se, em muitos campos, de uma temática, ainda que marginalizada, tanto a religião como a religiosidade eclodiram com especial interesse e diferentes matizes pelas mais diversas áreas do saber, não sendo mais, por conseguinte, exclusividade de áreas afins.

Das formas do discurso humano que assumem características específicas em cada época histórica, o fenômeno religioso vem a ser uma das fontes desse discurso e imprescindível de análise, em tempos de profundas transformações também no campo religioso. Em se considerando a constituição ontológica do ser humano como ser que se constitui também como espiritual, independentemente, de crenças ou credos específicos, as análises acerca do fenômeno religioso indicam uma realidade em que não somente aspectos da crença estão envolvidos, como também uma razão de afetos e valores. Contudo, a dimensão da religião está sempre presente, e, ainda que sob o eixo de discussões complexas, inexauríveis e inconclusas, nesse âmbito, o cenário do trânsito religioso parece ser um indicativo bastante significativo, e, igualmente, paradoxal nessa nova configuração da dimensão religiosa.

Do declínio das influências de valores de referência, da autoridade e da lei, como tradicionalmente herdados, ao niilismo ético de uma importante crise nos representantes fálicos como se vê, a psicanálise é convocada a refletir não somente acerca de um mal-estar na cultura, da função paterna e/ ou da linguagem na constituição psíquica dos sujeitos, mas também sobre uma subjetividade humana que traz, igualmente, as marcas de um importante mal-estar na cultura vigente. Caberia, pois, dentre outros, salientar alguns questionamentos. Por que refletir sobre o fenômeno religioso? As tradições e as narrativas religiosas atuais têm alguma conexão ou implicação com o contexto ético? A psicanálise, por sua vez, teria, nesse complexo contexto hodierno, algo a dizer e a contribuir?

A religião na atualidade

O tema religião é sempre pertinente, haja vista seu lugar e seu papel na história e na vida dos seres humanos. E, no campo dos fenômenos religiosos da sociedade pós-metafísica, na expressão de Habermas (2000), um dos aspectos de destaque está para o trânsito religioso, cujas nuanças revelam posturas que transitam da ambiguidade às ambivalências, podendo, todavia, se revelar sintomático e meio de fuga e alienação. No tempo atual, as transformações ocorridas na maneira de o sujeito relacionar-se com a religião revelam um novo sujeito, que se transforma em sujeito autônomo e emancipado das práticas religiosas tradicionais. Todavia, apesar da substituição de teorias e métodos, da hermenêutica bíblica às vastas literaturas, estudos discursivos, de hibridismos e semióticas os mais diversos, o problema acerca do lugar e do sentido da religião perdura.

Apesar de ser, a religião, em sua etiologia, caracterização e conceituação, algo extremamente amplo, com implicações e análises que percorrem o curso da história humana, da filosofia às ciências atuais, ser algo complexo é, igualmente, algo dado e perceptível no cotidiano. E as perguntas ou a curiosidade do homem acerca de que experiências ele pode ter do divino, ou de que forma ele pode se aproximar dos seres superiores em que acredita, sempre foram motivação de análises antropológicas do religioso. E ainda que inúmeras teorias contemporâneas tenham lançado crises de desconfiança, certos reducionismos, determinações socioeconômicas e causas psicológicas à validade de uma antropologia religiosa, como lembra Meslin (2014), o modus vivendi do ser humano perpassa pela condição de ser religioso em qualquer tempo.

Sobre a etimologia do termo, grosso modo, sem entrar na complexa seara das nuanças a respeito do conceito e das possíveis ramificações, confrontaram-se, no decorrer dos séculos, sobremaneira, as duas fontes etimológicas possíveis da palavra religio: a) relegere, de legere da tradição ciceroniana, que significa “colher, juntar”; e b) religare, de ligare da tradição lactanciana, que significa “ligar, religare”. (DERRIDA, 2000, p. 50). Em torno dessas duas principais teses desenvolveu-se o debate filológico no decurso da história, sem chegar a considerações e conclusões fechadas e acabadas, ou seja, elas foram tema de contestações intermináveis. Afirma Derrida:

Entre duas leituras ou duas lições, portanto, duas proveniências: por um lado, com o apoio dos textos de Cícero, relegere, filiação semântica e formal comprovada, segundo parece – recolher para voltar e recomeçar, daí, religio, a atenção escrupulosa, o respeito, a paciência, inclusive o pudor ou a piedade –, e, por outro (Lactâncio e Tertuliano), religare, etimologia “inventada pelos cristãos”, diz Benveniste, e que liga a religião ao vínculo, precisamente, à obrigação, ao ligamento, nesse caso, ao dever e, portanto, à dívida, etc., dos homens entre si ou entre Deus. Trata-se ainda, em lugar completamente diferente, de um tema completamente diferente, de uma divisão da fonte e do sentido (e ainda não terminamos com essa dualização). Este debate sobre as duas fontes não só etimológicas, mas também “religiosas”, da palavra religio é, sem dúvida, apaixonante (tem a ver com a própria Paixão, desde o momento em que uma das duas fontes em disputa seria cristã). (2000, p. 52).

Deixando de lado análises filológicas do conceito, assume-se, neste artigo, uma reflexão mais geral sobre religião. Poder-se-ia entender religião como a relação com o sagrado que o crente vive como presença real e que confere à sua vida um sentido ante as contingências, ambiguidades e contradições da experiência da vida humana. A palavra religião, portanto, “é uma das mais traiçoeiras de nossa língua, porque engloba, de fato, uma infinidade de coisas e “cobre realidades sociológicas e nuanças afetivas e psicológicas muito diferentes”. (MESLIN, 2014, p. 29). A semântica em torno da religião varia muito, e as centenas de definições propostas não se impõem universalmente. (2014, p. 29). Por sua vez, Nogueira (2015), ao referir-se à hermenêutica na linguagem religiosa, indica que cultura e linguagem possibilitam ao ser humano conviver com as muitas diferenças que constituem as formas de vida e de existência.

O mundo em que habitamos, segundo ele, e nosso sentido de realidade, mesmo perpassado pela cultura e pela linguagem da vida em sociedade, nem sempre é algo de que se está, de fato, de modo consciente. E mesmo com muitas transformações, os textos, discursos e símbolos religiosos têm parte importante na percepção e na modelação da realidade. Todavia, o problema em torno da semântica e da existência parece estar implicado em muitos dos comportamentos religiosos na atualidade, dos assim denominados peregrinos de sentido e entre as religiões, em suas diferenças e variações.

Pensar a religião, especialmente nesse cenário, implica dizer que a religião está presente nos sistemas culturais e nas tendências comportamentais de cada época. Trata-se de uma realidade compartilhada por milhões de pessoas, sendo, pois, impossível de essa ser negligenciada em quaisquer análises que visarem a estudar o ser humano, sua evolução, transformações e anseios. Religião é, pois, uma “instituição social que discute a realidade que transcende a humana, repetindo-se dinamicamente em diferentes signos, símbolos, mitos e ritos nas diversas organizações humanas”. (RODRIGUES; GOMES, 2013, p. 334).

Devido a esse lugar e papel e, apesar das discordâncias e críticas entre os especialistas a esse respeito, a análise da religião é fundamental à compreensão da sociedade tardia. Para Oliveira surge um novo impulso em torno do fenômeno religioso, caracterizando-o a partir de uma enorme diversidade, podendo torná-lo, nesse novo contexto histórico-cultural, algo indeterminado e ambíguo. “Trata-se de um novo contexto societário, de um feitio transformado de viver e julgar as religiões institucionais e as experiências religiosas que agora valorizam o simbólico, a intuição, a experiência, a emoção, o afetivo.” (2013, p. 10).

Nesse cenário, o sagrado, fundamentalmente presente nos conceitos e na compreensão da religião, é um dos aspectos sobre o qual, especialmente, recaem novas formas de comportamento religioso. Há a busca pelo sagrado, pelo divino, pelo transcendente, porém não mais no formato dos vínculos ou das práticas religiosas tradicionalmente herdadas. Segundo Mendonza- Álvarez (2011, p. 180), está em curso a constituição de uma religião sem religião, ou então, de uma religião sem instituição, ou ainda, para Meslin, o sagrado está no âmago do fenômeno religioso e é o próprio ser humano quem o define. “Uma realidade que lhe fica mais ou menos oculta, mas à qual ele pretende unir suas ações e sua existência”. (2014, p. 71).

Dos fenômenos atuais, portanto, muitas são as análises em torno da secularização, dessecularização ou pós-secularização. De toda forma, o religioso e o sagrado, nos moldes tradicionais e nos novos modelos, coexistem, ora com mais, ora com menos tensões e enfrentamentos. Abstrai- se, assim, o fato de que mesmo com as evidentes e necessárias transformações, a tradição religiosa à maioria das pessoas se mantém. Para Hervieu-Léger (2008), a religiosidade das sociedades modernas implica nova dinâmica de movimento, novas formas de mobilidade e dispersão de crenças.

Uma dinâmica que confronta a figura tradicional do ser humano – regularmente praticante de uma religião e inserido em uma territorialidade comunitária bem-definida e formadora de identidade e identificação – para formas de crer que seguem na direção de uma caracterização individualizada, isto é, de certa identificação entre o sagrado e a religião. E o processo de secularização, nesse sentido, não promoveu mudanças somente no conteúdo das crenças dos indivíduos, mas, também, na forma como cada um passa a entender o que, em que e em quem pode crer, bem como que experiências religiosas ele quer ter e pode ter, as quais, por sua vez, poderão (ou não) ser denominadas de experiências religiosas e/ou de experiências de Deus, ou com Deus.

Gómez (2014, p. 42) pontua que a religião secular se organiza em torno dos efeitos no plano individual. “A religião secular se psicologizou e seu novo lugar social somente é garantido pelos efeitos que pode ter na vida individual”. Algo que o autor chama de “giro terapêutico da religião” e tem o papel, a partir da subjetivação das crenças, de lhes atribuir um critério adicional de veracidade: seu poder de transformar a vida. “Uma crença verdadeira é aquela que se embasa na própria experiência e é capaz de transformar a vida aqui e agora”. (2014, p. 42). Uma característica, portanto, da crença religiosa atualmente está associada, de certo modo, à busca do poder do sagrado, conforme Gómez (2014), com o imediatismo característico das gerações desta época, mas, também, com o interesse privado envolto no auxílio e na proteção da religião, ou seja, a crença pautada pelo horizonte de que a religião auxilia e avaliza a busca dos mais diversos interesses privados, sejam eles quais forem, mas, especialmente, os de prazer e felicidade momentâneos e os de enriquecimento fácil e rápido, quando não imoral e até ilícito.

As formas de religião privadas constroem, nesses modelos, identidades religiosas próprias a partir do vasto mercado de símbolos e crenças postos à disposição. Assim, aquele que outrora era conhecido como praticante da religião ou de uma religião, atualmente, a partir desse cenário do trânsito religioso, sempre possível de movimento, afinal de contas, na atualidade, não raras vezes, acentua-se que tudo é movimento, ele pode ser percebido como peregrino da religião ou entre as religiões, como alerta Hervieu- Léger (2008). Um campo religioso que circunda o ser humano contemporâneo de ofertas religiosas como caminhos à felicidade, mas, também, por isso, torna-o prisioneiro de sua própria bricolagem religiosa.

Vê-se a crença desse sujeito peregrino entre as religiões envolta em cenários religiosos mercantilistas que abarcam oferta (procura) e graça (fé). No entanto, nas próprias construções e composições de crenças, os indivíduos conferem a si autonomia no que diz respeito às novas formas de relação com o sagrado, com o divino, desvinculando-as de muitas das práticas e preceitos de uma religiosidade tradicional. E nas aptidões às referidas bricolagens da fé, está implicada certa diversificação social, de classes, de sexo e de gerações. (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 47).

Num viés de compreensão psicanalítico, poder-se-ia empreender que a religião faz parte do imaginário no discurso social, e a fé, muitas vezes, dá- se em maior ou menor medida a partir desse imaginário. Contudo, conceitos como afetividade e heteronomia, de um lado, e de outro, razão e autonomia implicam e estão presentes no sujeito religioso da atualidade, que transita livremente entre as propostas de um mercado religioso, ao mesmo tempo que não ficam obstruídos sentimentos de obrigatoriedade para com a religiosidade tradicional. A heteronomia, nesse sentido e pensada sob o plano da ética, é um aspecto que diz de uma normatividade que abarca as relações entre os indivíduos, como sublinha La Taille (2006). O sujeito heterônomo elege conceitos predominantes na vida em sociedade, no seu meio ou na cultura aos quais pertence. Contudo, a heteronomia equivale ao sujeito “conformar-se em expandir a si próprio por intermédio de pautas culturais dadas de antemão. Dito de outra forma, as respostas para as perguntas ‘como devo viver’ e ‘que vida viver’, seriam aquelas dominantes na sociedade em que vive”. (LA TAILLE, 2006, p. 59). Por conseguinte, se o sujeito contemporâneo se vê num emaranhado de determinações de uma cultura que prediz o consumo, inclusive o religioso, está, nesse aspecto, exercendo a heteronomia e, não necessariamente, a autonomia, ainda que muitos possam até mesmo considerar a facilidade e a liberdade de poder assumir sem escrúpulos de consciência e responsabilidade, como sendo, tais posturas, um exercício de autonomia. Ou seja, paradoxalmente, ele exercita uma liberdade religiosa, e o trânsito religioso assim o revela. No entanto, se a heteronomia é algo que se pode inferir estar presente no trânsito religioso, vê-se, então, o exercício de uma liberdade religiosa, porém subjugada a uma razão que nem sempre seria a consciência do próprio sujeito.

Esse novo status religioso emergente é influenciado por mecanismos de um vasto mercado religioso, de novas filosofias em torno do sagrado e da religião, novas propostas e alternativas de estilos de vida, de autoajuda, de consolo religioso. Há um sujeito incitado a uma cultura de liberdade e autonomia que não somente o libera de uma exigência de vínculos de pertencimento, mas que se apresenta com o invólucro do consumismo também nesse campo do religioso, de movimentos religiosos emancipatórios, de convencionais autobiografias religiosas ou subjetivismo religioso. Por um lado, parecem tentativas desse sujeito de se independizar das tradições e, por outro, parece um campo religioso, a exemplo de outros mecanismos presentes na cultura, contumazmente, ilusório e opressor. Por conseguinte, inserido nesse sistema que direciona seu modo de ser e de se comportar, poderá o sujeito não identificar aquilo que quer e precisa para si, de maneira autônoma, de fato. Tem-se, pois, algo que parece conversar não somente com a religião, mas, também, com a ética e com a psicanálise.

A religião em Freud

Desse lugar que ocupa a religião e seu papel e, em atenção às análises que sinalizam comportamentos religiosos específicos, a concepção freudiana não se configura tão somente como uma das críticas históricas mais acirradas, e, possivelmente, das mais conhecidas à religião. Mas, ainda hoje, século XXI, traduz-se numa ótica possível e interessante de análise, sobre o que se pode referir das expectativas e das neuroses religiosas na atualidade. Para Freud, não há a concepção de inconsciente como receptáculo de Deus ou do desejo de Deus, mas, antes, Deus está presente em nível inconsciente nas ambivalências referentes ao pai, nas ideias religiosas e na necessidade de proteção desse pai. Trata-se de algo que o sujeito, em suas crenças religiosas, projeta no Deus/Pai. Uma necessidade de proteção infantil que perdura por toda a vida, não obstante o próprio Freud ressalte em O mal-estar na civilização (1930), que essa condição, de ser uma necessidade infantil, não deva perdurar durante toda a trajetória do sujeito.

A crítica de Freud à religião tem seu incurso com o texto: Atos obsessivos e práticas religiosas (1996). Nesse texto, Freud relaciona a religião a um mecanismo, ou processo psicopatológico. Descreve-a partindo da neurose obsessiva, e, por sua vez, os atos obsessivos e ritos cerimoniais são descritos como correlatos com a formação da religião. Ele associa do fenômeno religioso os atos sagrados e ritos religiosos com o cerimonial neurótico, descrevendo a ideia de que a neurose obsessiva relaciona-se como sendo uma religião íntima.

O passo seguinte da crítica freudiana vem com o texto: Totem e tabu (1996). Pela via da compreensão mitológica, Freud defende que “uma comparação entre a psicologia dos povos primitivos, como é vista pela antropologia, e a psicologia dos neuróticos, como foi revelada pela psicanálise, está destinada a mostrar numerosos pontos de concordância e lançará nova luz sobre fatos familiares às duas ciências”. (FREUD, 1996, p. 21). Totem e tabu refere-se, pois, à proibição do incesto e dos tabus, a partir do primitivismo e dos conteúdos míticos. A religião, nesse viés, se fundamenta na culpa (pelo assassinato do pai) e no desamparo infantil primordial; no ódio e na disputa com o pai que, todavia, os mesmos não anulam o desejo de amor e a admiração pelo poder do pai da horda primitiva.

O texto: Moisés e o monoteísmo (1996) para alguns críticos é uma das obras mais ousadas de Freud, sendo, na opinião deles, um texto de assunto vital para Freud, bem como de maior controvérsia entre os especialistas. Aqui, as atenções à religião dão-se na direção do fascínio e da inspiração exercidos pelo herói. Ao voltar sua atenção a Moisés como o “Grande líder”, Freud se refere ao mito do grande homem e nele a autoridade do pai-herói. Uma das características da religião estaria aí, ou seja, no resgate da vontade do pai, nos sentimentos ambivalentes de necessidade de proteção e de amor, mas, também, de expectativas de merecimento desse amor, na admiração diante da grandiosidade e da intelectualidade do Deus-Pai, na autoridade que conduz e, traduzido por Freud, nessa obra, como sentimentos do povo judeu.

Das obras de grande destaque e as mais referidas de Freud em torno do tema religião são, em última análise: O futuro de uma ilusão (1996) e O mal-estar na civilização (1930). Nelas, Freud se detém a analogias entre o indivíduo e a cultura. Ele desenvolve significação psicológica para as ideias religiosas e se refere à hostilidade do ser humano para com a civilização e as renúncias instintivas que essa lhe exige. Da necessidade de defesa contra a força superior e esmagadora da natureza, surge o impulso de retificar as deficiências da civilização, sentido de maneira dolorosa a partir de sofrimentos e sacrifícios. (FREUD, 1996, p. 30).

A religião é, por um lado, em seu sistema de doutrinas e promessas, a necessidade do ser humano de explicar os enigmas deste mundo e, por outro, a tentativa de garantir que uma “providência cuidadosa valerá por sua vida e o compensará, numa existência futura, de quaisquer frustrações que tenha experimentado aqui”. (FREUD, 1930, p. 4). Por outra perspectiva, “o homem comum só pode imaginar essa providência sob a figura de um pai ilimitadamente engrandecido [...], sendo penoso pensar que a grande maioria dos mortais nunca será capaz de superar essa visão da vida”. (FREUD, 1930, p. 4).

O futuro de uma ilusão (1996) trata das crenças religiosas com uma função social e de combate a favor da renúncia aos desejos e da aquiescência ao destino. Ou seja, segundo a análise de Morano (2008), trata-se de uma renúncia de Freud à problemática das origens da fé religiosa com a finalidade de enfocar aquilo que o ser humano comum concebe como religião. E as ideias religiosas, em Freud, perpassam pelo processo civilizatório, e, ele, à sua época, avaliava a cultura como um aspecto da castração dos desejos do ser humano, e a religião exercia o papel de proteção diante desses desamparos. Contudo, para o problema de as ideias religiosas serem (ou não) ilusão ou sobre o problema de se determinar quando se está diante de uma ilusão ou diante de uma ideia delirante, Morano interpreta que, para Freud, “o grau em que as expectativas humanas se distanciam ou se aproximam da realidade é dificilmente mensurável [...], e, em última instância, dependerá de uma ‘atitude pessoal’ que uma crença seja julgada uma ilusão ou análoga a uma ideia delirante”. (MORANO, 2008, p. 143-144).

Nessa perspectiva, O futuro de uma ilusão (1996) proporá um projeto de educação para a realidade. Freud referirá que a inteligência é o único meio de se controlar as pulsões. “Tudo o que contribui para tiranizar as pulsões deve ser considerado negativo e ser afastado. Portanto, enquanto prevalece uma coerção religiosa, não podemos saber o que a inteligência pode dar de si.” (MORANO, 2008, p. 149). Essa educação para a realidade, no entanto, pressupõe um difícil ascetismo, sugere Morano. Mas, ainda assim, lembrando Freud, o infantilismo deve ser superado.

Da proposta e da obra de Freud, na teoria e na clínica, sempre fizeram parte grandes questionamentos, como lembra Kramer (2008). Por que, afinal, sofremos? Em que ou em quem devemos acreditar? Podemos governar a nós mesmos? Podemos viver em paz? Essas questões, eminentemente, de cunho existencial, de sentido de vida e sentido religioso, embora não sejam, exatamente, o foco de atenção da psicanálise, elas, com o viés referido na crítica freudiana à religião, têm ou poderiam ao menos ter, em muitos aspectos dos ideais religiosos, como pensados por Freud, uma reedição nos discursos e práticas do Homo Religiosus e dos peregrinos de sentido na atualidade.

Na perspectiva desta reflexão, percebe-se, pois, que o campo religioso carrega, especialmente, na atualidade, marcas de uma ambivalência que comporta práticas religiosas tradicionais conjugadas com o denominado “trânsito religioso”. A pergunta a ser posta é: Que relações tais questões têm com a ética, mais especificamente, com a ética da psicanálise? Primeiro: parece importante alocar que a psicanálise não se considera uma filosofia propositiva quanto às discussões envolvendo questões de fé, práticas religiosas e, até mesmo, o sentido de vida. E Freud já teria sido bastante específico a esse respeito, como corroborado, posteriormente, por Jaques Lacan, de que para a psicanálise a religião vem a ser um dos símbolos possíveis de análise do sujeito do desejo. Segundo: da crítica de Freud à religião, especificamente, seus interesses permearam, muito especialmente, o campo clínico, porém, a representação paterna de autoridade e as ideias religiosas a ela interligadas, bem como a carência infantil de proteção, projetada em ideais religiosos, é o que se busca realçar como sendo elementos presentes tanto nas análises de Freud como, possivelmente, nos constitutivos do sujeito religioso na atualidade e como aqui se propõe.

As contribuições da psicanálise

Embora na crítica Freud caracterize a religião como uma neurose, cuja base se dá na necessidade de proteção do pai e nas tentativas de significação dos conteúdos pulsionais e não nomeados na neurose, a construção de valores e ideais de vida está presente na ilusão humana quanto à religião. Inúmeras são as situações cotidianas em que se cristalizam sintomas e angústias, e muitos dos que se autodenominam crentes vivenciam práticas e rituais religiosos, ao mesmo tempo que padecem com sofrimentos psíquicos os mais variados. Não se pretende, com isso, avaliar a questão: se há prática religiosa não pode haver sofrimento psíquico. O que parece importante perceber é que a crítica freudiana, datada do início do século XX, que concebia a religião, dentre outros aspectos, como uma ilusão da neurose obsessiva, ainda hoje, parece ter esse aspecto presente e não possível de descarte nas análises no âmbito do social e no trabalho clínico muito especialmente.

O exercício de uma religiosidade desprovida de consciência crítica por parte do sujeito (acerca de si mesmo) pode significar – a exemplo da medicalização excessiva como suporte para os adoecimentos psíquicos, como hoje se verifica – que a religião também se torne um catalisador das neuroses contemporâneas. A questão que se coloca é esta: Se a religião se torna um aparato de consumo e se acaba por favorecer ao sujeito religioso tornar-se um transeunte ou, então, um peregrino entre as mais diversificadas ofertas religiosas, não teria tal busca questões ligadas à ética?

Ou, então, se, em um primeiro momento, esse não pareceria ser um assunto diretamente ligado à ética, uma pergunta, em um segundo momento, adviria, pois tal atitude pressuporia, no mínimo, um questionamento ético acerca da autonomia da vontade de cada sujeito e se há (ou não) influência do aparato ideológico e de manipulação em pequena, média ou grande escala, na perspectiva de que o livre-exercício de tais práticas religiosas poderia ser foco de atenção para os deslocamentos de fuga e alienação que empreendem os sujeitos atuais? Ainda mais: a religião, no formato de um vasto mercado religioso, poderia ser compreendida como um dos fatores que contribuiria para o surgimento de novas economias psíquicas, tornando- a legítima pela via das alienações e ilusões de satisfação das carências e, a partir disso, do gozo a qualquer preço?

Longe de se proporem discussões complexas que envolvam sectarismos, fundamentalismos e intolerâncias religiosas, por exemplo, propõe-se uma reflexão crítica e dialógica, e que a partir do argumento de haver fendas importantes e passíveis de análise no comportamento religioso de hoje, também pressupõe essa possibilidade de intermediação e de diálogo entre a religião, a ética e a psicanálise. Se, por tradição, a religião não é a única dimensão da vida a dizer que tipo de bem poderia garantir ao ser humano pleno consolo e felicidade, mas, em sabendo do uso da fé como objeto de compra e venda de acordo com a lógica mercadológica, e, em tendo consciência dos valores criados a partir de manipulações e ofertas religiosas, não se estaria diante de uma aridez de liberdade e de uma autonomia do pensamento? E, ao se deixar conduzir por um mercado religioso que se apropria de promessas e símbolos como garantia para o alívio de sofrimentos e angústias, não estaria o sujeito, a exemplo do poder e da manipulação do saber da técnica, também subjugado a um saber religioso? Possivelmente, sim. Os afetos, quando depositados em uma crença religiosa (transformada em objeto mercadológico e de manipulação), podem se configurar como extremamente perigosos e, muitas vezes, danosos.

Assim sendo, quais seriam, então, as origens e especificidades desse fenômeno aí presente e que põe a singularidade do sujeito presa aos discursos que constituem o laço social? O declínio da ordem e dos ideais em torno do pai e do grande outro, na terminologia lacaniana, também nas demais instituições que têm papel regulador na sociedade, resultam em um enfraquecimento do significante de autoridade que, outrora, se dava preeminentemente no formato vertical na transmissão de valores. Essas transformações reorganizaram a sociedade, muito especialmente, as relações familiares e os vínculos parentais. Esse mesmo formato passa a fazer parte da conduta em ações no âmbito das demais instituições, igualmente incumbidas, pelas tradições, de transmitir a autoridade moral e a lei, como é o caso da religião e da educação.

Muitas são as transformações, os impasses e os conflitos que determinam a cultura atual, e muitos desses impasses, convencionamos referi-los como sintomas. Para Chemama (2017) muitos são os comportamentos que poderiam ser tratados como sintomas e que, nos dias atuais, se expandem num formato de novos sintomas. E tanto na conceituação freudiana como na lacaniana, há a compreensão do sintoma como algo dado na cultura e pela cultura na qual o sujeito está inserido. Ele, o sujeito, está sempre abalroado no discurso do social.

Se o sujeito está tomado no discurso social, que age sobre ele, isso pode parecer problemático em um primeiro tempo que ele se identifique a este discurso, mas ao mesmo tempo é preciso que ele reconheça de que maneira ele encontra um gozo a ser tomado neste discurso e é neste momento que talvez ele poderá, segundo uma expressão de Lacan – saber fazer com isso – com seu sintoma, porque ele não terá localizado um mecanismo. Se ele reconhece que ele é este homem tomado em seu sintoma ele se virará melhor com isso. (CHEMAMA, 2017, s.p.).1

A modernidade e suas muitas propostas e transformações culturais tornam-se o que se pode denominar de um (grande) sintoma. E à psicanálise, em termos de saúde anímica, que o sintoma, como lembra Goldemberg, define o sujeito cujo agir deixou de ser autônomo. Na neurose obsessiva (Zwangsneurose), por exemplo, à qual Freud relacionou a religião, o indivíduo “age sem liberdade de não agir. Sua falta de autonomia, note-se, é relativa ao querer, não à razão”. (1994, p. 78). Se a patologia do desejo está na dificuldade de seu exercício, a saúde estará na livre-disposição que tivermos de nós mesmos, sermos donos das determinações de nossa escolha, ou, no mínimo, conhecê-las com antecedência. (TUGENDHAT apud GOLDEMBERG, 1994, p. 78-80).

Eis, portanto, uma questão que incide nessa proposta reflexiva: se o que aqui se convenciona chamar de comportamento sintomático de trânsito religioso, a partir do sentido e das referências de que se vê desprovido o sujeito (religioso), hoje, é possível conceber que esse mesmo sujeito esteja dispondo livremente de suas respectivas escolhas. Contudo, parece não ser possível duvidar que o declínio da representação da imagem paterna, de sua função e da lei, somados aos formatos horizontalizados na transmissão de valores, que coloca pais e filhos em nível de igualdade na configuração dos papéis que devem assumir, em muito, estabelece a forma como as novas gerações irão, doravante, se relacionar com as instituições, como, por exemplo, a Igreja (religião), a escola, o Estado, e outras tantas mais.

Segundo Spadaro, nessa nova realidade, o ser humano é mais caracterizado como radar e cada vez menos como bússola. “O homem hoje, mais do que buscar sinais, está habituado a procurar estar cada vez mais disponível para recebê-los sem buscá-los.” (2012, p. 49). Dá-se, pois, uma mudança radical na busca pelo sentido, nas formas de mediação, no reconhecimento das diferentes formas de autoridade hierárquica e nas pessoas em geral. Passa-se, radicalmente, da estruturação hierárquica reconhecida de relações para sua horizontalidade, isto é, para o que se pode denominar de nivelamento de contato direto e da autorreferencialidade. (SPADARO, 2012, p. 83).

Com a função e a representação paternas e a autoridade da lei sendo essas destituídas do lugar do saber, abrem-se caminhos a questionamentos sobre o modo como esse lugar é preenchido. Esse patamar pode tornar-se, paradoxalmente, um vácuo, ou seja, algo a ser sempre ocupado a partir da cultura, hoje, pelos predicativos de valor midiático, tecnológico, religioso, dentre outros, mas, também, algo que nunca se preenche, dada a incompletude humana que é perene, argumento a partir e sobre o qual também se funda a concepção psicanalítica do sujeito do desejo; um desejo sempre incompleto.

Mas das peculiaridades, portanto, que circundam a função paterna se extraem elementos importantes para se pensar o niilismo ético vigente, que, por sua vez, pretenderia retirar qualquer valor do problema ético e confiar a conduta da vida humana a técnicas controláveis de comportamento e previsão e a proposta da ética da psicanálise. Todavia, para Chemama (2017),2 a função paterna não está ligada somente à presença do genitor da criança e, diante desse cenário de declínio das representações, que subjazem às novas posturas do sujeito, autônomas e emancipadas dos referenciais da lei como outrora transmitidos, Chemama propõe que se considere, além das referências parentais no plano individual, outras dimensões com grande poder de influência e determinantes nas sociedades modernas. Ele se refere, especificamente, ao neoliberalismo, presente no sistema econômico e que impede o sujeito, hoje, de encontrar referências consistentes no seu meio social e cultural, e as consequências diretas dessa fragilidade que se consolida estariam numa certa personalidade do mundo pós-moderno, referida pelo autor como algo dado ao sujeito, mas que o impede de se estruturar a partir da sociedade em que vive e a partir de seu grupo social. Haveria, então, para Chemama (2017),3 uma espécie de desconsideração do sujeito para com o mundo à sua volta, para com o outro, tornando-se, por sua vez, uma dificuldade importante para aferir sentido ao mundo, e, por conseguinte, ocasiona uma ignorância do social que produz sintomas e efeitos tanto em nível individual quanto no coletivo. Há, pois, efeitos paradoxais desse sintoma chamado modernidade.4 Ou seja, o sujeito pós-moderno, de um lado, se entende autônomo, mas em face do que a cultura lhe impõe, age de forma heterônoma. De outro lado, ainda, diante do individualismo neoliberal, transita alhures por questões da humanidade.

Em se falando de enigma da modernidade, ou também, de uma espécie de “prometeísmo antropológico da modernidade”, Lima Vaz (1990, p. 11) se expressa da seguinte maneira em um texto editorial de 1990, intitulado: “Ética e civilização”: “Uma cultura que desemboca, coroada de êxito, na extensão planetária da ciência e da técnica ocidentais e da economia-mundo da qual elas são a mais poderosa força de produção”. Segundo ele, a modernidade é uma civilização que se constitui como “uma aventura que, em meio à multiplicação dos seus êxitos, se detém inquieta diante da incerteza das suas razões e dos seus fins”. Todavia, a modernidade é permeada de uma espécie de paradoxo, a saber: “Reconhecendo-se como instauradora de uma civilização que é universal efetivamente pela sua base material, a modernidade deve igualmente reconhecer-se como tendo sido incapaz de tornar essa civilização eticamente universal” e, mesmo que ela venha a ser regida “por valores e guiada por fins cujo conteúdo e cuja normatividade sejam demonstrados como universais e, portanto, aceitos consensualmente, ao menos em princípio, por todos os homens”. A modernidade, segundo Lima Vaz, é denunciada pela “ausência de um ethos do homem sujeito e ator de uma história efetivamente universal e pela consequente impossibilidade de formulação de uma Ética que codifique suas razões de ser e de agir”. (1990, p. 11). Ou seja, tenta-se, nesta reflexão a respeito do tema reconhecimento e consenso em Lima Vaz, entender a tese subjacente à crise ética da época atual, fruto do ambicioso projeto de modernidade, de poder e de dominação, ou então, segundo Lima Vaz, do “prometeísmo antropológico da modernidade”. Explicita Perine, por conseguinte, a esse respeito:

A descoberta das raízes do niilismo ético da modernidade a partir da tríplice ruptura instaurada pelo prometeísmo do homem moderno, a saber: a ruptura com a estrutura axiológica normativa do ethos, que organiza teleologicamente as estruturas objetivas da socialidade; a ruptura com a tradição pela primazia do futuro na concepção do tempo, que levou ao predomínio do fazer técnico na concepção da ação humana; e, finalmente, a ruptura com o fundamento transcendente das normas e dos fins da ação humana pela imanentização do sentido e do fundamento do valor na razão finita e na liberdade situada conduz também à descoberta do segredo da filosofia, formulado por Henrique Vaz nos termos de uma tarefa, ao mesmo tempo teórica e prática. (2004, p. 163-164).

A ética da psicanálise, então, irá se concentrar em uma ética da verdade do sujeito, sendo esse um sujeito do inconsciente. E a renúncia ao gozo pulsional é um aspecto fundamental e sobre o qual Freud já preconizava ser algo custoso à humanidade. Kehl (2007) retoma a ideia de que, ainda que o sujeito tenha sido interditado no Édipo, a renúncia ao gozo pulsional é também necessária à vida em grupo, bem como se sustenta a partir das formações imaginárias, que organizam e dão sentido a essa renúncia. Tanto as religiões quanto os grandes códigos morais, sempre disseram algo em relação ao que o sujeito não pode, como pontua Kehl.

As transformações ocorridas com a representatividade paterna é algo, então, não somente verificável, mas de grande relevância na psicanálise. No entanto, a rapidez com que isso se deu em muito se relaciona com a sociedade de consumo, aqui pensada, também, em torno do consumo religioso. E, segundo Kehl (2007), essa sociedade de consumo precisa de novos sujeitos para continuar funcionando. Para Marinas (2015), o mal-estar na cultura de consumo sinaliza o desejo como sendo o elemento principal que rege a lógica de consumo e não a necessidade. Consomem-se signos ao invés de objetos ou utensílios, e esses signos representam o desejo e conferem reconhecimento ao sujeito.

E, ao consumir marcas, por exemplo, o sujeito consome representações de estilos de vida, status e formas específicas de atuação do gênero. Tem-se como posto, então, um niilismo ético. Vazios existenciais, quadros de inércia e de conformismo do sujeito pós-moderno, quando os referenciais identitários, da autoridade e da lei vão se pulverizando numa cultura de valores líquidos e, ao mesmo tempo, paradoxais. É ausência de referências e o excesso de referências, como alerta Lebrun (2010). De toda forma, tem peso, quiçá, irreversível o fato de que “além da crise ou da ausência de referências, é a legitimidade da própria referência que se tornou como que inacessível”. (LEBRUN, 2010, p. 12). Eis quão ilustrativa é a expressão de Amon acerca da crítica ao projeto de modernidade obcecada pela ordem e pela superação de todo tipo de crença e fé.

O ato de fé da modernidade é que é possível compreender os fenômenos em sua totalidade, encaixando-os em um universo explicativo ordenado e sem ambivalências. Esse ato de fé consistiu na adesão à crença de que o mundo empírico da experiência sensorial é o critério do saber, sendo o método científico a forma de chegar ao conhecimento verificável. A modernidade concebeu a oposição entre ciência e crenças num ato de fé. Estabeleceu, assim, uma cosmovisão que paradoxalmente esforçou-se por anular o valor das crenças e buscou limitar o incognoscível ao espaço indesejado. Este ato de fé foi, contudo, constantemente frustrado. No momento em que há a tentativa de conferir inteligibilidade aos fenômenos supondo-lhes uma estrutura passível de ser apreendida na totalidade, absolutamente nítida e indubitável, defrontamo-nos com o retorno de um mistério. Mistério envolve o que existe, mas está oculto aos sentidos, o que está presente, mas não alcançamos, é o impenetrável, o segredo que deixa antever a e não chegaremos a ter. Mistério é o que escapa e desafia a convicção, desestabiliza o conhecimento que acreditávamos ter alcançado e nos mostra o limite da porta que se fechara na certeza. Ainda que o espírito da modernidade não quisesse o mistério e tivesse se empenhado arduamente nas práticas modernas típicas para suprimir a incerteza e a indefinição, inevitavelmente defrontou-se com aquilo que resistiu às categorias e à tentativa de ordenamento pleno. (AMON, 2017, p. 27).

Afirmado isso, nos dias atuais, percebe-se e se constata, cada vez mais, que o sujeito, todavia, está centrado no eu. Em uma sociedade na qual se pode tudo o que se quer, a autoridade do pai fica sem um lugar, e não se tem mais o esteio da autoridade como referencial de apoio e sustentação. Essas transformações rápidas e profundas promovem, então, a crise de autoridade, uma autoridade que o sujeito transfere no decorrer de sua vida a outras figuras de representatividade moral e ideológica, mas que contêm em si o sentido da autoridade paterna – aquela que confere a lei e também o sentido. Não é a força do pai da horda primitiva, um mito criado e colocado por Freud em sua teoria edípica, que sustenta essa função, mas algo que é convencionado pela coletividade a ser (ou não) interditado.

Veja-se, por exemplo, a questão da proibição do incesto. Se o grupo ou a cultura não sustenta, ele não se mantém. O grupo é que dará um lugar à interdição. E a partir de Freud, colocar algo no lugar do pai, seja a religião, seja a cultura de consumo, é algo que se dá na coletividade, na cultura.

Dentre os efeitos desse cenário, verificam-se configurações e propostas para um modo de existir que mantém o sujeito alienado de si mesmo, preso às ilusões e sempre em busca do sentido e de referenciais para o bem- viver, sendo esse estipulado e buscado a partir, sobretudo, da satisfação de seus desejos. Uma satisfação que se apoia em um vasto campo de mercado, de e a partir de onde se consomem desde ofertas religiosas até ideais e valores que pressupõem o gozo de satisfação do desejo a qualquer preço e sem exigências de vínculo e de pertencimento. Tais constatações, e, pensando- se, inicialmente, a partir dos pressupostos éticos de liberdade e autonomia como centrais à dignidade humana, trata-se de um livre-exercício do sujeito, hoje, que não encontraria legitimidade em ser contestado. Por outro lado, ao ter à sua disposição ofertas e meios de satisfação dos desejos e ao estar inserido num sistema que pensa para ele, o sujeito fica suscetível a não identificar aquilo que quer por si mesmo.

Os sentidos pessoal e da vida, então, passam a estar na aquisição de coisas e na busca de propostas religiosas, ou não, mas que melhor se encaixam em cada momento e circunstância que vive o sujeito, alienado em seu próprio desejo, sem que dele nada saiba de fato. Para Kehl (2002, p. 12-13), “a crise ética em curso no mundo [...] produz sintomas sociais alarmantes, em decorrência dos quais a sociedade vem reconhecendo, explicitamente, a necessidade de encontrar respostas para eles”. E, nesse invólucro específico da modernidade sobre o modo de ser e viver dos sujeitos, cria-se a cultura de autobiografias. Contudo, na teia dos sistemas que direcionam os valores de cada época, a liberdade e a autonomia podem se configurar relativas.

Diante desse contexto e, no campo religioso, o trânsito religioso, pode ser visto como um comportamento sintomático, como aqui propõe Kehl (2002), e apresenta duas vertentes possíveis de compreensão para tais crises, e, sobremaneira, pertinentes às análises atuais: uma se refere ao reconhecimento da lei, e a outra à desmoralização do código. Por crise ao reconhecimento da lei a autora se refere não aos estatutos formais ou constituições dos países, mas à lei universal da interdição do incesto, não escrita e autorizada em si mesma. De origem mítica e por não ter autoria, essa interdição se impõe aos grupos humanos, é provinda de outro lugar, com vistas a contornar limites e legitimar o convívio social.

Esse outro lugar diz respeito ao inconsciente, onde a transmissão das tradições, das religiões, dos mitos, da origem das leis, entre outros, se inscreve subjetivamente e através da linguagem. A interdição do incesto impõe “uma renúncia ao excesso de gozo”, o contrário daquilo que ocorre nas sociedades modernas, que têm nas apologias à liberdade e autonomias individuais, na “valorização narcísica do indivíduo seus grandes ideais, pilares de novos modos de alienação, orientados para o gozo e para o consumo”. (KEHL, 2002, p. 13).

Kehl (2002) relaciona a crise ao reconhecimento da lei com a dívida simbólica, que diz respeito ao rompimento que ocorre em cada geração com tradições de gerações anteriores, levando os indivíduos a não reconhecerem laços e compromissos com antepassados. A dificuldade de reconhecer essa dívida simbólica diz acerca da dificuldade de se reconhecer o preço que se paga pela condição humana, perpassada pela linguagem e pela vida em sociedade, representada nas culturas, religiões e classes sociais. Trata-se, na verdade, daquilo que afirma Freud no texto: O mal estar na civilização (1930), quando trata dos aspectos geradores de mal-estar na cultura, ante as necessidades humanas de sucumbir à castração primordial, ou seja, sucumbir à renúncia ao gozo. Daí, pois, a substituição da falta primordial por inúmeras outras formas de gozo.

O que o apelo contemporâneo ao gozo faz é dificultar o nosso reconhecimento da lei, por falta de uma base discursiva que confira apoio e significado à impossibilidade do gozo. Isso afeta necessariamente o efeito da Lei sobre as pessoas? Talvez, na medida em que nos propomos um gozo impossível como ideal a ser atingido e não – como no caso dos membros de uma sociedade vitoriana, por exemplo – como mal a ser evitado. Assim, o apelo ao gozo produz mais angústia do que o gozo propriamente dito, mais violência (pois é com violência que reagimos à violência dos imperativos) do que fruição. (KEHL, 2002, p. 15).

Portanto, o apelo da cultura contemporânea – buscar a satisfação plena e imediatista dos desejos – dirige-se a um ponto contrário daquilo que seria o papel do pai simbólico: o interdito da autoridade representante da lei moral de renúncia. E, em não freando os instintos do gozo, a cultura vigente autoriza o sujeito à compulsão sem, contudo, ampará-lo no adoecimento moral e ético.

A outra vertente de crise ética argumentada por Kehl seria a desmoralização do código. E o que vem a ser o código? O código, diz Kehl (2002, p. 18-19), ao contrário da lei, tem certa autoria, embora não clara, e depende de ser divulgado para, a partir disso, vir a se tornar consenso. Dessa forma, dispensam-se razões e explicações, um aspecto que, por sua vez, reforça a ideia de tabu como visto no texto freudiano de 1913, das proibições de origem desconhecida e ininteligíveis para nós, mas que dizem sobre a origem obscura de nosso imperativo categórico. E o código dispensa até mesmo as explicações acerca do porquê das coisas, explica a autora. Ou seja, se um código é questionado, demonstrando outros discursos, demandas e pactos, é porque sua sustentação simbólica inconsciente já se rompeu.

A desmoralização do código refere-se, ainda, a comportamentos de certa liberdade excessiva e, muito especialmente, pela via de uma lógica moderna de consumo, que dá razão ou autoridade a quem paga, ou seja, a quem pode, abundantemente, consumir. São comportamentos repetitivos, inculcados também por indústrias culturais que criam seus códigos próprios e os impõem à sociedade. Kehl (2002) adverte que os apelos às identificações acabam por superar os apelos ao código. Assim, regras de conduta, por exemplo, que deveriam se sustentar por si sós e valer para todos nem sempre são seguidas dessa forma. Ou, ainda, há muitas regras de conduta automatizadas cujo sentido não é, necessariamente, conhecido e, no entanto, são praticadas ou repetidas como normas, porque essas foram divulgadas e se tornaram consenso.

Por outro lado, há a discussão de não ser possível fundar uma ética sobre os afetos, sejam eles bons ou maus, também não, ou, tão somente, em critérios abstratos. Os aspectos particulares que envolvem escolhas, condições subjetivas de seus agentes, as questões tradicionais em torno da possibilidade de uma ética universal, a partir de imperativos impessoais e rigorosos, por exemplo, ou se preceitos morais mais corriqueiros poderiam prescindir de “alguns preceitos éticos universais” (KEHL, 2002, p. 27), são temas e questionamentos presentes na psicanálise, segundo a autora. Para ela, a psicanálise, é convocada a responder a tais demandas, que perpassam pela crise de reconhecimento da lei e a desmoralização do código.

Desses dois aspectos, portanto, apreende-se uma crise: primeiro – em torno das apologias hedonistas e de consumo, que se referem à necessidade de excesso de gozo, promovidas pela cultura da individualização e do consumo e pelo declínio maciço da influência de instituições tradicionais, o que leva ao não reconhecimento da dívida simbólica, geradora de sentido; segundo – as lógicas modernas de consumo e as indústrias culturais promovem outros tipos de identificação que não aquelas que se dão a partir de códigos estabelecidos e, porque são de consenso e disseminados, regulam, dão sentido e direcionamento à vida em sociedade. Assim, as crises éticas, o niilismo ético, hoje, semeiam esse vazio de sentido e significação. Utilizando-se uma terminologia lacaniana, dir-se-ia que os significantes não estão sendo dados à palavra, o que é diferente de acúmulo de informações e sua circulação.

Desse modo, entende-se não ser possível conceber a ética da psicanálise unicamente como uma ética individualista, pois, ao reconhecer as raízes de suas pulsões inconscientes e ao assumir a responsabilidade acerca delas, o sujeito estará agindo em conformidade e com responsabilidade também com o laço social.

Considerações finais

Das considerações sobre o “trânsito religioso”, como um dos aspectos presentes no fenômeno religioso da modernidade, e o niilismo ético que perpassa o vazio das referências e da legitimidade da autoridade e da lei, sobre a crítica freudiana à religião e os caminhos éticos pensados a partir de algumas contribuições da psicanálise, conclui-se serem, esses, elementos que não somente instigam as análises, bem como, a partir de suas constatações na vida vivida, provocam novas reflexões e desafiam a novos posicionamentos.

O individualismo moderno é o eixo de sustentação da característica mais notável da sociedade contemporânea. Nota-se uma fragmentação da ideia de ser humano nas várias ciências humanas, bem como uma crise histórica decorrente do entrelaçamento das sucessivas imagens do ser humano da cultura ocidental. A primazia dada ao funcional e ao operacional, na sociedade tecnocientífica, faz da eficácia, da produtividade, da utilidade, do remunerável, como também do lucrativo, critérios teóricos e praxeológicos que ultrapassam os limites do relacionamento do ser humano com a natureza tecnocientífica para se estenderem ao âmbito do existir em comum, isto é, na relação intersubjetiva, tornando-se também critérios e parâmetros normativos e decisivos dessa mesma relação.

E, com o intuito de um diálogo interdisciplinar, que contemple as interfaces ora propostas – religião, ética e psicanálise – conclui-se que, não obstante os engendramentos e as complexidades presentes no âmbito dessas três grandes áreas que compõem, hoje, o campo das análises sobre o homem na pós-modernidade, são temas que escapam dos níveis de erudição e se traduzem nas vivências e na simplicidade do cotidiano. A religião, que, em Freud, é vista como um recurso às angústias humanas e necessidades de proteção, é, igualmente, do fenômeno religioso, hoje, parte de uma sintomatologia neurótica – como preconizou Freud – mas que parece estar, ainda, a serviço da fuga e da alienação do sujeito diante, não somente, de conteúdos da infância e reprimidos da consciência, mas de uma realidade que lhe é própria.

O cenário, no campo religioso, atualmente, evidencia o exercício de um subjetivismo religioso mais autônomo e que coexiste com sistemas religiosos tradicionais, simultâneos e compatíveis entre si. Hoje o ser humano, em sua generalidade, exercita sua religiosidade transitando entre antigas e novas propostas de conceber a religião e de ser religioso. E o “trânsito religioso”, ao mesmo tempo que reforça esse livre-exercício, também revela sintomas das chamadas “doenças do vazio”, quando a peregrinação, a partir de um mercado religioso, torna-se um recurso (externo) de fuga e alienação do indivíduo e diante de si mesmo.

A ética da psicanálise, por sua vez, trata-se de uma convocação e um desafio que requer um posicionamento, inicialmente, diferente, por parte de cada sujeito. E, muito embora Freud não se ocupasse de discussões filosóficas sobre o homem, o sentido da vida ou sobre a moral, e sua crítica à religião não esteja pautada em discussões acerca da existência ou não de Deus, seu pensamento não desqualifica a importância da religião, mas, antes, se revela atual mesmo diante das novas economias psíquicas constatadas com a modernidade e quantificadas na pós-modernidade. Os argumentos da psicanálise, portanto, em termos de sentido da vida dizem, a partir da ética do desejo, sobre uma responsabilidade da parte do próprio sujeito por sua vida e pelo sentido que lhe dá. Por conseguinte, a ética da psicanálise implica aquilo que o sujeito assume e adota e, que, partindo dele mesmo, alcança o laço social.

Quanto ao subjetivismo religioso que compõe uma das vias de apreensão do sentido da vida e do sentido do sagrado, não parece que possam ser vistos somente a partir da crítica que alude às alienações e ilusões. Todavia, se a crítica de Freud não se aplica, na íntegra, ou então, se configuraria insuficiente ou inaplicável quanto a discussões que envolvam fé religiosa, existência de Deus ou o sagrado, não parece ser uma inverdade a alienação religiosa presente ainda hoje. Certamente, escolhas e práticas religiosas não implicam, necessariamente, uma criticidade reflexiva acerca delas, dadas suas características afetivas e subjetivas. No entanto, é mister que, quando são mantidas latentes ilusões religiosas, essas contribuem para estados de adoecimento ao invés de libertação. E, ao se constatar que um mercado religioso reforça expectativas com a religião, os sujeitos suprimirem estados de desprazer dos mais variados tipos, está sendo, a religião, mais um agente fomentador de estados ilusórios, heterônomos e de esvaziamento, num contexto, a esse respeito, já bastante agravado.

Parecem, então, estar evidentes o esvaziamento ético no sujeito contemporâneo, os prejuízos quanto às possibilidades de uma crítica mais racionalmente reflexiva acerca de si mesmo e do contexto em que está inserido. Contudo, seria vital que houvesse, ainda, esperanças de que as instituições humanas pudessem reverter, ou suavizar, o quadro de niilismo ético que hoje se apresenta. Aplainar do sujeito a carência de um telos que o oriente ante a liquidez, as efemeridades e as porosidades que constituem as culturas contemporâneas e que, de forma determinante, se não irreversível, também atingem seu ethos interno, pelo qual deveria pautar seus princípios e valores.

1Trecho retirado da Conferência de Roland Chemama: “O que nós entendemos por sintoma em nossos dias?” Porto Alegre – RS, maio de 2017.

2Conferência: O que nós entendemos por sintoma em nossos dias? Porto Alegre – RS, maio de 2017.

3Conferência: “O que nós entendemos por sintoma em nossos dias?” Porto Alegre – RS, maio de 2017.

4Inicialmente e, partir da conferência de Roland Chemama (2017) sobre o que entendemos por sintoma na atualidade, é imprescindível que a noção de sintoma não pode se tratar de uma única concepção, mas, antes, de um conjunto de aspectos presentes na cultura, sendo que dela e do social advêm os sintomas individuais e coletivos, pode-se dizer. Todavia, primeiramente, o sintoma, em nossos dias, de modo geral, versa sobre aspectos que são amplamente difundidos, como é o caso da medicalização (excessiva) para situações, muitas vezes, ligadas a uma passagem ou a momentos específicos da vida. Depois, há os sintomas que se dão de forma mais discreta e podem estar em situações diversificadas, do âmbito individual ao familiar, por exemplo. Contudo, para se falar de modernidade como um grande sintoma, há um aspecto de especial relevância que diz respeito à compreensão do sintoma como algo que está no lugar de outra coisa; algo que viria a dizer de outra forma que não em palavras, sobre aquilo que o sujeito não pode dizer. Acerca disso, Chemama (2017) refere aos ensinamentos de Lacan sobre o sintoma como um significante. Um significante de um significado recalcado na consciência do sujeito, e, por isso, o sintoma é simbólico, parte do simbólico e é o que permite interpretá-lo. Pode-se, então, ler o sintoma como uma metáfora: o simbólico que remete à linguagem. E há outro aspecto de destaque: o sintoma parte do real. Todavia, existem diferentes concepções de real em Lacan, alerta Chemama, mas, de alguma forma, vem a ser aquilo contra o qual o sujeito se bate, tropeça; é da ordem do impossível. Aquilo que nos impede de avançar, mas, ao chegar ali, algo machuca e faz parar. Para Lacan, o sintoma vem do real e não é simplesmente porque a teoria evolui, mas porque o campo do sintoma está se modificando; certos sintomas tomam, na clínica contemporânea, um espaço maior e, de modo geral, a explicação se situa no campo social, no desfuncionamento da função paterna, hoje, na falha paterna.

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Recebido: 27 de Junho de 2018; Aceito: 01 de Setembro de 2018

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