1 Contextualizando pressupostos epistemológicos
Este texto nasce da provocação por uma explicitação dos pressupostos epistemológicos da educação num contexto de reflexão sobre a formação inicial de professores. E, porque a formação inicial de professores é um ponto de intersecção entre o Ensino Superior e a Educação Básica, o exercício reflexivo que se segue tem atenção para ambas as especificidades educativas em relação aos referidos pressupostos. Vejamos a que se refere a epistemologia, quais pressupostos estão aí passíveis de serem evidenciados e que implicações isso traz a um estudo em educação. Em sentido amplo, a epistemologia investiga as condições de possibilidade do conhecimento em geral e do conhecimento científico. Assim, além do exame das diversas teorias epistemológicas (ceticismo, relativismo, racionalismo, empirismo e diferentes tipos de realismo), é importante entender que a ciência é, ao mesmo tempo, produto histórico, antropológico e político e um projeto lógico, racional. O científico está nos processos de investigação e não apenas nos resultados da pesquisa. É importante salientar que não existe, no campo da educação, um uso puro de conhecimentos científicos. Isso se explica, em parte, porque a ação pedagógica no ambiente escolar visa divulgar e reconstruir etapas previamente selecionadas do percurso das investigações científicas. Mas, também, é preciso tomar em consideração que o conhecimento científico de caráter acadêmico não é exclusivo do ambiente escolar. Na realidade, a educação lida, ainda, com saberes, com crenças, hábitos, comportamentos e ideias que exigem uma visão transdisciplinar. E os pressupostos epistemológicos aqui abordados evidenciam-se para além de puras expressões de cientificidade do conhecimento. Há, sim, uma epistemologia dos currículos de sua organização de objetos e métodos de estudo, mas também há uma epistemologia das expressões culturais e das relações sociais que se estabelecem.
São inúmeros os pressupostos epistemológicos e pedagógicos. Enumerá- los com exatidão é impossível. O previsível deve admitir o imprevisível. O visível, o invisível. Os professores desenvolvem o ensino a partir de teorias (expressas ou não) que inspiram decisões e ações pedagógicas. Mesmo que o professor não conheça os modelos pedagógicos, ele pode agir de modo empírico, inatista, construtivista, enfim, proceder segundo uma pedagogia diretiva (a capacidade de conhecer provém dos meios físico e social, é empírica); não diretiva (o conhecimento ocorre através de estruturas prévias, é apriorístico, inatista); dialogal (o conhecimento não é transmitido, mas construído pelos sujeitos em diálogo), etc. (BECKER, 2005). Inclusive, esse esquema, que classifica algumas posturas pedagógicas, para que pudesse ser apresentado na argumentação, precisou assumir alguns pressupostos.
Todo professor, sabendo-o intencionalmente, ou não, possui uma concepção de aprendizagem. Pode-se dizer o mesmo do processo de avaliação. Mas nem todos os professores, no entanto, poderiam falar sobre aprendizagem e avaliação com domínio conceitual do assunto. Poucos, talvez, tenham pensado e elaborado de modo claro e poderiam, num primeiro momento, explicitar os pressupostos epistemológicos desses processos.
As relações entre epistemologia e educação são amplas e complexas – e nunca excludentes das implicações éticas – e aqui nos propomos examinar algumas das questões atinentes. Dentre as questões possíveis, optamos por discorrer a partir de dois aspectos que envolvem, ao mesmo tempo, a escola básica e a universidade em seus currículos e programas de ensino e se expressam nas atividades do professor e do aluno: a) os critérios de legitimação do conhecimento (portanto, a análise da possibilidade de um conhecimento seguro e verdadeiro); e b) a concepção e as implicações da disciplinaridade e da interdisciplinaridade. Para analisar ambos os aspectos, assumimos uma ênfase de debate a partir de duas possíveis linhas de pensamento epistemológico: o objetivismo que orienta, historicamente, várias tendências de pensamento científico e sobre o conhecimento em geral, com maior expressividade no positivismo; e os movimentos de superação do objetivismo que se desdobram em concepções marcadamente intersubjetivas, históricas e interacionistas sobre o desenvolvimento do conhecimento científico. Essa classificação em duas grandes linhas de pensamento também poderia ser nomeada pelo debate entre objetivismo (ou mesmo poderíamos chamar de positivismo) e construtivismo (esse entendido em seu sentido mais ampliado, como concepção de conhecimento historicamente construído nas relações intersubjetivas). Interessa-nos explorar algumas manifestações de ambas as correntes como pressupostas nas relações de ensino e aprendizagem e apresentar alguns argumentos em defesa da superação da primeira corrente em favor da segunda. E, desde já, indica-se que aqui se assume uma posição de que toda relação com o conhecimento está sempre vinculada a um processo deliberativo e, portanto, ético. Desse modo, a análise dos pressupostos epistemológicos é feita também supondo perspectivas éticas.
2 Por que falar em pressupostos?
Todo o agir, o fazer e o conhecer humanos realizam-se a partir de pressupostos. A noção de pressuposto indica algo não posto nem suposto. O posto é aquilo que objetivamente é expresso, dito de modo claro. É o caso dos objetivos e das metas de um curso, de um projeto, de uma teoria, de uma ação. O suposto é aquilo que é admitido de modo implícito no posto. O pressuposto encontra-se antes e fora daquilo que é explicitamente dito, apresentado. O pressuposto é o considerado anterior, mas que faz parte do projeto e da ação. Não está presente, mas determina o agir, o fazer e o conhecer. Nesse sentido, os pressupostos epistemológicos são os conceitos e enunciados básicos que, mesmo não sendo explícitos, fazem parte dos processos de ensino e aprendizagem. Todavia, os pressupostos dos processos educativos não são apenas epistemológicos. Esses ocorrem conjuntamente com outros pressupostos psicológicos, biológicos, éticos, sociais, políticos, econômicos e culturais.
Os pressupostos formam o horizonte, dentro do qual, as teorias e as práticas educativas se movimentam e, de fato, são mais relevantes do que geralmente imaginam os sujeitos dos processos educativos. Para descrever inicialmente os pressupostos educacionais, basta mencionar a mentalidade ou a cultura institucional que envolve gestores, professores e alunos. Esse cenário de expectativas situam as necessidades e as possibilidades da educação. Sem uma compreensão da sociedade, de suas transformações contínuas e do pluralismo cultural, por exemplo, não é possível entender as diferentes concepções de escola, de aprendizagem, de teorias educacionais, de funções do professor. Alunos mais ativos, alunos diferentes, conflitos sociais, inter- relacionais e novos instrumentos didáticos são alguns elementos que exemplificam os pressupostos pedagógicos hoje.
Gregory Bateson (1987, p. 31), em Natureza e espírito, escreve que a ciência, a arte, a religião, o comércio, a guerra e até o sono baseiam-se em pressupostos. A atividade do cientista é determinada pelas crenças do cientista e, por isso, fazer ciências consiste em explicitar os pressupostos, transformar as crenças em hipóteses, etc. É necessário conhecer os pressupostos do autor para melhor entendê-lo. O próprio discurso em que opera este texto também parte de pressupostos. Michel Foucault, na aula inaugural A ordem do discurso, afirma que, no momento de “falar uma voz sem nome nos precede” e que, em toda sociedade, a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos. (1996, p. 5, 8-9).
No título deste artigo, usa-se também a expressão “processos de ensino e aprendizagem”. O termo processo indica procedimentos no tempo e no espaço, ritos, ritmos, funções e ambientes ou situações. Por isso ensino e aprendizagem não são atos isolados, mas processos que implicam escolhas, portanto, alternativas para decidir e para agir, para efetivar ações (elementos próprios das teorias éticas). Nesse aspecto, programas de ensino são contratos, pactos, documentos que orientam decisões e ações pedagógicas. As ações de ensino e aprendizagem diferenciam-se de ações mecânicas por diversos motivos, entre eles, a liberdade dos sujeitos, a busca de autonomia pessoal, os interesses coletivos.
Após essas observações, podemos indagar sobre quais seriam as questões epistemológicas que estão presentes no agir e no fazer pedagógico e científico e que precisam ser explicitadas. O que está oculto nos nossos currículos e na nossa ação como professores? O que não é dito ou é ignorado, mas está presente no dito e no realizado nos currículos, nos programas de ensino e nos modos de ministrar e administrar as aulas? Os pressupostos epistemológicos estão presentes nas diretrizes políticas da instituição, nos currículos, nos programas de ensino, no estabelecimento dos textos de estudo, na relação das competências e habilidades que se deseja alcançar, nos modos do professor ministrar o ensino e nos modos como os estudantes se relacionam com o conhecimento.
Os pressupostos epistemológicos orientam-se, portanto, a partir de um conjunto de questões relativas às condições de possibilidades do conhecimento científico e dos saberes em geral. Há de se admitir que esses pressupostos variam conforme o nível da educação e da formação escolar e, por isso, apresentam-se com distintas ênfases. A Educação Básica gira em torno da formação intelectual, emocional e social do cidadão, desenvolvendo no sujeito aspectos cognitivos, relacionais, culturais e estéticos, sempre dentro de padrões socioculturais, políticos e científicos. Nesse caso, os pressupostos epistemológicos serão pensados com ênfase à construção do conhecimento em geral e às relações que isso possibilita na compreensão de mundo. Já a Educação Superior tem o objetivo de formar científica e tecnicamente profissionais, além de cidadãos com espírito democrático e republicano. Nesse último caso, há uma ênfase maior a ser dada aos critérios de legitimação do conhecimento acadêmico.
Alguns pressupostos são globais e, por isso, são, ao mesmo tempo, éticos, epistemológicos, antropológicos, psicológicos, etc. Entre eles, a concepção de natureza em geral, de vida e dignidade humana, de indivíduo, de ser social, de história e outros. Ainda é possível mencionar os conceitos de racionalidade, conhecimento, sociabilidade, verdade, felicidade, autonomia, liberdade, aprendizagem e outros. Já outros pressupostos são específicos, como, por exemplo, aqueles que fundamentam as teorias pedagógicas, as concepções de ciência, os critérios de seleção e organização curricular, as propostas metodológicas, as políticas e ações de avaliação, a organização pedagógica dos espaços para a aprendizagem (laboratórios, bibliotecas, etc.), as condições prévias supostas em relação aos estudantes para o alcance das aprendizagens estabelecidas, as filiações doutrinárias e ideológicas dos envolvidos nos processos de ensino e aprendizagem, etc.
3 Critérios de legitimação do conhecimento: análise da possibilidade de um conhecimento seguro e verdadeiro diante dos processos de ensino e aprendizagem
Aquilo que se propõe ensinar, seja na Educação Básica ou na Educação Superior, só é levado a termo porque o ensinante tem elementos para tomar como verdadeiro seu conteúdo. Seja um saber filosófico ou científico, seja religioso ou artístico, é necessário reconhecer-lhe a legitimidade para que venha a incorporar-se a um currículo. Embora nem todo o saber aprendido derive diretamente de um currículo legitimado, por uma comunidade de especialistas, cabe supor que todo o saber que se pretenda ensinar precisa estar devidamente legitimado para que possa compor programas de ensino. Desse modo, é relevante explicitar – na perspectiva em que aqui se especula em torno dos pressupostos epistemológicos dos processos de ensino e aprendizagem – quais são os critérios tomados para legitimar os elementos que compõem os currículos. Em nosso tempo, essa busca requer o enfrentamento da tensão posta entre objetivismo e relativismo e que guarda, em si, tanto as posições mais fiéis ao positivismo clássico – que reconhece a verdade como algo exterior ao sujeito – quanto as teorias sobre a impossibilidade de qualquer conhecimento verdadeiro. O que se busca é demonstrar alguma justificação ao conhecimento que se sustente racionalmente e que, portanto, dê sentido ao debate sobre a verdade. Essa abordagem anunciada já indica dois caminhos teóricos sobre pressupostos epistemológicos: uma perspectiva objetivista que orienta as ações de ensino com modelos mais diretivos e outra perspectiva não objetivista que relativiza os modos diretivos de ensino em benefício de processos interativos.
Principiemos explicitando a elaboração das bases objetivistas para, em seguida, pensarmos seus limites. Chama a atenção que, na tradição ocidental, o problema da verdade não se restringe ao plano epistemológico, mas se associa, também, a uma dimensão ética: há séculos a verdade está associada ao bem – e nisso há um conteúdo teleológico. Se apresentar algo como conteúdo verdadeiro é recorrentemente associado a algo bom, então um conteúdo falso ou errôneo terá algum caráter não só negativo do ponto de vista epistemológico, mas guardará também uma reprovação moral. Platão, especialmente no Livro VII de A República, já associava o conhecimento da verdade ao bem e o põe como fim da educação. Isso é reforçado na tradição cristã que acentua o conteúdo moral da verdade ao associá-la a valores como confiança, fidelidade, honestidade, etc. – tendo, por outro lado, a marca do pecado a falta intencional para com a verdade. Mesmo na modernidade, quando a verdade passa a ser, de fato, um problema epistemológico, ela não perde essa identificação moral com a ideia de bem: na tradição filosófica da modernidade a verdade mantém uma relação direta com a Razão (o bem absoluto) e na tradição científica da modernidade a verdade se mostra como oposto do erro, do engano, da imprecisão e outras distorções do conhecimento que só poderiam conduzir o homem a algo mau e, por isso, ela se mostra objetiva. Assim, se chega ao estágio em que a objetividade científica põe-se como garantia de um bem perseguido pela humanidade ao longo dos séculos: a verdade. Com o desenvolvimento da Pedagogia, como ciência, essa associação entre verdade e bem passa a incorporar, diretamente, os diferentes currículos – quer sejam laicos, quer confessionais.
Particularmente na modernidade – que se esforça para equacionar o método das ciências da natureza com a filosofia da consciência – essa busca pela verdade traduz-se no ideal de objetividade: remete a um ideal de que é possível pôr-se de fora para analisar, de maneira neutra, determinado objeto de estudo e, assim, tomá-lo desde uma verdade que é do próprio objeto.
Rorty, debruçando-se sobre as implicações do objetivismo, afirma:
A cultura da tradição ocidental, centrada na noção de busca pela verdade, a tradição que corre desde os filósofos gregos e atravessa o Iluminismo, é o exemplo mais claro da tentativa de encontrar um sentido para a existência a partir do abandono da solidariedade em direção à objetividade. (1997, p. 37).
O objetivismo toma a verdade como correspondência com a realidade e, assim, assume um princípio metafísico que reconhece uma natureza intrínseca ao objeto de conhecimento que determina a verdade a ser conhecida. Assim, se estabelece um paradigma de racionalidade: “ser racional é ser metódico”. (RORTY, 1997, p. 57). E ser metódico implica ter critérios que possibilitem a previsibilidade de fenômenos, o que é próprio da análise da natureza. Daí decorre uma posição epistemológica que toma as ciências da natureza como parâmetro de racionalidade a ser aplicado a toda forma de conhecimento que almeje ter seu conteúdo reconhecido como verdadeiro. Mesmo as humanidades precisarão submeter-se aos critérios do objetivismo se quiserem ser reconhecidas como ciências nesse paradigma.
É necessário ter presente que essa visão objetivista imperou por longo tempo e ainda é marca muito presente nos currículos da Educação Básica e mesmo de cursos superiores. Isso pode ser evidenciado de diversos modos: a) pelo caráter absoluto com que algumas teorias são tomadas em manuais adotados nas aulas; b) pelo modo como muitos professores organizam seu ensino centrado na transmissão objetiva – como detentor do conhecimento verdadeiro, cabe ao mestre transmiti-lo de modo fiel e objetivo a quem ainda o ignora; c) pela pretensa universalidade que se dá ao elenco de tópicos de estudo presentes num plano de ensino (ali consta tudo que precisa ser aprendido); d) e, não raras vezes, o ensino assume um tal caráter objetivista a ponto de expressar-se com uma dimensão salvacionista (como, por exemplo, ocorre com os programas de “educação para...” – trânsito, sexualidade, paz, etc. – ou com os processos de cura na área biomédica). Em todas essas expressões, está subentendida a referida coincidência entre verdade e bem: o epistemológico ganha, aqui, legitimidade por se travestir do ético, e os elementos curriculares são legítimos porque se apresentam como bem em si, e qualquer dúvida sobre esses elementos de ensino é confundida com algum modo de contestação do bem. Assim, se expressa um modo objetivista de conhecimento e de validação curricular.
Tal objetivismo e sua pretensão de uma razão universal iniciam uma crise a partir da segunda metade do séc. XIX e, com isso, ocorre uma inflexão nos modos de legitimar o conhecimento. Trata-se de uma crise de fundamento decorrente da constatação da insuficiência da metafísica. Já não basta o movimento da consciência – tida como partícipe da universalidade da razão – para legitimar um conteúdo como verdadeiro; mas será preciso construir tal legitimidade num plano inter-relacional. Um dos marcos dessa inflexão é Nietzsche, que reivindica à interpretação um papel mais determinante do que era, até então, atribuído à crença na objetividade dos fatos. Quando, no § 125 de A gaia ciência, Nietzsche anuncia a morte de Deus, está proferindo o fim da metafísica em todas as suas dimensões – inclusive a metafísica da consciência. Nesse contexto, não é mais possível sustentar qualquer saber sobre fundamentos, sejam eles ontológicos, morais ou epistemológicos. Está decretado o fim dos idealismos que, no caso da educação, norteiam uma longa trajetória de formação humanista. “Nietzsche tem assim uma autocompreensão de que sua filosofia é uma reação contra a metafísica e contra o idealismo”. (HERMANN, 2001, p. 73-74). A dialética entre objetividade e subjetividade que sustentaram o idealismo, agora não se mostram mais viáveis. Negada toda e qualquer possibilidade de fundamento, não será mais possível sustentar a objetividade que tão bem servira à ciência.
Com isso o ideal de uma Razão universal dá lugar a uma pluralidade de racionalidades – ou razões plurais – e se desfaz o mito da unidade. Sobre a pluralidade escreve Hermann (2001, p. 91): “A pluralidade refere-se a uma multiplicidade de normas e formas de vida, teorias e ideias, modos de fundamentação e filosofias, constituindo-se numa inegável marca da atual realidade sociocultural”. No campo da legitimidade do conhecimento, a perspectiva plural reivindica uma racionalidade livre de princípios universais e de fundamentos a priori. Se a objetividade, até então, aceita já não mais se sustentar, então será preciso buscar outro modo de legitimar o conhecimento que não esteja mais apoiado numa natureza intrínseca do que é conhecido e, portanto, se torna necessário admitir a ausência de correspondência entre o pensado e a realidade.
As ciências deixam de operar com o status de saberes definitivos e assumem a dimensão histórica de seus conhecimentos. Thomas Kuhn assume que a historicidade é de tal modo determinante, que a pluralidade racional permite perceber mundos distintos: “Após uma revolução, os cientistas trabalham em um mundo diferente”. (2005, p. 174). Ou mesmo antes de Kuhn algo semelhante já era afirmado por Bachelard, que reivindicava tal grau de total novidade no conhecimento legitimado que já apresenta um conteúdo historicista muito forte:
Não há pois transição entre o sistema de Newton e o sistema de Einstein. Não se vai do primeiro para o segundo amontoando conhecimentos, tendo cuidados redobrados nas medidas, rectificando ligeiramente princípios. É preciso, pelo contrário, um esforço de novidade total. (BACHELARD, 1996, p. 36).
A essa historicidade posta diante da validação do conhecimento, a ciência objetivista acusa-a de relativismo e, por isso, de degradar o conhecimento do Ocidente. Observe-se que o tom de acusação guarda, em seu modo de expressão, uma conotação moral: como se a virada epistêmica implicasse uma derrocada do bem. Tais rupturas, presentes em filosofias pós-metafísicas, são acusadas, pelas correntes objetivistas de pensamento, com a pecha de relativismo – ao menos em sua conotação de desprestígio epistêmico e moral (se a verdade confunde-se com o bem, então, o relativismo é um mal a ser evitado a todo custo). No entanto, em correntes como a hermenêutica de Gadamer, o neopragmatismo de Rorty, a epistemologia histórica capitaneada por Kuhn e as éticas discursivas de Apel e Habermas – para citar alguns expoentes – permanece a preocupação com a justificação racional do conhecimento. Mas, é claro, as bases são muito distintas do realismo da ciência objetivista. Ocorre, aí, o deslocamento de uma perspectiva universalista para uma pluralidade – razões plurais ao invés de razão universal. No âmbito da relação de ensino e aprendizagem em que atua a educação, as implicações são muito fortes. Segundo Hermann (2001), a pluralidade provoca dupla reação à educação: a primeira reação é de suspeita, e a segunda, de produtividade.
A primeira reação é negativa diante do pluralismo: a suspeita se dá porque a impossibilidade de sustentar os fundamentos metafísicos que legitimam o conhecimento ensinado é tomada, de início, como se fosse uma desorientação generalizada para os processos pedagógicos. Com isso, desfaz-se a ideia de aperfeiçoamento humano pela educação como um progresso da raça humana rumo a um estágio final, como queria o idealismo. O que se evidencia é que “a educação é um acontecimento temporal” (HERMANN, 2001, p. 129), e a finitude é condição para que se dê a relação pedagógica.
A segunda reação é positiva: a produtividade. A perda de objetividade e seus fundamentos acaba por exigir outros modos de relação pedagógicos que contemplem a pluralidade. Se a verdade não se sustenta mais como intrínseca à realidade a ser conhecida, então a perspectiva de compreensão do outro passa a ser considerada como algo imprescindível ao plano da legitimação do conhecimento. A pluralidade inaugura “uma nova complexidade na experiência do mundo, na qual a visão do outro deve ser pensada como possibilidade”. (HERMANN, 2001, p. 134). Já não há mais um bem supremo a ser atingido pela educação, mas há uma compreensão múltipla de bem – ou múltiplas ideias de bem – a condução da educação se dará sempre num plano da facticidade, e sua justificação racional terá de ser sempre construída num plano argumentativo, em que o outro importa. Portanto, o deslocamento epistemológico que decorre da superação do objetivismo passa a operar com o conhecimento de um modo em que conhecer é também deliberar e, portanto, o epistemológico justifica-se numa perspectiva ética.
Sendo assim, a relação pedagógica, em que se intente ensinar algo para que outrem aprenda, exigirá uma renúncia a fundamentos universais e, em seu lugar, o constante exercício de se justificar racionalmente todo o saber proposto, de maneira que encontre acolhida na comunidade investigativa em que se insere e se legitime por uma concordância não forçada num plano histórico. Legitimar determinados conhecimentos e incorporá-los aos currículos implica reconhecer que esses estão órfãos de fundamentos metafísicos que lhes garantam objetividade, e que sua sustentação se dará ao encontrar acolhida numa comunidade investigativa por meio de uma racionalidade argumentada. Ensinar conteúdos, portanto, envolve também ensinar a operar com a historicidade desses saberes e com a dinâmica em que se movem as ciências. Isso nos conduz a uma virada de pressupostos aos processos de ensino e aprendizagem: deixar de lado o objetivismo decorrente de fundamentos metafísicos e assumir uma perspectiva histórico- intersubjetiva de legitimação dos conhecimentos. Tal virada implica pensar de outro modo – não mais objetivista – as concepções de currículo, os métodos de ensino, os processos avaliativos e todas as demais ações aí imbricadas.
4 Pressupostos sobre disciplinaridade e interdisciplinaridade
Uma vez proposta a virada epistemológica de afastamento do objetivismo, segue-se no percurso desse argumento, agora dando atenção ao tema da disciplinaridade e da interdisciplinaridade. Falar sobre interdisciplinaridade é uma tarefa difícil, pois, se trata de um argumento ignorado por muitos, defendido por alguns e combatido por outros. Fala- se em multi, pluri, inter, intra e transdisciplinaridade e, não raras vezes, até mesmo de modo confuso, sem conceitos claros. Ainda assim, tais termos são usados com muita frequência no discurso pedagógico (PAVIANI, 2008). Um dos aspectos a ser considerado, ao se abordar a temática é justamente o que este artigo propõe-se a refletir: os pressupostos epistemológicos. Falar em diferentes organizações curriculares disciplinares ou mesmo em outros modos de concepção de currículo implica explicitar pressupostos que justifiquem as posições assumidas. De modo similar ao que foi proposto anteriormente no texto, o artigo seguirá especulando sobre pressupostos mais objetivistas e outros que se afastam dessa tradição. Não é difícil perceber que pressupostos mais objetivistas privilegiarão uma compreensão disciplinar mais orientada às especificidades de cada saber, enquanto os pressupostos que relativizam a objetividade tenderão a ocupar-se mais com fenômenos complexos e, por isso, darão mais importância às relações entre as disciplinas.
Em comum entre os termos que expressam diferentes abordagens em relação às disciplinas está o seu sufixo: disciplinaridade. Entende-se por disciplinaridade a exploração científico-metódica e especializada de um domínio determinado e homogêneo. Pensada como atividade, a disciplinaridade conduz a uma formulação e reformulação contínuas do corpo de conhecimentos sobre uma questão. (HECKHAUSEN, 1972). Disciplina também pode ser pensada como ramo de saber, componente curricular, conjunto de normas (que regula determinada atividade ou comportamento). De modo geral, a lógica disciplinar contribui com a demarcação de fronteiras entre saberes e permite desenvolvimentos específicos. Objetivamente, temos a história das disciplinas, de seu surgimento e de seu desenvolvimento, assim como também os momentos de fragmentação do conhecimento (milhares de disciplinas) e da especialização. Essa mesma história que nos apresenta um percurso inegavelmente relevante de desenvolvimento dos saberes em disciplinas – a maior parte delas de caráter científico – chega-nos com os problemas percebidos a partir de uma tal especialização que passa a dificultar a articulação e o diálogo entre diferentes disciplinas.
Essa situação paradoxal com que a disciplinaridade se nos apresenta instiga-nos a formular algumas indagações que se convertem em desafios pessoais aos pesquisadores e também às instituições: como seguir desenvolvendo o conhecimento para além de uma lógica formal e para além dos limites de uma disciplina? Quais são as áreas e as disciplinas que permitem uma interdisciplinaridade? Como evitar que o ensino, na Educação Básica e nos cursos superiores seja por demais fragmentado e isolado em sua composição curricular?
Vale considerar que nem todas as ciências comportam a mesma intensidade de intercâmbio com outros conhecimentos. No ensino de graduação, por exemplo, antes de conhecimentos interdisciplinares, é necessário conhecer as ciências fundamentais. Afinal, a interdisciplinaridade pressupõe a existência de disciplinas que possam articular-se entre si. As disciplinas geralmente têm objeto próprio, conceitos e enunciados básicos, teorias e linguagem próprias e, devido a isso, nem sempre a troca de conhecimentos é fácil. No entanto, nosso tempo exige-nos esforços espistemológicos para que sejam revistas as fronteiras entre disciplinas – afinal, nem todas as demarcações são legítimas, necessárias e úteis – a fim de se combater a falsa autonomia dos saberes.
Uma vez que a interdisciplinaridade pressupõe a existência e as especificidades das disciplinas, e de modo geral a formação do professor é orientada para uma área específica, é de se concluir que em muitos casos se exigirá um ensino compartilhado por dois ou mais professores, além de teorias e metodologias interdisciplinares. É possível, até mesmo, pensar em cursos superiores interdisciplinares, como, por exemplo, Filosofia e Gestão ou Física e Medicina. No caso da Educação Básica, é de se pensar em sua própria natureza que pressupõe a interdisciplinaridade. Afinal, o papel da Matemática ou da História nos Ensinos Fundamental e Médio, não é o de formar um matemático e um historiador, mas de se articularem ao conjunto dos saberes para promover uma ampla formação integrada para o pleno exercício da vida cidadã e o ingresso no mundo da cultura letrada. Nesse sentido, ou a Educação Básica acontece como autêntica experiência interdisciplinar, ou seus mais nobres objetivos serão negligenciados.
Quer no Ensino Superior, quer na Educação Básica, o possível êxito nesses processos passa pelo planejamento curricular interdisciplinar. Há, portanto, pressupostos epistemológicos sobre as ciências e as disciplinas que resultam em diferentes concepções curriculares enos conseguintes processos de ensino e aprendizagem. Um pressuposto objetivista conduzirá à priorização saberes específicos a serem ensinados de modo diretivo e com abordagem eminentemente analítica. E, nesse caso, pode-se prescindir da interdisciplinaridade sem maiores prejuízos aos objetivos do processo. De outro modo, um pressuposto que relativize a objetividade do conhecimento e reconheça a interação dos sujeitos entre si e com os objetos como condição de possibilidade para o conhecimento, então reivindicará a mais ampla relação possível entre os saberes, a fim de viabilizar um processo exitoso de ensino e aprendizagem.
Assim, se reconhecermos como válidos pressupostos que justificam a prioridade da interdisciplinaridade, por coerência será preciso superar a visão da ciência positivista e de seus ideais objetivistas sobre o conhecimento. Nem mesmo a separação entre ciências exatas e da natureza (às quais se atribuía precisão de resultados em decorrência do rigor do método), e entre ciências sociais e humanidades (as quais se supunha que eram as únicas interpretativas de fenômenos) fará mais sentido. O apelo agora é por um diálogo próximo entre todas as ciências, bem como dessas com outras formas de conhecimento.
Nesse sentido a interdisciplinaridade é muito mais do que justaposição de disciplinas, é a coesão de saberes diferentes. Os especialistas, nesse caso, esforçam-se para além de seu domínio e linguagem técnica. Isso supõe abertura de pensamento para além de sua disciplina. (GUSDORF, 1964). Supõe também interação entre duas ou mais disciplinas. Na base de uma concepção interdisciplinar, está a integração de conceitos, teorias e métodos de diferentes ciências. Daí recorre-se à ideia de cooperação que se expressa como enriquecimento mútuo. (PIAGET, 1972). Analisando um pouco mais o alcance de tal concepção, chega-se à ideia de cooperação de várias disciplinas na investigação de um mesmo objeto ou problema.
Há de se salientar, também, que o conceito de interdisciplinaridade não é passível de definição e menos ainda restringe-se a um único modo de operar. Ao contrário, pode-se conceber e realizar interdisciplinaridade de diversos modos: a) novas disciplinas constituídas nas interfaces de duas disciplinas (tais como: Biofísica, Geobotânica, Psicolinguística, Bioética); b) novas disciplinas que aparecem com autonomia (tais como: Psicologia Industrial, Sociologia das Organizações, Direito Ambiental); c) pela prática de descentração, isto é, irrupção de problemas impossíveis de serem reduzidos às disciplinas tradicionais (tal como é o caso da Ecologia); d) pela prática de convergência da análise de um domínio comum (estudos por área de conhecimento); e) pela prática de cruzamentos ou estudo de problemas indisciplinares (tal como ocorre no universo das Ciências Cognitivas), etc. Nesses casos, elencados por Olga Pombo (2004), irá se observar distinção entre tipos de interdisciplinaridade: ora tendo-se uma disciplina principal e outras auxiliares ou complementares, ora, a relação entre disciplinas sendo estrutural, assim como também podendo ser linear, restritiva ou unificadora.
No universo do debate sobre interdisciplinaridade, aparecem conceitos que lhe são próximos, mas não coincidentes. É o caso da pluridisciplinaridade e da multidisciplinaridade, que se expressam de modo mais elementar, mantendo fronteiras mais demarcadas entre diferentes ciências. Nesses casos, a relação não ultrapassa níveis de justaposição de disciplinas diversas, às vezes sem relação expressa entre elas. Poderíamos citar muitos exemplos dessa ordem em projetos de engenharia (associados a conhecimentos sociológicos e de gestão) e de saúde (que vinculam conhecimentos de áreas médicas, fisioterapia, psicologia, enfermagem, etc.). Porém, dado o escopo pedagógico deste artigo, mostra-se mais pertinente salientar que muitas das organizações curricular-escolares e universitárias estão ainda nesse nível elementar da pluridisciplinaridade e da multidisciplinaridade.
Esse é o caso de toda a organização curricular que se dá mediante o escalonamento de um conjunto de saberes classificados disciplinarmente e ministrados com alguma complementaridade entre eles, porém sem uma articulação de base que seja determinante de um mesmo projeto formativo. Nesses casos, a instituição de ensino oferece um currículo multidisciplinar e caberá ao estudante servir-se desse cardápio para, eventualmente, elaborar aprendizagens interdisciplinares. Porém, as características próprias da interdisciplinaridade não estão incorporadas aos planos de ensino. Outro conceito importante que convive no universo do debate sobre a interdisciplinaridade é a transdisciplinaridade. Entende-se por transdisciplinaridade a etapa que sucede à interdisciplinaridade. Ela situa as investigações no interior de um sistema total, sem fronteiras estáveis entre as disciplinas. Ou, num segundo sentido, ela vai além das disciplinas. Ela engloba aspectos de diferentes saberes: filosófico, científico, religioso, etc.
Se aqui estamos falando de pressupostos dos processos de ensino e aprendizagem, então é preciso avaliar em que medida a interdisciplinaridade está presente como um pressuposto desses processos. Não se pode deixar de observar que ainda atuam, com muita força, concepções que inspiram práticas educativas centradas numa perspectiva limitada à justaposição de disciplinas, buscando a interdisciplinaridade apenas como uma estratégia posterior e complementar para amenizar alguma deficiência de aprendizagem. A fim de superar essa limitação, defendemos que dois aspectos, em especial, são relevantes e precisam ser considerados: a) porque a interdisciplinaridade se dá a partir de uma sólida elaboração disciplinar, é importante trabalhar com matrizes disciplinares muito bem-constituídas, que tenham clareza acerca dos processos de legitimação dos saberes que a compõem; e b) tendo- se as especificidades disciplinares bem-desenvolvidas, será possível avançar para uma efetiva articulação entre disciplinas tanto no desenvolvimento de pesquisas quanto nas ações de ensino dos saberes construídos.
Considerando-se o percurso de superação de um modelo epistemológico-objetivista, torna-se importante ter presente em que medida os saberes que compõem uma disciplina dão conta da compreensão dos fenômenos e possibilitam a resolução de problemas. Uma disciplina explica um fenômeno a partir de sua matriz composta por um conjunto de conceitos, constructos e métodos. No entanto, os fenômenos não se dão em função de uma matriz disciplinar, mas sempre são mais amplos. Não raras vezes, é necessário analisar um fenômeno a partir de diferentes matrizes disciplinares para que se atinja uma compreensão satisfatória. Assume-se, aqui, a necessidade de interação entre sujeitos e desses com os objetos de investigação para que se possa legitimar qualquer conhecimento.
É a combinação entre disciplinas fortes e a articulação contínua entre diferentes matrizes que possibilitará a compreensão ampla dos fenômenos e a resolução eficiente de problemas ou esclarecimentos de questões de investigação. No discurso interdisciplinar, portanto, não estará presente o abandono das disciplinas, mas a ruptura com um modo por demais fragmentado de tratá-las. Esse esclarecimento é importante, pois muitas vezes, discursos ingênuos sugerem a interdisciplinaridade como negação das estruturas disciplinares, o que é um equívoco epistemológico (não será possível relacionar diferentes disciplinas se não houver especificidades que possam ser colocadas em diálogo). Assim como uma autêntica discursividade entre sujeitos pressupõe que cada qual esteja apto a apresentar seus pontos de vista, a mesma estrutura de uma ética discursiva também aplica-se à interdisciplinaridade: cada disciplina apresenta-se devidamente estruturada, com seus conceitos e métodos, aberta ao diálogo epistemológico com as demais.
5 Considerações finais: sobre como tais pressupostos epistemológicos se efetivam no processo de ensino e aprendizagem
A superação do objetivismo, aqui sugerida, nos encaminha para um pressuposto epistemológico que parte de uma discursividade operada por uma comunidade investigativa. Ora, se a legitimidade dos conteúdos que compõem os currículos dos planos de ensino depende dessa discursividade, e se o conhecimento próprio de uma disciplina depende de níveis de entrelaçamento com outras disciplinas para a resolução de problemas de modo satisfatório, então justifica-se pensar processos de ensino e aprendizagem que contemplem tais pressupostos e se efetivem operando com uma racionalidade discursiva e com vivência de investigação. Essa estrutura de racionalidade é trazida da filosofia prática, especialmente da ética, e é agora transposta para a epistemologia, a fim de justificar tal discursividade.
Nessa linha de reflexão defende-se a prática de investigação como presença contínua em todo o processo de educação formal. Há diferentes modos de operar com a investigação: desde os níveis iniciais de operação com perguntas e a construção das respectivas respostas, até a pesquisa científica propriamente dita. Ações simples como substituir o caráter absoluto de determinados manuais em sala de aula e ensinar a operar diante de uma multiplicidade de fontes de informação já são um primeiro passo. O estímulo ao questionamento investigativo, em todos os níveis de ensino, é outro fator muito importante. Refazer o percurso investigativo que deu origem a uma teoria vigente é já um nível um pouco mais complexo, que possibilita perceber o caráter histórico dos conhecimentos legitimados. À medida que o estudante avança em seu processo formativo, é importante que desenvolva a competência de formular problemas de ordem científica e elaborar hipóteses que balizem a busca de solução a cada problema.
Na formação de nível superior, a iniciação científica precisa se dar, não somente em programas de incentivo por meio de bolsas, mas ainda e antes disso, precisa ser componente curricular das diferentes disciplinas que compõem o currículo. Aliás, até mesmo algo que pode parecer bem mais trivial já antecipa pressupostos epistemológicos: a disposição dos estudantes no espaço de relação pedagógica (as salas de aula em formato de auditório – há muitos casos em que o mobiliário permite mobilidade em distintas organizações, mas, ainda assim, se vê a preponderância do que é tacitamente estandardizado – claramente comunicam que a construção intersubjetiva do conhecimento não é algo relevante).
Do ponto de vista objetivista, se há um conhecimento já consolidado, o melhor a se fazer é dá-lo ao acesso a quem ainda não o tem. Por isso, os modelos pedagógicos que privilegiam a transmissão mostram-se os mais adequados a essa perspectiva. E também parece coerente que se privilegiem as especificidades disciplinares com fim em si mesmas em detrimento de abordagens interdisciplinares. Porém, se reconhecermos os limites de pretensão objetiva do conhecimento e buscarmos superá-los numa perspectiva de construção e legitimação intersubjetiva dos saberes, então as exigências pedagógicas serão outras. É nessa perspectiva ético-epistemológica que se quer propor as já mencionadas racionalidade discursiva e vivência de investigação. Porque não há um conhecimento objetivo a ser apreendido e que possa ser apenas transmissivamente dado a outrem, é que se faz imperioso buscar respostas que se legitimem historicamente nas interações das comunidades investigativas. Esse é tanto o desafio do desenvolvimento científico mais avançado quanto das ações pedagógicas que visam a promover algo que seja relevante. No caso desses processos de ensino e aprendizagem, parece-nos inócuo investir tempo e energia humana no consumo de subprodutos de uma ciência objetivista com a ilusão de que isso promova alguma relação profícua com o conhecimento.
Na sala de aula da Educação Básica e do Ensino Superior, o mais importante a se fazer é a promoção de vivências investigativas de diferentes naturezas que se deem de modo dialógico com a maior amplitude possível. E, se observarmos a literatura e as experiências pedagógicas de excelência, veremos que não falta exemplos de metodologias que privilegiam esses aspectos. E isso não se deve a qualquer tendência do nosso tempo, mas está profundamente marcado na tradição pedagógica. Na Grécia antiga, a prática investigativa por meio do diálogo já se mostrou, com Sócrates e Platão, um modo bastante eficiente de construção de conhecimentos. As universidades medievais criaram a disputatio como um método que privilegiava a exposição do contraditório na busca por esclarecimento de questões. Igualmente poderíamos seguir enumerando diversos movimentos pedagógicos significativos na histórica, inclusive o movimento da Escola Nova, no século XX, que se espalhou rapidamente pela Europa e deixou fortes influências, como mais uma proposta de pedagogia ativa, com destaque para seu acento interdisciplinar. Enfim, seria por demais ingênuo crer que apenas algumas tendências do nosso tempo possam receber o estatuto de método ou metodologia adequada ao bom conhecimento. Mas há, sim, elementos em que o nosso tempo pode contribuir decisivamente com esse processo histórico. E um deles – possivelmente o mais importante – seja o desenvolvimento da interdisciplinaridade que o atual estágio de amadurecimento das ciências permite experimentar.