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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.3 Caxias do Sul  2018  Epub 26-Jul-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.n3.5 

Artigos

Movimento Sofístico na Grécia (séculos V e IV a. C.): o trabalho de ensinar

The Sophistic Movement in Greece (V and IV a. C.): the work of teaching

José Sílvio de Oliveira* 

*Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professor Adjunto na Universidade Federal de Goiás/ Regional Jataí. : oliveirajsilvinho@hotmail.com


Resumo

Investigar a natureza do trabalho de ensinar dos sofistas na Grécia (séculos V e IV a. C.) é o objetivo deste artigo. É amplamente reconhecido o preconceito histórico-ideológico que a própria palavra sofista carrega ao longo da história da educação. Afirmamos, preliminarmente, que não vamos arrancar essa marca intrincada que, em certo sentido, assinalou o caráter dos primeiros trabalhadores do ensino na civilização ocidental. No horizonte histórico-filosófico, quando a visão cosmológica é substituída pela antropológica, são os sofistas responsáveis pelo nascimento de nova profissão: a do trabalho de ensinar. De domínio ideológico, político, econômico e vinculado ao âmbito teórico-metodológico, o problema pode ser traduzido na seguinte pergunta: Em que medida pode-se afirmar que o Movimento Sofístico, de fato, era um movimento desprezível e, portanto, aproveitara da sua obra, a educação, em favor da esfera econômica? Indagar os sofistas é perguntar qual é o sentido e os princípios da atividade do ensino em sua abrangência e complexidade histórico-teórica. Sabemos perfeitamente bem que a finalidade prática do trabalho, nessa época, era negada em todos os aspectos. Portanto, queremos responder às causas sobre o sentido, de fato, do trabalho sofístico. De caráter bibliográfico, este artigo tem (como fontes principais de pesquisa), as obras de Platão, Aristóteles, Xenofonte e Aristófanes, as secundárias, as de Werner Jaeger (2001), Henri-Marrou (1990), Mario Alighiero Manacorda (2010), Giovanni Reale (1993) e Anibal Ponce (1994). Foram consultadas também obras nacionais e internacionais.

Palavras-chave:  Sofistas; Trabalho; Educação

Abstract

Investigating the nature of the sophists’ work as teachers in Greece from the V to IV century BCE is the aim of this article. The historical and ideological bias that the term sophist itself carries throughout the history of education is extensively recognized. Preliminarily, we state we are not going to disproof this intricate stigma that, in a sense, shaped the early educational workers’ character in western civilization. In the historical and philosophical horizon, when the cosmological vision is replaced by the anthropological one, sophists are responsible for a new profession birth: the work of teaching. Being of an ideological, political, economic domain, and bound to the theoretical-methodological scope, the problem can be translated into the following question: To what extent can it be said that The Sophistic Movement was indeed a contemptible one and, thus, it has taken advantage of its own work, the education, in favor of the economic sphere? Asking the sophists is to ask what the principles and meaning of the teaching activity are in its coverage and its historical and theoretical complexity. We know perfectly well that the practical purpose of work was denied in all aspects at that time. Therefore, we expect to answer the causes of the real meaning of sophistic work. Due to the bibliographical character of this article, three sources of research were consulted as follow: firstly, (1) Plato, Aristotle, Xenophon and Aristophanes’ works. Secondly, (2) the works of Werner Jaeger (2001), Henri Marrou (1990), Mario Alighiero Manacorda (2010), Giovanni Reale (1993) and Anibal Ponce (1994); and, finally, (3) other national and international publications.

Keywords:  Sophists; Labor; Education

Introdução

Este artigo investiga, no Movimento Sofístico da Grécia (séculos V e IV a. C.), a categoria trabalho, conceito originário da profissão dos sofistas. Não tardamos em esclarecer a etimologia da palavra, pois, quando se trata desse movimento, sabe-se que, se estabeleceu um preconceito histórico- cultural, ideológico e intelectual. Até então, o sofista era tido como um intelectual, um sábio. O termo sofístico tem sua origem na palavra sofista, e essa, por sua vez, remete aos primeiros conselheiros e sábios da Grécia arcaica, bem como do Oriente próximo. “De facto, são inúmeros os exemplos de obras em que nos aparece determinada personalidade a aconselhar uma outra sobre a melhor forma de actuar.” (LEÃO, 2008, p. 13). Nessa visão, significava o homem que dominava a linguagem, que tinha em si a potencialidade de fazer distinção entre os conceitos; era aquele que sabia separar as opiniões do saber, e, mais que isso, sabia distinguir o sentido das falácias. Portanto, sábio. “Sofista era aquele que orientava [...] um soberano sobre um tipo de conduta a adoptar ou, na versão mais familiar, na imagem do pai que procura zelar pela formação do filho”. (LEÃO, 2008, p. 13). Como sábio e conselheiro, logo, é aquele que apreendeu a não confundir e a não fragmentar o conhecimento, o saber, a ciência, a técnica, as letras, as artes, o ensino, enfim, a educação em seu sentido amplo.

Obviamente, o sofista não é um filósofo e, portanto, sua profissão tem peculiaridades distintas. É aquele que tem a capacidade de não ofuscar e enfraquecer o verdadeiro sentido do saber. Entretanto, escrevemos e falamos sofista, porém, lemos e entendemos: indivíduo que utiliza as palavras para enganar, para trapacear, isto é, para usar raciocínio falacioso, a fim de obscurecer o sentido verdadeiro dos fatos, dos acontecimentos, da realidade.

Essa representação se perpetua desde os tempos de Platão (427-348 a. C.). Aliás, com ele nasceu o preconceito contra os sofistas. Aderiam a isso, seu discípulo Aristóteles (384-322 a. C.) e o discípulo de Sócrates, Xenofonte (430-355 a. C.). Na comédia, As Nuvens, de Aristófanes (447-385 a. C.), o próprio Sócrates (469- 399 a. C.) é tido como um sofista. Em defesa da nova educação ateniense, Aristófanes escreveu sua peça teatral para mostrar aos atenienses que a escola sofística era uma farsa. Os sofistas foram, antes de tudo, os primeiros trabalhadores do ensino; mais que isso, os pioneiros dessa atividade. Foram eles os primeiros profissionais da arte da retórica.

Afirma Mario Alighiero Manacorda (2010, p. 78), “A arte da palavra, a institutio oratoria, se tornará de fato o conteúdo e o fim da instrução grega, assim tinham começado a ensiná-la os sofistas”. Podemos, em certo sentido, afirmar que, com eles, nasce novo tipo de profissão e nova ciência. Talvez, essa seja a maior relevância desta reflexão. Aqui, o termo ciência não deve ser entendido ou lido à luz da compreensão moderna. O próprio Platão é o primeiro a fazer distinção entre saber – epistême e opinião – doxa. A definição de epistême, de acordo com as notas da tradutora da obra O Político, de Platão, pode ser entendida como “um saber ou um conhecimento derivado ou devido a uma certa ‘arte’, a uma certa ‘habilidade’, a uma certa “perícia”.” (PLATÃO, 2014, p. 193). Destarte, perguntar pelos sofistas e por seu ofício, mais que descortinar preconceitos, é desvelar as raízes histórico-teóricas que brotaram de um processo árduo, complexo e engenhoso da atividade de ensinar e do aprender.

Metodologicamente, este artigo está dividido em duas partes: a primeira aborda os fatos, ou os acontecimentos históricos que marcaram o nascimento da sofística e seus respectivos idealizadores; a segunda parte concentra-se nos aspectos teóricos que caracterizaram e desvelaram o sentido do trabalho de ensinar, desenvolvido pelos sofistas. É importante ressaltar, especificamente no texto, que não podemos e nem devemos fazer uma separação entre os aspectos históricos e os teóricos. A divisão deste artigo tem apenas caráter didático. Esses dois fatores (essas duas realidades) não estão opostos, nem se confundem, pois, se complementam. No que tange ao problema a ser resolvido, podemos perguntar se os sofistas – itinerantes da retórica, da instrução, do ensino, eram, de fato, mercadores da educação e do ensino como tantas vezes expressaram Platão, Aristóteles e o próprio Xenofonte?

As nossas principais fontes de pesquisa foram: Platão: Protágoras; Sofistas; O Político; e Górgias; Xenofonte: Ditos e feitos memoráveis de Sócrates; e Aristófanes: As Nuvens. As fontes secundárias dos autores: Werner Jaeger: Paideia: a formação do homem grego; Giovanni Reale: Sofistas; Sócrates e Socráticos menores; Mario Alighiero Manacorda: História da educação. Da Antiguidade aos nossos Dias e Henri-Irénné Marrou: História da educação da Antiguidade aos nossos dias, e Aníbal Ponce: Educação e luta de classes.

1 O horizonte histórico do Movimento Sofístico

Para entender a categoria trabalho, no originário que propuseram os sofistas, é preciso, contudo, conhecer o terreno histórico em que foi engendrada essa atividade e, propriamente, o sentido da educação entendida como Paidéia.1 O sentido formativo que um dos maiores expoentes da pesquisa em paideia, Werner Jaeger, expressa em sua obra: Paideia: a formação do homem grego, que nada mais é do que a formação do homem no sentido ideal. Na introdução do livro, ele explica isto. A ideia formativa de homem em sua omnilateralidade não nasce na esfera do mutável, do passageiro, da efemeridade, não brota do individual, ao contrário, da ideia, para além do homem sociável ou como “[um] suposto eu autônomo, ergue-se o Homem como ideia [...]. Ora, o Homem, considerado na sua ideia, significa a imagem do Homem genérico na sua validade universal e normativa”. (JAEGER, 2001, p. 14). Esse conceito expresso por Jaeger só tem conotação completa quando o movimento dos sofistas se ergue, paulatinamente, no contexto da história da educação da Grécia antiga, sobretudo nos séculos V e IV a. C.

O período de auge do Movimento Sofístico está situado entre 440 a 400 a.C., logo, estamos cronologicamente no período de Péricles (495-429 a.C), um dos mais influentes estrátegos dos povos da Hélade. Esse período em que Péricles comandava foi marcado, provavelmente, por uns trinta anos. Da esfera política e do campo religioso emanavam duas importantes escolas que disputavam o campo do ensino, e o que estava em jogo era: O que e como ensinar? O que e como aprender? Era no centro da cidade, ao ar livre, que tudo acontecia, exatamente na praça pública – ágora, isto é, local das principais atividades da cidade – pólis – termo grego transliterado para a língua portuguesa. De um lado, a velha tradição do ensino, a dos poetas trágicos; de outro, a dos os sofistas, esses, abrem portas para uma nova escola, daí, o aparecimento da complexidade e da diversidade de métodos e de teorias. Mas, para, além disso, nascia também um jogo de interesses particulares, o do plano político, o da esfera econômica e o do âmbito religioso. Em sua obra O Político, Platão explica essa complexidade. Pela boca do Estrangeiro o filósofo ateniense assegura: “Impõe-se-nos neste momento, o dever de refletir o seguinte: qual das ciências se liga o saber respeitamente à governação dos homens – o mais difícil e o mais importante de todos.” (PLATÃO, 2014, p.137).

Platão está aqui se referindo à ciência que estuda o homem em sua dimensão social, política, cultural e formativa, portanto, ele está se referindo à educação dos homens! Mais que isso, quer ele saber quem são os mestres, ou quais são as figuras que deverão ser excluídas do ato da governação. Como bem sabemos, Platão propunha um governo de filósofos, mas o que Platão enfatiza com rigor é a questão política e econômica, pois ele é filho de aristocrata. Sobre o sentido da aristocracia, explica Pierre-Vernant (2000, p. 65): “A virtude aristocrática era uma qualidade natural ligada ao brilho do nascimento.”

Neste terreno histórico, necessariamente, teremos que retroceder pelo menos, dois séculos antes do aparecimento do movimento sofístico e, tentar compreender o que se passava na Grécia em termos de educação e de ensino. No clarão da aurora do século VI, antes de nossa era, Pitágoras (570 a. C.), um dos primeiros filósofos, refletiu sobre a questão do ensino, da educação, portanto da paideia: “Sua tese é que existe um bem que se transmite sem perdê-lo, sem onerar ou diminuir quem o distribui: a educação, a que confere o nome de paideia.” (NUNES, 1999, p. 62). Mas, Pitágoras, parou por aí, sabemos apenas de seus ensinamentos filosóficos. Fora disso, não temos conhecimento sobre seus ensinamentos propriamente educativos. Até então, existiam escolas essencialmente filosóficas, estas tinham um caráter metodológico distinto, cuja finalidade era investigar a origem do mundo, da natureza, do cosmo. Ainda estamos no campo da filosofia. Ligados a ela, estão os nomes de Tales de Mileto (640-546 a. C.), Anaxímenes (588-524 a. C.), Anaximandro (610-546 a. C.) Heráclito (535-475 a. C.) Parmênides, (530-460 a. C.), Pitágoras (século VI) e muitos outros. Nesse momento não existe propriamente uma ciência do ensino, da educação. Temos apenas filosofia e filósofos que investigam o campo da natureza – phýsis.2

No âmbito dos filósofos da natureza, explica Giovanni Reale: “– diz- se – buscavam a verdade por si mesma, e o fato de terem ou não alunos era puramente acidental”. (2009, p. 28). Os sofistas, diferentemente, por seu turno, não buscam a verdade por si mesma. Podemos explicar: em primeiro lugar, eles não eram filósofos e, portanto, tinham outra atividade, a do ensinamento. O objeto de investigação dos filósofos pré-socráticos ainda não pressupunha o homem – a dimensão humana. A investigação filosófica era, necessariamente, uma investigação cosmológica e não antropológica. É preciso esclarecer: as primeiras escolas filosóficas revelam os primeiros mestres no âmbito da filosofia. E não foi desse horizonte que apareceram os primeiros educadores. Henri-Marrou, em sua obra: História da educação na Antiguidade, confirma que o Movimento Sofístico operou uma verdadeira revolução pedagógica para os filhos da Hélade.

Foi com os sofistas que “a educação helênica daria um passo decisivo para maturidade: ocorrendo na segunda etapa do quinto século. Ela é obra deste pugilo de inovadores que se conveio em designar pelo nome de Sofistas”. (MARROU, 1990, p. 83).

Essa revolução educativa é, em primeiro lugar, teórico-metodológica na medida em que o objeto de investigação passa a ser o homem e não mais o cosmo. Mas isso não aconteceu somente no plano teórico-metodológico; historicamente, podemos afirmar que o terreno político envolvido plenamente pela guerra modifica o cenário da vida dos atenienses. Em 480 e 440 a. C., os bárbaros invadiram Atenas por duas vezes, o que resultou em famosa batalha na ilha de Salamina – onde os gregos derrotaram os persas. “Depois de Salamina –, Atenas se tornou um poder importante, para o qual todos os olhares se dirigiam”. (CHÂTELET, 1994, p. 17).

Do ponto de vista populacional, era uma cidade constituída de pessoas sucessivamente ricas que viviam de rendimentos e investimentos em suas propriedades, terras, escravos, e empréstimo de dinheiro, sobretudo de transações mercantis realizadas na região portuária. Moses Finley, em relação aos habitantes de Atenas dessa época, afirma que os números são aproximativos, não existe uma exatidão, escreve ele em sua obra: Os gregos antigos: “em 431, o seu total, incluindo mulheres e crianças, homens livres e escravos, era cerca de 250 000 ou 270 000.” (1963, p. 48). Desses, apenas cerca de 30 ou 40 mil eram cidadãos, isto é, homens livres nascidos em Atenas com idade superior a 18 anos. Os demais eram excluídos, a saber, estrangeiros residentes em Atenas – metecos estrangeiros não residentes – xenos, escravos, mulheres, crianças e outros, perfazendo um total de 85% a 90% da população. Diante dessa situação, para ocupar um lugar de destaque, ou ainda, um cargo importante na pólis, o cidadão precisava dominar a arte de bem falar. A palavra era, pois, o instrumento mais precioso e mais poderoso na pólis. O ato da governação das poleis era o cargo a ser desejado por todos, e a oratória política, sem dúvida, requeria uma diversidade de conhecimentos e, mais que isso, requeria a riqueza e harmonia da dialética – a arte do diálogo e, dessa forma, era fundamental para o político ter essa formação, além de ser benquisto. Ainda que o orador não tivesse uma posição social elevada, se o seu discurso fosse marcante e tivesse prestígio, certamente, poderia ter em suas mãos o poder da pólis, mais precisamente, da assembleia.

Mais do que o saber propriamente técnico do advogado, útil sem dúvida, mas não indispensável, porque a parte jurídica das alegações poderia ser entregue a qualquer logógrafo especializado, interessava agora conhecer todas essas veredas do raciocínio capcioso, pelas quais se vai habilmente empurrando o adversário até fazê-lo despencar numa armadilha de efeito fulminante. (PONCE, 1994, p. 55).

Após a experiência de tirania pela qual passa a cidade de Atenas, próximo ao sexto século a. C., a vida dos cidadãos se concentra totalmente em torno da política. O que estava em jogo, explica Henri-Marrou (1990, p. 83) era “o exercício do poder, a gestão dos negócios públicos tornam-se a ocupação fundamental, a atividade mais nobre e mais apreciada do homem grego, o supremo objetivo ofertado à sua ambição”. O homem grego, nesse sentido, precisava mostrar-se superior, sobrepujar-se e superar o seu oponente no discurso, mas não somente se mostrar vitorioso no debate político, era preciso ser vitorioso em diversos sentidos possíveis; o homem grego deveria mostrar-se conhecedor de sua própria cultura, das artes, da língua, das letras, ele deveria conhecer os caminhos do saber.

O cidadão grego, até então, teria que ser o melhor, o superior também nos combates e nos esportes. Do ponto de vista do corpo, o homem grego precisava ser ágil, do ponto de vista da fala, precisava saber dominar o púlpito. O ideal heroico, a honra e a glória nos combates não isenta a nobreza no falar. O desenvolvimento da pólis ateniense, a criação da democracia e a Assembleia Geral3 do próprio Conselho dos QuinhentosBoulê4 geraram uma participação maior dos cidadãos no cenário legislativo de Atenas; igualmente, gerou nos jovens um profundo espírito de concorrência, entretanto, era preciso, contudo, adquirir a arte da persuasão.

Esse espírito competitivo, “que naturalmente surgiu, quer no domínio político, quer no Judiciário, exigia uma preparação intelectual cada vez mais acentuada e fez surgir a necessidade de uma formação para além da adolescência”. (FERREIRA, 2006, p. 35). Nesse horizonte, os sofistas entraram para a história. Platão, tomando-se por base a obra Górgias, o personagem central, Sócrates, investigava a finalidade do trabalho dos sofistas: no caso específico, da profissão de Górgias (485-480 a. C.). Sem dúvida, esse era um dos maiores retóricos da época, e Platão coloca, na boca desse personagem, o que ele pensava sobre o sentido da retórica.

Afirma Górgias:

É que todas as outras artes se ocupam praticamente apenas de operações manuais e coisas do mesmo gênero, ao passo que a retórica não tem nada que ver com esses aspectos, pelo contrário, toda a sua ação e eficácia se realizam através da palavra. É por isso que eu digo que a retórica é a arte dos discursos e estou convencido de que digo bem. (PLATÃO, 2011, p. 28).

O sofista conhece essa realidade, ele sabe disso – por isso, a cada momento, quer responder a essa exigência educativa; assim, procura estar em espaço público, seja nos ginásios, seja nas palestras. Ele anda de cidade em cidade à procura de discípulos, tarefa muito complexa. Eles não têm moradia e nem renda, muito menos posses, são verdadeiros itinerantes; daqui podemos começar a entender a gênese de seu ofício. Em boa medida, conforme explica Reale (2009, p. 28), “Insistiu-se muito, por exemplo, no fim prático e não mais puramente teórico da sofística e isto foi considerado como uma queda especulativa e moral”. Os sofistas procuraram os lugares o mais diferenciados possível em Atenas, estavam presentes nos momentos de lazer e nas práticas esportivas nos ginásios – procuravam sempre uma ocasião para serem ouvidos. Alguns pais de famílias da elite de Atenas pagavam aos sofistas para que educassem seus filhos, uma vez que era preciso formá-los para o exercício das tarefas da política. Aristófanes, em sua comédia As Nuvens, revela o lado ganancioso dos sofistas a partir de um diálogo entre os personagens: o pai, Estrepsíades e o filho, Fidípides: “Se a gente lhes der algum dinheiro, eles ensinam a vencer com discursos nas causas justas e injustas.” (1972, p. 182.).

Historicamente, no período de Péricles, já sabemos, a democracia triunfa, a política é proeminente, e a hegemonia ateniense é notória. As grandes questões sobre o modelo educativo estão decisivamente em disputa: o tipo de ensino; as matérias úteis à vida; a aprendizagem; as relações e os vínculos com o Estado; o tipo de escola; e tantas outras características educativas são debatidas. A partir do debate entre a paideia socrática, sofístico-platônica e aristotélica será gerada e desenvolvida a Paidéia, mas para os sofistas será gerada a paideia como trabalho, coisa insuportável aos olhos de Platão e de seu discípulo Aristóteles. Os sofistas modificaram o cenário educativo da história da civilização grega, particularmente, são os primeiros a lançar a pedra de toque – a profissão de ensinar. Sobre a postura histórica e iluminista dos sofistas, Giovanni Reale afirma:

Eles subverteram as velhas concepções da phýsis, nas quais o pensamento ameaçava cristalizar-se; verteram, criticaram a religião tradicional, abalaram os pressupostos aristocráticos sobre os quais se fundavam a política passada, abalaram as instituições esclerosadas, contestaram a tábua de valores que então era defendida sem convicções. (2009, p. 31).

Começa com eles novo ciclo formativo na vida da pólis. Abre-se a porta para uma nova profissão, que abarca, marca e fertiliza todo o território do processo pedagógico das escolas de Atenas no começo do século V a. C. Desde então, uma verdadeira batalha educativa e ideológica se instala na pólis. De um lado, os sofistas, de outro, nada menos que Sócrates, Platão e Aristóteles. Atenas, nesse momento, necessitava de novo tipo de homem, de nova formação política, pois a antiga educação dos poetas trágicos já não mais atendia aos interesses da cidade.

Para esse “novo homem” era necessária uma nova educação, mas nenhuma das escolas que existiam em Atenas era capaz de proporcioná-la. O ideal que dominava até então era o ideal que os senhores da terra haviam concebido e imposto, ao passo que o novo ideal era dos comerciantes e industriais, que até então tinham estado excluídos do ginásio. Os sofistas se apropriaram sagazmente dele e lançaram, no mercado, o seu trabalho intelectual. (PONCE, 1994, p. 53).

De acordo com essa reflexão, Aníbal Ponce explica que os sofistas, contrariando a tradição educativa que dominava a época, desenvolveram nova prática educativa: não condenavam ou desabonavam o trabalho, já que os sofistas eram também trabalhadores, também artesãos. Eles aprenderam a trabalhar com a vida e com as vicissitudes dela, foi na experiência do cotidiano que eles aprenderam a domar as necessidades que o social lhes impunha, portanto, “propuseram dar aos atenienses não só os conhecimentos que a vida prática requeria, como também secularizar a conduta, tornando-a independente da religião.” (PONCE, 1994, p. 53).

A obra platônica Sofista, não é senão uma terrível e ferrenha crítica aos herdeiros das atividades produtivas educacionais dentro da cultura dos povos da Hélade. O personagem Sócrates entra em conflito com os sofistas e tantas vezes os ridiculariza. “A ciência desinteressada não tinha atrativos para ele e, além disso, ele havia transformado o problema moral no centro predileto das suas meditações.” (PONCE, 1994, p. 53). Posteriormente, também Platão critica os sofistas por ganharem dinheiro com a educação. Seu discípulo Aristóteles defenderá a mesma tese e também fará oposição a eles. O ganha-pão dos sofistas é ocasião de conflito. Em Ditos e feitos memoráveis de Sócrates, Xenofonte também os ridiculariza: é Sócrates, o personagem central dessa obra, e ele, por sua vez, argumenta com os sofistas. “Será porque, ao contrário dos que, exigindo salário, são obrigados a fazer o que lhe rende, eu que nada recebo não sou forçado a falar com quem não queira?” (XENOFONTE, 1972, p. 62).

É nesse horizonte histórico que o Movimento Sofístico começou a tecer as primeiras amarras do “trabalho de ensinar que [...] consiste na instrução oratória e na retórica, a arte de falar em público nos conselhos e nas assembleias: uma definição original e duradora”. (MANACORDA, 2010, p. 78). Protágoras (480 a. C.) é o maior personagem do movimento sofístico. Até então, era o maior deles. Uma de suas frases mais conhecidas, talvez a mais famosa, é “O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são que elas são, das coisas que não são que elas não são”. (LAÉRCIO, 1998, p. 264). Sua missão e ofício era educar os homens em Protágoras, pela boca de Platão, ele afirma que escolheu novo objeto de estudo, portanto, novo método, reconhece sua intelectualidade e sua sabedoria: “Ora, eu escolhi um caminho totalmente oposto a este: admito que sou um sofista e que educo homens e parece-me que essa é a melhor das soluções, admitir em vez de negar.” (PLATÃO, 1999, p. 86).

Mas o que é educar para Protágoras? É a simples arte de ensinar uma técnica? É tão somente a arte da retórica? Longe disso, é necessário recordar e enfatizara a crise da aristocracia ateniense, o crescente poder do povo, isto é, o número da população grega aumentava consideravelmente, os metecos se aglomeravam cada vez mais em Atenas. O comércio se expande e estreita os limites da cidade, novas viagens, novas experiências, novos conhecimentos, e os fundamentos do know-how modificam profundamente os costumes dos povos da Hélade.

A crescente afirmação do poder do demos e a ampliação a círculos mais vastos da possibilidade de chegar ao poder fizeram ruir a convicção de que a areté dependesse do nascimento, isto é, que se nascia excelente e não se tornava tal, e trouxeram para o primeiro plano o problema de como se adquiria a excelência política. (REALE, 2009, p. 27).

Daí, o surgimento do Movimento Sofístico, e a categoria trabalho não pode ser percebida como uma simples técnica para uso da palavra, mais que isso, os sofistas “souberam apreender de modo perfeito estas instâncias [...], e isto explica porque obtiveram tanto sucesso, sobretudo, junto aos jovens”. (REALE, 2009, p. 27). A educação aqui, longe de ser uma técnica, longe de ser uma escola, os sofistas responderam aos anseios e às necessidades da realidade da época, os valores, os costumes, e as leis tradicionais estavam ultrapassadas.

Juntamente com Protágoras, os primeiros idealizadores do movimento são, a saber: Górgias, (485 – 391 a. C.), esse, mestre de Isócrates (436-388 a. C.). Górgias ficou famoso por sua habilidade na arte retórica, um dos diálogos de Platão é dedicado a ele; Hípias, os pesquisadores não datam nem seu nascimento, nem sua morte, provavelmente tenha aparecido lá pela metade do século V a. C. Sobre ele, em Giovanni Reale, podemos ler: “Este sofista, que deve ter sido muito famoso (Platão lhe dedicará dois diálogos), condividia a visão do fim do ensinamento (educação política) que era própria de todos os outros sofistas”. (2009, p. 62); Crítias (450-404 a. C.) parente de Platão, foi um dos expoentes do governo dos Trinta; e também Trasímaco de Calcedônia (459-400 a. C.), esse, por sua vez, participava como personagem significativo no Livro I de A República.

Atenas é rica culturalmente e caminha, cada vez mais, para o processo da democracia. Até então, era modelo às demais poleis. Os sofistas, hábeis conferencistas, sabiam ensinar a arte de bem-falar e, portanto, ganhavam a vida difundindo o saber. Os jovens atenienses precisavam e deviam ser educados e instruídos na retórica, na oratória, nas questões jurídicas, assim como nas questões privadas. Deviam aprender a ser hábeis no discurso para intervir na assembléia; mais que isso, para dominar e comandar a vida política da pólis.

Antes de passarmos, porém, ao segundo momento de nosso trabalho – o sentido do trabalho no Movimento Sofístico – chamamos a atenção para o fato de que, dentro dessas duas escolas: a dos poetas trágicos e a dos sofistas, é preciso, sobretudo, conhecer o status histórico daqueles que ensinavam e, portanto, quais eram os tipos de mestre que existiam nessa época. Em primeiro lugar, é preciso afirmar: os educadores não eram bem- vistos. “Acima de qualquer outra coisa, era uma profissão relegada à marginalidade e vulgarizada nessa sociedade; era uma atividade indigna, ora escravo, ora estrangeiro, [...], não é coisa digna de um cidadão livre.” (OLIVEIRA, 2015, p. 57). De acordo com os estudos de Mario Manacorda, a tarefa do ensinar, em larga medida, era reservada àqueles que caíam no infortúnio, “em geral, não era exercida por homens do démos, em cujas famílias o ofício passava de pai para filho, mas por homens de classe culta que, por desgraça, tiveram que descer na escala social”. (2010, p. 82). Portanto, ainda de acordo com esse mesmo autor, o mestre, ou seja, aquele que instruía, era uma pessoa decaída, como mendigo.

Também Cesar Nunes explica essa situação:

O ofício de professor era considerado atividade sem nobreza, exercida por nobres decaídos, alguns charlatães, por fugitivos de outras cidades, senhores que se tornaram escravos por dívidas e outros tantos nobres decadentes desertores, quer aqueles afastados por ferimentos militares, quer aqueles que se exilavam de seus núcleos em função de crises e derrotas políticas. Ser professor significava pertencer aos quadros de profissionais marginais mantidos no ostracismo e que eram facilmente controlados pela necessidade de sobrevivência e provisoriedade de sua atividade ou função. (2009, p. 158).

A escola grega incorporava, antes da aparição dos sofistas, três tipos de mestre, apenas um deles tinha uma posição elevada no setor educativo, a do pedotriba – aquele que preparava as crianças para as competições esportivas, ou, mais precisamente, para concorrer nos jogos olímpicos e, necessariamente, para a guerra. Os outros dois mestres carregavam um status bem inferior ao do pedotriba. O menos importante de todos era, sem dúvida, o mestre das primeiras letras – o gramático. Esse era o menos ilustre, sem fama e altivez, enfim, sem importância. “Se os sábios ensinam, não o fazem por missão, mas somente para escapar à pobreza.” (MANACORDA, 2010, p. 84). Nessa perspectiva, o Movimento Sofístico terá um papel fundamental no que se refere às artes produtivas na cultura e na educação dos povos da Hélade.

Sobre isso, afirma Cesar Nunes:

Na escola do alfabeto o gramático se robustece, supera o citarista e o pedotriba em importância estratégica. Logo mais esse profissional seria superado pelo aparecimento e atuação contundente do filósofo, destacada a partir da ação educacional dos sofistas e da crítica social e ideológica feita por Sócrates e Platão sobre esse vertiginoso e original movimento cultural, pedagógico e político em Atenas. (2009, p. 159).

Em relação ao ofício do mestre da música – o citarista, nome esse dado tendo em vista o instrumento de cordas, denominado cítara. Esse mestre ensinava as crianças a tocar a cítara e, na adolescência, instruía e acompanhava os jovens nas cantigas dos poetas trágicos, seja em Homero, seja em Hesíodo, ou ainda, nos versos de Píndaro. Os gregos davam grande importância aos mestres da música e das artes militares e, realmente, esses educadores tiveram grande difusão via escritores antigos, seja em Homero, seja em Hesíodo, seja em Platão e Aristóteles; também em Roma, quer em Cícero (106-43 a. C.), quer em Plutarco (45-119 d. C.). Mas o fato marcante é que, na educação arcaica, esses mestres bastavam para educar os filhos dos poderosos, para a classe tradicional. Ese modelo de ensino era suficiente. Entretanto, com o crescimento do comércio e das atividades portuárias, nasceu nova classe, expressa Anibal Ponce: “O Diagogos, ou ócio digno que até então havia sido um privilégio [...] começou a ser algo como um presente que o dinheiro dava a muitos.” (1994, p. 52). Entretanto, surguiram outras exigências sociais, políticas, econômicas, ideológicas e culturais, requerendo outro estilo educativo. Esse novo modelo foi inaugurado pelo trabalho dos sofistas.

2 O trabalho de ensinar

Teoricamente, antes dos séculos (V e IV a. C.), o problema gravitava na esfera do âmbito cosmológico. Porém, com a chegada dos sofistas, é redirecionado para outro horizonte. Do ponto de vista da filosofia, de seu objeto e método, a reflexão girava em torno da natureza, isto é, do mundo físico, como afirmamos. Os primeiros pesquisadores gregos queriam entender o funcionamento do universo, do cosmos, ou seja, de sua ordem e de sua harmonia. Antes dos sofistas, a reflexão filosófica girava em torno de elementos como: a água, o ar, o infinito, o fogo, a terra, ou seja, de elementos da natureza física do universo. Era com isso que os primeiros filósofos se preocupavam. O próprio Aristóteles intitulou-os de “os primeiros físicos”. Se pensarmos que os sofistas contribuíram (e muito) para modificar o discurso da educação, também eles foram responsáveis, em certo sentido, pela reordenação do discurso filosófico. Com a sofística nasce o segundo momento da filosofia grega, expressa Henri-Bergson: “Concorda-se, desde Hegel, em fazer começar nos sofistas o segundo período da filosofia grega.” (2005, p. 92). Esses trabalhadores da educação, juntamente com Sócrates, Platão e Aristóteles, redirecionaram o discurso em direção às coisas humanas, especificamente sobre o Movimento Sofístico, expressa Giovanni Reale:

Dizer que, sem os sofistas, Sócrates e Platão são totalmente impensáveis significa dizer que os sofistas representam algo totalmente novo e, de algum modo, operaram uma revolução com relação aos filósofos da phýsis: é está revolução, junto com as razões que a produziram, que agora devemos esclarecer. (2009, p. 25).

Ainda de acordo com esse mesmo autor, esse movimento veio para suprir o que até agora estava esquecido e guardado: o plano da reflexão humana; assim, eles revolucionaram as finalidades da educação. Desempenharam um papel memorável nos debates que disputavam com os três maiores filósofos da Grécia antiga. O sentido educativo do trabalho nasceu exatamente La, num confronto entre uma e outra paideia. No âmbito histórico, Atenas, Esparta e qualquer cidade grega da época tinham dois objetivos formativos: o primeiro para a guerra, o segundo para a política.

A finalidade do ensino grego era, sem dúvida, formar os nobres e os sofistas, que assumiam também esse ideal. “No fundo não era senão uma nova forma de educação dos nobres.” (JAEGER, 2001, p. 339). Por um lado, encontramos os sofistas, cuja arte da persuasão, do convencimento, coloca em dúvida não só a tradição, mas também a existência de verdades, justamente por se tratar da formação do jovem político. Atenas exigia profundamente, novo tipo de ensino, nova educação. Nasce novo tipo de escola, e os sofistas são os primeiros homens que fazem o processo de renovação. A partir do conceito de retórica na obra de Platão, Górgias, Sócrates e o personagem Górgias comentam sobre as novas artes de que Atenas necessitava. É Platão quem, pela boca de Sócrates, expressa o novo modelo educativo, o novo currículo:

Há, pelo contrário, outras artes que realizam todos os seus objetivos pela palavra e não carecem praticamente de nenhuma ou quase nenhuma ação. É o caso da aritmética, do cálculo, da geometria e também do jogo do tabuleiro e de muitas outras artes em que o discurso desempenha, por vezes, um papel superior, dado que toda a atuação e eficácia se verificam nestas artes da palavra. (PLATÃO, 2011, p. 29).

O modelo formativo aristocrático não mais atende às necessidades dos cidadãos da pólis. Nessa época, os atenienses legislaram uma norma que restringia a cidadania aos filhos legítimos; na verdade, não importava se os progenitores eram cidadãos. Moses I Finley (1963, p. 49) explica essa situação, pois teria isso acontecido anteriormente com um dos grandes chefes de Atenas:Péricles. “Tinha havido uma época, duas ou três gerações antes, em que os aristocratas gregos angariavam muitas vezes os casamentos dos filhos fora da comunidade por vezes, até com bárbaros.” Portanto, o debate, a reflexão e os questionamentos eram constantes. A educação fundada no conhecimento dos poetas e dos cantores arcaicos não correspondia às necessidades de uma cidade democrática.

Pelo contrário, os sofistas estabeleceram um currículo de estudos e diziam-se detentores de um saber que eram capazes de comunicar aos ouvintes: um saber que lhes permitiria afrontar todas as questões e realizar, por conseguinte, uma brilhante carreira política. (FERREIRA, 2010, p. 38).

O exemplo mais significativo pode ser percebido claramente em Protágoras (480-485 – 410 a. C.); um dos expoentes centrais desse movimento – com ele nascerá a paideia sofística, vindo de outras terras, esse estrangeiro oferece seus serviços, [...] a troco de remuneração, oferece toda classe de conhecimentos. (JAEGER, 2001, p. 624). Protágoras é original em sua reflexão, pois sabe que a educação dos poetas trágicos estava perdendo sua caracterização. Então, propõe novo modelo educativo. Mas ele não é filósofo, muito menos um pesquisador do mundo físico, mas assumiu a tarefa de educador! “Péricles confiou-lhe o encargo de preparar a legislação para a nova colônia de Turi (444 a. C.).” (REALE, 1993, p. 34). Não obstante sua fama diante dos políticos, sua capacidade intelectual na retórica, na dialética e, ainda, ter seu nome intitulado em uma das principais obras de Platão, sua tese – Ensinar ou não a virtude aos homens, não foi suficientemente aceita. Em Protágoras, pela boca do personagem Sócrates, essa possibilidade parece não ser concretizada, “os acontecimentos ali narrados situam cronologicamente em finais da década de trinta do século V – 434- 433 ou possivelmente um pouco antes”. (PLATÃO, 1999, p. 24). Daí começa a longa e duradoura jornada preconceituosa que determinou a venalidade dos sofistas.

Protágoras, ao reconhecer o enfraquecimento e o esfacelamento dos ideais da cultura aristocrática, indaga sobre a virtude. A formação do homem na pólis é objeto de reflexão, de debate, de dúvidas. Ele e os demais sofistas, de algum modo, preocupam-se com a questão prática, com a práxis, preocupação, aliás, essencialmente ética. Interrogam sobre os valores instituídos e consolidados na pólis com o objetivo de construir uma cidade democrática. Por outro lado, encontramos Sócrates, figura emblemática no centro da vida da pólis. Assaz crítico em relação aos ensinamentos sofísticos, faz severas críticas ao saber do senso comum, sobretudo aos ensinamentos de Protágoras, cuja arte maior era a habilidade de saber-fazer prevalecer qualquer ponto de vista sobre a opinião oposta. Aflora aqui, uma verdadeira disputa pelas finalidades educativas da época: de um lado, a paideia sofística; de outro, a socrática.

Mas não foi exatamente nessa obra que Platão denunciou a venalidade do movimento sofístico. Na sua obra Sofistas, Platão elenca inúmeras definições tipicamente comerciais para o sofista. Antes de enunciar essas definições, dois personagens da obra, Estrangeiro e Teeteto, definem ironicamente o método de ensino dos sofistas, para os personagens. O caminho de pesquisa do Movimento Sofístico pode ser comparado ao pescador e ao anzol: “Até aqui, portanto, o sofista e o pescador caminham juntos, tendo em comum a arte de aquisição”. (PLATÃO, 1983, p. 136). A partir desse método comparado à pesca, nasce a primeira definição: os sofistas são pescadores de homens, eles atraem jovens ricos para ensinar as questões jurídicas públicas ou privadas. Para tanto, a principal definição do sofista do ponto de vista comercial – mercadológico, está descrito na passagem de um diálogo, quando o personagem Estrangeiro revela: “Esta parte da aquisição, da troca, da troca comercial, da importação, da importação espiritual, que negocia discursos e ensinos relativos à virtude, eis em seu segundo aspecto, o que é a sofística.” (1983, p. 139). São comparados também aos negociantes de primeira ou de segunda mão, isto é, grandes produtores, e os de baixa renda, mas todos eles, da nova classe que está surgindo em Atenas. “– Então, a aquisição por troca, por troca comercial, seja ela uma venda de segunda mão ou venda pelo produtor – não importa – desde que este comércio se refira aos ensinos de que falamos, será sempre, a teu ver, a sofística.” (1983, p. 140). Outra definição do sofista imposta por Platão, nessa mesma obra, foi a de mercenário de controvérsias (1983, p. 142), além de contradizer pelo simples fato de contradizer, eles recebem dinheiro. Isso para Platão é inadmissível. Portanto, o sofista é um caçador interesseiro de jovens que têm posses, mais que um caçador, pode compará-lo, platonicamente, a uma ave de rapina que apanha suas presas inesperadamente. Ele vende sua obra – a educação. É um vendedor, um mercador. “Um negociante, por atacado, das ciências relativas à alma.” (PLATÃO, 1983, p. 148). Assim, o termo sofística perdeu, historicamente, seu sentido originário como explica Giovanni Reale:

É sabido, com efeito, que o sofista, na linguagem corrente há tempo assumiu um sentido decididamente negativo: sofista é chamado aquele que, fazendo uso de raciocínios capciosos, busca, por um lado, enfraquecer e ofuscar o verdadeiro, e por outro, reforçar o falso, revestindo-o de aparências do verdadeiro. Mas este não é de modo algum o sentido original do termo, que significa simplesmente “sábio”, “especialista no saber”, possuidor do saber. Significa não só algo positivo, mas altamente positivo. (2009, p. 23).

Desde Platão, esse conceito ganhou, pejorativamente, o significado de alguém suspeito, de alguém que usa artifícios duvidosos para fazer prevalecer sua opinião. Podemos dizer que os sofistas não são filósofos, menos ainda, cientistas; eles são pedagogos – educadores. Não criaram filosofias, mas difundiram o conhecimento já existente. Os estudos de Giovanni Reale (1992) no que tange ao preconceito, situa Platão como vítima da cultura aristocrática, e o problema da subsistência dos poderosos estava resolvido: tinham posses, terras, escravos, ao contrário, os sofistas sequer tinham onde morar, eram itinerantes e dependiam de seu trabalho para sobreviver. Foram pouquíssimos os sofistas que lucraram com seu trabalho. Foram raríssimos os casos que ficaram registrados em obras antigas que um sofista tivesse conseguido riquezas ou posses com sua atividade. Platão e os aristocratas traçaram a caricatura dos sofistas, destarte, ficaram conhecidos como indivíduos subornáveis, mais que isso, balizou-se historicamente a venalidade deles.

Afirma Giovanni Reale:

Em geral a cultura era herança espiritual dos aristocratas e dos ricos, que tendo solucionado todos os problemas da subsistência, davam-se à cultura como a sublime otium e consideravam-na totalmente destacada de tudo o que tem relação com o lucro e com o dinheiro, e como puro fruto de desinteressada comunhão espiritual. (1992, p. 29).

Platão não foi o único a se confrontar com os sofistas, embora tenha sido, ele, o mais rigoroso e radical crítico. Por sua vez, Aristóteles denunciou um dos mais expressivos sofistas da época: Protágoras, (480-485-410 a. C.). Expressa o Estagirita, “Quando ele ensinava qualquer coisa a alguém, mandava a pessoa que aprendeu a estipular o valor do conhecimento adquirido, e aceitava assim o pagamento assim determinado”. (ARISTÓTELES, 2001, p. 174). Também o comediógrafo Aristófanes embarcou nessa crítica: “Dizem que no meio deles os raciocínios são dois: o forte, seja ele qual for, e o fraco. Eles afirmam que o segundo raciocínio, isto é, o fraco, discursando, vence nas causas mais injustas.” (1972, p. 183). Nessa visão, jamais um sofista poderia educar ou formar um político, pois por um, estavam envolvidas questões da justiça e da injustiça – plano religioso e social; por outro lado, problemas de ordem política, econômica e cultural. Quando os sofistas entram na poderosa Atenas de Péricles, eles nada mais, nada menos, encontram Sócrates. E, pela boca de Platão, tem início um preconceito histórico incalculável. Entretanto, o sofista acreditava que poderia ensinar, ou seja, ser um educador. Daqui começa a questão que propomos debater. Sem dúvida, eles acreditaram nessa possibilidade.

Ao contrário, os sofistas eram itinerantes, tinham que sobreviver e, esse é o fio condutor que amarra os limiares do preconceito. Enfatizamos, mais uma vez: os sofistas não tinham morada fixa, posses, riquezas, fortuna, eles fizeram de seu saber uma profissão, pois precisavam ganhar o seu pão. O sentido originário do trabalho do Movimento Sofístico, portanto deve ser esclarecido a partir do termo palavra ou, mais precisamente, da atividade dizer. Como bem sabemos, a educação grega visava a dois momentos distintos, o primeiro para a guerra – o fazer; o segundo para a política – o dizer. O dizer – a palavra é o maior, o mais precioso instrumento de domínio público para os povos da Hélade. Falar é uma arte, é uma técnica, um know-how, um saber-fazer. Para os sofistas é a arte da retórica. O Movimento Sofístico soube muito bem aproveitar essa ocasião.

Até então, os filósofos naturalistas, ao contrário, tinham outro objeto de estudo – a cosmologia. Dessa forma, ensinavam seus discípulos a buscar a verdade por si, ou seja, não pela profissão, pelo ofício, pelo trabalho, mas pela filosofia em si, pela educação em si. Os homens livres – cidadãos, visam à educação pela educação, portanto, o método de ensino era diferenciado. Na Grécia, “a única ‘arte’ que une teoria e prática, isto é, a única ciência aplicada é a medicina: [...] ela é a única que se eleva ao nível de uma ciência, codificada em seus tratados”. (MANACORDA, 2010, p. 94). Mas a grande transformação educativa teve início com o trabalho do Movimento Sofístico. O objeto de estudo dos sofistas modifica o cenário. O fundamento não mais é a cosmologia mas, a antropologia – homem, e, portanto, nasce outro método de pesquisa e, portanto, o nascimento de nova profissão.

A gênese histórica do trabalho sofístico surgiu da precariedade das condições materiais, econômicas, políticas e ideológicas dos séculos V e IV a. C. Os filhos dos grandes proprietários não estavam preocupados com a subsistência e, portanto, tinham tempo livre, o ócio era a melhor parte vivida nesse processo de ensinar e aprender. Sabemos que nesse período, sobretudo em Atenas, a população triplica, as condições de vida se tornam precárias. Os sofistas tiveram que aprender, contudo, novo caminho. E aprenderam seu saber na experiência com o mundo, com a riqueza e a harmonia da vida, da política, da retórica, do ensino, portanto, com a cultura do homem. Isto é, eles aprenderam que o ser humano é a medida de todas as coisas, e essa nova visão de humanidade se harmonizaria com o mundo, com as experiências. “Todas as ideias recebidas começam a parecer ‘relativas’ aos seus olhos, e se o subjetivismo no campo moral já era em si perigoso, a maneira como, Trasímaco, por exemplo, enfrentava o direito positivo quase chegava a ser revolucionária”. (PONCE, 1994, p. 52).

A reflexão se volta, pela primeira vez, a uma investigação moral e ética do ser humano. Evidencia-se o valor do humano, isto é, do indivíduo. Diôgenes Laércio conta que “Protágoras e Prôdicos de Céos ganhavam a vida fazendo leituras públicas” (1998, p. 264), e ele também é o primeiro a sustentar que qualquer argumento tem duas posições contrárias. Aristófanes não deixou de criticar Protágoras: “Era notória a venalidade dos sofistas, principalmente de Protágoras, que se tornou famoso pelas importâncias recebidas de Evatlo”. (1972, p. 182). Os estudos de Marrou evidenciam que foi Protágoras o primeiro a receber salário. Ele estava atento a essa questão, isto é, ele foi o primeiro a aceitar pagamento pelas suas atividades educativas. “Protágoras pedia a considerável soma de 10 mil dracmas (a dracma, cerca de um franco-ouro, representava o salário diário de um operário qualificado)”. (MARROU, 1990. p. 86). Isso acontecia somente com um tipo igual ao famoso Protágoras, entretanto, é preciso esclarecer: os sofistas, em sua grande maioria, não tiveram renda, viviam de sua profissão, como assinalamos. Os discípulos que seguem Sócrates ou mesmo os sofistas, são jovens ricos e, no entanto, quando Platão ironiza e ridiculariza o Movimento Sofístico, está tratando de uma questão político-cultural. Aqui nasce uma profissão, pois o movimento vai abrir essa porta.

Com o desígnio de resolver o problema da formação dos jovens da alta classe, os sofistas apareceram em Atenas por volta do século V a. C. Os jovens atenienses não mais estavam interessados em resolver problemas de ordem cosmológica, ou de corpos celestiais. O interesse era a política. Platão, no Protágoras, explica o sentido dessa formação, visto que a proposta era formar bons cidadãos para administrar a cidade. Indaga Platão pela boca de Sócrates. “Parece-me que falas da arte de gerir a cidade e prometes transformar homens em bons cidadãos?” (1999, p. 88). Mas Protágoras sabe como bem fazer-isso, isto é, sabe ensinar aos seus discípulos todas essas questões, por isso, os jovens o procuravam desde quando entrou na pólis ateniense. Isso fica evidente, já que o próprio Sócrates revelou esse fascínio sobre o sofista de Abdera: “Esta noite passada, ainda antes do amanhecer, Hipócrates [...] bateu com o bastão na minha porta, precipitou- se imediatamente para o interior, a gritar [...] – Chegou Protágoras.” (1999, p. 77). Sua fama, sua intelectualidade e sua sabedoria prática encantavam seus discípulos: “dar bons conselhos em assuntos domésticos, para que os jovens arranjem suas casas do melhor modo possível, da mesma forma que capacitá-los em assuntos políticos, para serem capazes de dominar os negócios da cidade”. (PONCE, 1994, p. 55).

Prossegue este mesmo autor:

Os ginásios se converteram, por volta do século IV, em centros de reunião da sociedade elegante. Frequentá-los era equivalente a declarar que não se estava obrigado a trabalhar para viver. [...] Que buscavam os jovens nas bem pagas lições dos sofistas? Uma coisa acima de tudo: a sabedoria prática, que evita os escolhos e conselhos fecundos capazes de garantir êxitos na oratória política. (PONCE, 1994, p. 55).

Em larga medida, o que sabemos do Movimento Sofístico é revelado por Platão. Os sofistas deram início ao trabalho educativo pago. Em relação ao pagamento que recebiam (o salário) certamente os deixam numa posição aguda diante de Platão e dos demais aristocratas da época. Nesse sentido, serão os homens mais desprezíveis e insuportáveis, absolutamente vulgares para os intelectuais da época. E é justamente isto que está em questão: o problema salarial – o econômico. O plano econômico, assim como o social, está entrelaçado ao político e tem raiz cultural e ideológica. Esse é o problema a que queremos responder. Entretanto, eles – os sofistas – procuram formar o espírito do cidadão para a carreira de homem público. Da mesma forma, mais tarde, Platão não relegará esse ideal, porém, ao adotá-lo, o faz em outra perspectiva. Até então, a sociedade urbana e a comercial dos séculos V e IV a. C. não tinham privilégios e estavam em desvantagem em relação à sociedade tradicional – aristocrata.

Os sofistas, quando entram em Atenas, inicialmente, era para resolver o problema educacional dos jovens ricos, filhos dos grandes proprietários, mas é o próprio Platão, apesar de todo preconceito contra os sofistas, quem resolve, em parte, a nossa questão. Na obra Protágoras, no diálogo entre esse e Sócrates, podemos ler:

Mas agora, Sócrates, amuas porque todos se metem a mestres de virtude, cada um na medida em que pode [...]. Ora bem, do mesmo modo, se procurasse um professor de língua grega, não encontrarias nenhum. [...] Quanto a mim, acho que sou um desses que excede os outros na possibilidade de tornar perfeito qualquer homem e que merece o salário – o que é estipulado por mim e ainda mais, se o aluno assim entender. Por esta razão estabeleci o salário das minhas lições da seguinte maneira: sempre que alguém aprender comigo, se quiser, paga-me a quantia que eu estipulei; se não, depois de ter ido a um templo e ter ponderado qual diz ser o valor dos meus ensinamentos, entrega-me essa mesma quantia. (PLATÃO, 1999, p. 99).

Essa passagem conota um campo bastante vasto de interpretações, e é evidente que não responde a todas nossas indagações, mas em parte! Podemos notar, nesse trecho, que Protágoras conhece o sentido da virtude – a excelência moral. Ao mesmo tempo, é um sábio, um intelectual, um conhecedor das letras, das línguas, das artes; não se mostrou ganancioso e nem desprezível. Não obstante, tenha estipulado o valor de seus ensinamentos, à medida que aceita o pagamento do aluno, deixa de ser um negociante, um mercador vil. Parece-nos que ele não está a competir com quem quer que seja, nem com o próprio Sócrates. Ao combater as normas e os costumes do mundo aristocrático, Protágoras e os sofistas fazem uma revolução na paideia grega. “O sofista se distingue do professor dos nossos dias tanto pela falta de qualquer relação [...] com o Estado, como pelo fato de nenhuma especialização limitar a sua atividade.” (REALE, 1999, p. 30). Ainda, de acordo com os estudos desse autor, ditos intelectuais, em sua grande maioria, eram especialistas em quase tudo. O sofista era um hábil conhecedor dos problemas referentes ao conhecimento difundido na época e, raramente, se constatava que algum problema não tivesse sido enfrentado ou debatido por eles.

Eles iniciam novo modo de encarar a vida; instituem uma maneira diferente de pensar nos costumes, nas normas, nos valores e nas ideias educativas da época. “Meio professores meio jornalistas, eis a fórmula talvez mais apta para nos dar uma ideia bastante aproximativa do que eram os sofistas do século V.” (REALE, 1999, p. 30).

Segundo Werner Jaeger (2000), pela primeira vez, eles convertem a paideia num problema consciente, ao mesmo tempo, situam o ensino e a educação no centro da vida do povo grego. Do ponto de vista da cultura, o sentido de paideia ganhará, cada vez mais, amplitude e importância em seu significado na vida dos gregos. Entretanto, com os sofistas, a educação dá um passo largo em relação a uma educação consciente: “A cisão tem lugar no tempo dos sofistas, que é ao mesmo tempo a época da criação da ideia consciente de educação.” (JAEGER, 2001, p. 352).

Considerações Finais

Para compreender o problema proposto, volta-se à pergunta fundamental: Em que medida pode-se afirmar que o Movimento Sofístico, de fato, era um movimento desprezível e, portanto, aproveitara da sua obra, a educação em favor da esfera econômica?

A expressão que denota a maior riqueza dos sofistas, bem como sua originalidade, é o trabalho de ensinar, entretanto, historicamente confundido, ideologicamente camuflado e, teoricamente dissimulado, os estudos de Jaeger Werner (2000) evidenciam que, sob esse viés, torna-se compreensível e ganha esta conotação: “O fato de ter surgido uma classe inteira de educadores que publicamente ofereceram, por dinheiro, o ensino da ‘virtude’. [...] Essa falsa modernização do conceito grego de areté peca essencialmente por fazer guiar aos olhos do homem atual.” (p. 340). Longe disso, o trabalho de ensinar não está ligado tão somente à forma, “não basta o entendimento e a linguagem, [...] com eles o problema educativo e o empenho pedagógico emergiram ao primeiro plano e assumiram um novíssimo significado”. (REALE, 2009, p. 29). Entendido como sábio, o sofista aprendeu a não confundir a técnica, ou a didática como elemento fragmentador do conhecimento, do saber, da ciência, das letras, das artes, do ensino, enfim, o próprio sentido formativo.

O trabalho de ensinar, nada mais é do que a arte de formar o homem em sua totalidade; os sofistas são educadores e não indagadores, ou seja, eles, a seu modo, em sua época, souberam, originariamente, entender a paideia como categoria de trabalho. Portanto, “ É com eles a paideia, no sentido de uma ideia e de uma teoria consciente da educação, entra no mundo e recebe um fundamento racional.” (JAEGER, 2000, p. 348). Estão eles vinculados e intricados nos problemas éticos, morais, sociais, políticos e culturais de sua época. Não de modo diferente da contemporaneidade, em sua totalidade, o trabalho de ensinar dos sofistas emergiu numa época fundamentalmente individualista.

E se é verdade que os sofistas não estenderam a todos o seu ensinamento, mas só à elite que devia ou queria chegar à direção do Estado, não deixa de ser verdadeiro que, com seu princípio, romperam pelo menos o preconceito que via a areté necessariamente como nobreza de sangue. (REALE, 2009, p. 29).

Não podemos afirmar que os sofistas constituíram um grupo homogêneo de educadores imbuídos de uma única intenção; ao contrário, o Movimento Sofístico nasceu sob a égide das mais diversas necessidades. O grupo é obra do campo político, do econômico, da vida social e cultural de Atenas, “representa um complexo de esforços independentes para satisfazer, satisfazer meios análogos a necessidades idênticas”. (REALE, 1990. p. 76).

Esse movimento buscou, acima de tudo, adquirir e ensinar questões práticas do saber, do conhecimento da língua, das letras, enfim, do processo educacional dos séculos V e IV a. C. Determinadamente histórico, o processo de formação do homem atingiu seu auge no momento em que a ideia de educar passou a ser algo consciente na cultura dessa civilização, e essa consciência se situou no meio do interesse de todos os povos da Hélade.

Nesse cenário, remontamos propriamente à visão sofística do sentido do trabalho como profissão. Werner Jaeger compreende magistralmente a obra – educação do Movimento Sofístico na história dos gregos. De acordo com seu pensamento, é necessário avaliar essa admirável ação formativa sobre o mundo contemporâneo, embora as fontes de conhecimento sejam insuficientes, pois não temos tradições diretas das obras sofísticas. “É a esta educação que os contemporâneos devem a inaudita consciência e arte com que arquitetam os seus discursos e conduzem a prova, assim como a forma perfeita pela qual desenvolvem as suas ideias”. (2000, p. 367). Para esse autor, antes do nascimento do Movimento Sofístico, era impossível falar em gramática, retórica, dialética; em certo sentido, é preciso confiar no fato de que os sofistas instruíam ou, mais especificamente, orientavam e ensinavam disciplinas formais, “que constituíam a peça capital de toda a educação sofística.” (2001, p. 365). Afirmar que o trabalho de ensinar dos sofistas estava unicamente ligado à retórica é uma afirmação inconsistente e superficial; ao contrário, o ponto de partida dos sofistas era, sempre mais, angariar o máximo de conhecimentos de sua época. “Nasce uma ‘cultura superior’, [...] como representante dela, uma profissão especial: a dos sofistas, que se atribuem a missão de ‘ensinar a virtude’.” (JAEGER, 2001, p. 645). Os sofistas elaboraram um tipo de currículo de estudos e se dizem detentores de um conhecimento ou de um saber de que eram capazes de comunicar aos seus discípulos tudo que se referia a questões políticas.

Genericamente, a paideia com os sofistas ultrapassou a vinculação limitada à criança, ou seja, deixou de se restringir a questões da infância. Historicamente, os sofistas, a partir de suas atividades de ensino, ou mais especificamente da tarefa de ensinar, contribuíram decisivamente para o amadurecimento e a preciosidade e originalidade do termo paideia, isto é, esse conceito ganhou autenticidade em seu aspecto objetivo e em sua dimensão substancial à esfera de seu sentido; assim, a ação educativa volta- se ao homem adulto, cono explica Jaeger:

Exatamente como a palavra alemã Bildung (formação) ou a equivalente latina cultura, do processo da formação passaram a designar o ser formado e o próprio conteúdo da cultura, e por fim, abarcaram, na totalidade, o mundo da cultura espiritual [...] quando este conceito encontrou a sua cristalização definitiva, terem dado nome de paideia a todas as formas e criações espirituais e ao tesouro completo da sua tradição, tal como nós o designamos por Bildung ou, com a palavra latina cultura. (2002, p. 354).

A constituição do processo de toda amplitude da cultura só pode atingir sua meta quando a educação vem à tona em seu sentido consciente, vivo, penetrante e borbulhante na sociedade onde está engendrada. A paideia é entendida, assim, em sua consciência plena e definitiva nessa civilização. “Os sofistas constituíram em, sob este ponto de vista, um fenômeno central. São criadores da consciência cultural em que o espírito grego alcançou o seu télos, e a íntima segurança da sua própria forma e orientação.” (JAEGER, 2001, p. 354). Esse autor explica que o conceito de paideia, incialmente ligado ao processo formativo, aos poucos se estende à própria ideia de cultura. Aqui, o trabalho de ensinar desses itinerantes dos séculos (V e IV a. C.) supera o sentido de ensinar visto simplesmente como técnica – know-how ou como retórica – eloqüência, ou ainda, como uma função professoral, notadamente, quando posta diante da profissionalização moderna do professor.

Entendido como sábio, a seu modo e em sua época, o sofista apreendeu a não confundir a técnica, a retórica ou a didática como elemento fragmentador do conhecimento, do saber, da ciência, das letras, das artes, do ensino, enfim, o próprio sentido formativo. Obviamente, os sofistas não tinham a plenitude desse entendimento, mas deixaram à posterioridade a certeza de que ensinar era, para eles uma verdadeira profissão; eram educadores, trabalhadores originários da ciência humana, ou mais especificamente, das coisas do homem. Com efeito, não eram eles a medida de todas as coisas como Protágoras expresssou?

1Termo transliterado do grego derivado de paidós, que significa criança. Etimologicamente, a paideia seria uma técnica, um kwou-how para moldar a criança, mas, para o povo da Hélade, o sentido não é exatamente esse. Os gregos desconhecem a psicologia infantil tal qual nós a conhecemos. Ligada, inicialmente ao processo de uma educação técnica do caráter dos meninos, aos poucos, a paideia incorpora a formação moral e política do cidadão da pólis e alcança, historicamente, sua maior expressão na práxis axiológica da cultura humana que leva o homem a perguntar, a interrogar sobre o sentido e a finalidade da existência pessoal e coletiva. Portanto, a paideia consagra um incondicional saber a respeito da educação, um esforço educativo para formar o homem em sentido integral, por inteiro, um processo permanente e durável que consiste em formar o homem durante toda a sua vida. (OLIVEIRA, 2015, p. 87).

2O termo transliterado phýsis remete a uma série de conceitos que aplicam algumas ideias em comum, como: “1º princípio do movimento ou substância; 2º ordem necessária ou causal; 3º exterioridade contraposta à interioridade da consciência; 4º campo de encontro ou de unificação de certas técnicas de investigação.” (ABBAGNANO, 2000, p. 698). Por outro lado, o termo “não é também o produto de uma reflexão ingênua e espontânea da razão sobre a natureza. Transpõe, sob uma forma laica e num vocabulário mais abstrato, a concepção de mundo elaborada pela religião”. (VERNANT, 2000, p. 82). Nosso entendimento está vinculado à ideia de movimento como princípio de vida, ou seja, de criação, de nascimento, de geração de todas as coisas existentes.

3Órgão que tinha o poder soberano e incorporava todos os cidadãos da cidade, e as assembleias, anteriormente, eram realizadas em praça pública, onde aconteciam todas as atividades de Atenas; recebia, aproximadamente, 20 mil indivíduos, posteriormente, passaram a acontecer no Pnix – Teatro de Dionísio. (COÊLHO, 2001, p. 23.).

4O termo transliterado para nossa língua pode ser entendido como Conselho dos Quinhentos de Atenas, órgão instituído por Sólon (638-558 a. C.), constituído de 500 cidadãos escolhidos à sorte por um período de um ano. Desses, qualquer um poderia ser eleito, além de ter direito aos debates e ao voto. (FERREIRA, 2006, p. 140).

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Recebido: 17 de Novembro de 2016; Aceito: 16 de Setembro de 2018

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