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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.spe2 Caxias do Sul  2018  Epub 27-Ago-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.especial.9 

Dossiê Educação, Ética e Religião

Ética e educação em Lima Vaz

Ethics and education in Lima Vaz

Cláudia Maria Rocha de Oliveira* 

Edvaldo Antônio de Melo** 

*Professora-Adjunta no Departamento de Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Doutora pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. : claudiamroliveira@gmail.com

**Mestre e doutorando pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Bolsista da Capes. : edvaldoantonio87@gmail.com


RESUMO

Resumo

Neste artigo, defendemos a tese de que a educação é um dos temas fundamentais da reflexão de Lima Vaz. Propomos mostrar de que maneira, para ele, o ethos possui papel importante na formação da consciência e da personalidade morais. Em primeiro lugar, explicitamos em que sentido a educação, embora não seja o tema principal de nenhuma obra de Lima Vaz, pode ser compreendida como tema transversal que perpassa pelas obras do autor. Em seguida, mostramos qual é o papel do ethos na constituição do caráter. Ora, o ethos é coextensivo à cultura. Ao ser socializado, o sujeito aprende uma língua, pode ser introduzido nas tradições de uma religião, e interioriza normas de conduta. Por um lado, o ethos tem importante papel na formação do caráter e da personalidade. A comunidade educa o indivíduo e, nesse sentido, é também responsável por ele. Por outro, o hábito ético garante a permanência do ethos. Logo, o sujeito também é responsável por suas ações e pela manutenção do ethos. Finalmente, referimos que a crise do ethos e da tradição torna necessário adotar uma postura reflexiva, que é preciso tomar distância e avaliar o próprio ethos concreto. A relação entre sujeito e ethos não é completamente determinada. O sujeito pode sempre se opor às tradições e colocar em questão a validade das mesmas. Além disso, quando as tradições estão em crise, urge redescobrir nova orientação através do exercício do logos. Essa orientação deve ser capaz de conduzir o sujeito à realização do bem.

Palavras-chave:  Ética; Educação; Ethos; Tradição; Bem

ABSTRACT

Abstract

In this paper, we defend the thesis that education is one of the fundamental subjetcs of Lima Vaz’s reflection. We propose to show in which way, for him, the ethos plays an important role in the formation of the moral consciousness and personality. In the first place, we will explain in what sense education can be understood as a transversal theme that runs through the author’s works, although education is not the main theme of any work of Lima Vaz. In addition we will explain the role of ethos in the constitution of character. The ethos is coextensive with culture. When the person is socialized he or she learns a language can be introduced into the religion traditions and internalize conduct rules. On the one hand, the ethos has an important role at the character and personality formation. The community educates the individuals. It is responsible for them. On the other hand, the ethical habit guarantees the permanence of the ethos. Therefore, the person is also responsible for his or her actions and the ethos maintenance. Finally, we will show that the crisis of ethos and tradition makes necessary adopting a reflexive posture. It becomes necessary to take distance and evaluate concrete ethos. The relation between the person and ethos is not completely determined. The person can always oppose the traditions and ask their value. Moreover, when traditions are in crisis is necessary to rediscover a new orientation to action through the logos exercise. This orientation must be able to lead the person to the realization of the good.

Keywords:  Ethics; Education; Ethos; Tradition; Good

Introdução

A tese que propomos defender neste artigo consiste em afirmar que a questão da educação, compreendida como paideia, constitui-se em um dos temas fundamentais da reflexão Limavaziana. Para o filósofo jesuíta, a questão da formação da consciência e da personalidade morais pode ser pensada a partir de dois níveis distintos, embora complementares: no primeiro nível, o sujeito, ao ser socializado, interioriza normas e costumes do ethos concreto que passa a ser assumido por ele como morada simbólica. A interiorização dessas normas conduz à formação do hábito, plasmador do caráter. A aquisição do hábito torna possível a formação da consciência e da personalidade; no segundo nível, o questionamento do ethos conduz à necessidade de avaliar os costumes e de orientar as ações por princípios universais apreendidos pela razão prática. Nesse nível, o sujeito eleva sua consciência ao patamar da universalidade da razão, tornando-se capaz de avaliar e julgar a própria validade do ethos concreto. Por conta dos limites deste artigo, não teremos condições de apresentar como Lima Vaz desenvolve os dois níveis da questão. Concentraremos nossa atenção no primeiro nível. Trata-se de investigar, portanto, como, para Lima Vaz, o ethos assume lugar fundamental, embora não determinante, na formação da consciência e da personalidade morais e em que sentido esse nível de formação deve ceder lugar a um segundo: o reflexivo.

1 A educação como “questão” ético-filosófica

O filósofo brasileiro Henrique Cláudio de Lima Vaz não escreveu nenhuma obra específica sobre o tema educação. O seu sistema filosófico, dividido em três momentos distintos, tem uma intenção metafísica de base: pensar a relação entre o Absoluto e a história. No primeiro momento do sistema, ao se interrogar “Quem sou eu?”, Lima Vaz parte da experiência mais elementar que fazemos de nós mesmos e elabora a Antropologia filosófica. No segundo momento, coloca a pergunta a respeito de como devemos orientar nossas ações, para que elas se constituam em ações éticas e, em consequência, possibilitem nossa realização como pessoa. Com o intuito de encontrar resposta a tal questão, elabora uma ética sistemática. Finalmente, na última fase do seu sistema, ou melhor, na obra Raízes da modernidade, propõe pensar o Absoluto transcendente como condição última de possibilidade e de sentido do existir e do agir humanos na história.

Embora não tenha dedicado uma obra específica ao tema educação, a questão da formação como processo que torna possível ao homem se elevar à universalidade da razão e se constituir como sujeito de sua própria história perpassa por todas as obras de Lima Vaz. (RODRIGUES, 2014, p. 43-56). O filósofo brasileiro defende que somos ontologicamente pessoa. Contudo, aquilo que somos, em ato primeiro, precisamos realizar concretamente em ato segundo, ou seja, através de atos pessoais compreendidos como “manifestações do homem que recebem seu selo mais profundo de humanidade”. (LIMA VAZ, 1992, p. 193). Surge, então, a questão: O que faz com que o sujeito se eleve à universalidade da razão e exista não apenas como sujeito empírico, mas como pessoa?

Para Lima Vaz, a realização do sujeito como pessoa pressupõe a necessidade de um processo pedagógico capaz de elevar o indivíduo da situação contingente e empírica à universalidade objetiva do Bem. A possibilidade do existir pessoal concreto, ou seja, do existir no qual o sujeito se realiza como pessoa, supõe, portanto, um processo contínuo de formação através do qual é concedida a cada sujeito a possibilidade de se tornar quem ele verdadeiramente é, ou seja, pessoa. Nesse sentido, a educação assume, na filosofia de Lima Vaz, o sentido de paideia grega que, como nos mostra Giovanni Reale (1995, p. 194), “assume pouco a pouco nos filósofos o significado de formação, de perfeição espiritual, ou seja, de formação do homem no seu mais alto valor”, ou ainda, de “formação da perfeição humana”.

Em se tratando desse lugar da paideia em seu pensamento, pode-se constatar que a “questão” da educação já se encontra presente em sua tese doutoral intitulada Contemplação e dialética nos diálogos platônicos. (LIMA VAZ, 2012). Lima Vaz parte da paideia de herança grega. Trata-se de uma investigação que tem origem na própria sofística, mas que não se reduz à arte da persuasão, pois a filosofia tem como fim a “educação para a vida”, a saber, uma formação para a vida da cidade (a pólis), envolvendo questões da vida prática, como a justiça.

De início, conforme se pode constar nos registros oriundos da sofística do século V. a.C., sobretudo com Protágoras e Górgias, a preocupação central era com a questão da natureza (physis) e da lei (nomos). Os defensores da lei diziam que a vida social baseava-se na convenção ou no acordo, de modo que a justiça social era para proteger essa convenção. A tradição consistia na transmissão desses valores às crianças por meio da educação. (LIMA VAZ, 2012, p. 47-48).1 A partir desses elementos, dentre outros, oriundos da sofística, Lima Vaz afirma que Platão assume a postura crítica socrática2 em seus diálogos, mostrando que as posições de Protágoras e de Górgias conduziam ao relativismo. Desse modo, seria difícil admitir com eles o conceito de virtude que pudesse ser associado ao fundamento da educação.

No nosso entender, a partir dessa crítica socrática, Lima Vaz também encontra inspiração para sua tese doutoral, conforme ele mesmo afirma:

“Convém considerarmos um pouco mais de perto essa crítica socrática, pois, segundo nos parece, é a partir dela que nasce a doutrina platônica da contemplação”. (LIMA VAZ, 2012, p. 49).3 No entanto, retomando o pensamento oriundo de Aristóteles, a postura assumida por Lima Vaz sobre a educação não é mera teorização sobre princípios. O modo como ele interpreta a contemplação diz respeito à vida prática, a saber, à ética e à política. O tema educação é chamado em causa, inclusive, como uma tentativa de responder às exigências éticas da época moderno-contemporânea diante da crise dos valores.

E, assim, pode-se ressaltar que a preocupação de Lima Vaz com o relativismo, bem como com o niilismo contemporâneo vem dessa consciência aguçada da leitura que ele faz dos clássicos gregos, sobretudo de Platão, que o desperta para uma visão humanista crítica. Conforme ele interpreta, foi graças à paideia, tendo como alvo a virtude, que a experiência do destino e da fortuna, longe de alimentar um resignado fatalismo na alma grega, estimulou todas as suas energias para responder, com a criação da ética e da política, à ameaça do niilismo moral que sobre ela pairava na hora da desagregação do ethos tradicional”. (LIMA VAZ, 2011, p. 143-144).

Essa visão, da qual se origina o pensamento ético e político, tem, em seus germes, uma preocupação primordial com a formação do homem, como uma “cura de si mesmo” (PLATONE, Alcibiade, 127e) e da alma em sua profundidade. Esse cuidado vem expresso em termos de uma psicagogia (LIMA VAZ, 2011, p. 20)4 na condução da alma para o Bem. E, assim, como se pode afirmar, não se trata somente de uma “questão” de conhecimento da alma, mas em orientá-la no que diz respeito também aos apetites humanos. Daí a necessidade de uma educação que levasse em consideração a dimensão erótica (eros) e a razão (logos) na pretendida Paideia. (LIMA VAZ, 2011, p. 17). A partir da articulação dessas dimensões, entende- se a preocupação com a formação do homem para a vida social, conforme se pode ver em A República: a vida da cidade (pólis) reflete a própria alma (PLATÃO, A República, IV, 439b-442e), de modo que não bastaria uma educação sofística com a arte da persuasão, mas era preciso também a formação para a vida política, que levasse em consideração os valores de justiça.

Inspirado na tradição clássica, Lima Vaz assume a educação como tema transversal que percorre toda sua reflexão. Não se trata para ele, portanto, de pensar simplesmente o desenvolvimento de determinadas habilidades humanas em detrimento de outras. O processo de formação deve ser integral, ou seja, deve envolver o ser humano na sua totalidade e permitir sua realização. Essa concepção de formação integral constitui-se em um dos pressupostos do personalismo cristão do qual Lima Vaz pode ser considerado, ao mesmo tempo, herdeiro e representante. Apenas para citar um exemplo, Emmanuel Mounier, no Manifesto ao serviço do personalismo, ao indicar os desafios para uma educação integral, defende, entre outras coisas, que a educação não pode ser totalitária, mas precisa ser total. Ela deve considerar “o homem todo inteiro, toda a sua concepção e toda a sua atitude perante a vida”. (MOUNIER, 1967, p. 133-134). Cabe, então, perguntar: Como se dá efetivamente esse processo de educação que pode ser compreendido como Paideia? Como dissemos na introdução, para Lima Vaz esse processo se dá em dois níveis. Neste artigo, explicitaremos apenas como acontece a formação do caráter no nível do ethos concreto.5

2 O ethos e o processo de formação do caráter

Para Lima Vaz somos seres sociais por natureza. As relações são constitutivas do nosso ser pessoa. Isso significa que “do ponto de vista da estrutura social, o indivíduo não se apresenta como molécula livre, movendo- se desordenadamente num espaço sem direções privilegiadas e regido apenas pela lei da probabilidade de choque com outras moléculas – os outros indivíduos”. (LIMA VAZ, 1993, p. 23). Além isso, o indivíduo também não é um ser unicamente de carências e necessidades que busca, de modo egoísta e solitário, a satisfação de seus interesses; ao contrário, o sujeito apenas se realiza humanamente na relação com o outro. Isso significa que apenas podemos nos afirmar na nossa singularidade porque estamos submetidos a um processo de socialização através do qual somos reconhecidos pelos outros e também os reconhecemos como seres de valor e dignidade. Nesse sentido, apenas nos humanizamos na medida em que somos capazes de nos elevar à universalidade de um ethos concreto e de compartilhar com outros os mesmos valores e normas de ação que tornam possível estabelecer relações recíprocas. Vejamos, pois, o que torna isso possível.

2.1 A racionalidade implícita no ethos

Lima Vaz esclarece que a palavra ética teve origem a partir de dois vocábulos gregos: ethos (com eta inicial) e ethos (com episilon inicial). No primeiro caso, ethos significa abrigo protetor, segunda natureza, morada simbólica. Ele deve ser compreendido, portanto, como o conjunto de costumes que tem uma racionalidade implícita e que serve de critério para orientar a ação dos sujeitos históricos que compartilham determinado ethos. Trata-se, como mostra Lima Vaz, de “um lugar de estada permanente e habitual, de um abrigo protetor”, ou ainda, de um “esquema praxeológico durável, estilo de vida e ação”. (1993, p. 13). Compreendido nesse sentido, o ethos torna o “espaço do mundo [...] habitável para o homem”. Enquanto tal, “ele não é dado ao homem, mas por ele construído ou incessantemente reconstruído”. Portanto, nunca está completamente pronto ou acabado. Nele se inscrevem “os costumes, os hábitos, as normas e os interditos, os valores e ações” que podem ou não configurar a vida do indivíduo como expressão radical “do dever-ser ou do Bem”. (1993, p. 13).

Por sua vez, o vocábulo ethos (com episilon inicial) significa uma disposição habitual. Ele se refere “ao comportamento que resulta de um constante repetir-se dos mesmos atos”. Nesse sentido, Lima Vaz esclarece que ethos (com episilon inicial) é “o que ocorre frequentemente ou quase sempre (pollákis), mas não sempre (aeí), nem em virtude de uma necessidade natural”. Ele diz respeito, portanto, à “constância no agir que se contrapõe ao impulso do desejo (órexis)”. (LIMA VAZ, 1993, p. 14). A disposição habitual tem como termo a posse estável do hábito que é expressa pelo termo hexis, conforme interpreta Aristóteles em sua ética. (Ética a Nicômaco, II, 6, 1106b36-1107a1). De acordo com Lima Vaz, a hexis é vista como “princípio próximo de uma ação posta sob o senhorio do agente e que exprime a sua autárkeia, o seu domínio de si, o seu bem”. (1993, p. 14).

Ora, ethos (costume) e ethos (hábito) devem ser compreendidos numa circularidade dialética mediada pela práxis. O indivíduo empírico, ao elevar- se à universalidade do ethos (costume) age de acordo com a normatividade do ethos. A contínua orientação da ação a partir da normatividade dos costumes garante a formação do hábito ético. Lima Vaz defende, pois, que há “uma circularidade entre os três momentos: costume (ethos), ação (práxis),hábito (ethos-hexis), na medida em que o costume é fonte de ações tidas como éticas, e a repetição dessas ações acaba por plasmar os hábitos”. (1993, p. 15). E é, justamente, “entre o processo de formação do hábito e o seu termo como disposição permanente para agir de acordo com as exigências do bem ou do melhor” que “o ethos se desdobra como espaço da realização do homem, ou ainda, como lugar privilegiado de inscrição de sua práxis”. (1993, p. 14-15).

Ao orientar continuamente as ações, a partir da racionalidade do ethos (costume), o sujeito adquire o hábito ético, ou ainda, como afirma Aristóteles, adquire uma disposição de caráter que é conforme o exercício da virtude moral. Instaura-se, assim, a circularidade dialética que Lima Vaz afirma existir entre o ethos (costume) e o ethos (hábito), mediada pela práxis que “procede do ethos como do seu princípio objetivo e a ele retorna como a seu fim realizado na forma do existir virtuoso”. (1993, p. 15-16).

O conjunto de tradições, normas, costumes de um grupo social explicita, através do conjunto de valores compartilhados por seus membros, a racionalidade implícita no ethos. Logo, um primeiro nível de formação, que se dá a partir da mais tenra idade, supõe a elevação do sujeito à universalidade dos valores da comunidade. Ora, ao elevar-se à universalidade do ethos, a práxis do sujeito se constitui como práxis ética. O sujeito torna- se, pois, capaz de fazer o que deve ser feito à luz dos costumes e tradições de determinada comunidade.

De que modo a práxis do sujeito, elevando-se à universalidade do ethos, constitui-se como práxis ética? De que maneira o sujeito interioriza os princípios que devem orientar a própria vontade na direção da realização do melhor? A comunidade, como veremos, tem aqui papel fundamental.

2.2 A importância da comunidade no processo educativo

Para ser capaz de guiar a práxis de acordo com o ethos, o sujeito precisa ser educado pela comunidade. Apenas ao interiorizar os princípios normativos implícitos no ethos, o sujeito age de acordo com os costumes e, ao mesmo tempo, garante a permanência do próprio ethos. A comunidade atua como lugar importante da transmissão de valores e normas para a educação e como lugar privilegiado de expressão das formas simbólicas do ethos. Tendo em vista esses elementos, o tempo ganha significância qualitativa exemplar.

2.2.1. A importância da tradição para a “trans-missão” do ethos

A comunidade, à medida que conserva e transmite valores da tradição, assume importante papel no que diz respeito à formação do indivíduo. Como no ethos não há lugar a uma necessidade dada como na phýsis, mas uma necessidade instituída, a tradição suporta e garante “a permanência dessa instituição”. Ela se constitui como “estrutura fundamental do ethos na sua dimensão histórica”. (1993, p. 17).

Compreendida em sentido literal como “entrega ou transmissão de uma riqueza simbólica que as gerações passam uma à outra”, a tradição denota, como esclarece Lima Vaz, “a estrutura histórica do ethos e sua relação original ao fluxo do tempo”. (1993, p. 17-18). À medida que deve ser compreendida a partir do “poder-ser transmitido”, a tradição garante a permanência da cultura ao longo do tempo. Os valores e normas transmitidos de geração em geração garantem a permanência e a constância do ethos, que, embora esteja sempre em processo de construção, conserva traços que preservam a unidade e a identidade de determinada cultura.

O ethos (costume), portanto, para que seja singularizado na práxis ética, deve ser pensado a partir do seu “poder-ser transmitido”. O indivíduo empírico eleva-se à universalidade do ethos e se constitui como sujeito ético graças à tradicionalidade constitutiva do ethos. Por poder ser transmitida no fluxo do tempo, a normatividade própria do ethos pode ser interiorizada e assumida como norma de vida pelos sujeitos, membros de determinada comunidade. A tradição é pensada, por Lima Vaz, portanto, como “a relação intersubjetiva primeira na esfera ética”. Ela se constitui, segundo ele, como “relação que se estabelece entre a comunidade educadora e o indivíduo que é educado justamente para se elevar ao nível das exigências do universal ético ou do ethos da comunidade”. (1993, p. 19).

2.2.2 Formas simbólicas do ethos

Ora, o ethos é coextensivo à cultura, ou seja, “a cultura é inseparável do ethos ou a cultura – toda cultura – é constitutivamente ética”. (LIMA VAZ, 2000, p. 40). Isso significa que a normatividade e a universalidade do ethos encontram, na cultura, expressões simbólicas privilegiadas à sua transmissão. Entre essas formas privilegiadas, podemos citar a linguagem, a religião e a sabedoria da vida. Cabe, então, explicitar de que modo essas palavras simbólicas fazem com que o indivíduo ultrapasse sua condição meramente empírica e se eleve à universalidade do ethos.

Quando a criança apreende uma língua, por exemplo, mais do que ser capaz de dominar ou utilizar um sistema de sinais, ela interioriza um modo de pensar intersubjetivo. Não há língua de um sujeito solitário. A linguagem é sempre expressão de uma coletividade. Ela se constitui como sistema simbólico próprio de determinada cultura. Isso significa – como afirma Lima Vaz – que a linguagem deve ser compreendida como “o lugar primeiro de manifestação da normatividade do ethos”. Ela deve ser pensada, pois, como “uma estrutura lógico-dialética” na qual a universalidade do costume se une à singularidade da práxis. (1993, p. 40).

Em consequência, ao aprender uma língua, a criança interioriza um conjunto de normas pressupostas na própria estrutura da linguagem e também conotações normativas implícitas no uso de palavras e expressões. Ela, portanto, necessariamente, se eleva à universalidade de um ethos que é partilhada entre os membros da comunidade através da mediação da linguagem.

Outra forma privilegiada de transmissão de valores e normas é a religião. Como mostra Lima Vaz, “a expressão do ethos na forma do ensinamento e do comportamento religiosos é um fato universal de cultura, e é impossível separar, na história das grandes civilizações, tradição ética e tradição religiosa”. (1993, p. 41). Durante muito tempo, portanto, as sociedades encontraram, na religião e na afirmação de uma instância transcendente, o mecanismo mais eficaz para garantir o cumprimento de normas. Capaz de punir e recompensar os indivíduos pelos atos praticados, a instância transcendente dispõe, nesse caso, “de um poder legislador e julgador revestido do prestígio do sagrado”. (1993, p. 40). Isso faz com que as normas ditadas pelo transcendente adquiram objetividade e força motivadora capaz de obrigar e também de formar a consciência moral dos sujeitos.

Além da linguagem e da religião, a sabedoria da vida também se apresenta como expressão cultural privilegiada na transmissão de normatividade própria do ethos. Ela se exprime na forma de lendas, fábulas, provérbios e parábolas. As fábulas contadas às crianças têm o papel de levá-las a interiorizar determinados princípios que podem ser explicitados na moral da história. Os provérbios também têm o papel de imprimir, na consciência dos indivíduos, determinados valores defendidos em uma sociedade. Muitas vezes, escondem interesses ideológicos e ajudam a manter o status quo; outras vezes, eles são a expressão de valores que podem ser defendidos como universais, ou seja, como critérios de possibilidade para a autorrealização do indivíduo e da sociedade.

O ethos, portanto, encontra expressão de sua normatividade em elementos constitutivos da cultura. O indivíduo aprende e interioriza, de modo espontâneo, valores e normas implícitos em determinado ethos, à medida que aprende uma língua, se orienta pelo exemplo dos mais velhos, ou ainda, quando, a partir de provérbios e fábulas, é capaz de intuir quais são os critérios com base nos quais deve orientar a própria vida.

2.2.3 A temporalidade exemplar na educação

Ao afirmar que a comunidade tem grande responsabilidade no processo educativo do indivíduo, Lima Vaz mostra que a tradição assume lugar fundamental. Ora, essa posição se apoia numa concepção específica de temporalidade. Segundo esse autor, a noção de tempo pressuposta pela ideia de ethos como tradição não pode ser compreendida como movimento puramente linear. O tempo linear quantitativo se apoia na ideia de um progresso contínuo que desvaloriza o passado e lança ao futuro a tarefa de se constituir como instância normativa à vida humana. Ao contrário, ao afirmar íntima relação entre ethos e tradição, Lima Vaz defende uma concepção qualitativa de tempo que deve ser pensada a partir da circularidade dialética que vigora entre as noções de ethos (costume) e de ethos (hábito). Isso significa que para ele “na estrutura do tempo histórico do ethos, o passado se faz presente pela tradição, e o presente retorna ao passado pelo reconhecimento da sua exemplariedade”. (1993, p. 20). O passado, assim compreendido, esclarece Lima Vaz, é “suprassumido na universalidade normativa e paradigmática dos costumes”, e se torna instância fundadora e julgadora do conteúdo ético” dos costumes no “aqui e no agora da práxis que a ele se refere”. (1993, p. 19-20).

Ao valorizar a tradição e pensar o passado na sua exemplaridade, Lima Vaz entende que a comunidade, ao pressupor as várias experiências vividas por seus membros e ao apoiar-se em valores e normas que estão na base dessas mesmas experiências, deve assumir a função educadora de formar e orientar o indivíduo para que ele também se torne capaz de se elevar à universalidade dos valores e normas e tenha condições de orientar a própria vida na direção da sua humanização, ou seja, da sua autorrealização.

Graças à função educadora do ethos, o indivíduo se torna capaz de “passar da liberdade empírica ou da liberdade de arbítrio à liberdade ética ou liberdade racional” compreendida como “um consentir livremente à universalidade normativa do ethos”. (LIMA VAZ, 1993, p. 26). Isso significa que, para Lima Vaz, é unicamente “através da prática social da educação” que os indivíduos podem passar “do ser empírico da sua existência natural ao ser ético da sua existência cultural”. (LIMA VAZ, 1993, p. 27). Nesse sentido, a educação é condição fundamental para que o sujeito se realize como ser racional e livre. A educação é o que torna possível o indivíduo elevar a sua práxis empírica à universalidade do ethos e desse modo realizar na própria praxis, de modo concreto, a universalidade do Bem assumido como fim.

3 A crise do ethos e a questão da formação do caráter

Vivemos, atualmente, o que Lima Vaz denomina “crise do ethos”. A primazia conferida pela modernidade à racionalidade instrumental tornou possível avanço significativo em vários âmbitos da vida humana. Porém, uma das consequências dessa primazia é a submissão da práxis ética ao domínio do agir técnico. A racionalidade instrumental tem em vistas a produção de objetos capazes de satisfazer necessidades fundamentais ou mesmo necessidades artificialmente constituídas. Ao orientar-se pelos critérios da eficácia e da utilidade, ela não é capaz de dar razões a respeito dos fins últimos que devem orientar a vida humana. Os valores éticos, progressivamente, cedem espaço a valores de troca.

O indivíduo passa a ser pensado como ser solitário e egoísta que tem como objetivo satisfazer carências e necessidades; além disso, ele é reduzido à mera função social. Os valores e normas tradicionais que orientavam a vida comunitária entraram em crise. O niilismo iguala todo juízo de valor. Não há mais distinção entre bem e mal. O tempo deixa de ser pensado como circularidade dialética na qual o passado tem função normativa. Tanto o passado quanto o futuro são negados. A sociedade contemporânea é marcada por uma supervalorização do presente. O importante papel educador da tradição passa por profunda crise. O futuro começa, também, a ser visto como enigmático e difícil de previsão. O passado (visto como obsoleto) perde seu papel de referencial às ações. O futuro como indecifrável também deixa de ser assumido como instância normativa.

Além disso, a globalização torna possível o estabelecimento de relações entre diferentes culturas. O encontro de tradições éticas distintas coloca em questão normas assumidas de modo espontâneo no interior de determinada coletividade. O conflito de interesses de grupos sociais distintos, nos níveis local e global, levanta o desafio ético de assumir também em termos planetários, a responsabilidade pelas consequências de nossas ações.

A educação assume, novamente, papel fundamental. Ela deverá permitir não apenas que o sujeito seja capaz de interiorizar os valores de determinado grupo social, mas também deve torná-lo capaz de elevar-se, pelo exercício da razão e da liberdade, à universalidade e, consequentemente, de ser capaz de existir concretamente, orientando sua vida a partir do signo da justiça. Coloca-se, portanto, o desafio de conceber uma formação que possibilite ao sujeito viver uma vida justa6 e responsável,7 na qual possa estabelecer relações de reconhecimento e consenso, garantindo, assim, a afirmação da própria dignidade8 e da dignidade do outro.

Não basta, portanto, fazer o que deve ser feito a partir do horizonte normativo de um ethos concreto. Surge, portanto, a necessidade de aprender a fazer uso reflexivo da razão para ser capaz de dar razões aos próprios atos. Lima Vaz segue, aqui, os passos de Aristóteles, relido e interpretado à luz do pensamento de Tomás de Aquino. Ele afirma a necessidade do sujeito de justificar, racionalmente, as próprias decisões, não apenas a partir de normas e costumes do ethos, mas também à luz do horizonte universal do Bem. Ora, é justamente como ser de razão e de vontade que o sujeito se abre, intencionalmente, ao horizonte do Bem. Logo, ao fazer uso da razão e da vontade que se particularizam como processos de deliberação e escolha, o sujeito poderá se tornar propriamente um sujeito virtuoso.

Como dissemos por conta dos limites deste artigo, não teremos condições de explicitar esse segundo nível de formação. Cabe, apenas, destacar aqui que para Lima Vaz o ethos, embora tenha papel fundamental na formação de nosso caráter, ele não é determinante em sentido absoluto. Isso significa que, mesmo uma pessoa que foi socializada em situações adversas pode romper com a determinação de um ethos e, através do exercício reflexivo da razão prática, formar, moralmente, sua consciência moral. O inverso também é verdade. De todo modo, isso não significa que o ethos não tenha importante função no processo de formação ética. Não há sujeito e ação éticos desassociados de um ethos. O processo de formação da consciência e da personalidade morais, que tem lugar em processos de socialização e interiorização das normas do ethos são fundamentais para criar, nos sujeitos, uma predisposição ao Bem, que, por sua vez, pode ser captado e aprendido pela razão prática.

Conclusão

Concluímos, então, que para Lima Vaz o ethos desempenha um papel importante na formação ética do sujeito. Os processos de socialização são orientados pela racionalidade própria de um ethos capaz de moldar nossa identidade e de nos predispor à boa ou má-ação. Logo, se, por um lado, o sujeito ético, na sua singularidade, deve assumir a responsabilidade por seus atos, por outro, a comunidade também tem responsabilidades diante do sujeito. Isso significa, em última instância, que a crise do ethos conduz à crise de orientação das ações. Essa, por sua vez, aumenta ainda mais a instabilidade do ethos. Por isso, numa realidade marcada pela crise da tradição, torna-se indispensável o exercício da razão prática como condição de possibilidade de orientação da ação segundo o melhor e o mais justo.

1Protágoras descreve esses hábitos morais referindo-se ao seu próprio magistério. (PLATÃO, Protágoras, 325c-326d); Górgias vê a paideia como um instrumento técnico eficaz para a vida política. (PLATÃO, Górgias, 452d).

2Trata-se de um problema que, no diálogo Menon, aparece ligado à questão do ensino da virtude. (PLATÃO, Mênon, 86c-87b).

3Não vamos adentrar aqui nos desdobramentos de sua tese e nem mesmo nas implicações da visão de paideia nos outros diálogos de Platão, porém, tentaremos encontrar pistas que norteiam o tema educação no autor.

4Ver também Trabattoni (2009, p. 106-108). Trata-se de uma interpretação que vem da leitura que Léon Robin faz do Fedro (1985, p. LI-LII) que, por sua vez, remete a Platão (Fedro, 261a-b).

5Importante é indicar que, no segundo nível, não há, propriamente falando, um abandono do ethos, mas apenas uma tomada de distância em relação a ele.

6Tomás de Aquino fala do caráter de alteridade na justiça que diz respeito ao Bem comum, de sua preeminência sobre o bem particular dos indivíduos. “O nome de justiça implica igualdade; por isso, em seu conceito mesmo, a justiça comporta relação com outrem”. (Suma Teológica, IIa IIae, q. 58, a. 2). Lima Vaz, por sua vez, defende que “a idéia de justiça deve ser considerada como a categoria universal suprema que preside inteligivelmente ao exercício da vida ética na sua dimensão intersubjetiva ou enquanto vida na comunidade ética”. (2000, p. 182).

7Lima Vaz defende que “ao despertar para a consciência da responsabilidade pessoal de nossas ações nos encontramos [...] encerrados no espaço conceptual limitado de um lado por um sistema simbólico de costumes, normas e valores – o ethos; de outro, pela referência necessária do nosso agir àquele sistema – a práxis; povoado, [...] pela presença de outros sujeitos que agem segundo uma práxis homóloga à nossa e com os quais devemos nos inter-relacionar: a comunidade ética”. (2000, p. 231).

8A partir da noção de dignidade, Lima Vaz pensa a efetivação do universal da justiça no aqui e agora do existir concreto. Trata-se de um “exercício efetivo da relação de reciprocidade com o outro”. Isso significa que “somente o reconhecimento recíproco da dignidade [...] pode levar a relação intersubjetiva ao nível da equidade e da igualdade”, isto é, “torná-la relação de justiça”. (2000, p. 203).

Referências

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Recebido: 30 de Abril de 2018; Aceito: 01 de Setembro de 2018

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