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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.3 Caxias do Sul  2018  Epub 28-Jul-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.n3.4 

Artigos

Pensando a formação ética discente: contribuições das perspectivas aristotélica e kantiana

Thinking of educational ethics formation: contributions from aristotelian and kantian perspectives

Vladimir Fernandes* 

*Doutor em Educação pela Universidade Estadual de São Paulo (USP). Professor Titular na Universidade Paulista. : profvladi1@gmail.com


Resumo

Este artigo busca oferecer alguns subsídios conceituais para pensar o sujeito ético, uma vez que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação estabelece, entre as finalidades da educação no Ensino Médio, “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”. Assim, pergunta-se: O que significa ser ético? Um ser aprimorado em sua humanidade é também um ser ético? Um ser ético é também autônomo e crítico? Visando a lançar luz a essas questões, este artigo adota como referência a ética finalista aristotélica e a ética racional kantiana, buscando apresentar as ideias centrais dessas teorias, assim como os aspectos convergentes para se pensar a figura do agente ético a ser preparado pela escola. O texto está dividido em cinco itens, precedidos por uma introdução. O primeiro discute os conceitos de moral e ética buscando defini-los a partir da origem etimológica. O segundo item aborda algumas das principais ideias da ética finalista aristotélica, visando a subsídios para pensar o sujeito ético. O terceiro item, com o mesmo propósito do anterior, expõe as teses centrais da ética racional kantiana. O quarto busca pontos convergentes entre a ética aristotélica e a kantiana, propugnando que ser ético pressupõe, também, ser autônomo e crítico. Por fim, o último item retoma as principais ideias do texto e apresenta as considerações finais.

Palavras-chave:  Ética; Filosofia da educação; Aristóteles; Kant

Abstract

This article tries to offer some conceptual subsidies to think about the ethical subject, since the Law of Directives and Bases of Education establishes among the aims of education in High School: “the improvement of the student as a human person, including ethical formation and the development of intellectual autonomy and critical thinking”. So, we asked: What does it mean to be ethical? Is being improved in your humanity is also an ethical being? Is an ethical being also autonomous and critical? Aiming to shed light on these questions, this article adopts as reference the aristotelian finalist ethic and the kantian rational ethics, seeking to present the central ideas of these theories, as well as the convergent aspects to think the figure of the ethical agent to be prepared by the school. The text is divided into five items, preceded by an introduction. The first discusses the concepts of morality and ethics seeking to define them from the etymological origin. The second item addresses some of the main ideas of the Aristotelian finalist ethic, aiming at subsidies to think about the ethical subject. The third item, with the same purpose as the previous one, exposes the central theses of Kantian rational ethics. The fourth item seeks points converging between Aristotelian and Kantian ethics, arguing that being ethical also presupposes being autonomous and critical. Finally, the last item retakes the main ideas of the text and presents the final considerations.

Keywords:  Ethics; Philosophy of Education; Aristotle; Kant

Introdução

De acordo com Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), em seu art. 35, encontra-se, entre as finalidades da educação no Ensino Médio, o seguinte objetivo: “O aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”. Qual o significado da propositura explícita nesse inciso?

Entende-se que o documento mais importante que regulamenta a educação brasileira estabelece como meta que, ao final da Educação Básica, os alunos encontrem-se aprimorados como seres humanos, ou seja, que a perfectibilidade humana tenha sido buscada de tal forma que o discente tenha recebido e assimilado formação ética, capacidade de pensar por conta própria e de ser crítico. Pergunta-se: O que significa ser ético? Um ser aprimorado em sua humanidade é também um ser ético? É possível ser, ao mesmo tempo, ético e imoral? Um ser ético é também autônomo e crítico?

Buscando oferecer alguns subsídios conceituais para pensar o sujeito ético, serão discutidas, a seguir, concepções relacionadas às interrogações acima, visando a compreendê-las melhor. Com tal propósito, este texto foi dividido em cinco itens: o primeiro discute os conceitos de moral e ética buscando defini-los a partir da origem etimológica. O segundo aborda algumas das principais ideias da ética finalista aristotélica, visando a subsídios para pensar o sujeito ético. O terceiro item, com o mesmo propósito do anterior, expõe as teses centrais da ética racional kantiana. O quarto busca pontos convergentes entre a ética aristotélica e a kantiana, propugnando que ser ético pressupõe, também, ser autônomo e crítico. Por fim, o último item retoma as principais ideias do texto e apresenta as considerações finais.

Ética e moral

O que significa ser ético? Muitas vezes utilizam-se os conceitos ética e moral como sinônimos, em virtude do sentido etimológico comum aos dois termos. A palavra ética vem do grego êthica e significa modo de ser, caráter, costume, e a palavra moral vem do latim moralis, que possui o mesmo significado de ética, uma vez que foi a tradução latina para o termo grego êthica.

No entanto, segundo Spinelli (2009), a tradução de êthica por moralis, realizada pelos latinos não contemplou toda a riqueza do termo grego, já que a palavra êthica originou-se de outros dois termos gregos: êthos, com eta (ê) e éthos, com épsílon (é), que tinham sentidos que se diferenciavam, se misturavam e se complementavam, mas os dois termos acabaram se consolidando com significados distintos:

De uma questão conjunta apenas semântica, éthos e êthos passaram isoladamente a comportar um viés conceitual diferenciado, porém, convergente: o éthos se restringiu à expressão do consuetudinário, e o êthos passou a designar um modo filosófico de pensar os usos e os costumes. Foi justo por esse ponto de vista que o êthos angariou para si a força do ajuizamento crítico, e que passou a qualificar, em referência aos conceitos de bem e de mal, de justo e injusto, de belo e feio, a conduta humana. (2009, p. 42).

Assim, enquanto o éthos ficou mais ligado àquilo que é costumeiro e habitual, o êthos ficou relacionado à reflexão filosófica sobre os usos e os costumes. Spinelli (2009) explica que os latinos também estabeleceram nomenclaturas diferentes ao traduzirem os termos, traduzindo éthos por suetus e o êthos por mores, mas que tais denominações não implicaram distintos significados, conforme explica:

Ao traduzirem éthos por suetus e êthos por mores, os latinos efetivamente fizeram jus à mikròn parekklînon (à pequena variação) suposta por Aristóteles em relação aos termos. Mas, também entre eles os dois termos detiveram igualmente o significado de assento (no sentido de habitação, morada), com o que designavam um modo de ser (de habitar ou de estar domiciliado), em referência ao qual o indivíduo era identificado com o seu núcleo de referência [...]. Nem o suetus e nem o mores eram expressão do universal, mas do doméstico [...], enquanto modo de ser e de se dispor na vivência, modo de se produzir e de expressar a si mesmo. Tratava- se, pois, de um domínio civilizador, reconhecido como uma pertença, feito uma disposição interior que animava o indivíduo a se manter dentro dos limites instituídos por seu grupo. (2009, p. 41).

Dessa forma, considerando o exposto acima e o que foi estabelecido pela tradição filosófica, pode-se definir a ética como uma reflexão filosófica sobre os fundamentos da moral, e a moral pode ser entendida como um conjunto de regras que visa a regular a vida social. Segundo explica Rios,

a ética se apresenta como uma reflexão crítica sobre a moralidade, sobre a dimensão moral do comportamento do homem. Cabe a ela, enquanto investigação que se dá no interior da filosofia, procurar ver [...] claro, fundo e largo os valores, problematizá-los, buscar sua consistência. É nesse sentido que ela não se confunde com a moral. [...]

A moral, numa determinada sociedade, indica o comportamento que deve ser considerado bom e mau. A ética procura o fundamento do valor que norteia o comportamento, partindo da historicidade presente nos valores. (2001, p. 24).

Pode-se, ainda, dizer que, enquanto a moral parte de um fato, que se torna norma e, portanto, se transforma em valor, a reflexão ética segue o caminho inverso. Partindo de um valor, a ética visa à norma, que deve se transformar em fato. Por exemplo, a ideia de que todo ser humano tem o mesmo valor – e como tal deve ter os mesmos direitos – surge como um valor, que busca transformar-se em norma ou lei e, por fim, ter existência na realidade concreta.

O ser humano nasce moral? Se a moral está ligada ao costume, ao hábito, pode-se afirmar que ninguém nasce moral. O ser humano nasce amoral, ou seja, sem nenhuma moral, mas aos poucos vai se apropriando da língua, dos costumes e da moral do seu grupo. Assim, quando o ser humano segue as regras morais de seu grupo social, é considerado um sujeito moral, e, quando não as segue, é visto como imoral. Mas como definir o sujeito ético? Para explorar essa interrogação, serão consideradas as perspectivas de duas teorias clássicas: a ética aristotélica e a ética kantiana.

O sujeito ético na perspectiva aristotélica

A ética aristotélica é definida como uma ética teleológica ou finalista, uma vez que o agir correto, nesse tipo de ética, está relacionado a determinada finalidade (telos).

Aristóteles, em Ética a Nicômaco (2014), considera que toda ação humana tem por objetivo alguma finalidade, algum bem. Por exemplo, pode-se estudar para se formar e ter uma profissão. Pode-se guardar algum dinheiro para fazer uma viajem nas férias. Pode-se planejar uma alimentação mais saudável visando a manter boa saúde. Também se pode fazer uma poupança para comprar uma casa própria. Pode-se dizer que há uma hierarquia de bens, ou seja, alguns são mais fundamentais do que outros. Mas qual seria o suprassumo do bem? Será que há um bem final? Existe um fim último superior que condiciona todos os outros? Existe algo que é desejado por si mesmo, sem estar condicionado a outro fim?

Se, portanto, uma finalidade [telos] de nossas ações for tal que a desejamos por si mesma, ao passo que desejamos as outras somente por causa dessa, e se não elegemos tudo por causa de alguma coisa mais (o que, decerto, prosseguiria ao infinito, de sorte a tornar todo desejo fútil e vão), está claro que se impõe ser esta o bem e o bem mais excelente. (ARISTÓTELES, 2014, p. 46) .

De acordo com Aristóteles, o fim último é a felicidade (eudaimonia). A felicidade é o fim último que todo ser humano deseja. Mas como se alcança a felicidade? A felicidade estaria nos prazeres sensuais? A felicidade se encontraria na glória? A felicidade seria atingida com o acúmulo de bens materiais, de riqueza?

Segundo explica Valls,

Aristóteles não isola muito um bem supremo, pois ele sabe que o homem, como um ser complexo, não precisa apenas do melhor dos bens, mas sim de vários bens, de tipos diferentes, tais como amizade, saúde e até de alguma riqueza. Sem um certo conjunto de tais bens, não há felicidade humana. Mas é claro que há uma certa escala de bens, pois os bens são de várias classes, e uns melhores do que os outros. (2008, p. 30).

Para compreender melhor o que é a felicidade e como alcançá-la, é necessário entender qual é a função do ser humano. Por exemplo, a função de um escultor é fazer esculturas benfeitas, a função de um flautista é tocar com perfeição, mas qual é a função do homem? Pode-se fazer também uma analogia com as funções de cada órgão do corpo humano, por exemplo, a função do olho é enxergar, a função do ouvido é escutar, mas qual seria a função do ser humano como um todo?

Consoante Aristóteles, explica Pegoraro:

Não será simplesmente o viver, pois os vegetais também vivem, se nutrem, crescem; nem será o sentir prazer e dor, pois estes sentimentos existem também nos animais; mas o pensar, que não existe nem nos vegetais nem nos animais, é exclusividade do homem. Portanto, a atividade racional, o exercício da mente é a finalidade específica do homem e nisto está a sua realização final, a sua felicidade. Portanto a finalidade do homem é uma atividade racional, uma função da alma. (2006, p. 42).

A atividade mais elevada do ser humano é sua atividade racional, seu pensar. Essa atividade é própria da condição humana, uma vez que apenas o ser humano possui uma alma racional.1 Na lição de Aristóteles, a felicidade é “uma atividade da alma que se ajusta à virtude perfeita”. (2014, p. 73).

Dessa forma, faz-se necessário investigar a virtude para entender melhor como o ser humano pode alcançar a felicidade.

O conceito virtude foi traduzido do latim virtus, que, por sua vez, tem origem no termo grego aretê e significa excelência, mérito. A virtude é a excelência na realização de um propósito; assim, qual seria a excelência do ser humano? Para Aristóteles “a virtude (excelência) do ser humano será o estado que o torna um bom ser humano e também o que fará desempenhar a sua própria função bem”. (2014, p. 91).

A sabedoria (sofia) e a prudência ou discernimento (fronesis) são virtudes intelectuais relacionadas ao conhecimento (chamadas dianoéticas) e devem ser aprendidas e praticadas. A sabedoria (sofia), no entender de Aristóteles, “é a forma mais consumada de conhecimento” (2014, p. 229), uma vez que possibilita o conhecimento dos porquês, dos princípios que regem o mundo. Desse modo, aquele que é sábio “não se limita a conhecer as conclusões resultantes dos princípios, mas em verdade tem compreensão dos próprios princípios”. (2014, p. 225).

A prudência (fronesis) possibilita aplicar bem os conhecimentos à vida cotidiana, deliberar sobre o bem e o mal, escolher a quais meios disponíveis recorrer para alcançar determinado fim. Daí que Aristóteles refere que o ser humano prudente é “capaz de deliberar bem sobre o que é bom e proveitoso para si mesmo, não num aspecto parcial e particular [...], mas o que contribui, na sua vida, para o bem-estar geral”. (2014, p. 226).

Explica Pegoraro:

A sabedoria e a prudência operam juntas, exatamente porque são funções da mesma e única alma intelectiva (forma). Ambas operam nas decisões éticas do dia-a-dia: a sabedoria mostrando o bem humano geral e a prudência descendo às situações práticas, às circunstâncias particulares, muitas vezes, sumamente difíceis. Assim, o intelecto, como prudência, indica os melhores caminhos para contornar problemas individualizados à luz da sabedoria que aponta o bem geral. (2006, p. 47).

Enquanto as virtudes intelectuais dependem da atividade do intelecto, as virtudes morais se relacionam à sensibilidade e ao instinto. São várias as virtudes morais, porque distintas são as atividades humanas. Assim, as virtudes morais seguem o critério da justa medida (mediania, pragmatos meson) balizadas pela temperança. Aristóteles parte da ideia de que as virtudes morais estão relacionadas aos prazeres, às dores e ao modo como lidamos com eles. “De fato é devido ao prazer que realizamos ações vis e devido à dor que deixamos de realizar ações nobres”. (2014, p. 85). Daí a necessidade de se educar para gostar e não gostar das coisas, desde a infância, segundo o que é benéfico. A ideia freudiana que nos movemos pelo princípio de prazer, limitados pelo princípio de realidade, aparece já em Aristóteles, pois, segundo o autor de Ética a Nicômaco, é “graças ao princípio de prazer e à dor que todos nós, num maior ou menor grau, avaliamos as nossas ações. Em razão disso, eles são necessariamente a nossa maior preocupação”. (2014, p. 87). De modo geral, todo ser humano busca o prazer e quer evitar a dor, conforme retoma o estagirita mais a frente: “O prazer e a dor, com efeito, se estendem ao longo da existência inteira e exercem peso e influência relativamente à virtude e à vida feliz, visto que os seres humanos elegem o prazeroso e se esquivam do doloroso”. (2014, p. 357). Mas quais são os verdadeiros prazeres? E será que toda dor (ou desconforto) deve ser evitada? Para Aristóteles, como dito, a virtude moral visa à justa medida, e ela implica capacidade de discernimento, como explica Marcondes:

A ação correta do ponto de vista ético deve evitar os extremos, tanto o excesso quanto a falta, caracterizando-se assim pelo equilíbrio, ou justa medida. A sabedoria prática (phronesis) consiste na capacidade de discernir essa medida, cuja determinação poderá variar de acordo com as circunstâncias e situações envolvidas. (2007, p. 43).

Assim, a temperança (sofrosyne) é a justa medida entre, por exemplo, o desregramento e a insensibilidade; a coragem é a justa medida entre o temerário e o covarde; a generosidade é a justa medida entre a prodigalidade e a mesquinhez. (ARISTÓTELES, 2014, p. 95). Cabe ressaltar que para Aristóteles o homem virtuoso é aquele que sabe agir em situação concreta, pois não existe um conjunto de regras capazes de dar conta da dinâmica da realidade e dos contextos envolvidos. Um exemplo, inspirado no caso que é citado no Livro III, é o do capitão de um navio que, transportando uma carga valiosa, depara-se com uma tempestade. Ele deverá decidir se joga a carga ao mar, para não colocar em risco a própria vida e a da tripulação, ou não.

O ser humano deve aprimorar suas virtudes intelectuais: a sabedoria e a prudência para fazer escolhas com discernimento e equilíbrio e desenvolver a prática de bons hábitos. Não basta só conhecer o bem para agir bem, como pensava Sócrates, é necessário também desejar fazer o bem, mesmo considerando que, para desejar o bem, é necessário conhecer o bem. Aristóteles defende que é indispensável que os desejos sejam controlados de modo condizente com os fins benéficos, o que é denominado por ele de “virtude moral da temperança”. Não se trata de reprimir os desejos, mas de dar-lhes uma direção proposta corretamente. A prática de atos virtuosos gerará disposição à virtude, ou seja, “a virtude é um hábito resultante da repetição de atos virtuosos que criam no indivíduo uma disposição para o bem”. (FARIA, 1994, p. 74).

Não nascemos virtuosos, mas com a possibilidade de nos tornar virtuosos. A repetição de atos virtuosos cria no indivíduo disposição à prática do agir correto. Aprende-se fazer fazendo, e a analogia aristotélica é: assim como se aprende a construir construindo, a tocar um instrumento tocando, aprende-se a ser virtuoso praticando a virtude. Destarte, a razão deve guiar os desejos para que o homem, praticando atos virtuosos, torne- se virtuoso, e essa harmonia entre a razão e o desejo irá contribuir para pavimentar o caminho em direção à eudaimonia, a felicidade.

A razão, além de ser a dimensão mais elevada do ser humano, é a que nos diferencia de outros seres vivos, e, também, seu desenvolvimento é condição à felicidade. Segundo Aristóteles, os deuses são bem-aventurados e felizes, e nós possuímos em comum com eles a atividade racional. “A extensão da felicidade se identifica com a da especulação, ou seja, quanto mais um ser é especulativo, mais frui ele da felicidade.” (2014, p. 381). O estagirita defende que o filosofar propicia maravilhosos prazeres, mas com isso Aristóteles não diz que a atividade racional é condição exclusiva à felicidade. Ele também considera outros elementos, conforme segue.

Sendo, todavia aquele que especula um ser humano, é lhe imprescindível também o bem-estar externo. Com efeito, nossa natureza não é autossuficiente para a especulação, carecendo também o ser humano de saúde corpórea, alimento e outros cuidados necessários. O fato, porém, da felicidade ser impossível sem bem externos não deve nos levar a pensar que exija muitas ou grandes coisas [...]; é possível realizar atos virtuosos contando com moderados recursos. (ARISTÓTELES, 2014, p. 381).

Segundo Pegoraro (2006, p. 45), pode-se considerar, de forma abrangente, que a ética aristotélica “propõe pelo menos seis condições para ser feliz: a prática das virtudes, um círculo de amigos, boa saúde, suficiência de bens materiais, viver numa sociedade justa e a meditação filosófica”. A prática das virtudes é o tema central da ética, e Aristóteles dedica boa parte de sua obra (Livros II ao IX) a analisar como essa prática possibilita ao homem agir de forma ética. Aristóteles considera a amizade como um componente importante à felicidade, uma vez que aqueles que vivem sozinhos, não tendo nem amigos, nem filhos, têm poucas chances de ser felizes. O autor de Ética a Nicômaco também considera a necessidade de um mínimo de bens materiais, imprescindíveis à sobrevivência, cuja falta poderia gerar carência e infelicidade.

Por outro lado, o excesso dos mesmos também é visto como prejudicial, uma vez que podem corromper o ser humano. Aristóteles também considera que a saúde é um bem desejado, e sua falta pode gerar muitos desconfortos. Sobre a meditação filosófica, entende que aqueles que conseguirem se dedicar ao filosofar, à contemplação das verdades, atingirão o extrato superior da felicidade. Em relação a viver em uma sociedade justa, o estagirita, alega que essa é uma condição fundamental à felicidade humana, uma vez que parte do pressuposto de que o homem é um ser social e político.

Pode-se concluir, conforme Pegoraro, que “a ética e a política de Aristóteles visam a dois pontos centrais: formar o cidadão para a justiça; e gerenciar o bem comum a todos os cidadãos, através de um governo intencionado nessa direção”. (2006, p. 57). Sendo o homem naturalmente um ser político, a vida social é a condição imprescindível para que ocorra sua realização plena. Essa realização ocorrerá de modo mais satisfatório em uma sociedade governada com justiça e tendo como objetivo precípuo o bem comum.

O sujeito ético na perspectiva kantiana

A ética kantiana é uma ética deontológica, uma vez que o agir correto é estabelecido a partir de certas normas e regras e não segundo uma finalidade a ser atingida, como é a ética aristotélica.

Em sua Fundamentação da metafísica dos costumes (1980), Kant toma como ponto de partida os juízos da moral comum e busca os princípios racionais da ação. O filósofo de Königsberg parte da tese de que só uma boa vontade é boa em si mesma e de forma ilimitada. “Neste mundo, e até mesmo fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma coisa: uma boa vontade”. (1980, p. 109). Isso porque outros talentos do espírito, como discernimento; capacidade de julgar; coragem, etc., não são bons em si mesmos, pois pressupõem uma boa vontade. E o que faz uma vontade ser boa?

A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão- somente pelo querer, isto é, em si mesma, e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações. (KANT, 1980, p. 110).

A boa vontade tem seu valor no querer, pois atua com intenção pura de fazer o bem, sem estar condicionada a outros interesses. Daí que para Kant, uma boa vontade é boa em si mesma quando é motivada pelo dever. Kant estabelece uma distinção entre agir conforme o dever e agir por dever. Por exemplo, um comerciante que não aumenta seus preços e cobra o mesmo do comprador experiente e do inexperiente, não age por dever, mas conforme o dever se tem em mente a fidelidade de seus clientes e o crescimento dos seus negócios. Ser caridoso quando se tem essa inclinação é agir, segundo Kant, conforme o dever. Já aquele que é caridoso sem se sentir inclinado a isso age por dever.

Essa concepção pode parecer estranha, a princípio, mas com ela Kant quer dizer que fazer o bem sem ter inclinação para tal tem um valor maior que aquele que o faz por inclinação, já que esse age espontaneamente enquanto aquele necessita superar sua inclinação natural. Destarte, não basta que uma ação seja realizada conforme o dever; é necessário que ela seja realizada por dever, ou seja, que tenha origem em uma fonte pura, pois é aí que se encontra o seu valor moral mais elevado.

Kant estabelece alguns princípios de sua concepção moral: primeiro – o valor moral da ação encontra-se na sua intenção; segundo – uma ação deve ser avaliada pelo princípio da vontade que a motiva e não pelo propósito que visa a alcançar. Praticar a caridade por dever é fazê-lo mesmo sem inclinação para tal e sem outros interesses subjacentes. Praticá-la visando à publicidade ou a outras vantagens não tem valor moral; o terceiro princípio – que decorre dos dois anteriores é que “dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei”. (1980, p. 114). Trata-se de agir não por motivações externas, por inclinações ou por predeterminados propósitos, mas tão somente por respeito à lei que o impele a agir. Mas que lei é essa a que o ser racional obedece e produz uma vontade boa?

Kant explica que “nada mais resta do que a conformidade a uma lei universal das ações em geral que possa servir de único princípio à vontade, isto é: devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que minha máxima se torne uma lei universal”. (1980, p. 115).

O dever kantiano não é um conceito empírico, pois resulta de uma ordem a priori da razão. A observação empírica pode nos informar a respeito de como as pessoas agem e se comportam, mas não pode dizer o porquê de elas se comportarem dessa forma. Daí que a moral não pode ter como fonte a experiência, porque seu objetivo não é a realidade dada, mas a idealização do que deve ser. Assim, não é possível fundar universalidade e necessidade com base na experiência. Se a razão ordena a priori, isso implica que seus ditames são válidos para todos os seres racionais de forma absoluta e necessária. Dessa maneira, a questão sobre um conhecimento a priori passa a ser central na discussão ética de Kant, lembrando que o conhecimento a priori é o conhecimento não empírico, é o conhecimento universal e necessário produzido pela razão. Assim, Kant busca uma fundamentação racional para a ética.

No decorrer dos tempos, as respostas à pergunta: “Por que devo?” tiveram algumas variações, mas, em geral, apontava para um motivo externo às pessoas: Deus, tradição, autoridade paterna, etc. Kant elabora uma resposta que segue outro caminho:

“Devo” – porque sou um ser racional. Eu não preciso perguntar a ninguém o que devo nem por que devo, mas unicamente a mim mesmo enquanto ser racional. A fonte última do Dever não é outra coisa que a Razão; a moralidade é autolegislação de um ser racional. (PORTA, 2002, p. 121).

O ser humano é um ser dotado de vontade, ou seja, tem uma capacidade de agir segundo certas regras. Mas essa vontade pode (ou não) ser determinada exclusivamente pela razão. O ser humano não é um ser absolutamente racional; é um ser também sensível. A vontade não é perfeita, visto que pode também ser influenciada por inclinações da sensibilidade.

Muitas vezes surgem conflitos entre o que a razão orienta e como os desejos se manifestam. Por exemplo, se agir corretamente demanda esforços, a pessoa pode se sentir inclinada a seguir o desejo do menor esforço.

Se a vontade fosse pura, obedeceria à razão automaticamente, mas como não é, ela precisa ser constrangida pela razão. Daí que as leis da razão aparecem como mandamentos à vontade.

A representação de um princípio objetivo, enquanto obrigante para uma vontade, chama-se um mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-se imperativo.

Todos os imperativos se exprimem pelo verbo dever (Sollen), e mostram assim a relação de uma lei objetiva da razão para uma vontade que, segundo a sua constituição subjetiva, não é por ela necessariamente determinada (uma obrigação). (KANT, 1980, p. 124, grifo nosso).

Uma vontade divina, ou santa, que é perfeitamente boa, se submete à razão sem se sentir obrigada. Daí que os imperativos não valem nesse caso. Se o ser humano agisse apenas pela razão, os mandamentos éticos seriam seguidos espontaneamente. Mas a vontade humana necessita dos imperativos para determinar sua vontade segundo leis da razão. Os imperativos são hipotéticos quando se vinculam determinada ação como necessária para atingir determinado fim. E são categóricos quando ordenam ações necessárias em si mesmas, sem relação com quaisquer fins.

Nas palavras de Kant,

No caso de a ação ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, o imperativo é hipotético; se a ação é representada como boa em si, por conseguinte, como necessária numa vontade em si conforme a razão como princípio dessa vontade, então o imperativo é categórico. (1980, p. 125).

A felicidade é uma finalidade que todos os seres racionais perseguem e é, segundo Kant, um imperativo hipotético que a orienta, já que implica buscar meios – prudência (klugheit) – para alcançar o maior bem-estar possível: a felicidade, porque quem quer um determinado fim, quer também os meios necessários para sua consecução. “Mas infelizmente o conceito de felicidade é tão indeterminado que, se bem que todo homem a deseje alcançar, ele nunca pode dizer ao certo e de acordo consigo mesmo o que é que propriamente deseja e quer”. (KANT, 1980, p. 127). Tal dificuldade se deve ao fato de o conceito de felicidade se derivar de elementos empíricos, e esses não são suficientes para pensar a ideia de felicidade em sentido absoluto, no presente e no futuro.2 Para fazer isso com segurança, seria necessário ter a faculdade da onisciência.

Daí que para Kant,

o problema de determinar certa e universalmente que ação poderá assegurar a felicidade de um ser racional, é totalmente insolúvel, e que, portanto, em relação com ela, nenhum imperativo é possível que possa ordenar, no sentido rigoroso da palavra, que se faça aquilo que nos torne felizes, pois que a felicidade não é um ideal da razão, mas da imaginação, que se assenta somente em princípios empíricos dos quais é vão esperar que determinem uma conduta necessária para alcançar a totalidade de uma série de consequências de fato infinita. (1980, p. 128).

Por outro lado, os imperativos da moralidade ditam regras independentes de quaisquer fins. São, portanto, categóricos. O princípio categórico se caracteriza como uma lei prática que dita um mandamento incondicional, portanto, não dá à vontade a possibilidade de outra escolha. São válidos para todo ser racional. Sua ordem é: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”. (KANT, 1980, p. 129).

O ser humano é dotado de vontade e age visando a fins. Kant faz uma distinção entre fins objetivos e fins subjetivos. Os fins objetivos dependem de motivos (Bewegungsgrund) e são válidos a todos os seres racionais. Os fins subjetivos se fundamentam em móbiles (Triebfeder) e são particulares e relativos ao sujeito. Dessa forma, não são passíveis de universalização. Os fins objetivos podem ser universalizados enquanto são válidos a todos os seres racionais. São, portanto, um fim em si mesmo e, se há algo no mundo que é um fim em si mesmo é o próprio homem.

Kant entende que

o homem, e, duma maneira geral, todo ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim. (1980, p. 135).

As coisas que existem no mundo possuem valores relativos, possuem valores para nós, já as pessoas possuem um valor em si. Esse valor em si é absoluto, daí que as pessoas não podem ser empregadas como meios para quaisquer outros fins.

A existência dos imperativos categóricos depende de tomar as pessoas como fim em si mesmas, pois essa é a condição para existência de valores absolutos. Porque se as pessoas não possuírem um valor em si, nada mais possuirão. Dessa forma, temos a formulação de outro imperativo categórico kantiano: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”. (1980, p. 135).

Esse imperativo da humanidade como fim não deriva da experiência, ele é extraído da razão pura. Ele se aplica a todos os seres racionais, e isso implica conceber a humanidade como fim objetivo, daí que todos os fins subjetivos devam ser limitados por esse fim objetivo mais amplo.

O ser humano é dotado de um valor intrínseco que é a dignidade. As coisas que têm um preço permitem uma troca entre equivalentes, mas quando algo não permite uma troca de equivalentes, significa que ela está acima de qualquer preço, significa, então, segundo Kant, que ela tem dignidade, portanto é merecedora de respeito. O ser humano, além de dignidade é um ser dotado de autonomia, um ser capaz de se guiar por sua própria vontade.

A vontade é uma causalidade própria dos seres racionais. A liberdade da vontade é a autonomia. Daí que uma vontade livre é uma vontade que obedece às leis morais. Desse modo, a autonomia da vontade pressupõe escolher máximas passíveis de universalização. O ser humano é livre não quando age sem lei, mas quando é capaz de agir seguindo as próprias leis que foram ordenadas pela sua própria razão. Daí que, na perspectiva kantiana, ser livre é ser racional, é agir segundo os mandamentos da razão.

Pensando a formação do sujeito ético

A ética kantiana e a ética aristotélica ajudam a pensar sobre as características do sujeito ético e, embora sejam propostas diferentes, é possível, também, identificar pontos convergentes. A ética kantiana apoia- se na ação por dever, como resultante dos imperativos categóricos ditados pela razão, enquanto a ética aristotélica tem como foco a ação do homem virtuoso que o conduz à felicidade (eudaimonia).

Ambas as concepções valorizam a razão, mas com enfoques diferentes. Em Kant a razão dita os imperativos universais, que devem ser obedecidos pelo sujeito ético. Mas o ser humano não é um ser absolutamente racional, é um ser também sensível; assim, a vontade pode ser influenciada pelos desejos. Daí que as leis da razão aparecem como mandamentos para a vontade. O princípio categórico se caracteriza como uma lei prática que dita um mandamento incondicional, portanto, não dá vontade à possibilidade de outra escolha. São válidos para todo ser racional. A ação será ética se puder ser transformada em lei universal.

Em Aristóteles, a atividade mais elevada do ser humano é sua atividade racional, o seu pensar, mas como o ser humano possui também instintos e desejos, esses devem ser condicionados pela parte mais elevada da alma. Ou seja, cabe à parte racional administrar os instintos e desejos. O estagirita entende que apenas saber o que é certo não é garantia de fazer o que é certo. Pode-se saber o que é correto e, mesmo assim, preferir-se o incorreto ou o que agrada, pois, conforme asseverou Aristóteles, as pessoas preferem o que propicia prazer em vez do que produz desconforto ou dor. Dessa forma, é necessário agir com virtude, que, por sua vez, deve ser fortalecida pelo hábito.

Para Kant um sujeito ético é um sujeito autônomo, que obedece à sua razão, que age por dever. Em Aristóteles, a autonomia do homem virtuoso consiste em se guiar pelo intelecto para agir segundo a justa medida. Considerando que um sujeito crítico (do gr. kritikós) é aquele capaz de julgar, avaliar e tomar decisões, as duas definições de ética – kantiana e aristotélica – pressupõem sujeitos críticos.

Em relação à preocupação com o bem comum, pode-se afirmar que, em ambas as concepções éticas, encontra-se essa perspectiva. Em Kant, o sujeito autônomo, que obedece a si mesmo e age por dever, faz aquilo que os demais sujeitos autônomos fariam e, dessa maneira, possibilita uma harmonia social. O pressuposto é que as coisas que existem no mundo possuem valores relativos, e as pessoas possuem um valor em si. Esse valor em si é absoluto, daí que as pessoas não podem ser empregadas como meios para quaisquer outros fins. Assim, todos os seres humanos são sempre fins em si mesmos e nunca devem ser empregados como meios para outros fins, fundamentando o segundo imperativo kantiano.

Em Aristóteles, embora sua ética tenha como télos (fim) a eudaimonia (felicidade), ela se articula também com a felicidade social, já que um dos pressupostos da felicidade é viver em uma sociedade justa. A felicidade aristotélica não é individual, mas coletiva. Como ser social e ser político, o homem só pode ser feliz vivendo em uma sociedade justa e feliz.

Assim, nos dois filósofos, encontra-se a ideia de que um indivíduo desenvolvido em sua humanidade é também um ser solidário, que se responsabiliza pelos interesses comuns, de modo que ambas as concepções éticas contribuem para pensar o sujeito ético, autônomo, crítico e solidário, que são objetivos precípuos da educação.

Chauí sintetiza algumas características do sujeito ético, que corroboram a análise em discussão.

Numa perspectiva geral, podemos dizer que a ética procura definir, antes de mais nada, a figura do agente ético e de suas ações e o conjunto de noções (ou valores) que balizam o campo de uma ação que se considere ética. O agente ético é pensado como sujeito ético, isto é, como um ser racional e consciente que sabe o que faz, como um ser livre que decide e escolhe o que faz, e como um ser responsável que responde pelo que faz. A ação ética é balizada pelas ideias de bom e mau, justo e injusto, virtude e vício, isto é, por valores cujo conteúdo pode variar de uma sociedade para outra ou na história de uma mesma sociedade, mas que propõem sempre uma diferença intrínseca entre condutas, segundo o bem, o justo e o virtuoso. Assim, uma ação só será ética se for consciente, livre e responsável e só será virtuosa se for realizada em conformidade com o bom e o justo. (2007, p. 1).

Nesse viés, ser ético pressupõe agir de forma consciente, livre e responsável. Isso significa dizer que o sujeito ético age consciente de sua ação, ou seja, ele tem conhecimento do que faz, não age de forma impulsiva. Ele também é livre no sentido de obedecer à sua própria razão e não ceder simplesmente aos desejos. Ele também é responsável no sentido latino de responsus, de responder por aquilo que faz, de assumir sua ação e seus desdobramentos.

Uma vez definida a figura do agente ético, cabe aqui retomar um questionamento colocado na introdução do texto: É possível ser ético e imoral ao mesmo tempo? Ficou estabelecido que o sujeito ético age de forma consciente, livre e responsável, e que um sujeito moral é aquele que segue a moral vigente. Ora, a moral vigente pode não coincidir com o princípio ético. Assim, o sujeito ético poderá, ao mesmo tempo, ser imoral e ético, se, ao agir de forma ética, sua atitude se contrapor à moral vigente.

Por exemplo, se em uma dada sociedade é considerado moral que a esposa seja totalmente submissa ao marido e lhe obedeça de forma incondicional, e, se esse marido se propõe subverter totalmente essa norma moral respeitando a vontade e o pensamento de sua esposa de forma igualitária, tratando-a como um ser humano com valor em si mesmo – como, aliás, deve ser – ele, desse modo, não estará seguindo a moral vigente, por conseguinte, será considerado imoral pelos adeptos dessa norma moral, porém, ao respeitar a humanidade de sua esposa, como um valor supremo, adota uma atitude ética.

Segundo La Taille (2006),3 é necessário que o agente moral conheça as regras, os princípios e valores que fundamentam sua ação. “Por exemplo, a moral pode afirmar que a vida é um valor, derivar o princípio segundo o qual a vida deve ser respeitada e ditar regras como não matar, não ferir, promover o bem estar”. (2006, p. 73). A perspectiva que fundamenta esta reflexão é partir de um valor, que gera um princípio, visando ao estabelecimento de regras. No entanto, assevera La Taille (2006): as crianças, em sua aprendizagem moral, seguem o caminho contrário: “o primeiro contato com a moral, e o mais concreto, dá-se por meio das regras, sendo os princípios que as inspiram e os valores que lhes dão fundamento de assimilação posterior”. (2006, p. 74). O problema, salienta o autor, é que muitas pessoas limitam seu aprendizado ao conhecimento das regras sem avançar à conscientização dos princípios e valores. La Taille esclarece o significado desses conceitos:

Entendamos por regra moral um mandamento preciso. Bons exemplos estão nos Dez Mandamentos do Antigo Testamento: não matar, não roubar, não cobiçar, etc. E vamos entender por princípio moral a matriz da qual são derivadas as regras. Por exemplo, a

máxima cristã que reza que “devemos amar uns aos outros” corresponde a um princípio do qual se deriva entre outras as regras, “não matar”. Empregando-se uma metáfora, podemos dizer que as regras morais correspondem ao “mapa” e os princípios correspondem à “bússola”. Ora, como é com bússolas que se fabricam os mapas, e não o contrário, possui maior sofisticação moral quem sabe, além de ler mapas, empregar as bússolas. (2006, p. 74).

Daí que se limitar apenas ao conhecimento das regras morais é limitar também a ação, pois não há regras que deem conta da diversidade de situações. Destarte, o sujeito ético deve ter uma formação que lhe possibilite decidir com autonomia, criticidade e responsabilidade, nas mais diversas situações.

Considerações finais

No decorrer deste artigo, buscou-se elucidar os conceitos moral, ética e agente ético, visando asugerir subsídios para pensar na formação ético- discente. O pressuposto de que o ser humano não nasce moral ou ético, mas que poderá se tornar moral e/ou ético por meio de um processo educacional informal e formal, já que se trata de um processo de formação nos múltiplos âmbitos da existência humana, extrapola, portanto, a esfera escolar.

Foi visto que, na perspectiva da ética aristotélica, o ser humano deve aprimorar suas virtudes intelectuais: a sabedoria e a prudência para fazer escolhas com discernimento e equilíbrio. Já as virtudes morais se relacionam aos prazeres, às dores e ao modo como lidamos com eles. Assim, é necessário educar o indivíduo apar gostar e não gostar das coisas, desde a infância, segundo o que é benéfico. Não nascemos virtuosos, mas com a possibilidade de virmos a ser virtuosos. Daí a necessidade do hábito, pois a repetição de atos virtuosos cria, no indivíduo, disposição à prática do agir correto.

Para Kant um sujeito ético é um sujeito autônomo, e um sujeito autônomo é aquele que obedece à sua razão, que age por dever. Agir por dever implica seguir os imperativos categóricos ditados pela razão. Dessa forma, o sujeito deve aprender a pensar por conta própria, a ser autônomo, a obedecer a si mesmo e assumir a responsabilidade pelas suas ações.

O sujeito ético não se limita ao conhecimento das regras morais, mas precisa ter consciência de por que age de uma forma ou de outra. Destarte, o sujeito ético deve ter uma formação que lhe possibilite agir com autonomia, criticidade e responsabilidade. Dessa maneira, embora a família e a sociedade sejam partícipes na formação ética e cidadã das novas gerações, a escola se destaca como o locus principal para essa formação, pois, além de possuir metodologia, sistematização e intencionalidade, tem como um de seus objetivos, no Ensino Médio, formar sujeitos éticos, autônomos e críticos.

Quando um processo educacional consegue efetivar “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”, almejado no art. 35 da LDB, a sociedade se torna melhor, visto que a formação de sujeitos éticos beneficia a própria vida social e não apenas o indivíduo. Pessoas guiadas por princípios éticos tornam a sociedade mais hospitaleira para a vida humana, uma vez que pessoas verdadeiramente éticas não se guiam por princípios egoístas, mas por princípios que visam ao bem-estar coletivo. Nesse sentido, se é claro que uma das respostas dadas pela escola ao Por que ensinar? é a formação ética, então, falta que a mesma explore o Como ensinar?, ou seja, De que forma concretizar essa formação? Pois, parodiando Nietzsche, quem tem um verdadeiro porquê também encontra um efetivo como.

1O ser vivente é concebido por Aristóteles como a união da matéria com a forma. As plantas possuem uma alma vegetativa que possibilita a nutrição e a reprodução; os animais possuem uma alma sensitiva que acrescenta as funções anteriores o sentir, o desejar, o deslocar-se. O homem possui uma alma racional, que, além das funções citadas, pode raciocinar, avaliar, julgar, deliberar, escolher, etc.

2Kant concorda com Aristóteles que todo ser humano deseja a felicidade, mas diferentemente do estagirita, entende que é difícil defini-la e, também, não deve ser ela o parâmetro para se pensar a ética.

3Apesar de La Taille (2006) utilizar definições diferentes para moral e ética das utilizadas neste texto, suas reflexões são contributivas nas questões tematizadas.

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Recebido: 19 de Julho de 2018; Aceito: 09 de Setembro de 2018

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