Poucos tópicos de reflexão são tão polarizadores quanto a questão das relações éticas estabelecidas entre humanos e membros de outras espécies. Não é de se surpreender, portanto, que essa temática venha ganhando, cada vez mais, espaço nos programas de estudos e adentrando as salas de aula de instituições acadêmicas brasileiras. Em anos recentes, diversas obras têm sido lançadas precisamente com a finalidade de promover e estimular a investigação e o ensino de tais assuntos em território nacional. Dentre as últimas publicações dessa série, se encontra a coletânea Educação Vegana: perspectivas no ensino de direitos animais, organizada pelo educador e pesquisador paulistano Leon Denis.1
O livro é composto de quatro ensaios escritos por pesquisadores de variadas searas do saber, os quais almejam problematizar a chamada “Educação Vegana” interdisciplinarmente. Por “Educação Vegana”, o organizador da coletânea entende “uma ação direta pedagógica, cujo objetivo é levar a teoria dos direitos animais, sua prática e o modo de vida vegano ao conhecimento do maior número de pessoas”. (LEON, 2017, p. 13). Para fazê-lo, explica Denis, o educador vegano “insere no currículo escolar de sua disciplina todas as problemáticas inerentes ao debate suscitado pelo recorte biótico chamado Ética Animal”. (2017, p. 3).
Dado que a construção de um debate suficientemente aprofundado, acerca do modo como deveríamos agir para com os animais não humanos, depende de uma análise adequada de diferentes tópicos correlacionados, educadores veganos bebem de múltiplos campos do conhecimento, tais como: filosofia, biologia, psicologia, ciência política, nutrição, entre outros. Denis, todavia, faz questão de ressaltar que, longe de se mostrar como uma ruptura antagônica do currículo adotado em instituições de ensino, a educação vegana surge, em realidade, para complementar a base comum dos manuais de educação desenvolvidos nos últimos anos, a qual atenta para a seriedade do combate ao sexismo, racismo e elitismo. (2017, p. 14). Nesse sentido, educadores veganos partem dos costumes e sistemas curriculares preestabelecidos e, simplesmente, adicionam o especismo – i.e., a discriminação arbitrária de membros de outras espécies – à lista de preconceitos a ser urgentemente desmantelada.
O primeiro capítulo da obra, elaborado pelo próprio organizador do volume, intenta justamente expandir a discussão acerca desse tema. Mais precisamente, em seu ensaio, Leon Denis reflete sobre a possibilidade de fundamentar a Educação Vegana no cenário brasileiro por meio de propostas ético-filosóficas de cunho neoaristotélico. É observado que essa educação, quando tratada de maneira apropriada, é capaz de avançar um aspecto essencial da evolução educativa e do aprendizado que tem sido, há muito, deixado de lado, qual seja, a busca pela excelência no viver. No que tange ao âmbito nacional, até mesmo educadores veganos vêm negligenciando continuamente esse elemento pedagógico de crescimento ético-pessoal em seus seminários. Uma das principais razões para essa aparente falha educativa seria a ênfase exagerada dada à discussão de duas correntes de pensamento da ética voltada aos animais não humanos. Por anos, pesquisadores brasileiros da área têm centralizado suas investigações, quase exclusivamente, em apreciações consequencialistas, cujo principal defensor é o filósofo australiano Peter Singer, e/ou teorias baseadas em direitos, como as desenvolvidas por Tom Regan e Gary L. Francione. Embora as contribuições desses três autores para o campo em pauta sejam indiscutíveis, o contínuo foco na literatura por eles produzida tem, por sua vez, vendado muitos investigadores para a riqueza de posições concorrentes, tais como as neoaristotélicas.
Após feitas essas constatações, Leon Denis imediatamente lança-se em uma exposição pontual dos distintos posicionamentos pautados por virtudes de Stephen R. L. Clark, Rosalind Hursthouse, Bernard E. Rollin e Martha Nussbaum. Conceitos-chave dos posicionamentos – e.g., eudaimonia e telos – são, cuidadosamente, examinados em relação à Educação Vegana, bem como suas possíveis implicações pedagógicas. Ausentes dos comentários feitos por Leon Denis estão, no entanto, as costumeiras objeções filosóficas esboçadas contra a ética das virtudes e suas respectivas vertentes. Por exemplo, a crítica de que as virtudes não seriam capazes de fundamentar um código normativo propriamente dito. Tais objeções seriam particularmente significativas, sobretudo de um ponto de vista didático, em uma comparação entre as vantagens e desvantagens das propostas neoaristotélicas apresentadas ante os frameworks consequencialistas ou aqueles baseados em direitos. Não obstante esse pequeno detalhe, o capítulo elaborado por Leon Denis constitui uma importante e aguardada contribuição aos estudos brasileiros sobre a consideração moral de não humanos e à Educação Vegana como um todo.
O segundo capítulo é assinado pela educadora social Priscila Tessuto. Em seu texto, Tessuto examina a condição dos membros de outras espécies como propriedade por intermédio da teoria sociológica durkheimiana. Como relatado em múltiplas publicações pelo jurista norte-americano Gary L. Francione, o status dos animais não humanos como propriedade é uma instituição inerentemente problemática. Uma vez que não humanos são tidos como coisas/mercadorias, quer de um ponto de vista econômico quer cultural e/ou político-filosófico, eles acabam sendo classificados em diferentes categorias com base em seus usos – e.g., não humanos para consumo, não humanos para entretenimento, experimentação, companhia, etc. – facilitando, assim, sua exploração sistemática. Tal exploração é, por seu turno, conservada e fomentada através de inúmeras práticas e tradições adotadas pela sociedade humana.
À vista disso, Tessuto utiliza, então, a noção durkheimiana de “solidariedade mecânica” para explicar os dispositivos sociais facilitadores da perpetuação da exploração não humana. Mais especificamente, é argumentado que a personalidade dos indivíduos estaria absorvida de tal maneira pela personalidade coletiva que o uso e o consumo de membros de outras espécies passaria a ser tomado como uma faceta completamente natural da sociedade humana; de modo que o repúdio ao exercício desses costumes ou atividades seria, por sua vez, imediatamente chacoteado pela grande maioria. A partir disso, Tessuto faz uma breve, porém acurada comparação histórico-social entre o tratamento depreciativo dispensado àqueles que se opunham à escravidão humana e os que hoje contestam o status dos outros animais como propriedade. Tessuto conclui sua análise defendendo a necessidade de uma mudança de paradigma concernente à condição de humanos e não humanos, a qual poderá, enfim, levar ao cerne da questão social como atualmente é compreendida. Se bem-explorada em sala de aula, a conexão entre os escritos de Durkheim e a proposta de Francione se verá que tem todos os ingredientes para gerar vários debates envolventes, sobretudo no campo das ciências sociais aplicadas.
O terceiro capítulo é, sem sombra de dúvida, o mais ambicioso da obra. Nesse, a Professora Sarah Rodrigues analisa a possibilidade da inclusão de tópicos referentes aos direitos não humanos em aulas de matemática. Tomando como ponto de partida as ideias do educador matemático dinamarquês Ole Skovsmose, que articula uma abordagem pedagógica voltada à educação matemática crítica, Rodrigues propõe que o papel do docente da área sob escrutínio seja reconsiderado. Ao invés de estar limitado à mera função de propositor de “exercícios de fixação”, o professor de matemática deveria ser incumbido da responsabilidade de estimular a criticidade de seus estudantes. Tal responsabilidade abarcaria, entre outras coisas, a contemplação de questionamentos éticos, os quais estariam em linha com a realidade e vivência dos discentes.
Entre os assuntos a serem ponderados de forma crítica, encontra-se a polêmica atinente ao tratamento moral concedido aos integrantes de outras espécies. Para justificar a inserção dessa temática no leque de conteúdos apreciados pelo professor de matemática, Rodrigues constrói, então, um diálogo pormenorizado com a perspectiva educacional de Skovsmose e salienta a urgência e atualidade da questão não humana.
Em um segundo momento de seu texto, Rodrigues elenca sugestões específicas de como trabalhar a Educação Vegana matematicamente. O fato é que alguns manuais didáticos já apresentam exercícios matemáticos nos quais animais não humanos figuram – porém, somente de forma periférica e sob o completo prisma de uma consciência especista e antropocêntrica. Por exemplo, há livros que solicitam aos alunos que calculem, com base em determinadas informações, o valor da arroba de boi gordo ou a região em que um cão de guarda acorrentado poderia circular livremente. Uma vez que ainda não existem compêndios da matemática que retratem os não humanos de modo alternativo, Rodrigues recomenda que o formador interessado em explorar a dinâmica das relações interespécies faça proveito de materiais complementares que possam contextualizar tais assuntos sob uma outra ótica.
Para citar um exemplo, dados sobre o desperdício de água na indústria do leite poderiam ser utilizados em aulas de estatística no Ensino Médio. Isso talvez possa levar à revitalização da matemática escolar, a qual é comumente estereotipada como inaplicável e estranha ao dia a dia dos estudantes. Há muito o que se considerar aqui. Se as reflexões levantadas por Rodrigues realmente atrairão docentes do campo da matemática para a problematização da Educação Vegana é uma pergunta em aberto. Dito isso, a proposta do capítulo em voga certamente será vista por muitos como sendo, no mínimo, intrigante.
O quarto e último capítulo de Educação Vegana versa sobre o ensino de Literatura e a ética nas relações interespécies. Mais especificamente, os pesquisadores Evely Libanori e Diego Fascina explicitam como as obras da aclamada escritora Clarice Lispector podem ser empregadas para despertar a preocupação moral dos alunos para com os membros das outras espécies. É do conhecimento comum que muitas das publicações de Lispector trazem personagens que exibem uma inquietação bastante forte acerca do tratamento outorgado aos não humanos. Libanori e Fascina, todavia, vão além do que é geralmente conhecido acerca desse tema e estruturam uma apreciação escrupulosa do lugar do animal não humano na bibliografia lispectoriana. Cerca de dez textos – entre romances, contos e crônicas – são examinados, constituindo uma avaliação que percorre desde o primeiro livro de Lispector, Perto do coração selvagem (1943), até o último: Um sopro de vida (1978). As atitudes das personagens diante dos não humanos são diligentemente averiguadas à luz dos posicionamentos de algumas das maiores referências da “Ética Animal”, tais como Singer e Francione. Tudo isso é feito tendo em mente o que poderá ser requisitado dos estudantes em sala de aula.
No tocante a este capítulo final, pode-se afirmar, com segurança, que as obras de Lispector aparentam ser uma boa porta de entrada para discussões que relacionem clássicos da literatura brasileira e o pensamento ético contemporâneo direcionado aos outros animais. Entretanto, talvez valha a pena mencionar a necessidade de evitar extrapolações e exageros interpretativos ao realizar essas conexões. Pois, como Libanori e Fascina fazem questão de relatar, a despeito das especulações morais levantadas em seus escritos acerca dos integrantes de outras espécies, Lispector não era vegana ou vegetariana – o que revelaria os limites de tais comparações.
Em conclusão, Educação Vegana é um livro curto, porém significativo. Os contribuintes desse volume trazem à tona uma gama de tópicos rotineiramente negligenciados por educadores veganos e/ou pesquisadores brasileiros da “Ética Animal”. Tópicos os quais são passíveis de ser incorporados a seminários de diversas áreas em distintos níveis educacionais. Tendo pontuado isso, ocasionais leitores da coletânea em pauta talvez possam ter a sensação de que muito mais poderia ser dito, no decorrer dos quatro capítulos, acerca das notórias dificuldades no processo de implementação de disciplinas voltadas à Educação Vegana. Afinal de contas, apesar da consideração de animais não humanos atrair, cada vez mais, a atenção de acadêmicos e docentes de numerosos campos do saber, a inclusão de cadeiras que abordem essa temática – especialmente em instituições com currículos já consolidados – continua sendo uma tarefa bastante árdua. É por isso que talvez seja importante realizar a leitura de Educação Vegana em conjunto com outras publicações organizadas pelo próprio Leon Denis, como, por exemplo, sua obra Educação Vegana: tópicos de Direitos Animais no Ensino Médio, a qual detalha, entre outras coisas, as possíveis maneiras de sobrepujar os obstáculos comuns ao desenvolvimento e à execução de aulas que lidem com Educação Vegana. Se assim for feito, essa nova antologia pode muito bem se tornar o alicerce intelectual de incontáveis colaborações interdisciplinares futuras sobre as relações mantidas entre humanos e não humanos.