SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.23 número3Da ilusão à sedução: a crise do paradigma dominante e a emergência da pesquisa (auto)biográficaDesafios para a inclusão de estudantes com deficiência física: uma revisão de literatura índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.3 Caxias do Sul  2018  Epub 29-Jul-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.n3.8 

Artigos

A educação entre muros e a transmissão do saber interdisciplinar*

Education between walls and the transmission of interdisciplinary knowledge

Rogério Rodrigues** 

**Graduado em Educação Física pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor em Educação pela Unicamp. Pós-Doutor em Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo (USP). :


Resumo

O objetivo deste artigo é analisar o processo formativo em interface à perspectiva interdisciplinar no campo educacional. Para tanto, parte-se da análise do “paradigma do muro”, como um problema que se evidencia enquanto representação emblemática do projeto da sociedade, pautada na interdição ou na exclusão do outro. No campo da ciência, existem outros muros que se erguem como barreiras que nos impedem de pensar o conhecimento para além da ciência disciplinar. Para analisar a educação entre muros e a transmissão do saber interdisciplinar, a metodologia utilizada encontra-se no âmbito da filosofia da educação, no sentido de compreender a apropriação crítica do conceito do muro como um projeto arquitetônico de interdição ou exclusão do sujeito na vida em coletividade, ou na recusa do pensamento em interface com as diversas áreas do conhecimento. Em nossa percepção, a proposição da crítica radical seria o questionamento da própria construção do muro como um lugar que prende o sujeito no campo da realização da liberdade. Seria esse questionamento como proposição de crítica da crítica enquanto condição de proporcionar todo o movimento do pensamento que se apresenta nas interfaces entre a educação e os processos formativos numa apropriação crítica do fazer, o trabalho como expressão de si e a saúde do irreversível processo de degeneração de si, pois, se for somente para buscar a luz no final do túnel, a modernidade já faz isso e apresenta todo seu excesso em diversas respostas competentes de manter “a gente feliz”. Temos a esperança de que a impertinência da crítica da crítica, no campo da interdisciplinaridade, torna possível a heurística do processo formativo para consolidação de projeto de sociedade da educação sem muros na transmissão do conhecimento. A partir dos estudos abordados, concluiu-se que existem outros muros difusos, que também impedem a passagem física e social do sujeito para diversos espaços na vida em sociedade. No caso específico no campo do conhecimento, o muro que impede a passagem para o meio intelectual se apresenta em toda uma semiótica que nos conduz ao pensamento reificado do senso comum e, principalmente, à manutenção da hegemonia da apropriação de determinada representação de mundo, que se pauta numa hierarquia entres aqueles que mandam e os outros que obedecem.

Palavras-chaves:  Interdisciplinaridade; Formação escolar; Competência técnica; Ensino de ciências

Abstract

The purpose of this article is to analyze the formative process in interface to the interdisciplinary perspective in the educational field. In order to do so, it is based on the analysis of the “paradigm of the wall” as a problem that is evidenced as emblematic representation of the project of society, based on the interdiction or exclusion of the other. In the field of science, there are other walls that stand as barriers that prevent us from thinking about knowledge beyond disciplinary science. In order to analyze education between walls and the transmission of interdisciplinary knowledge, the methodology used is within the Philosophy of Education, in the sense of understanding the critical appropriation of the concept of the wall as an architectural project of interdiction or exclusion of the subject in collective life, or in the refusal of thought in interface with the different areas of knowledge. In our perception, the proposition of radical criticism would be the questioning of the very construction of the wall as a place that holds the subject in the field of the realization of freedom. It would be this questioning as a critique of criticism as a condition of providing the whole movement of thought that presents itself at the interfaces between education and the formative processes in a critical appropriation of doing, work as an expression of self and the health of the irreversible process of degeneration so if it is only to seek the light at the end of the tunnel, modernity already does this and presents all its excess in several competent answers to keep “people happy.” We hope that the impertinence of critique of criticism in the field of interdisciplinarity makes possible the heuristic of the formative process for the consolidation of the project of a society of education without walls in the transmission of knowledge. From the studies studied, it was concluded that there are other diffuse walls, which also prevent the physical and social passage of the subject to various spaces in life in society. In the specific case in the field of knowledge, the wall that impedes the passage to the intellectual environment presents itself in a whole semiotics that leads us to the reified thought of common sense and, mainly, to the maintenance of the hegemony of the appropriation of a certain representation of world, that is set in a hierarchy between those who rule and others who obey.

Keywords:  Inter disciplinarity; School formation; Technical competence; Sciences teaching

“Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos, mas não há hoje, no mundo um muro, que separe os que têm medo dos que não têm medo”. (COUTO, 2017).

1 Introdução: a modernidade como realização da ciência disciplinar e a desconstrução do saber no campo da interdisciplinaridade

Pensar a passagem da ciência disciplinar para o campo da interdisciplinaridade requer a desconstrução de alguns muros que se apresentam como barreiras que nos impedem de analisar o fenômeno numa outra lógica do pensamento, na qual se pressupõe não sair da posição do saber sabido, em termos de explicação científica.

Em nosso cotidiano, pouco se questiona, acerca da arquitetura das cidades, o conjunto de muros que nos impedem de passar de um lugar para outro. Entretanto, no campo do pensamento científico, seria oportuno que se colocasse em discussão o “paradigma do muro” que nos impedem de circular no campo das diversas áreas do conhecimento. Dentro da nossa área do saber, aprofundamo-nos e nos especializamos, mas poucos queremos saber o que se encontra do outro lado do muro, em outros saberes, e quando este se apresenta, recuamos com o argumento de que isso não é o nosso objeto de pesquisa.

Diante dessa proposição de recusa do saber não sabido, o que seria saber interdisciplinar e quais as suas consequências e repercussões para o campo da educação? Para responder a tal questionamento, partimos do pressuposto de que se apresentam diversas dificuldades para a construção dessa modalidade de saber no campo da educação, no sentido de romper com as particularidades da disciplinariedade ao se transmitir o saber científico. No entanto, no campo da pesquisa em área multidisciplinar, a metodologia da pesquisa encontra outro agravante: o pesquisador deve abranger outras áreas do conhecimento. Nesse caso, há um problema a ser enfrentado e que não é resultado de se encontrar uma resposta reveladora, pois,

com certeza, não se pode pensar de modo interdisciplinar seguindo meramente algumas “receitas” metodológicas. Implica, mais fundamentalmente, a adoção de uma nova postura intelectual em face da natureza complexa dos problemas com os quais os cientistas contemporâneos se confrontam. (RAYNAUT, 2011, p. 70).

Nesse caso, parte-se do pressuposto de que a maior dificuldade, no processo de construção do saber interdisciplinar, seria a transmissão de um saber que estivesse em ruptura com o quadro teórico das ciências disciplinares. A dificuldade apresenta-se no fato de que as ciências disciplinares constituem-se a partir de técnicas específicas de investigação, numa concepção de pesquisa hegemônica, que (re)produz os procedimentos de investigação estabelecidos como protocolos que se apresentam na modernidade com eficácia e eficiência. Entretanto, essa atividade intelectual em nada tem resolvido a gravidade que se instaura numa sociedade que reproduz em grande parte a concentração de riqueza e a ampliação de práticas sociais nada sustentáveis, dessa forma, ocorre de imediato a necessidade de ruptura, e isso se deve ao fato de que é preciso pensar de modo amplo as questões, uma vez que

vivemos hoje num mundo globalmente interligado, no qual os fenômenos biológicos, psicológicos, sociais e ambientais são todos interdependentes. Para descrever esse mundo apropriadamente, necessitamos de uma perspectiva ecológica que a visão de mundo car tesiana não nos oferece. Precisamos, pois, de um novo ‘paradigma’ – uma nova visão da realidade, uma mudança fundamental em nossos pensamentos, percepções e valores. (CAPRA, 1993, p. 14).

Repensar a construção do saber interdisciplinar, nesses poucos anos de convivência nesse campo da pesquisa, fez-me refletir, desde o início das atividades do programa do mestrado, datadas a partir de março de 2012, acerca das diversas dificuldades para se construir um modo de saber distinto no campo das ciências humanas e, principalmente, nas condições próprias para produção e transmissão do conhecimento interdisciplinar.

Avalio que, em termos gerais, podemos dividir essas dificuldades em três grandes núcleos, os quais podem denominados da seguinte forma: a obsessão metodológica, em que o fazer pesquisa encontra-se preso numa estrutura de protocolo; a inversão da lógica investigativa, em que se enfatizam as respostas encontradas, mas pouco se aprofunda na pergunta da pesquisa; e, por último, a alienação do sujeito do conhecimento, isto é, aquele se produz no paradoxo de estar amplamente informado, mas pouco ou nada conhece dos saberes no campo da ciência.

A obsessão metodológica é o querer saber como se constrói a pesquisa a priori, sem querer saber sobre o processo de análise do próprio fazer investigativo enquanto um caminho para se conhecer o objeto de estudo. Compreendemos que isso seria uma espécie de recusa de se pensar a construção do caminho interdisciplinar na produção de outros saberes distintos daqueles já consagrados nos modelos teóricos no campo da ciência disciplinar. Essa resistência ao saber no campo da interdisciplinaridade torna- se muito comum na constante queixa sobre a falta de proposições teóricas e metodológicas no modo prático de como fazer a pesquisa. Essa necessidade prática investigativa se expressa como se fosse possível dizer ou narrar o modo metodológico, tal como uma receita de bolo a ser repetida por todos.

Esse problema metodológico se apresenta, em parte, na inversão do processo investigativo, em que ocorre pouca clareza na formulação da pergunta da pesquisa, enfatizando-se os resultados. Nesse caso, a receita metodologia, juntamente com a busca por resultados, condiz com a produção científica que se reduz. Em nossa hipótese de trabalho, ocorre certo desajuste no campo da investigação científica, o que pode significar uma tentativa romper com o sujeito informado no campo da ciência, mas não se permite pensar o real como síntese da complexidade interdisciplinar no processo da pesquisa. Avaliamos que romper com essa condição alienante do sujeito do conhecimento – dissociação da ação e do pensamento – seria um passo importante para pesquisas com análises contundentes, que podem, principalmente, radicalizar a compreensão da dinâmica do real e os processos educativos. Esse processo constitui-se de condições próprias e determinantes na complexa tarefa para se compreender o impossível nas rupturas dos muros que impedem a realização do sujeito crítico no campo do conhecimento científico.

Quando me defronto com essa situação de pensar e produzir algo diferente e em ruptura com a certeza absoluta que se apresenta nos limites da ciência disciplinar, isso deixa transparecer que toda a verdade instaurada na modernidade produz um duplo efeito, qual seja, de um lado, mantém o sujeito do conhecimento numa condição de permanência do saber sabido, no campo da ciência disciplinar, por tudo aquilo que é produzido e, portanto, mantém-nos vivos na reprodução objetiva de coisas; por outro, ocorre um elemento de resto que se apresenta como o não compreendido dessa produção, pois aquilo que é produzido coletivamente não é distribuído igualmente para todos, tendo como resultado o paradoxo da falta no excesso. Essa condição paradoxal coloca em questão a nossa própria existência enquanto sujeitos ou, mais propriamente, a radicalidade da possibilidade de extinção de nossa espécie animal do planeta, em decorrência dos diversos desequilíbrios que promovidos em todo o nosso ecossistema, uma vez que, no excesso de produção,

o planeta Terra vive um período de intensas transformações técnico- científicas, em contrapartida das quais engendram-se fenômenos de desequilíbrios ecológicos que, se não forem remediados, no limite, ameaçam a vida em sua superfície. Paralelamente a tais perturbações, os modos de vida humanos individuais e coletivos evoluem no sentido de uma progressiva deterioração. As redes de parentesco tendem a se reduzir ao mínimo, a vida doméstica vem sendo gangrenada pelo consumo da mídia, a vida conjugal e familiar se encontra frequentemente “ossificada” por uma espécie de padronização dos comportamentos, as relações de vizinhança estão geralmente reduzidas a sua mais pobre expressão. (GUATTARI, 1990, p. 7-8).

O problema do excesso de produção não se resolve com a ampliação do conhecimento das ciências disciplinares, tampouco com o discurso educacional, cujo objetivo seria obter mais produção e transmissão de conhecimento que transbordasse informações, mas é uma situação extremamente complexa e que levanta bastantes discussões e reflexões no campo da ciência na modernidade, uma vez que,

fundado no racionalismo e no empirismo, o paradigma hegemônico da ciência “clássica” centra-se em disciplina, cujo pressuposto é ignorar o que existe “entre” e “além” de suas fronteiras. Norteia-se por uma concepção positivista e objetivista de ciência, com leis determinísticas, atemporais, operando a partir de categorias dicotômicas, como, por exemplo, homem e natureza, ciências e humanidades, objetivo e subjetivo, natureza e cultura, normal e patológico, qualitativo e quantitativo. (ALVARENGA, 2011, p. 19).

A situação em que se encontra a ciência na modernidade é que cada vez sabemos mais e obtemos um maior número de informações, contudo, o conjunto e o acúmulo desse suposto conhecimento tornam-se cada vez menos operantes, pelo simples fato de que a segmentação dos saberes destitui a compreensão da complexidade que nos cerca e, portanto, o excesso de conhecimentos científicos em que estamos mergulhados apresenta-se em proporção direta com falta de soluções plausíveis que possam lidar com a dinâmica da realidade em termos conceituais, para não dizer radicais, do que seja a sustentabilidade na vida do planeta, que, em termos matemáticos, caminha para o esgotamento dos recursos naturais, uma vez que

os 6,6 bilhões de habitantes do mundo consomem juntos quase 1,5 planeta Terra por ano, com base nos dados de 2006. Ou seja: a população hoje usa em 1 ano recursos que o planeta só consegue repor em 18 meses. No relatório de 2008, baseado em dados da ONU de 2003, a humanidade consumia 1,3 planeta. (FAVA, 2001).

Nessa condição de dificuldade em encontrar soluções para a vida sustentável no Planeta, prefiro recuar e pensar no dito popular o qual afirma que em momentos de dificuldades devemos sempre acreditar que é possível encontrar uma luz no final do túnel. Essa é a esperança que movimenta a escrita deste texto, enquanto um elemento reflexivo de análise do problema científico em se fazer pesquisa sem implicar-se com o real. Essa condição reflexiva crítica seria possivelmente o motivo da nossa inserção no processo investigativo, como um lugar de ensaio de novas experiências do pensamento que possam romper com essa tradição no campo da ciência disciplinar, que se apresenta insustentável para todos aqueles que de fato concebem a vida no mundo, na condição radical de respeitar plenamente todas as espécies vivas.

Nessa perspectiva, a metáfora da luz do final do túnel seria o nosso desejo em explorar essa questão de dificuldade no campo da pesquisa, em outros sentidos, para se pensar o processo formativo numa lógica que esteja fora das determinações do capital, como uma tentativa de se encontrar intervenções plausíveis às problemáticas propostas. Portanto, a universidade deveria preservar, em seu interior, outro discurso, em discordância com a lógica do mercado, e constituir-se assim numa espécie de dispositivo de resistência, poderia apresentar-se como lugar para ensaiar a desconstrução dos conceitos numa perspectiva de crítica da crítica.

Desse modo, proponho a conexão de nossas reflexões com a reconstrução conceitual no modo amplo de pensar e falar naquilo que pode se constituir no campo do conhecimento interdisciplinar na educação como processo amplo de inserção do sujeito no campo da cultura. Deveríamos compreender o processo formativo para além das formas de disciplinamento, podendo ele resultar do trabalho intelectual, destituindo-se do adestramento do pensamento do sujeito no campo do saber fazer. Dessa maneira, o sujeito poderá ser compreendido numa interação entre natureza e cultura e, portanto, o educar não será somente o informar, a saúde não será a redução do sujeito ao ser orgânico, e o ser sujeito será a tentativa de juntar os ditos e feitos. Entretanto, muitas vezes, isso significa retornar a algo e compreender que o dizer geralmente não se encaixa naquilo que é dito, pois “não adianta dizer o que se vê; o que se vê não habita jamais o que se diz”. (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 107).

Desse modo, podemos pensar o processo formativo do pesquisador, cuja dissertação seria o resgate escrito da elaboração do percurso da investigação e, portanto, o ato de dizer algo, no sentido dissertativo e exploratório, conceitualmente em relação ao objeto de estudo. No campo da interdisciplinaridade, isso seria a possibilidade da reconstrução de novos contornos do conhecimento para além dos limites das ciências disciplinares. Para ilustrar a possibilidade desse ato dissertativo interdisciplinar, indico a observação da Figura 1, para se pensar o beco sem saída das ciências disciplinares em oposição à saída do túnel do conhecimento no campo da interdisciplinaridade.

Fonte: Acervo do autor.

Figura 1 

Consideramos que isso se trata de um fato confortável, pois, apesar das dificuldades no campo da ciência disciplinar, o conhecimento da interdisciplinaridade apresenta-se como um contraponto enquanto saída ou, aparentemente, a luz no final do túnel assume a forma e conteúdo de resolução dos problemas que não são resolvidos ou enfrentados radicalmente na modernidade. Entretanto, antes de qualquer coisa, deveríamos elaborar, no campo da construção interdisciplinar, se teríamos a compreensão de que lugar é esse e para onde se caminha na busca de solução ou compreensão quando se busca a saída do beco em direção à luz no final do túnel.

Será que de fato todos compreendem que o campo da ciência disciplinar apresenta-se como um beco sem saída? Avaliamos que a resposta a essa pergunta é condição primordial para se lançar na interdisciplinaridade em interface com o campo educacional. Aqui se faz um destaque para se dizer que a pergunta da pesquisa seria o motor que movimenta todo o percurso investigativo, seja no campo das ciências disciplinares ou no campo do conhecimento interdisciplinar. Portanto, a escolha da pergunta é determinante para realizarmos a ruptura no campo das ciências disciplinares e sabermos por qual motivo estamos nos aproximando do conhecimento na interdisciplinaridade para pesquisar o campo educacional, uma vez que todo o esforço de mais educação tem sido inválido, no sentido de produzir o sujeito crítico ou, nos termos pedagógicos, formar o cidadão. Podemos dizer que o conceito de cidadania encontra-se desgastado, uma vez que as cidades tornaram-se território de pouca expressão para o sujeito.

Compreendemos que o conceito de cidadania encontra-se vazio e se torna preenchido com a principal representação de cidade que prevalece hoje nos grandes centros urbanos e que também serve de modelo para as pequenas cidades, que seria a compreensão dos espaços urbanos de passagens projetadas exclusivamente para o uso dos automóveis. Qualquer outra forma sentido de trocarem palavras, tornou-se um território desprovido de encontro entre os sujeitos, constituem-se esses espaços em aglomerados de massas humanas.

As praças foram cercadas e, nas residências, o aparelho de televisão monopoliza o uso da palavra. Muitos se encontram amarrotados nos ônibus, poucos circulam em seus carros, com vidros trancados e ar condicionado ligado, o que se observa é uma espécie de sujeito que se encontra acoplado na unidade entre corpo e máquina e, portanto, torna-se anexo de uma coisa, numa direção sem escolha da capacidade reflexiva ao se tornar também uma coisa mecanicamente dependente do uso embrutecido dessas máquinas para a realização da mobilidade urbana, dentre outras tarefas no mundo em que as tecnologias tornam-se independentes enquanto realização humana e são concebidas como instrumentos de uso pautado numa pseudo- neutralidade.

A falta de inteligência no uso das tecnologias de mobilidade urbana, no caso específico dos automóveis, é imensamente incomensurável, uma vez que, em determinados horários do dia, torna-se completamente incoerente seu uso, pois se transformam em objetos de muros de lata que impedem por completo a passagem e transformam as vias públicas em um verdadeiro entupimento, o que resulta na impossibilidade da mobilidade urbana, mantendo os sujeitos presos. Esse emaranhado de latas, em que não se transita, torna as vias públicas becos que se representam a expressão arquitetônica de cidades projetadas no paradigma da Figura 1, no qual todos se esforçam para encontrar a saída.

Vamos tentar enfrentar o problema no sentido de justificar a necessidade de ruptura no campo da ciência disciplinar para se analisar o processo formativo do sujeito em crítica da crítica. Para tanto, apresento o conjunto de todas as imagens (Figura 2) e isso permite observar que temos paredes por todos os lados e que, no final do túnel, apresenta-se uma praia bela e exuberante, que possivelmente seria a expressão do livre-caminhar e a ampliação para olhar como as coisas são, de fato, no campo do real.

Fonte: Acervo do autor.

Figura 2 

As fotos, por si sós, permitem observar um lugar harmônico nas cores do dia ensolarado. A pergunta, no campo do conhecimento disciplinar, poderia ser apenas para analisar se o muro é consistente e se está alinhado. Seria essa a pergunta do pedreiro e até do engenheiro, respectivamente, ao primeiro, foi negado o acesso à cultura escolar e, ao segundo, apresenta uma teimosia em recusar o seu conhecimento no campo das ciências humanas.

Compreendemos, no campo das ciências exatas, que a função do muro é primordialmente física; como resultado do cálculo da estrutura, é uma barreira para impedir a passagem do estranho, ou a saída do igual de um lugar para outro. Entretanto, para uma reflexão no campo das ciências humanas, a função do muro não é tão simples, pois o que estaria em jogo seria manter o igual próximo para não escapar do controle, e aquele que não reconheço como igual (estranho) é aquele que deveria ser isolado para o outro lado, pois o que estaria em questão seria o medo do contato, e isso, em parte, justifica o fato de que as

pessoas trancam-se em casas que ninguém pode adentrar, somente nelas sentindo-se mais ou menos seguras. O medo do ladrão não se deve unicamente a seu propósito de roubar, mas é também um temor ante seu toque súbito, inesperado, saído da escuridão. A mão transformada em garra é o símbolo que sempre se emprega para representar esse medo. (CANETTI, 1995, p. 13).

Em contraposição ao medo do contato, a questão do muro para um arquiteto, no campo das ciências disciplinares, seria uma discussão da propriedade estética, que pode apenas garantir uma harmonia pautada pela proporção áurea para embelezar o feio de uma sociedade tem repulsa pelo outro e, principalmente, que o exclui de tantas coisas que não pertencem ao seu coletivo, que, no caso das produções arquitetônicas, corresponde aos pertencentes do seu condomínio. Assim, dentro do processo investigativo, o não se implicar com a dinâmica do real produz um conjunto de resultados, sem atingir perguntas que são fundamentais à crítica da ciência disciplinar. Contudo, não vamos avançar nos debates sobre o campo da interdisciplinaridade, para se compreender o processo formativo para além do comum pedagógico, se não compreendermos os determinantes que deformam o sujeito ao reduzir seu pensamento ao que se pode denominar como “burrice”, como expressão de um não saber que não se quer saber. Entretanto, o que seria esse fenômeno de inibição do pensamento no sentido filosófico?

Sobre isso, compreende-se que

A burrice é uma cicatriz. Ela pode se referir a um tipo de desempenho entre outros, ou a todos, a práticos e intelectuais. Toda burrice parcial de uma pessoa designa um lugar em que o jogo dos músculos foi, em vez de favorecido, inibido no momento do despertar. Com a inibição, teve início a inútil repetição de tentativas desorganizadas e desajeitadas. As perguntas sem fim da criança já são sinais de uma dor secreta, de uma primeira questão para qual não encontrou resposta e que não sabe formular corretamente (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.121).

A ruptura dessa barreira ou muro mental, para que se possa pensar o ponto cego, é algo que talvez permitia que nos movimentemos para a saída, para a luz do final no túnel no campo das ciências, mas que, principalmente, possa desconstruir, antes de qualquer coisa, as próprias paredes que constituiu, em nossa modernidade, o “beco sem saída”, na perda da capacidade reflexiva ante os problemas a serem enfrentados, mais propriamente, a interdisciplinaridade vista como crítica da crítica. Quem sabe, em um futuro breve, em questões relativas à cidade, seja possível realizar a verdadeira condição da cidadania, em que o uso da palavra seja novamente circular como expressão política dos sujeitos e compreender a mobilidade urbana com o uso de outras máquinas.

2 A educação entre muros e o paradoxo do processo formativo do sujeito não reflexivo no campo das ciências e da tecnologia: O que faz a gente feliz?

A proposição da construção da interdisciplinaridade (como sendo a crítica da crítica) possui uma condição da recusa de se fixar em determinados territórios do saber e, portanto, instaura-se o deslocamento no campo da ciência para outras fronteiras do conhecimento. Nesse processo de investigação, que rompe a zona de conforto, torna-se comum o sentimento de que ficamos girando no mesmo lugar, sem compreender o contexto mais amplo da situação que se mostra na Figura 1 – o túnel entre as casas.

Entretanto, para compreender a questão dessa produção bizarra dos muros, na forma de túnel, é preciso voltar no tempo e buscar outro olhar ou sentido que se produz na construção desse beco entre as casas.

Para tanto, trata-se de reconstruir a perda da capacidade de se indignar com as produções na modernidade que se fazem naquilo que podemos denominar como sendo um retrocesso no processo formativo e que rompe o tecido social ou, no campo das ciências o surgimento do paradoxo do sujeito não reflexivo.

Há muitos anos, na minha infância, no lugar da construção do beco (Figura 1), o que existia entre as casas era uma convivência harmônica num lugar sem muros. A passagem às casas ocorria pelo meio da cerca-viva, que era um conjunto de plantas de jardim alinhado, fazendo o contorno do terreno de cada moradia. Lembro que, na época, esses lugares de passagem entre as plantas da cerca-viva tornavam-se um lugar do lúdico e que era divertida essa transposição de um terreno para outro. Não seria, esse, o verdadeiro jogo no campo da interdisciplinaridade e não seria, isso, o paradigma conceitual à transmissão do saber?

Esse jogo de transposição de lugar estava também associado ao lúdico nas brincadeiras de esconde-esconde, pois, à noite, quando pouco se podia enxergar, todo o lugar se transformava numa unidade em que prevalecia um completo desconhecimento do território a ser explorado.

Podemos compreender essa proposição lúdica – brincar de esconde- esconde – como uma metáfora da tarefa que se apresenta na constituição do pressuposto metodológico no campo da interdisciplinaridade, uma vez que, sem lugar e na busca de algo perdido, pode-se constituir, na tarefa empreendedora, a construção de outras formas de conhecimento como as coisas são nos determinantes do real.

A infância pautada pela experiência do lúdico passou e, no lugar da passagem entre as casas, o que se instaurou foi a experiência da interdição com a construção do muro que ninguém ultrapassa e que representa o projeto de sociedade da exclusão e da segmentação, em que evitamos a proximidade com o estranho, mais propriamente, com o outro, desconhecido – a educação entre muros.

Com o passar dos anos, as coisas mudaram e surgiu a noção de falsa segurança na construção do muro como solução para esse tipo de problema, que hoje resulta nessa coisa bizarra que se apresenta na Figura 1. Podemos dizer que a noção de propriedade privada já está colocada em questão desde sempre e, inclusive, no campo das ciências disciplinares, que conta com doutores que se intitulam “mestres explicadores” (RANCIÈRE, 2002) e profetas da verdade que ditam o tamanho que deve ter o muro àqueles que querem a verdade no caminho estreito da ciência.

A remanência das lembranças do passado ainda nos permite pensar na existência de algo tênue que possa permitir a convivência com a diferença, e que a cerca-viva permitia, ao deixar passar, na transposição e na permeabilidade das passagens, os sujeitos de um território para outro. Infelizmente, as possibilidades de reverter essa estranha construção de muros são bem poucas e, por isso, me vinculo ao processo investigativo na impertinência de fazer perguntas: Como compreender por qual motivo o muro é construído, no sentido de inserir a crítica da crítica para se pensar, principalmente, o mundo de modo diferente e criar desconforto para todos aqueles que ainda acham que a Disneylândia é o paradigma do mundo encantado e lugar de ser gente feliz.

Para tanto, outro olhar sobre o problema do processo formativo é necessário e, portanto, podemos explorar as diversas propagandas de mercado como algo que faz apelo ao sentimento de gente feliz como um modo de vida, mais propriamente, como modo de consumo. Agora, talvez, possa instaurar-se no metodológico-científico interdisciplinar como o exercício de resistência em pensar em outros modelos de produção e consumo no campo do processo formativo, na educação, e que também não deixa de afetar a condição do trabalho e a saúde do sujeito.

A pergunta: O que faz a gente feliz? é algo que compreendo como um modo apelativo para um encontro narcisista em que a felicidade seria algo individual e próprio de si como elemento de escolha de atitude no modo de ser. Essa escolha individual para o sentido da felicidade lota as estantes de livros de autoajuda, que vendem milhares de exemplares àqueles que desejam, intensamente, a receita da felicidade, e isso se configura como um alinhamento da “competência técnica” (CHAUÍ, 2016) do sujeito em ser feliz.

As propagandas televisivas fazem esse apelo à felicidade do sujeito como se fosse possível um encontro com essa condição como elemento de pertencimento e, portanto, a possibilidade de haver uma técnica de ser feliz. O não encontro da felicidade supõe que isso seja em decorrência da falta de atitude. Essa condição de atitude possui uma mensagem sublimada que pode, talvez, ser encontrada no lugar do consumo para todos aqueles que respondem à pergunta “O que faz a gente feliz”. Portanto, a felicidade, na perspectiva do mercado, seria a capacidade própria de ser feliz no consumo, e o seu inverso, a infelicidade, seria uma incapacidade de adequação ao social, ou não saber-fazer uso de si para essa finalidade satisfatória de sua existência numa sociedade do consumo.

Desse modo, interpretamos que enfrentar a resposta a essa pergunta, no campo do individualismo, permite constituir uma chave para abrir outros acessos para se compreender os processos formativos e, portanto, as nossas produções e nosso consumo como uma modalidade de ordenamento no campo da satisfação não mediada pela crítica do pensamento. Nesse aspecto, o apelo sentimental constitui-se também em elemento-chave para se compreender, em parte, o grande movimento do consumo, desarticulado completamente do pensamento, e que se constitui em um modo de estruturar o todo social como resultado que não permite planejamento no campo da produção e consumo naquilo que se denomina como aspectos de sustentabilidade.

Nesse contexto, a análise dos processos formativos, nas relações entre educação, trabalho e saúde, poderia constituir-se em novos contornos ao enfrentamento desse questionamento sobre o que faz a gente feliz, como tentativa de outros direcionamentos para essa resposta e para além da mentalidade do individualismo instaurado pela lógica do mercado. Avalio que seja isso que se espera de um processo investigativo pautado pela crítica da crítica, mais propriamente, a apropriação dos conceitos a serem reinterpretados em outra lógica que rompesse com o paradigma do sujeito no campo do individualismo, e que a felicidade resultasse numa construção coletiva da sociedade para além do controle disciplinar, instaurado em nossa modernidade pelo paradigma do panóptico – a visão de tudo e de todos. (FOUCAULT, 1991).

3 Elementos que podem permitir pensar nos processos formativos para além da neutralidade da ciência e da tecnologia e nas rupturas com o paradigma do muro no campo das ciências

Partimos da suposição de que a produção do conhecimento interdisciplinar, em interface com processos formativos, encontra-se no modo como questionamos ou destituímos a ciência disciplinar no exercício da crítica da crítica. Nesse caso, deveríamos recusar o falso distanciamento da ciência disciplinar e operar no sentido contrário, que seria ter, como ponto inicial do processo investigativo, conhecimento referente aos fundamentos epistemológicos da ciência e reconstruí-la em outra concepção de mundo. Em termos práticos, seria o reconhecimento de que, na história da ciência, em algum momento, no percurso da civilização, perdemos o sentido de compreender a totalidade em conjunção com os determinantes do real numa unidade entre natureza e cultura.

Ao nos remetermos à epistemologia da ciência, estamos nos referindo diretamente à concepção de mundo que encontra raiz no conceito de dualidade, e isso pode nos permitir a reconstituição de outro olhar para o muro como obra arquitetônica, que deixa transparecer todo o impedimento da transposição conceitual para outros contornos teóricos, numa sociedade da interdição do pensamento crítico, uma vez que a condição de síntese encontra-se anulada pela perda da compreensão de totalidade. Sobre a formação desses guetos, é muito pertinente, como forma de exemplo, a análise de Pierre Bourdieu (1990), ao afirmar que, em relação à dificuldade em se constituir a sociologia do esporte,

de um lado existem pessoas que conhecem muito bem esporte na forma prática, mas que não sabem falar dele, e, de outro, pessoas que conhecem muito mal o esporte na prática e que poderiam falar dele, mas não se dignam a fazê-lo, ou o fazem a torto e a direito. (BOURDIEU, 1990, p. 207).

Avaliamos que essa condição do especialista – que segmenta a área do conhecimento e se recusa a investigar outros territórios do saber – já se apresenta como recusa à compreensão da totalidade, pois o todo pode colocar em questão a parte e a compromete em seus resultados. Essa recusa pode também caracterizar-se no processo de alienação que se evidencia em momentos cruciais de perda de consciência crítica em que a ciência e a tecnologia encontram-se enraizadas como modelo de sociedade não democrática, como é o caso do Estado nazista alemão, em que especialistas da engenharia pautados pela competência técnica, o que menos desejam pensar é no outro, pois

quem projeta um sistema ferroviário para conduzir as vítimas a Auschwitz com maior rapidez e fluências, a esquecer o que acontece com estas vítimas em Auschwitz. No caso do tipo com tendências à fetichização da técnica, trata-se simplesmente de pessoas incapazes de amar. (ADORNO, 1995, p. 133).

Analisamos que a produção do conhecimento interdisciplinar, em interface com o campo educacional, pode representar-se na constituição de outros interesses em jogo no campo da política, em que o sujeito esteja, de fato, implicado com os resultados e que possa promover princípios da modernidade: de igualdade, de fraternidade e de liberdade em outros contornos da totalidade.

4 Conclusão: Os processos formativos e o ensino interdisciplinar na formação crítica da crítica do sujeito do conhecimento

Estaria, seguramente, a ciência no campo disciplinar num “beco sem saída?” Seria a falta de soluções sustentáveis, de fato, um problema à sociedade e ao Planeta? Esses dois questionamentos podem ser refutados como falsas questões, uma vez que a produtividade que se busca em ciência seria justamente um maior aprofundamento de seus aspectos disciplinares, e os resultados dessa produção não implicam, de maneira nenhuma, problemas à sociedade e ao Planeta, uma vez que, em grande parte, o critério de julgamento é o mercado.

Desse modo, o problema relativo à produção da ciência deveria ser colocado em outra circunstância; assim, se poderia referir que a produção do conhecimento e sua transmissão reduzem, em parte, as soluções à constituição harmônica da vida no planeta Terra, uma vez que

o paradigma disciplinar, de produção do conhecimento particionado, não é suficiente para responder aos problemas complexos e ressurge na ciência a necessidade de outras formas de abordagens que deem conta da realidade multidimensional. (PHILIPPI JÚNIOR, 2011, p. XVIII).

No sentido de se alcançar a crítica da crítica na busca da luz no final do túnel, propomos relacionar o problema do conhecimento científico no campo da filosofia em que se coloca como questão principal a nossa impossibilidade em lidar com o problema da produção do conhecimento ao processo formativo do sujeito. O nosso problema atual, no campo do conhecimento científico é que, na modernidade, desconhecemos ou não queremos saber sobre o beco que constitui as nossas cavernas. E, quando pensamos que saímos desse beco em direção à luz no fim do túnel, encontramos uma solução invertida, pois, na verdade, lançamo-nos novamente para o mesmo “beco sem saída”, uma vez que não se encontra a resposta crucial para o problema em questão: Como harmonizar a vida num planeta que se encontra pautado pelo processo de exclusão do outro, seja pelo viés econômico, seja pelo político? Podemos dizer que, por não encontrarmos uma resposta, caminhamos em direção a aspectos da verdadeira burrice como uma cicatriz ou marca (ADORNO; HORKHEIMER, 1985) da humanidade, que não consegue avançar para além do constituído como ciência moderna.

No caso deste ensaio, a nossa proposição é que a saída do beco e o encontro com a praia e sua luz não condizem como resposta satisfatória, pois outros problemas constituem-se e, inclusive, são esses que produzem a necessidade da construção do próprio beco entre muros, mais propriamente, a educação entre muros e a transmissão do saber interdisciplinar, do qual, talvez, tanto desejamos sair. Nesse caso, a proposição de resposta é uma falsa solução, pois ainda não compreendemos nada sobre as coisas e ficamos presos à imagem das sombras da caverna de Platão (1996), sem romper com a crença de que existe algo além da suposta beleza natural da praia no final do túnel.

A crítica da crítica do sujeito do conhecimento inicia no momento em que se compreende que a própria imagem produzida na fotografia (Figuras 1 e 2) está instaurada no campo da ciência disciplinar, que já estabelece o recorte do real como o lugar da perda da experiência humana. Portanto, torna-se importante compreender que esses recortes fazem do real outra experiência de compreensão, uma vez que

conhecemos em bruto o gesto que fazemos para apanhar um fuzil ou uma colher, mas ignoramos quase todo o jogo que se desenrola realmente entre a mão e o metal, e com mais forte razão ainda devido às alterações introduzidas nesses gestos pelas flutuações de nossos diversos estados de espírito. É nesse terreno que penetra a câmera, com todos os seus recursos auxiliares de imergir e de emergir, seus cortes e seus isolamentos, suas extensões do campo e suas acelerações, seus engrandecimentos e suas reduções. Ela nos abre, pela primeira vez, a experiência do inconsciente visual, assim como a psicanálise nos abre a experiência do inconsciente instintivo. (BENJAMIN, 1975, p. 29).

Assim, deveríamos reconhecer que temos toda uma semiótica que nos conduz ao pensamento e, principalmente, à interpretação do real para determinada concepção de mundo. Somos educados no modo de fazer no campo dos processos formativos para além de qualquer explicação pedagógica como expressão da ciência disciplinar e, portanto, quando nos remetemos aos aspectos formativos do sujeito, optamos por dizer “pedagogia profana” (LARROSA, 2004), em que fica anunciado outro posicionamento sobre esse assunto, pois

O sujeito da apropriação é aquele que devora tudo que encontra, convertendo-o em algo à sua medida. Mas o sujeito da experiência é aquele que sabe enfrentar o outro e está disposto a perder o pé e a se deixar tombar e arrastar por aquele que lhe vai ao encontro: o sujeito da experiência está disposto a se transformar numa direção desconhecida. (LARROSA, 2004, p. 197).

Nessa experiência do conhecimento, o campo da interdisciplinaridade pode se apresentar como uma retomada radical do método cartesiano,ao colocar tudo em dúvida e se constituir numa forma de ruptura e porta de entrada para outras formas de conhecimento, estando a ciência disciplinar fora da possibilidade de ser a resposta ao questionamento. Temos, assim, a retomada da máxima cartesiana: “Eu penso, logo existo” (DESCARTES, 1987, p. 46) para a inversão de “Eu existo onde eu não penso” como condição de enfrentamento, no campo dos processos investigativos, da formação do sujeito ao alcance do denominado ponto cego, ou naquilo que Freud (1970) denomina de “formações do inconsciente”. Portanto, sobre a recusa de querer saber sobre isso, não podemos esquecer, a partir de Freud (1970),

que o sintoma é o retorno do elemento recalcado, pois “não se percebe como, partindo da repressão, pode-se chegar à formação dos sintomas”. (FREUD, 1970, p. 27).

A partir dessas considerações, podemos retornar à Figura 1 e colocar como ponto de discussão que a ruptura e a saída do beco em direção à luz no fim do túnel podem constituir-se numa falsa solução. Em nossa compreensão, a proposição de ruptura radical seria questionar a própria construção de muros que instauram o beco sem saída como lugar que prende o sujeito no campo da realização da liberdade e o mantém no paradoxo do excesso em diversas respostas competentes de manter a gente feliz.

Temos a esperança de que a impertinência da crítica da crítica, no campo da interdisciplinaridade, torne possível a heurística do processo formativo para a consolidação de projeto de sociedade da educação sem muros na transmissão do conhecimento. Contudo, como analisamos, isso (os muros) se constitui na repetição da sociedade com os mesmos contornos da falta no excesso, uma vez que, não lidando com a problemática, ficamos sempre no mesmo lugar (cicatrizes), e, cada vez mais, se afunilam em diversas outras produções bizarras, o que me faz recordar a frase preferida de Karl Marx: “Nada do que é humano me é estranho”. (FEDOSSEIEV, 1983, p. 498).

* Agradecimento à Universidade Federal de Itajubá (Unifei) e aos colegas de infância que fizeram da praia do Perequê (Guarujá), um lugar de agradável convivência e experiência de vida.

Referências

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: J. Zahar. 1985. [ Links ]

ADORNO, Theodor Wiesengrud. Educação e Emancipação. Trad. de Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. [ Links ]

ALVARENGA, Augusta Thereza de. et al. Histórico, fundamentos filosóficos e teórico-metodológicos da interdisciplinaridade. In: PHILIPI JÚNIOR, Arlindo; SILVA NETO, Antonio J. Interdisciplinaridade em ciência, tecnologia & inovação. Barueri: Manole, 2011. [ Links ]

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Trad. DE José Lino Grünnewald. São Paulo: Nova Cultura, 1975. (Coleção Os Pensadores). [ Links ]

BOURDIEU, Pierre. Programa para uma sociologia do esporte. In:_______. Coisas ditas. Trad. de Cássia R. da Silveira e Denise Moreno Pegorim. São Paulo: Brasiliense, 1990. [ Links ]

CANETTI, Elias. Massa e poder. Trad. de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. [ Links ]

CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. Trad. de Newton Roberto Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 1993. [ Links ]

CHAUÍ, Marilena. A ideologia da competência. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. [ Links ]

COUTO, Mia. Murar o medo. Texto apresentado na Conferência de Estoril, da Fundação Cascais – Portugal. 2011. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=qlC2zc-5usI>. Acesso em: 18 ago. 2017. [ Links ]

DELEUZE, G. ;GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. de Ana Lúcia de Oliveira. Rio de Janeiro: Editora 34, 2014. [ Links ]

DESCARTES, René. Discurso do método. Trad. de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 4. ed. São Paulo: Nova Cultura, 1987. (Coleção Os Pensadores). [ Links ]

FAVA, Fernanda. De quantos planetas você precisa? Especial para o Estado de S. Paulo, 2001. Disponível em: <http://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,de-quantos-planetas-voce-precisa,480057>. Acesso em: 24 ago. 2017. [ Links ]

FREUD, Sigmund. Cinco lições de psicanálise (1910 [1909]). In:_______. Obras completas. v. XI. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1970. [ Links ]

FEDOSSEIEV, Pedro et al. Karl Marx: biografia. Lisboa: Avante, 1983. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Trad. de Ligia M. Ponde Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1991. [ Links ]

GUATTARI, Félix. As três ecologias. Trad. de Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 1990. [ Links ]

LARROSA, Jorge. Sobre a lição. In:_______. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Trad. de Alfredo Veiga-Neto. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. p.139-146. [ Links ]

PHILIPPI JÚNIOR, Arlindo. Apresentação. In: PHILIPI JÚNIOR, Arlindo; SILVA NETO, Antonio J. Interdisciplinaridade em ciência, tecnologia & inovação. Barueri, SP: Manole, 2011. [ Links ]

PLATÃO. A República. Trad. de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. [ Links ]

RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. de Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. [ Links ]

RAYNAUT, Claude. Interdisciplinaridade: mundo contemporâneo, complexidade e desafios à produção e à aplicação de conhecimento. In: PHILIPPI JÚNIOR, Arlindo; SILVA NETO, Antônio J. Interdisciplinaridade em ciência, tecnologia & inovação. Barueri: Manole, 2011. [ Links ]

Recebido: 13 de Abril de 2018; Aceito: 09 de Setembro de 2018

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution Non-Commercial, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que sem fins comerciais e que o trabalho original seja corretamente citado.