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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.spe2 Caxias do Sul  2018  Epub 27-Ago-2019

 

Entrevistas

Entrevista com o Professor Dr. Thomas Kesselring


Uma entrevista é uma conversa intencional, em que o entrevistador pode propor um tema que se vai deixar fluir no contexto de uma conversa. Esse foi o espírito que animou o texto que o leitor tem em mãos.

O Professor Thomas Kesselring, filósofo suíço, dentre tantas outras atividades acadêmicas, estuda a realidade socioeconômica do Brasil, com a mesma perspicácia e agudez com que analisa problemas dos países em desenvolvimento. Autor de várias obras, tendo sido traduzidas para o português. Duas delas, inclusive, foram publicadas pela Editora da Universidade de Caxias do Sul (Educs): Ética, política e desenvolvimento humano: a justiça na era da globalização e Jean Piaget.

A entrevista foi realizada na cidade de Caxias do Sul – RS, em 6 de março de 2018, a dois professores da Universidade de Caxias do Sul: Geraldo Antônio da Rosa1 e Alexandre Cortez Fernandes2.

Professor Geraldo: Estamos num evento do Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul, com a seguinte temática: “Ética, Educação e Desenvolvimento Moral”. Uma de suas abordagens no evento refere-se às fases do desenvolvimento a partir do referencial de Piaget, em que sintetiza as etapas do desenvolvimento humano em quatro, fazendo uma ligação entre estas e a ética. Neste início de entrevista, o Professor Thomas Kesselring pode efetuar comentários, concernente às mesmas, uma vez que, em nossa literatura, não é comum entre pesquisadores brasileiros a análise das fases do desenvolvimento a partir de Piaget numa relação com a ética?

Professor Thomas Kesselring: Existe um livro famoso de Piaget: O juízo moral na criança, (ele foi um dos pioneiros a indagar sobre o desenvolvimento do juízo moral na criança) [...] No entanto, posteriormente, Piaget alterou o tipo de teoria. Os primeiros cinco livros dele seriam uma pista do que, depois, ele conceberia para ampliar tais estudos. O seu sucessor, Lawrence Kohlberg, fez uma abordagem que, embora também falasse em níveis de desenvolvimento, não se adequa bem à proposta de Piaget. Entretanto, o que eu fiz quando me dei conta dessa realidade, foi de inserir nessas reflexões elementos voltados a analisar a gênese da empatia e o conhecimento da criança, das emoções, dos sentimentos, e que essa análise encaixa-se naquele Piaget como ele se apresenta segundo minha teoria dos níveis. Há muitas pessoas que interpretam Piaget de outra maneira – e muitos que, inclusive, recusam aceitar a teoria dos níveis. O que me questiono é o que resta, feita essa recusa, da teoria de Piaget. Então, é o meu Piaget, [que] se encaixa dentro desta análise.

Professor Geraldo: O seu Piaget é um Piaget suíço; o nosso, talvez, seja um Piaget abrasileirado. Entretanto, há que se considerar que, enquanto pesquisador, o professor, por meio do contato direto com Piaget, teve a oportunidade de beber em sua fonte. Qual é o seu posicionamento sobre esta questão?

Professor Thomas Kesselring: Talvez. A colaboradora de Piaget [Bärbel] Inhelder conheceu meu livro e o considerou a melhor introdução. Um colega e aluno de Piaget, que conheci, há aproximadamente vinte anos, no Rio de Janeiro, em 1996 (e Piaget, curiosamente, havia nascido em 1896, ou seja, conhecemo-nos em seu centenário), também concordou com minha interpretação. Reconheço, entretanto, que muitos não concordam, inclusive batem-se contra ela e quero mencionar isso. Mas eu me sinto também fortalecido pelo fato de conseguir explicar alguma coisa que os outros não consideram: aquilo que Piaget disse – que em cada nível a criança tem de repetir as mesmas batalhas, devidamente, ou seja, o mesmo tipo de desafio, mas em níveis diferentes. Estou convicto de que se pode continuar a indagar empiricamente e a elaborar, mais ainda, essa teoria de Piaget em vez de abandoná-la. Em muitos países, como no Brasil, Piaget estava na moda durante uma década ou duas e, depois, os mesmos que a seguiram mudaram para Vygotski, que, por sua vez, também se converteu em moda. Eu tinha de me desculpar por ainda falar de Piaget. Isso tudo, para mim, não é uma pesquisa séria. Bom, eu tive a sorte de estudar filosofia em Heidelberg quando seu ensino teve sua melhor época, e isso me estimulou a constituir meus passos. Eu estudei Piaget não sabendo que ele era moda na psicologia alemã, visto que, na filosofia, ninguém o conhecia. Isso me interessava. Piaget não era conhecido. Bem, meu motivo era compreender melhor a dialética de Hegel (pois, oficialmente, meu trabalho centrava-se nela) e tinha a impressão, a intuição, de que, para compreendê-la melhor, a partir de certo ponto, eu teria de ler Piaget.

Professor Geraldo: Suas abordagens durante seu seminário ministrado aos estudantes de Pós-Graduação em Educação e Filosofia foram muito instigantes. Professor Thomas, pode dar um exemplo mais concreto a respeito da ética e dos níveis de desenvolvimento de Piaget?

Professor Thomas Kesselring: Sim. A chamada “regra de ouro”: não faz ao outro o que não queres que façam a ti. É uma regra, segundo Piaget, compreendida por crianças a partir de 2/10 anos – eu diria que provavelmente, até um pouco antes. É uma regra que a criança começa a compreender a partir do momento no qual ela está capaz de se pôr na posição da outra pessoa, de ver o mundo a partir da perspectiva da outra pessoa. Não só o mundo: a criança começa a atribuir à pessoa outros interesses, outras prioridades, outras experiências. Ela já sabe – quando, por exemplo, as crianças fazem um jogo de regras – que o parceiro não gosta se ela trapaceia, se ela não segue as regras. Ninguém quer ser enganado. Essas coisas são atribuídas à regra pela criança: o outro não quer que eu o engane, assim como eu não quero ser por ele enganado. No entanto, a “regra de ouro”, em princípio, ainda permanece uma regra egocêntrica, já que, fora do contexto da cooperação, eu não posso saber qual é a prioridade da outra pessoa. Se eu quero, por exemplo, dar um presente a uma pessoa que não conheço muito bem, eu posso pensar que talvez ela se interesse por aquele livro pelo qual eu também me interesso. Talvez tenha sorte, talvez não. Eu dou o exemplo do masoquista que gosta de ser batido: ele pensa que os outros talvez também compartilhem desse gosto – vamos, então, bater neles. Em sua teoria, Piaget fala sobre descentração, sobre abrir essa prisão que é meu ponto de vista; portanto, preciso superar esse egocentrismo da “regra de ouro” e verificar como a outra pessoa quer ser tratada. Agora, o mesmo tipo de exemplo na pequena criança, de 2 anos, 1 ano e meio: pode-se perceber que, a partir de 1 ano e meio, 14 meses, uma criança, ao observar um colega machucado, empatiza com ele e vai confortá-lo. Quer dizer, ela atribui ao outro sentimentos distintos dos que ela mesma possui.

Ou seja, já descentrou, não atribui os mesmos sentimentos à outra pessoa, já começou a superar o egocentrismo da “regra de ouro”. Essa regra já é, em si, uma abertura ao egocentrismo, uma vez que eu penso no outro, mas me coloco na posição do outro com as minhas prioridades e não com as dele. A mesma coisa ocorre com a criança de 1 ano e meio que conforta seu colega. Ela sabe que o colega se sente melhor quando é por ela confortado – mas a estratégia de confortá-lo permanece egocêntrica. A criança busca a própria mãe e diz: “Vai consolá-lo”, ou busca a própria boneca e oferece a ele, mas não pensa se o colega possui sua própria boneca ou sua própria mãe. Eu diria, então, que há um paralelismo total entre os dois exemplos, embora o segundo já ocorra com 1 ano e meio, e o egocentrismo comece a ser superado a partir dos 2 anos. No primeiro exemplo que dei, a descentração ocorre só depois. A bem da verdade, creio que muitos adultos sequer se dão conta desse lado egocêntrico da “regra de ouro”. É uma regra santa, pois ocorre no Evangelho, mas que permanece egocêntrica.

Professor Alexandre: Professor, é inegável que no Brasil a Educação Básica, sob algum ponto de vista, encontra-se muito atrelada ao Estado – o que facilmente se constata, já que cabe aos municípios, por exemplo, o Ensino Fundamental, ao Estado- membro, o Ensino Médio, etc. Qual é sua opinião sobre essa questão? Até porque discutir ensino público é discutir o Estado; assim, não se pode omitir a questão do Estado. Enquanto pesquisador, com um amplo espectro de atuação internacional, como o senhor avalia essa questão?

Professor Thomas Kesselring: Sim. Por um lado, também acho que há certa evidência de que o ensino que supera a educação familiar deva ocorrer sob a tutela do Estado. Qual Estado? Aquele em que o soberano for o povo, numa democracia – então, é claro, o rumo da educação deve ser decidido por essa sociedade. Talvez a situação se ponha de forma diferente em ditaduras. Se há um ditador, ou um pequeno grupo, que dita como o ensino deve ser feito (e aqui também penso na União Soviética da década de 30, quando dissidentes foram enviados para campos de concentração ou para instalações psiquiátricas com o fito de reverter sua cabeça, num verdadeiro brainwashing), então tal Estado não é o Estado capacitado a coordenar a educação. É uma questão que depende muito do tipo do Estado. Em um Estado com uma democracia funcional; por outro lado, penso ser claro que o ensino deva ser discutido dentro da democracia mesma, decidido por mecanismos democráticos. Hoje em dia, no entanto, normalmente, são especialistas (pedagogos, funcionários, burocratas) que tomam as decisões. Também participei de processos dessas decisões e achei que, ao final, muitas delas foram aleatórias, puramente aleatórias, mas estávamos tomando parte no processo de decisão. Habermas disse que é importante essa participação no processo de decisão. Nesse caso, você pode se identificar muito melhor com o resultado do que no caso em que um projeto a ser implementado seja ditado por alguém. Amanhã falarei sobre a economização da educação. Sei que há uma forte vertente, hoje, que diz que a educação deve ser aberta a ofertas privadas. Sim, por que não? Há muito tempo, isso é assim. Há escolas que são da Igreja, que não pertencem ao Estado; temos, no Brasil, as escolas Jean Piaget, que não são do Estado, ou ainda, as escolas antroposóficas, que também não são do Estado. Só que, hoje, eu percebo que, desde a década de 90, surgiram muitas empresas de ensino – ou seja, o ensino tornou-se um negócio rentável. O Brasil é famoso por suas empresas de ensino. Eu li, na Suíça, num jornal de 2012, que duas dessas grandes empresas se juntaram e, como efeito, na Bolsa de São Paulo, uma delas registrou um aumento de 150% em suas ações no primeiro ano e 60% no segundo. Então, o ensino é um grande negócio. No entanto, para não ser injusto, não quero condenar a privatização do ensino.

Professor Geraldo: Mas, olhando por outro lado, essa privatização não criará uma dualidade em termos de ensino? Ou seja, uma escola rica para os ricos e uma escola pobre para os pobres?

Professor Thomas Kesselring: Sim, claro! Já temos isso na Suíça: uma escola particular, aberta a todo mundo no mundo, onde também filhos de ditadores ou de empresários famosos ou de artistas famosos, vão – la crème de la crème. Entre parênteses, Kim Jong-un, o ditador da Coreia do Norte, frequentou uma escola pública suíça, trata-se da escola pública Liebefeld- Steinhölzli da cidade de Koeniz, localizada ao sul de Berna, mas ninguém sabia quem ele era – ele se chamava Pak Un. E sempre havia alguém da embaixada norte-coreana para vigiá-lo. Penso que isso também foi uma fraqueza da nossa burocracia de ensino: ninguém quis saber. E minha filha frequentou, naquela época, uma escola de dança e teve uma amiga sul-coreana, cuja família chegamos a conhecer. Seu pai, pastor, disse que havia outra filha coreana – com a qual era quase impossível entrar em contato, já que estava sempre acompanhada, cercada por alguém. Era a irmã do atual ditador, que recentemente acompanhou os artistas nas Olimpíadas de Inverno.

Professor Alexandre: Interessa-me a relação que o senhor possa estabelecer entre consumo, neoliberalismo e a questão do ensino.

Professor Thomas Kesselring: Eu gostaria de acrescentar algo à resposta à pergunta anterior. Eu vejo um perigo na privatização do ensino, que é a concentração. É o mesmo caso que se verifica nas mídias. As mídias são compradas por certos ricos. Na Suíça temos também essa concentração, onde um grupo de extrema-direita compra certos jornais e dita o que será publicado. A mesma coisa se arrisca no sistema de ensino: uma concentração. É algo sério. Isso pode ser abusivo. Vocês conhecem os estudos PISA dos quais o Brasil já participou. Quem elaborou esses estudos foi o Japão junto de quatro empresas particulares, que também apuram os resultados. Ou seja, isso tudo se encontra, também, já em mãos privadas. É muito comprometedor. Claro, é um debate ideológico. O que é melhor: o Estado ou o mercado? Eu sempre digo: o Estado, mas eu devo me corrigir. Agora, há pouco, falei da Coreia do Norte – há Estados e Estados. Às vezes, o mercado é, de fato, melhor. Isso eu devo conceder aos meus adversários. Aliás, a esquerda, na década de 70, era contra o Estado – nós lutamos contra o Estado. E, de repente, 20 anos depois, fizemos uma reviravolta. Como isso? Nós não somos coerentes. Como eu dizia: se o Estado for democrático, então, Estado; se temos uma ditadura, o mercado é melhor. Há mais vozes dissonantes, mais concorrência de opiniões. Se há uma concentração excessiva no Estado, temos uma ditadura ou uma autocracia ou algo similar. Se verificarmos essa concentração no mercado, não temos mais mercado, temos oligopólios ou monopólio. Um monopólio já não é mais mercado. Eu diria que, em ambos, no Estado e no mercado, isso pode ocorrer, uma concentração, e a concentração não é favorável, deve ser evitada. Talvez nós tenhamos, no longo prazo, que procurar um equilíbrio entre mercado livre (mas realmente mercado e livre, não oligopólio ou monopólio) e o Estado – mas, por favor, um Estado democrático e não autoritário. Agora, a questão do consumismo. Quando estive, há dez anos, no Brasil, fiquei entusiasmado com o sucesso do Bolsa-Família. Achei uma maravilha: há muito menos crianças de rua, meninos e meninas de rua, e a camada mais pobre saiu da miséria. A China conseguiu, a Índia conseguiu, o Brasil conseguiu – eis os três grandes exemplos. Por outro lado, eu me perguntei: O que é que essas crianças aprendem nas escolas públicas? Eu não vi avanço desde a década de 80 e fiquei preocupado com isso. Também a mentalidade daquelas não mais tão pobres que, logo, começaram a subestimar sua importância, que, de repente, criaram poder aquisitivo e nas quais os bancos estavam interessados, principalmente em seu consumo: “Ah, por favor, aqui está seu cartão de crédito; não, você não precisa de salário, você vai pagar amanhã, etc. “Isso cria o consumismo, uma atitude de viver nas despesas do futuro, ou à custa das futuras gerações até. As coisas começam a se sobre-estimar e o que falta é a formação, a educação. A princípio, famílias com dinheiro, mas sem formação ou educação. Isso não é sustentável. Creio que a mesma coisa ocorreu na Venezuela. Chávez fez algo muito agradável pelos pobres no momento dado, mas não pelo futuro – o futuro não existia. E, agora que estamos no futuro, a Venezuela encontra- se numa crise muito mais profunda que a do Brasil. O Brasil transformou os miseráveis em consumidores. E, também, no sistema de ensino, eu vejo isso na Suíça, há uma tendência de educar as crianças para transformá-las em consumidores. É bom que elas consumam, pois isso faz crescer a economia. Se nossa economia não cresce, então outras economias serão mais fortes e nós seremos derrotados na competição internacional. Tudo vai nessa direção. O ensino, então, em última análise, é bom para criar futuros empregados e consumidores, para manter andando a máquina econômica. Esse é o profundo sentido da vida: vivemos para manter o crescimento econômico.

Professor Geraldo: E, dentro desse contexto, qual é sua análise a respeito do fato de vivermos num mundo globalizado, a máquina funcionando dentro de uma determinada lógica e, dentro dessa lógica, como analisa a questão ética?

Professor Thomas Kesselring: A ética não tem um grande lugar. Eu não acho tão complicado compreender como a ética funciona, mas ninguém entende ou não se interessa. Eu chego, um pouco, à seguinte conclusão: não é muito sexy falar sobre ética. Não é. Se você escreve um livro sobre ética, será um worst seller. Não faz o menor sentido tornar-se pastor e predicar – isso é contraproducente, não adianta nada. Eu não consigo responder a essa questão.

Professor Geraldo: Principalmente, professor, os teólogos da prosperidade. Nós, em termos de América Latina, temos uma linha chamada Teologia da Libertação, que foi oferecida aos pobres. Os pobres, entretanto, preferiram uma teologia da prosperidade, que hoje se faz presente através dessas multinacionais que, de maneira intangível, oferecem a salvação, vendem um produto imensurável em que o sujeito é responsável por este mesmo produto. Mas, indo adiante: a questão dos direitos humanos, igualdade, competição, chances, poder, os direitos humanos hoje, os novos direitos, o boicote dos regimes violadores dos direitos humanos e um eurocentrismo em termos de direitos humanos. Professor Thomas, poderia nos dar uma visão panorâmica dessas questões?

Professor Thomas Kesselring: Criou-se uma confusão em torno dessas questões. Os direitos humanos são, cada vez mais, colocados em questão, sendo que não há nenhum país no qual todos os direitos humanos são realizados. As infrações ocorrem de forma muito acentuada em muitos lugares. O Brasil, como champion no número de homicídios, as grandes guerras na Síria, a guerra da Turquia contra os curdos... Isso parece completamente incompatível com a ideia de direitos humanos. O que concluir disso? Muitas pessoas começam a ridicularizar os direitos humanos: “Isso é um sonho abstrato que não adianta nada”. Eu não concordo. Faço a comparação com uma bússola. Numa corrida, numa expedição na selva, é necessária uma bússola. Mas o que é a bússola? A bússola nos mostra a direção rumo ao Polo Norte. Às vezes, uso uma bússola sem ter a ambição de chegar ao Polo Norte. Isso não me leva a jogar fora a bússola. Quer dizer: se os direitos humanos não são realizados, se não chegamos ao Polo Norte, pelo menos a bússola mostra-nos a direção. É isso que a Declaração dos Direitos Humanos faz. Se nós jogássemos fora os direitos humanos, então, de repente, a Anistia Internacional, a Transparência Internacional e outras ONGs que lutam em favor dos direitos humanos e contra a criminalização de pessoas que não concordam politicamente com os governos cairiam em pedaços. Então, você perderia a direção, e esses órgãos não teriam mais nenhum chão. E também não só essas ONGs, mas o público mundial, especialmente aquele que em muitos países, critica os governos que infringem direitos humanos. Na Europa, critica-se muito Putin, Erdogan e, agora, também os novos autocratas da Hungria e Polônia, Viktor Orbán e Andrzej Duda. Eu penso que para muitos desses governos isso importa. O governo prefere ter uma boa fama. Esse tipo de crítica que se baseia nos direitos humanos é sempre uma crítica moral. Não é uma crítica de que esse governo não é prudente ou de que não entende muito do negócio – é uma crítica moral. Os direitos humanos dão ao público uma direção imaterial, uma argumentação clara em favor ou contra certas estratégias de governo. Isso leva até a boicotes de governos que infringem direitos humanos. Às vezes, esses boicotes não movimentam muito – mas o caso histórico foi o do governo da África do Sul, o Apartheid. A Suíça boicotou as empresas sul-africanas – mas nem todas. Alguns, às escondidas, apoiaram. Depois, isso se tornou público. Essa é a confusão.

Professor Geraldo: Professor Thomas, o Brasil vivencia a questão Brasil, intervenção no Rio, violência, desrespeito aos direitos humanos. O que significa educar, hoje, a partir dessa perspectiva ética da educação?

Professor Thomas Kesselring: Durante 20 anos eu esperei que as escolas brasileiras melhorassem e que houvesse uma educação enveredada na ética para diminuir a violência. As escolas não melhoraram, e a violência explodiu. Não sei se há uma relação entre ambas as coisas ou não; acho que há muitas causas que levaram à explosão da violência: o narcotráfico, etc. Eu também acho que, desde sempre, o Brasil nunca teve bons exemplos na política, exemplos a seguir – mas são exemplos e são seguidos, mesmo que não sejam bons exemplos. Acho que a ordem social brasileira é cínica. John Rawls fala da ordem social, ele procura uma ordem social justa. O que me assustou há trinta anos foi esse cinismo implícito no abismo entre os extremamente ricos e os miseráveis, bem como um alto grau de indiferença. Depois, achei que a situação melhorou. A classe média assumiu, cada vez mais, responsabilidades. Eu fiquei muito entusiasmado. Foi na época quando o PT assumiu – eu me senti petista. Até 2005. Mensalinho, Mensalão. Grande surpresa. Também um exemplo ruim. Eu me sinto num embaraço desde 2005, pois não sei mais o que aconselhar. Nós temos um tipo de cinismo nas estruturas. Johann Galtung criou o conceito de “violência estrutural”. Acho que é uma violência estrutural esse abismo entre pobres e ricos, essa má-distribuição de chances, onde uma grande parte do povo não tem chances de evoluir, e uma pequena elite faz o que quer. Eu vejo, eu penso que essas estruturas cínicas, violentas segundo Galtung, criam violência física ou a incentivam. Não só as drogas, as gangues de drogas, mas em geral. É preciso já ter um alto grau de indiferença para tolerar esse cinismo estrutural. É o que penso. A partir daí, o passo rumo à violência física é menor. Eu não sei como sair disso – seria muito arrogante dizer outra coisa. Provavelmente, é muito ingênuo ainda acreditar na força da ética nas escolas. Pode-se tentar e ver o que ocorre. Eu ainda estou convicto de que, nas próprias famílias, a educação poderia ser bem diferente se os adultos se acostumassem a dialogar seriamente com os filhos desde o começo. Quando meus filhos eram pequenos, eu estava muito interessado na filosofia para crianças. Então, experimentei muito. Dialoguei e filosofei muito com meus filhos, e eles gostaram. E por qual motivo gostaram? Se o adulto dialoga com a criança, mostra interesse na opinião da criança, e a criança se sente estimulada e continua a procurar perguntas. Depois, eu observei como o irmão mais velho fez a mesma coisa com o irmão mais novo. Agora, eles se entendem muito bem – e, comigo, nunca brigam. Nunca. Eu acho que aqui temos uma maneira de como lidar com a outra geração. Se você respeita a pequena criança, se você demonstra interesse em sua opinião e em suas futuras capacidades, você deve dar liberdade à criança. Claro, uma liberdade muito limitada, uma pequena liberdade, mas uma em que ela possa se movimentar. Eu dou o exemplo de uma criança que nunca quer deitar, quer sempre prorrogar. Por que não, então, interpelá-la deste modo: “Olha, tu vais tomar uma decisão. O que tu preferes: dormir agora ou daqui a 5 minutos?” Então, ela dirá: “Daqui a 5 minutos”. “Passaram-se os 5 minutos, tu escolheste, eu respeito a tua vontade”. Seria um pouco ridículo se fosse um adulto, ele não se sentiria levado a sério. Mas, quanto mais madura a criança, você deve mudar de exemplo e alargar o espaço da liberdade. Mas já a pequena criança, se ela percebe que o que conta é a decisão dela, ela se sente valorizada. Uma criança que só recebe ordens não se sente valorizada. Uma criança que é submetida apenas ao punir, ao método de sancionar o comportamento não desejável, aprende apenas a evitar os comportamentos que serão punidos – ou seja, a elaborar uma estratégia para evitar a punição. Só. Isso não é autonomia. Uma tal pessoa, quando adulta, também não saberá educar os filhos. Recentemente, fizemos uma excursão de um dia, e havia uma mãe com um filho de 4 ou 5 anos. Ele estava sempre inquieto e não obedecia. A mãe tentou, mas não teve nenhuma autoridade – tinha perdido a autoridade. Então, o filho fez com ela o que quis. Numa situação assim, se a mãe não procura ajuda de um profissional, então a situação não melhora mais. Dificilmente. O filho também se encontra numa situação desconfortável, pois ele tem suas estratégias para aterrorizar a mãe, e as crianças aprendem rapidamente segundo as condições. Dialogar com a criança não significa perder a autoridade. Pelo contrário. Eu esperava que, no Brasil, houvesse muitos adultos que educassem seus filhos, que o que eu disse não fosse uma novidade. Não sou um guru que abrirá uma nova igreja e que pedirá o dízimo ou criar um grupo de seguidores que saiba como educar. Eu espero que as pessoas se tornem autônomas e tomem suas decisões refletidas nelas mesmas.

Professor Geraldo: Falando sobre a biopolítica e a intervenção militar no Rio de Janeiro. No discurso do dia em que se assinou o ato que autorizava tal intervenção, utilizaram-se termos da saúde para justificar este ato descontextualizado de aspectos históricos e sociais. Falou-se que, em termos de violência e segurança, ocorria um câncer. Então, se existe um câncer, esse precisa ser tratado e, para ser tratado, nós utilizamos os anticorpos, que são os militares A biopolítica entrou na saúde e se capilarizou para outras áreas: a área da segurança, a área da educação, dentre outras. Qual sua análise sobre essa questão?

Professor Thomas Kesselring: Eu tenho a impressão de que a violência tem suas causas e origens. Essa medida é uma medida emergencial, esse discurso é emergencial. Eu não acompanhei de perto. Eu nem sei quem Temer é – só sei que é corrupto. Não é uma autoridade para mim. Aparentemente, a situação no Rio se tornou intolerável. Mas essa medida, no longo prazo, não adiantará nada. É como se você combatesse a violência usando violência. Eu me lembro de 2005, quando havia o Lula, e se iniciou um voto sobre a compra de armas – ele pretendia proibir a compra de armas. Eu assisti a essas conversas e me lembro de um ser, com um rosto um pouco neurótico, que se apresentava muito favorável à compra livre de armas com o seguinte argumento: “Se nós não podemos mais comprar armas, então só os criminosos as terão”. Sim, eu vejo esse problema, mas combater o uso de armas usando armas é uma contradição. Combater violência com uso de violência não leva a nenhuma solução. Quanto a essa metáfora do câncer, penso que ela é muito próxima ao que ocorre na Síria, parece ser muito parecida. Tenho a impressão de que Assad quer acabar completamente com seus adversários, que ele não teria nada contra sua eliminação física. A mesma coisa é Erdogan com os curdos, ou a Europa com o Estado Islâmico: a cura era bombardeá- los, eliminá-los, mas aí sempre teve muita sociedade civil – é claro que muitos irão sobreviver e continuar o combate, incentivá-lo em outros países, mesmo na Europa. Eu acho que essa maneira de tentar resolver os problemas é muito primitiva.

1Professor no Programa de Pós-Graduação da Universidade de Caxias do Sul – Doutorado em Educação. E-mail: garosa6@ucs.br

2Doutorando em Educação pelo PPGEdu da UCS. E-mail: acfernan@ucs.br

Recebido: 12 de Julho de 2018; Aceito: 01 de Setembro de 2018

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