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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.3 Caxias do Sul  2018  Epub 29-Jul-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.n3.2 

Artigos

O declínio da experiência e os desafios educacionais: uma abordagem a partir de Walter Benjamin

The decline of experience and the educational challenges: an approach from Walter Benjamin

Altair Alberto Fávero* 

Marcelo José Doro** 

*Pós-Doutor pela Universidad Autónoma del Estado de México (UAEMéx). Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor e pesquisador no curso de Filosofia, no Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade de Passo Fundo (UPF). : altairfavero@gmail.com

**Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor no curso de Filosofia e na área de Ética e Conhecimento da Universidade de Passo Fundo (UPF). : marcelodoro@upf.br


Resumo

Walter Benjamin fala da experiência (Erfahrung) como sendo o tipo de sabedoria que resulta do encontro de práticas individuais com o horizonte de sentido fornecido pela vida comunitária. Mas esse encontro tem se tornado mais difícil a partir do desenvolvimento da sociedade capitalista moderna. As novas dinâmicas de trabalho, somadas ao itmo acelerado da vida urbana, favorecem o isolamento dos indivíduos e deturpam sua capacidade de filtrar, significativamente, os eventos que se acumulam no cotidiano. Muitas coisas acontecem, mas muito pouco permanece desses acontecimentos. A experiência dá lugar, assim, à mera vivência (Erlebnis). Diferentemente da experiência, que se articula a partir do fundo significativo de uma comunidade e se torna significativa em relação a ela, a vivência se constitui como um momento privado. A vivência não conecta os indivíduos à vida da comunidade, à tradição, e nisso reside sua pobreza. Pobreza de experiência é, portanto, pobreza cultural, carência de perspectivas mais amplas que possam apoiar uma avaliação significativa das vivências; em suma, incapacidade de aprender. Diante desse contexto, o presente ensaio busca enfatizar o impacto negativo da pobreza de experiência à constituição da subjetividade do indivíduo contemporâneo e assinalar a possibilidade de fazer frente a esse quadro de empobrecimento a partir de uma ideia de educação voltada à formação integral, que, mesmo diante do apelo crescente do conhecimento técnico-científico especializado, não abra mão do ensino das humanidades. Nessa linha, defende-se a tese de que as disciplinas de formação humanística, como Artes, Literatura, Filosofia, cumprem um papel de destaque no desenvolvimento das condições necessárias à realização de experiências, no sentido específico descrito por Benjamin. O ensaio, de cunho bibliográfico-hermenêutico, se apresenta como uma contribuição para pensar nos atuais desafios educacionais.

Palavras-chave:  Experiência; Pobreza de experiência; Walter Benjamin; Educação; Educação humanística

Abstract

Walter Benjamin speaks of experience (Erfahrung) as the kind of wisdom that results from the meeting of individual practices with the horizon of meaning provided by community life. But this meeting has become more difficult from the development of modern capitalist society. The new work dynamics and the accelerated urban life lead to isolation of individuals and distort their ability to significantly filter the events that accumulate in its everyday life. Many things happen, but very little remains of these events. Experience thus gives place to mere lived experience (Erlebnis). Unlike experience, which is articulated from the significant background of a community and becomes meaningful in relation to it, lived experience is constituted as a private moment. The lived experience does not connect the individuals to the life of community, to the tradition, and in this lies their poverty. Poverty of experience is, therefore, cultural poverty, lack of broader perspectives that can support a meaningful evaluation of the lived experiences; in short: inability to learn. In view of this context, the present essay seeks to emphasize the negative impact of the poverty of experience for the constitution of the subjectivity of the contemporary individual and signalize the possibility of making front to this picture from an educational idea focused on integral formation, that even before the increasing appeal of technical-scientific knowledge, do not give up the teach of the humanities. In this line, it defends the thesis that the humanistic formation subjects as Arts, Literature, Philosophy, play a prominent role in the development of necessary conditions to accomplishment of experiences at specific sense described by Benjamin. The essay of bibliographic-hermeneutical nature, presents itself as a contribution to think the current educational challenges.

Keywords:  Experience; Poverty of experience; Walter Benjamin; Education; Humanistc education

Considerações iniciais

Como toda atividade humana, a educação é, em sua essência, histórica. Educa-se sempre em um mundo e para um mundo. A sobriedade que se espera dos processos educativos depende, em grande parte, do reconhecimento e da observação desse fato. Mas, no contexto das assim chamadas “sociedades complexas”, isso tem se tornado uma atividade igualmente complexa. Quais são, afinal, as características determinantes dessa complexidade, que podem orientar a compreensão de mundo almejada? Como identificá-las? Onde procurá-las? Nessa hora, a obra de pensadores como Walter Benjamin, que se ocuparam em oferecer um diagnóstico da contemporaneidade, ganha uma relevância especial.

Embora a análise de época feita por Benjamin esteja contextualizada na primeira metade do século XX, a profundidade de seu diagnóstico se mantém ainda atual e, quiçá, mais atual agora do que já fora em sua época de origem – essa é, contudo, uma suposição que há de ser explicitada ao longo do ensaio. Dentre as muitas teses que o filósofo apresenta, interessa, aqui, explorar a atualidade daquela que declara nossa pobreza de experiência e tudo o mais que ela envolve: “Ficamos pobres. Abandonamos, uma a uma, todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do ‘atual’.” (BENJAMIN, 1994a, p. 119).

Partindo de um esclarecimento inicial do conceito benjaminiano de experiência e das implicações decorrentes de seu declínio, pretende-se explorar os desdobramentos dessa temática em relação ao campo educacional. A questão de fundo a ser enfrentada diz respeito a uma possível postura da educação formal diante da constatação do declínio da experiência. De modo mais pontual, é preciso perguntar: Qual é a relevância, primeiramente, social e, depois, educacional da experiência? E, se a experiência permanece valiosa, como proceder para resguardá-la ou reabilitá-la?

A estratégia argumentativa adotada neste texto consiste em mostrar a relação entre a pobreza de experiência e o enfraquecimento da subjetividade, em termos de um aniquilamento da capacidade crítica de intervenção social por parte dos indivíduos. Diante dessa constatação, e tomando o partido de uma concepção de educação politicamente engajada (ou seja, que assume a preocupação e a responsabilidade com a formação integral dos indivíduos, para além das competências técnicas demandadas no exercício profissional), busca-se justificar a necessidade de a educação formal assumir posição de combate ao empobrecimento da experiência, em virtude do que se destaca, por fim, o espaço valioso que o ensino das humanidades adquire nesse contexto.

1 Sobre o conceito de experiência em Benjamin

Para a reconstrução que segue do conceito de experiência em Benjamin, toma-se como referência principal o texto Experiência e pobreza, de 1933. Também são utilizadas outras produções do mesmo período, como O narrador, de 1936, Sobre alguns temas em Baudelaire, de 1939, e ainda as famosas teses Sobre o conceito de história, de 1940, última produção do filósofo.

Uma indicação indireta do que Benjamim entende por experiência é apresentada no primeiro parágrafo de Experiência e pobreza: experiência é aquilo que os mais velhos costumavam comunicar aos mais jovens. (BENJAMIN, 1994a, p. 114). Essa indicação introduz dois elementos centrais para a compreensão do conceito: a) a experiência é algo que se constitui ao longo da existência, ou seja, ela é um produto do tempo; e b) a experiência é algo comunicável, transmissível.

    a. Sobre a temporalidade da experiência.1 A experiência é o oposto de qualquer imediatismo. Ela se constitui a partir de um processo vagaroso de gestação e amadurecimento das práticas existenciais, que conduzem a uma compreensão mais refinada das coisas e da vida. A memória desempenha um papel fundamental nesse processo, pois é ela que possibilita a articulação significativa do já vivido em relação ao que é atual. Nesse sentido, “a experiência pode ser entendida como uma sedimentação lenta de várias experiências que, mesmo distantes temporalmente, são atuais, na medida em que se fazem presentes a todo instante”. (PALHARES, 2010, p. 78). Justamente porque a experiência demanda tempo é que o ancião se torna seu depositário por excelência. O ancião é aquele que já passou por muitas coisas e que teve muito tempo para meditar e extrair delas algum aprendizado, motivo pelo qual os idosos costumam (ou, ao menos, costumavam) ter sempre muito a transmitir.

    b. Sobre a transmissibilidade da experiência. Para que a experiência possa se constituir como síntese do tempo de vida do indivíduo, faz-se necessário algo como um universo de referência estável em relação ao qual os eventos da vida podem ser filtrados em termos significativos tanto para si quanto para os outros. Esse universo de referência é pensado por Benjamin em termos de vida comunitária. Apenas no interior de uma comunidade é possível transmitir uma experiência, pois somente aí o que se transmite pode ser recepcionado por outros como algo significativo. Assim, falar da experiência como aquilo que é transmitido significa falar de algo que se insere no interior de uma organização sociocomunitária, cuja referência histórica, para Benjamin, são as sociedades pré-capitalistas. Nessas sociedades, a narração constitui a forma predominante de transmissão da experiência. Em cada história contada ou em cada provérbio apresentado, diante da lareira ou no grupo de trabalho artesanal, algo de valioso era passado adiante.

Isso que se constitui ao longo do tempo e que se transmite aos outros em narrativas e provérbios é a sabedoria, que Benjamin (1994b, p. 201) identifica como “o lado épico da verdade”, numa referência às verdades arduamente conquistadas por indivíduos e grupos através das voltas e revoltas da vida e que, justamente por isso, se tornam dignas de ser passadas adiante como um bem valioso que não se pode perder.2

Pois bem, o que foi feito de tudo isso? Para Benjamin, não resta dúvida de que “as ações da experiência estão em baixa, e isso justamente numa geração que, entre 1914 e 1918, viveu uma das mais terríveis experiências da história universal”. (1994a, p. 114). A constatação de que os combatentes da Primeira Guerra retornavam silenciosos do campo de batalha e de que também os livros sobre o conflito (que na sequência inundaram o mercado literário) não continham experiências transmissíveis confirmam a suspeita de que a experiência já não encontra lugar nesse mundo moderno. Os eventos mais extraordinários tiveram lugar e não renderam nenhum ensinamento transmissível. Eis aí, deflagrado, o cenário da pobreza de experiência.

1.1 Causas e consequências da pobreza de experiência

Tratar a pobreza de experiência em termos de causa e consequência talvez não seja o mais apropriado. Registre-se, quanto a isso, que se almeja, aqui, tão somente uma caracterização das condições que levaram ao declínio da experiência e das implicações disso para uma compreensão geral do humano e do social.

Em primeiro lugar, cabe destacar que o declínio da experiência remete a um processo longo de degradação das condições que suportavam sua realização, relacionado, em grande medida, à implantação e ao desenvolvimento da moderna sociedade capitalista. Foram determinantes, para tal, a nova divisão e reorganização do trabalho e o ritmo acelerado da vida nas grandes cidades. O trabalho artesanal das sociedades pré-capitalistas tinha uma dinâmica e um tempo que favoreciam, por um lado, a sedimentação das experiências e, por outro, sua transmissão através das narrativas que acompanhavam as atividades nas oficinas e no campo. Em contraste, o trabalho característico das sociedades capitalistas, já no tempo de Benjamim e mais ainda agora, é altamente fragmentado e acelerado, sendo que não oferece mais as condições necessárias à elaboração significativa do que é feito em tais condições; tampouco, oportuniza o tipo de interação entre as pessoas que, em tempos passados, favorecia a contação de histórias. E, fora do trabalho, a vida cotidiana mantém, em geral, um ritmo frenético que tira dos indivíduos o tempo vagaroso demandado à assimilação reflexiva dos acontecimentos que preenchem o seu dia. Falta, sobretudo, o tempo do tédio, essa distensão psíquica que Benjamin (1994b, p. 204) poeticamente identificou como “o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência”.

Em segundo lugar, mesmo que o indivíduo contemporâneo encontrasse algum tempo em meio ao agito da vida cotidiana, faltaria a ele o recurso a um passado histórico, a uma memória coletiva que lhe fornecesse critérios a partir dos quais ele poderia ir sedimentando as coisas que vão lhe acontecendo. Assim, o indivíduo contemporâneo volta para casa, no final do dia, carregado de eventos, alguns extraordinários, mas sem nenhuma experiência, sem nenhum aprendizado. Nessa provação cotidiana, o indivíduo moderno é propriamente um indivíduo; sua existência atribulada, em vez de experiências, lhe rende vivências. Essas são o correspondente empobrecido daquelas.

A distinção entre experiência (Erfahrung) e vivência (Erlebnis) pode ser sintetizada na oposição entre algo experimentado coletivamente e algo experimentado individualmente.3 Convém acrescentar a essa caracterização da experiência coletiva a propriedade de se estender no tempo, tanto em direção ao passado, onde são buscados os referenciais para a elaboração do que se experimenta no presente, quanto em direção ao futuro, tem em que as experiências comunicadas poderão encontrar serventia. A temporalidade das vivências, por sua vez, é bem outra: nelas impera o imediatismo do tempo presente; elas são o produto da fragmentação da vida nas sociedades contemporâneas e do excesso de estímulos que sobrecarrega a capacidade de assimilação do indivíduo e o impede de apreender, em uma perspectiva mais ampla, aquilo que lhe ocorre. Predomina, nesse contexto, aquilo que Benjamin, em Sobre alguns temas de Baudelaire, denominou de “vivência do choque” (Chockerlebnis). Seguindo o itinerário freudiano relativo ao conceito de trauma, ele procura mostrar o modo como os choques da vida cotidiana afetam a consciência e a memória. Sustenta que, para conter o impacto potencialmente destrutivo da carga de estímulos recebida nas metrópoles modernas, os indivíduos acabam direcionando grande parte de sua energia psíquica à consciência imediata das vivências, o que leva ao enfraquecimento da memória e à desvinculação da tradição. É como se, permanecendo constantemente alerta em relação aos acontecimentos do presente, os indivíduos desviassem o impacto negativo da falta de sentido inerente a tais acontecimentos. O resultado disso, contudo, é que cada vivência acaba por se esgotar em si mesma, sem deixar nada no indivíduo, nenhuma marca, nenhuma transformação. A cada dia, muitas coisas acontecem, mas quase nada se sedimenta, quase nada permanece. O paradoxo dessa modernidade retratada por Benjamin é que nunca antes aconteceram tantas coisas e, no entanto, a capacidade de aprender com os acontecimentos é cada vez mais rara. Afinal, quanto maior forem os estímulos recebidos, maior será a atenção dirigida a eles; e quanto mais energia a consciência dispensa nesse processo, menor será a sua capacidade de significar os estímulos recebidos de modo a incorporá-los à experiência. (BENJAMIN, 1989, p. 111).

O enfraquecimento da experiência – a gradual transformação em vivência individual – se manifesta de modo exemplar na substituição gradativa da narração pela informação – tipo predominante de linguagem na contemporaneidade. Se, por um lado, a narração traz embutido um aprendizado que não se esgota, podendo ser continuamente ressignificado e até ampliado pelo acréscimo da experiência pessoal do narrador, por outro, os valores da informação jornalística são, justamente, a imediaticidade e a novidade. E a informação já vem acompanhada de explicações, não deixando nenhum espaço à interpretação. Isso é o mais prejudicial, segundo Benjamin (1994b, p. 203), pois limita imensamente sua amplitude em comparação com a narração, que é essencialmente pobre de explicações. O saldo lamentável dessa transformação é que, embora tenhamos a cada dia notícias do mundo todo, permanecemos, ainda, assim pobres em histórias surpreendentes. (BENJAMIN, 1994b, p. 203). Histórias surpreendentes poderiam ser contadas e recontadas, poderiam dar o que pensar... Enfim, poderiam mobilizar algum aprendizado, alguma orientação de vida. A notícia, por sua vez, se limita a informar um fato, esgotando-se no próprio conteúdo comunicado. Nada se segue a uma notícia. Ela é consumida e imediatamente abandonada, para dar lugar a outras notícias – mais novas!

O imediatismo da notícia é do mesmo tipo que caracteriza a vivência, o tipo empobrecido de experiência que predomina na contemporaneidade. E o mesmo fenômeno que suporta e dá amplitude ao noticiário também suporta e dá amplitude à pobreza de experiências que lhe corresponde, a saber, o desenvolvimento expressivo da ciência e da técnica. As novas formas de organização, fragmentação e aceleração do trabalho, a quantidade excessiva de estímulos que embaçam a sensibilidade, tudo isso que é, ao mesmo tempo, causa e consequência do enfraquecimento da experiência encontra- se atrelado ao desenvolvimento técnico-científico. E quando se apela à ideia de progresso numa tentativa de justificar esse conjunto de transformações técnico-científicas, apela-se, na verdade, a uma ilusão. Os pequenos confortos comumente associados ao progresso não são mais que migalhas quando comparados ao que se dá em troca. (BENJAMIN, 1994a, p. 119). O que se dá em troca é, fundamentalmente, a possibilidade de realizar experiências e tudo o mais que está associado a isso.

Junto com a possibilidade de realizar experiências, esvai-se o valor ou o significado de toda a riqueza cultural já produzida. Afinal, questiona Benjamin (1994a, p. 115): “Qual o valor de todo nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?” Perder a capacidade de realizar experiências é, nesse sentido, perder a possibilidade de aprender com os erros e os acertos do passado. Nesse ponto, a cultura, que já não pode ser alcançada/elaborada na experiência, converte-se em estilos e visões de mundo que passam a ser consumidos de forma fragmentada, como mercadoria.

O indivíduo que “consome” cultura em vez de se vincular a ela por meio da experiência, é aquele que se constitui a partir das vivências fragmentadas. Trata-se de um indivíduo culturalmente isolado, subjetivamente fraco – no sentido de ter sua identidade amplamente moldada pelos coletivos, sem muito poder de autodeterminação – e que tenta compensar a incapacidade de se prolongar na memória coletiva de uma tradição, deixando, atrás de si, marcas materiais (propriedades). Esse indivíduo de vivências fragmentadas e efêmeras é um desmemoriado, um sem-passado, que, na desorientação de sua existência própria, porta-se como um autômato que se limita a reagir aos estímulos recebidos do meio. Esse indivíduo pobre de experiência precisa ser reconhecido, por fim, como alguém que também é intelectualmente pobre; “seus gestos, suas roupas, seu movimento uniforme sugerem um comportamento maquinal destituído de vontade ou raciocínio” (PALHARES, 2010, p. 80); é ele quem compõe a massa de manobra dos movimentos fascistas, símbolos máximos da barbárie contemporânea. Desse tamanho é a ameaça que se desprende da pobreza de experiência! O que fazer com isso?

2 Pobreza de experiência e desafios educacionais

Diante do diagnóstico do declínio da experiência, o próprio Benjamin sugere caminhos. Em Experiência e pobreza, a salvação é buscada no perigo.4 Nesse sentido, seria preciso, antes de tudo, confessar que a pobreza em questão “não é apenas pobreza em experiências privadas, mas em experiências da humanidade em geral”, e disso surgiria um “conceito novo e positivo de barbárie”. (BENJAMIN, 1994a, p. 115-116). E, então, o bárbaro dessa nova barbárie, que pela falta de experiência perdeu os laços com a cultura (civilização), seria impelido “a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda”. (BENJAMIN, 1994a, p. 116). A humanidade nascida dessa nova barbárie poderia, assim, recuperar sua autonomia criativa e sua liberdade ideológica. E Benjamin chega mesmo a apresentar alguns exemplos de iniciativas que iriam nessa direção, relacionadas às artes, à literatura e à arquitetura. O triunfo dessa possibilidade de superação da pobreza de experiência ficaria, contudo, atrelado à genialidade de grandes personalidades que poderiam criar algo grandioso a partir de uma tábula rasa. Restaria à educação, nessa perspectiva, apenas favorecer o florescimento de tais personalidades, cuidando para que não fossem podadas em sua criatividade; uma tarefa digna, sem dúvida, mas que parece muito aquém daquilo que a educação pode fazer.

O tom nostálgico que marca a análise de Benjamin, diante daquilo que está sendo perdido com o desaparecimento da experiência, permite pensar em um meio de preservação da experiência que constitui uma alternativa em relação à aposta (improvável) acerca do surgimento daquele novo e positivo conceito de barbárie. Nessa direção, a preservação da experiência poderia ser alcançada, mesmo que em forma de reminiscência, através das grandes obras de arte, que, como filhas de seu tempo, teriam condições de problematizar o empobrecimento da experiência e manifestar ainda a vontade de restaurar uma experiência duradoura da vida. Um tal movimento de preservação da experiência aparece fortemente nas teses Sobre o conceito de história, em que Benjamin (1994c) rechaça a temporalidade vazia do historicismo em prol de uma articulação mais rica com a tradição, como manancial de possibilidades à compreensão do presente e à construção do futuro. Nesse sentido, “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”. (BENJAMIN, 1994c, p. 224). Mostra-se, assim, a preocupação do filósofo em manter aberta a possibilidade da experiência contra a tendência contemporânea de sua extinção. E é por esse caminho que interessa explorar, agora, o espaço e o papel da educação diante do diagnóstico da pobreza de experiência.

Na formulação de Kant (1999, p. 19) em que a educação é apresentada como “uma arte, cuja prática necessita ser aperfeiçoada por várias gerações”, já transparece, em sua profundidade mais radical, a conexão da educação com a experiência. Kant (1999, p. 20) assevera, ainda, nessa direção, que “somente pode existir um conceito da arte de educar na medida em que cada geração transmite suas experiências e seus conhecimentos à geração seguinte, a qual lhes acrescenta algo de seu e os transmite à geração que lhe segue”. Caso se aceite essa premissa, torna-se imperativo concluir que, no contexto de empobrecimento da experiência denunciado por Benjamin, a própria ideia de educação resultaria comprometida. Seria preciso admitir, ao menos, a impossibilidade de realização plena daquela noção de educação concebida, em sentido kantiano, como desenvolvimento do indivíduo em favor do aperfeiçoamento da humanidade como um todo. É sintomática, quanto a isso, a tendência de reduzir, aqui e ali, a educação formal ao mero repasse de informação ou, no caso do Ensino Superior, ao treinamento técnico; um tipo de educação imediatista, com objetivos que se esgotam, não raro, nas demandas presentes do mercado de trabalho; enfim, uma educação que perde de vista a construção do indivíduo em sentido integral. Confunde-se, equivocadamente, vivência com experiência e ao que assistimos tragicamente é o empobrecimento do processo formativo profissional, respaldado por um discurso que apela insistentemente à ideia de que a função da Educação Superior é preparar para o mundo do trabalho. Assim, surgem discursos entusiasmados veiculados nas campanhas publicitárias de instituições educacionais de que estão preparando seus estudantes para o mercado de trabalho ou para serem cidadãos críticos, mas que, em suas práticas, se limitam a repassar informações por meio de tecnologias simplificadas que pouco agregam ao processo formativo.

Caso ainda se considere importante que a educação mantenha-se compromissada com um projeto da humanidade, mesmo que esse projeto seja posto em termos negativos, como fez Adorno (1995, p. 119) ao afirmar que “a exigência de que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação”, então é preciso confrontar a pobreza de experiência que ameaça sua realização nessa direção. Combater a pobreza de experiência é combater, ao mesmo tempo, a pobreza de uma subjetividade moldada pelos coletivos, de baixo poder de autodeterminação e que se torna, por isso, facilmente manipulável – inclusive por parte de regimes totalitários do tipo que produziu a barbárie de Auschwitz.

A questão que cabe colocar, então, a esta altura, é: Como a educação pode fazer frente à pobreza de experiência para, com isso, promover um fortalecimento da subjetividade dos indivíduos, a ponto de se tornarem, não apenas produtivos, mas também, e sobretudo, críticos em relação à sua participação social. Quanto a isso, pode-se buscar apoio, mais uma vez, nas ponderações de Benjamin em relação à tarefa de interpretação da história. Assim como convém buscar, no presente histórico, brechas em que possam ser inseridos estilhaços do passado, em benefício de um futuro como possibilidade, mas ainda não realizado, também podem ser buscados, no presente da educação, espaços para inserção de momentos de descontinuidade, de ruptura, de parada, que possam favorecer novo jeito de proceder, de pensar e de ser dos indivíduos contemporâneos, em favor da constituição de uma subjetividade mais forte. Em oposição ao que se indicou anteriormente como subjetividade fraca, moldada pelos coletivos e com pouco poder de autodeterminação, a constituição de uma subjetividade forte equivaleria ao desenvolvimento de indivíduos com capacidade de pautar criticamente sua relação pelas forças sociais mais amplas, pensando e agindo com autonomia, embasados em critérios racionalmente justificáveis. Mas para que isso aconteça, no contexto da educação formal, é preciso repensar alguns aspectos importantes da organização escolar/acadêmica, principalmente em relação à fragmentação do conhecimento, convertido em informação e, principalmente, à velocidade infligida aos processos educativos.

Assumir esse desafio significa, em certa medida, ir na contramão de algumas políticas educacionais em curso e dos discursos hegemônicos dos organismos internacionais (Banco Mundial, Bird, OCDE). Ao invés de enfraquecer ou exterminar certas áreas de estudo (filosofia, sociologia, artes, antropologia, história, etc.) consideradas irrelevantes ao progresso da ciência, ao desenvolvimento econômico e à preparação para o mercado de trabalho, dever-se-ia potencializá-las para que os processos formativos pudessem ser o lugar onde pode acontecer a temporalidade e a transmissibilidade da experiência, não como informação acompanhada de explicação, ou como notícia, mas como “tempo de experiência”. Torna-se contraditório o discurso corrente de que é necessário preparar de forma cada vez mais aligeirada para o mercado de trabalho, quando se sabe que existe um “exército de desempregados”.

Como constata Bondía (2002, p. 23), esse sujeito de formação permanente e acelerada, de constante atualização, de reciclagem sem fim é um sujeito que dispõe do tempo como um valor que não pode ser desperdiçado, que deve ser aproveitado ao máximo e que, por isso, paradoxalmente, já não tem tempo algum. Esse sujeito frequenta, cada vez mais, a escola e, apesar disso, a escola deixa nele, cada vez menos, marcas. Assim organizada, a própria escola se coloca como obstáculo para que as experiências aconteçam, pois a experiência requer um gesto de interrupção:

Requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (BONDÍA, 2002, p. 19).

A interrupção do tempo frenético das atividades cotidianas/escolares poderia garantir um tempo da sedimentação exigido pela experiência. Essa não é, contudo, uma condição suficiente à promoção da experiência, uma vez que também é necessário que o pensar, o olhar, o escutar tenham alguns parâmetros a partir dos quais possam articular significativamente o que é pensado, olhado e escutado. E esses parâmetros não são critérios objetivos do tipo que orientam as pesquisas técnico-científicas, que podem ser repassados em cartilhas e manuais; são critérios de ordem prática, relativos à vida humana, que só se tornam significativos diante de um contexto mais amplo de compreensão da existência como um acontecer histórico-cultural. São esses critérios que, no fim das contas, darão ao indivíduo condições de reagir autonomamente aos estímulos infindáveis do mundo contemporâneo, que bagunçam seu pensamento e ameaçam convertê-lo num autômato.

A educação pode, sem dúvida, fazer muito a favor do desenvolvimento de tais critérios, mas não qualquer educação. Não serve para tal uma educação demasiadamente especializada, de caráter predominantemente técnico, voltada à instrumentalização do indivíduo às demandas da vida social, sobretudo, aquelas de ordem econômica. Uma educação desse tipo pode apenas dar conta daquilo que Adorno (1996) chamou de “semicultura” ou “semiformação” (Halbbildung), um tipo incompleto de formação que prepara às demandas imediatas do consumismo e do produtivismo, mas que não permite uma articulação significativa e ética do agir com o contexto maior da vida humana. A educação que pode contribuir ao resgate da experiência precisa ter um caráter mais amplo, voltado à formação integral do indivíduo; precisa ir além do repasse de conhecimentos técnico-científicos e da instrumentalização especializada, guardando espaço apropriado ao ensino das humanidades – das artes, da literatura, da filosofia.

O papel de destaque atribuído às disciplinas humanísticas, no esforço de resgate da experiência, deve-se, principalmente, ao duplo papel que desempenham: a) no diálogo com a tradição cultural e b) na promoção de diferentes tipos de racionalidade:

    a. o diálogo com a tradição é facilitado pelo ensino das humanidades em virtude da valorização que nelas ocorre das obras clássicas. Diferentemente do que ocorre nas ciências e nas tecnologias, nas quais as descobertas e produções atuais se sobrepõem e substituem em grande parte as teorias e os artefatos do passado, as produções humanas nas artes, na literatura e na filosofia, justamente por tratarem de temas relativos à cultura e ao indivíduo, guardam um potencial reflexivo atemporal; porque, salvas as gritantes diferenças contextuais, são os mesmos temas e problemas essenciais que afligem a humanidade ao longo da história. Se, por um lado, as ciências e as tecnologias mantêm o foco principalmente no momento atual, no que está sendo pesquisado e desenvolvido no tempo presente, por outro, as humanidades tendem a manter mais estreito o seu vínculo com produtos culturais legados pela tradição, recuperando-os constantemente enquanto são objetos de contemplação, de estudo e de crítica. Justamente esse contato com produtos culturais da tradição pode se tornar enriquecedor em termos de inspiração e orientação no trato reflexivo das questões hodiernas da vida em sociedade, contribuindo, desse modo à constituição de referenciais demandados à sedimentação das vivências. Assim, por exemplo, os desafios éticos e políticos que se levantam na contemporaneidade podem ser mais facilmente enfrentados com o auxílio das muitas reflexões já edificadas pela humanidade tanto na filosofia quanto na literatura. É certo que nem A revolução do bichos, de George Orwell, nem o Leviatã, de Thomas Hobbes, oferecerão respostas ao problema da corrupção, assim como ele se apresenta no contexto atual. Contudo, o encontro com esses textos clássicos ajudará, sem dúvida, a posicionar melhor o problema e a considerá-lo a partir de uma perspectiva mais ampla e, possivelmente, mais esclarecedora; e

    b. o predomínio da educação técnico-científica especializada, que no Ensino Superior, por exemplo, responde à demanda da formação profissional, tem potencializado o domínio da racionalidade instrumental sobre outros tipos de racionalidade vinculados à realização de experiências. Isso ocorre na medida em que a formação profissional exige a preparação à operacionalização de processos e de tomadas de decisão. Nesse contexto, a racionalidade relevante é aquela que ajuda a calcular os meios adequados para se alcançar os fins desejados. Nela impera o pensamento objetivo-estratégico, que não reserva tempo à rememoração ou à ponderação. Em suma, pode-se dizer que essa racionalidade instrumentalizada volta-se, sobretudo, ao domínio científico-tecnológico do mundo natural, ao passo que o pensamento reflexivo convém melhor à compreensão do sentido de mundo humano (do indivíduo, da cultura). A primeira está associada à produção do conhecimento; a segunda, da experiência. O ensino das humanidades, embora não seja panaceia aos problemas educacionais e sociais, pode garantir um espaço valioso à promoção de modelos de racionalidade diferentes do modelo instrumental, os quais possam suportar melhor o tempo vagaroso da meditação e da ponderação exigido à realização de experiências. E pode garantir isso porque as disciplinas humanísticas lidam com questões que, por sua natureza, são avessas ao trato racional- instrumental, de modo que, para se ocupar delas, é preciso abrir-se a outras formas de sensibilidade, a outras formas de pensamento. Diante da tendência mundial de predomínio da educação técnico-científica, o ensino das humanidades é o correspondente educacional da proposta benjaminiana de “escovar a história a contrapelo”,5 no sentido de fazer algo em oposição ao que está posto hegemônica e perigosamente.

Considerações finais

O declínio da experiência, na contemporaneidade, foi apresentado como sendo a incapacidade individual e social de articular os fatos e os eventos da vida, vivenciados de forma fragmentada, num contexto maior de sentido que permitisse extrair deles algo durável, algo que se pudesse considerar um aprendizado. O problema inerente a esse quadro foi identificado como a impossibilidade de o indivíduo contemporâneo posicionar-se criticamente em relação ao que faz. Seus afazeres, suas atividades (ou, na linguagem de Benjamin, “suas vivências”) esgotam seu sentido e sua força no presente imediato de sua realização; não deixam resíduos, não sedimentam. No fim das contas, o indivíduo faz muitas coisas, mas elas não fazem nada com ele, ou seja, não contribuem ao enriquecimento de sua subjetividade. Resulta disso que o indivíduo pobre de experiência é um indivíduo de subjetividade fraca, do tipo que serve à barbárie, no sentido negativo do conceito.

A partir desse contexto, buscou-se ressaltar a possibilidade de a educação criar espaços de promoção da experiência, o que demandaria o resgate e a valorização de uma ideia mais ampla de educação voltada à formação integral do indivíduo, que vem perdendo espaço para a educação técnico-científica especializada. Para isso foi apontada a contribuição decisiva das disciplinas de formação humanística, cujo ensino pode oportunizar canais de diálogo com a tradição e novas formas de racionalidade, elementos enriquecedores da subjetividade e, consequentemente, potencializadores de experiência. Tal iniciativa requer uma redefinição e uma ressignificação dos atuais discursos das políticas educacionais tanto na Educação Superior quanto na Educação Básica. Na Educação Superior, é preciso rever o discurso de que é necessário enxugar e aligeirar os cursos de formação profissional para inserir, de forma imediata, os profissionais no mercado de trabalho. Tal discurso em nada contribui para o esforço necessário de transformar o processo de formação em um espaço de promoção da experiência. Ao contrário, a ideia de formação vinculada a tais discursos parece conduzir à instrumentalização e ao esvaziamento de toda riqueza cultural já produzida. Vale notar, nessa direção, que não são poucos os depoimentos dos que afirmam que os profissionais que saem das Instituições de Ensino Superior estão, cada vez mais, despreparados para enfrentar os desafios do mercado de trabalho e do mundo cultural.

No que se refere à Educação Básica, torna-se ilusório o discurso que busca, nas tecnologias, alternativa para superar os deficits educacionais de nosso tempo. As tecnologias não são a solução e muito menos a possibilidade de promoção da experiência. Talvez a escola necessite se tornar o lugar onde é possível realizar o tempo da experiência, um tempo de travessia. Um olhar desatento poderia dizer que a nova proposta de Ensino Médio, dos itinerários formativos, poderia ser compreendida como sendo a concretização desse tempo de experiência. Contudo, tal indicativo não soa como tempo de experiência, mas como tempo de vivência, no sentido amplamente criticado por Benjamin. Dificilmente se constituem itinerários formativos (como aqueles largamente anunciados na publicidade do “novo Ensino Médio”) sem uma sólida e consistente relação com a tradição.

Talvez seja necessário recuperar, com urgência, a ideia de experiência educativa para que a educação seja, no dizer de Dewey (1959), um lugar de “reconstrução da experiência”. A experiência vista como relação entre um sujeito e uma situação, um agindo e influenciando o outro, constitui-se como atividade que, quando pensada a partir da relação do indivíduo com o meio, configura-se como uma construção coletiva. É nesse aspecto que

Tonieto e Fávero (2011, p. 95), seguindo os passos deweyanos, ressaltam que “a experiência é educativa e, consequentemente, pedagógica quando é capaz com o uso do pensamento (ou reflexão) de provocar novas percepções e compreensões que antes não eram percebidas e que a partir de então passam a orientar experiências futuras”. O princípio deweyano do “continuum experiencial” tem uma forte e perceptível semelhança com a ideia de experiência em Benjamin.

Nas palavras de Dewey (1979, p. 26), “o princípio de continuidade de experiência significa que toda e qualquer experiência toma algo das experiências passadas e modifica de algum modo as experiências subsequentes”. Isso fica amplamente comprometido tanto em termos de educação quanto na perspectiva da construção e manutenção de uma sociedade democrática, quando ocorrem o declínio e o empobrecimento da experiência.

Nada do que foi exposto, aqui, é radicalmente novo, constituindo apenas um caminho a mais de justificação – associado ao pensamento de Benjamin – de uma visão mais ampla e humanamente comprometida da educação em relação aos desafios de sua época.

1Convém apontar para uma distinção que ainda será melhor explorada na sequência, mas que importa demarcar desde já: embora o tempo seja demandado para a experiência, ele não é suficiente para promovê-la. Em linguagem corrente, costuma-se falar, por exemplo, de “experiência de trabalho”, tomando como único critério o tempo de atuação do profissional em sua área; mas, para que a experiência do tipo benjaminiano ocorra, é preciso que nesse tempo algo como uma sedimentação de vivências seja, de algum modo, processada pelo sujeito, de maneira a resultar em algum tipo de aprendizado acerca da profissão. O tempo não pode, portanto, ser simplesmente tomado como sinônimo de experiência.

2Esse tipo de sabedoria começa a perder espaço rapidamente, na modernidade, a partir da inflação do conhecimento objetivo produzido pela ciência. Daí se recorrer agora aos especialistas – portadores do conhecimento científico – para lidar com questões que historicamente seriam resolvidas mediante o uso do saber prático impregnado na comunidade e repassado de pessoa para pessoa. Claro que a possibilidade de contar com especialistas é positiva, na medida em que introduz conhecimentos mais exatos e elimina superstições e preconceitos infundados, mas também tem um potencial negativo de aprisionamento dos indivíduos em um modelo burocrático de vida ditado pelas verdades das ciências, restringindo, perigosamente, sua capacidade de conduzir autonomamente sua existência.

3Entenda-se, aqui, experimentar como o acontecer de um processo carregado de sentido, de modo que experimentar algo coletivamente não significa passar por algo junto com outros, mas passar por algo cujo sentido é coletivamente elaborado. Nessa linha, experimentar algo individualmente não se refere ao estar só em alguma situação, mas à atribuição privada de sentido.

4Faz-se, aqui, uma alusão ao verso de Hölderlin, do hino Patmos: “Mas onde há perigo, cresce também a salvação.” Heidegger explorou esse fragmento do hino de Hölderlin para sustentar, num contexto similar de crítica à sociedade contemporânea, a possibilidade de enfrentamento do domínio da técnica pela liberdade resultante da compreensão de sua essência. (HEIDEGGER, 2007).

5Na famosa passagem da tese 7 de Sobre o conceito de história, Benjamin propõe que o historiador materialista preste atenção ao que fica de fora da versão oficial da história, sendo “sua tarefa escovar a história a contrapelo”. (BENJAMIN, 1994c, p. 225).

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Recebido: 26 de Agosto de 2017; Aceito: 14 de Agosto de 2018

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