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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.spe3 Caxias do Sul  2018  Epub 02-Set-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.dossie.2 

Artigos

Os críticos e sua democracia: o significado do naturalismo político de Aristóteles

Critics and their democracy: the meaning of naturalism politician of Aristotle

Patricio Tierno* 

*Professor de Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (DCP/USP).


Resumo

Este artigo procura oferecer uma reinterpretação do naturalismo político de Aristóteles à luz das críticas antigas ao regime democrático de Atenas e da orientação oligárquica da história intelectual e filosófica contemporânea. Para tanto, são apresentadas as teses elaboradas pelo autor no segundo capítulo do Livro I da Política. Nesse contexto reconstrutivo, sustenta-se que uma apreensão estrutural tanto dos argumentos como da realidade histórica representada pela pólis faz possível elucidar a concepção sistêmico-funcional que subjaz à proposição segundo a qual a cidade é naturalmente primeira com respeito às comunidades menores e aos elementos constitutivos dos quais se origina. Dessa maneira, ao longo de uma reconstrução que vincula diversas referências textuais e se concentra no caráter natural, substancial e desenvolvido da pólis grega, irão se revelando os traços igualitários e democráticos da cidadania que estão na base da ordenação plural da comunidade política por sua semelhança com a constituição de um todo orgânico e suas partes interconectadas.

Palavras-chave: Democracia ateniense; Aristóteles; Naturalismo político

Abstract

This article seeks to provide a reinterpretation of Aristotle’s political naturalism from the initial point of view of the ancient critics of Athenian democratic regime and the oligarchic bias of contemporary intellectual and philosophical history. For that purpose, it advances the naturalist theses formulated in the second chapter of the First Book of the Politics. In that reconstructive context, it will be maintained that a structural grasp of these arguments as well as of the historical reality represented by the polis makes possible to elucidate the sistemic and functional conception that is entailed in the proposition which affirms the priority of the city in relation to its original minor communities and constitutive elements. In this manner, in a process of argumentative reconstruction that links various textual references and stresses the natural, developmental and substantial character of Greek polis, it will be consistently revealed the egalitarian and democratic traits of Aristotelian citizenship that lay at the base of the plural organization of political community considering its resemblance to the constitution of an organic whole and its inter-connected parts.

Keywords: Athenian democracy; Aristotle; Political naturalism

Na vida que separa duas guerras, em 1917 e 1946, Ernest Baker compôs e editou duas versões de seu livro seminal, Teoria política grega, escrito com sobriedade e vigor. O segundo volume dessa obra, que estaria dedicado à teoria política de Aristóteles, jamais foi escrito e, de fato, o autor deveu contentar-se com a publicação posterior de uma não menos célebre tradução da Política, introduzida, comentada e com textos anexos, que seria apresentada aos leitores como substituto exemplar daquele volume ausente. Na segunda edição de 1946, reitera um ditame comum: a teoria política da Grécia, anterior aos sofistas e a que lhe seguiu figura atrelada à análise em chave anacrônica das condições do Estado grego. Desse modo, teriam sido as características da pólis as que condicionaram historicamente os diversos tipos de reflexão, fazendo dessa forma estatal uma associação política distintiva com uma finalidade moral, em cujo marco teriam sido moldadas as relações entre o Estado e o indivíduo. (BAKER, 1978, Caps. I e II).

Uma tendência de estilização anacrônica persiste 60 anos depois, no compreensivo trabalho que David Held (2008) ofereceu no âmbito da ciência política, Modelos de democracia, ao tratar do que ele chamou de “modelo da democracia clássica”, isto é, da representação proposicional e generalizada da forma democrática de Atenas. Com relação a esse modelo, Held destaca seu caráter exclusivo e excludente e, apesar de reconhecer sua influência patente nas variantes democrático-modernas (deliberativas e participativas), não deixa de aludir, insistentemente, ao talante negativo da reflexão político-grega, melhor encarnado por Platão e exemplificado com o relato de Xenofonte sobre a decisão sumária da assembleia após a vitória naval da Arginusas (Helênicas, I, 7). Já Aristóteles, dessa vez, aparece em primeiro plano em razão de sua contribuição teórica e sua descrição essencial do funcionamento da democracia, tanto na Política quanto na Constituição dos atenienses, sem se furtar a expressar um sentimento adverso por essas mesmas instituições (HELD, 2008, p. 49-56).

Não de outro modo poderia ter cobrado sentido um sensus communis interpretativo recorrente. Os nomes abundam e parece oportuno mencionar alguns deles, escolhidos ao acaso. As palavras de Arlene Saxonhouse ecoam, entre as opiniões especializadas, duplamente: a preocupação com a diversidade, mesmo no contexto de uma democracia que possibilitava manifestações de crítica, não gestou “nenhum escrito de qualquer autor que possa seriamente ser chamado democrático. Algumas passagens ocasionais nos dramas celebram a democracia, mas não há argumentos desenvolvidos ou justificações da mesma”. (SAXONHOUSE, 1993; 1995).1

As reconstruções mais precisas dessa orientação negativa coincidem na presença, no tardio século V e no século IV a. C. em Atenas, de condições propícias para a aparição de grupos de intelectuais críticos do governo popular, o que, por sua vez, admite duas teses coadjuvantes, a saber: a da comunidade de críticos e a dos gêneros literários. A primeira ilustra-se com a excelente hipótese de Josiah Ober, para quem é possível identificar uma critical community formada por escritores de diversa classe - dramaturgos, filósofos, historiadores e oradores - comprometidos com um discurso convergente (a collaborative project) de dissenso com o qual acometeram a tarefa de evidenciar as contradições do regime democrático em questão. Inclusive Ober, em sintonia com o que vem sendo observado, atribuiu com coerência a Aristóteles o sabor aristocrático derivado da obra crítica de seu mestre Platão; ao mesmo tempo, a resolução arbitrada e, de alguma maneira, a reconciliação com a democracia ateniense teria sido forjada pelo autor desconhecido e pseudoaristotélico da Constituição dos atenienses, obra lançada à palestra diante de uma democracia extremada (final democracy) que havia sido anteriormente moderada pela teoria política de Aristóteles e que enfrentava, na fase inaugurada em 322 a. C., sua substituição por uma oligarquia também moderada, mas agora sob a égide da Macedônia. (OBER, 1998).2

A réplica à negação da existência de uma teoria democrático-ateniense e grega na época clássica recebeu de Cynthia Farrar um forte impulso, pois seu estúdio foi capaz de encontrar uma família de formulações positiva das idéias democráticas que, perpassando o século V, pode ser adjudicada a Protágoras, Tucídides e Demócrito, em detrimento do esforço de Platão e Aristóteles por produzir uma resposta consciente à democracia solapando seus predecessores. Segundo ela, a fixação histórica dos limites da pólis levou à criação de um espaço comunitário onde o homem democrático, criticado e explicado em sua relação com a sua natureza e o cosmos, foi conceituado entre os extremos da ordem e a liberdade. (FARRAR, 1998; 2008). Em conexão com a tese dos críticos e a parcial refutação de Farrar, a segunda tese pode ser associada ao incansável labor do espanhol Francisco Rodríguez Adrados, que outorgou uma ampla abrangência aos gêneros literários, identificando, na Atenas dos séculos mencionados, toda uma literatura política composta pelos gêneros da tragédia e a comédia, as adaptações dos mitos e a prosa dos diálogos, dos discursos, da história e dos tratados. Essas formas e conteúdos democráticos (ou não democráticos) nem sempre exibem, na visão deste intérprete, diferenças palpáveis, e foram surgindo em correlação direta com a evolução do regime ateniense. Em rigor, escreve dilatando o argumento, e a teoria política careceu, definitivamente, de um gênero próprio e se expressou, na melhor das hipóteses, por meio de gêneros literários diversificados: “Mais do que uma literatura política stricto sensu trata-se de uma parte da literatura ateniense que tem fortes conotações políticas”. (RODRÍGUEZ ADRADOS, 1997, p. 42, Caps. I e III).3 Se foi isso o que aconteceu, então a teoria política, ainda numa prosa tratadista e científico-filosófica como a de Aristóteles, não teve nenhuma especificidade teórica e se diluiu numa textualidade irrelevante ou inócua.

Em resumo, e seguindo com certa lassidão a opinião geral resenhada, o pensamento político grego e sua vinculação íntima com a democracia condensam-se num interrogante e numa série de posições qualificadas sobre o tema. (GALLEGO, 2003, p. 31-2, p. 32-9; OBER, 2008). Em primeiro lugar e de modo prévio, caberia perguntar se houve alguma vez um conjunto sistemático, entendido como um corpo de ideias coerente, consistente e transmitido da democracia e, em especial, da democracia ateniense. Em segundo lugar, é possível localizar quatro posições historiográficas definidas, embora oscilantes, com relação ao tema: a) a afirmação de uma teoria, um pensamento ou um discurso mais ou menos sistemático sobre o regime democrático; b) a negação da existência de uma formulação teórico-política dessas características na Atenas clássica que se volta, consequentemente, à mera constatação de uma ideologia democrática acompanhada de expressões isoladas e estreitamente relacionadas com as práticas institucionais e comunitárias, mas carente de rigor expositivo e metódico; c) a identificação pura, seja de um pensamento aristocrático, seja de uma ideologia e de valores aristocráticos, reconhecíveis numa prosa teórica mais elaborada (filosofia política); d) a ocorrência de um processo de tradução desse elaborado fundo aristocrático em algum outro modo de expressão, de maior ou menor clareza, um pouco mais ou um pouco menos acentuado, ou eventualmente moderado e arbitral, em algum e limitado sentido visto como democrático; e por fim, e) a efetiva articulação ou recriação, em combinações variadas, de uma ou de mais das anteriores posições enumeradas. Quiçá a cabal fórmula de composição, por não dizer de integração, tenha vindo antes de Ryan Balot (2006) e seu mais moderno título (agora copiado em inglês), Greek political thought. Nele se desenrolam os significados políticos em peças fragmentárias relativas aos gêneros, aos discursos e às teorias de um longo período: a épica e a poesia arcaica, a sofística democrática, os críticos da democracia das décadas finais do século V e a derradeira relevância da figura de Sócrates, o revisionismo de Platão no século IV e, da mesma maneira, Aristóteles, lido à luz de uma presunta renovação e extensão mais simpática para com a democracia e o homem ordinário desse regime, porém ainda situado nos moldes das tradições helênicas que Platão, por antecipado, havia objetado e pretendido transformar.

O problema, que como todo problema não deixa de ser uma petição de princípio, depreende-se do mostrado até aqui, mesmo que não seja este o espaço adequado para reconstruir, isto é, recuperar de forma positiva uma teoria democrático-clássica ou, mais precisamente, uma teoria político- grega da democracia ateniense. Deveria especular-se, no entanto, com a teoria ou uma teoria que compreendesse um corpus de ideias consciente e reflexivo referido ao paradigma democrático da pólis, exequível mediante uma reconstrução sistemática e uma análise das condições lógicas (prévias) e de possibilidade (dadas) de um bloco intelectual manifesto em movimentos, tais como a sofística e a filosofia, e expressa através da prosa argumentada de determinados autores e pensadores representativos. Tal especulação equivaleria a afirmar, a contrario sensu da opinião geral especializada, que é faticamente possível e validamente fundamentado encontrar na Atenas dos séculos V e IV a. C. uma teoria política da democracia susceptível de apreensão histórica e conceitual.4 Por essa razão, o objetivo perseguido nesta oportunidade será mais modesto, mas não por isso menos, intuo, importante: Qual há de ser para nós, sujeitos plurais contemporâneos da recepção e apropriação do antigo legado grego, o lugar democrático de Aristóteles, o estudante estrangeiro que arribou na cidade um dia e terminaria assumindo em e por sua filosofia a experiência da democracia na Antiguidade, uma trajetória neta de quase dois séculos?

***

Se alguma coisa pode ser explorada com respeito ao lugar que cabe a Aristóteles na teoria e na prática democráticas de seu tempo, a mesma se verificaria, sem dúvida, no plano dos argumentos. Nesse plano, em conexão com o consenso interpretativo revisto, tem sido ratificada o que bem poderia se designar como orientação oligárquica do pensamento político grego. Destarte, um historiador que fora precursor da investigação em história econômica, social e institucional da Atenas antiga, A. H. M. Jones, tentou esboçar as linhas mestras da teoria da democracia ateniense com base nas fontes primárias que opõem seus acusadores e defensores (JONES, 1958, p. 41-72): 1º) as linhas de ataque dos críticos oligárquicos da política interna ateniense, estabelecidas pelos filósofos Platão e Aristóteles, vis-à-vis as verossímeis réplicas dos democratas; 2º) as críticas que emanam do relato histórico, confinadas à importância quase única de Tucídides nesse terreno e dirigidas contra a política externa e imperialista de Atenas; 3º) as peças discursivas de conteúdo democrático disperso, procedentes dos oradores do século IV (Demóstenes, Esquines, Licurgo e Hipérides, entre aqueles que transmitem essa visão), que tratam de assuntos político-práticos e litígios particulares, prescindindo de fazer explícitos os méritos e os princípios básicos que regiam as instituições; e 4º) o tipo de panegíricos representado pela “Oração Fúnebre” de Péricles (em contraposição ao próprio pensamento de Tucídides) e, ainda melhor, pela de Lísias, que, no caso, seria mais demonstrativa do ideário democrático (enquanto ambas, nesse contexto, resultariam diferentes dos menos úteis Panegírico e Panatenaico de Isócrates). Não surpreende que, entre toda essa miscelânea, Aristóteles retorne influenciado, sobretudo nos parágrafos históricos da sua Athenaíon Politeía, pelo viés oligárquico, a ponto tal que, na passagem para a Política, tida por mais ponderada em seus julgamentos, Jones não consiga dissimular a impressão de que “seu ideal era uma oligarquia de base inclusiva”. (JONES, 1958, p. 41).

Talvez por isso, de certo modo, a hermenêutica contemporâneo- democrática de Aristóteles, em sua maior parte originada na França, provinda tanto da historiografia como da história da filosofia, tem até hoje privilegiado, no espectro que pode abarcar desde uma leitura interna estrutural do texto, uma interpretação filosófica dos fundamentos ético- cosmológicos do autor, ou uma análise da interlocução entre posturas críticas e passagens específicas, a reflexão acerca do cidadão e a forma de constituição política se encontram no Livro III da Política. A tal recorte, via de regra, soem agregar-se as discussões temáticas extraídas do bloco empírico (Livros IV, V e VI) do mesmo tratado.5

Historicamente, todavia, ao analisar a base prática das atitudes sociais, aquilo que o historiador W. G. Forrest intitulou “o grande debate” cunhando a tensão que, instalada na metade do século V a. C., fez possível a emergência de um pensamento em torno da democracia, perfilam-se com clareza duas tendências: de uma parte, o conservadorismo democrático, o desejo popular de proteger os avanços conquistados com Efialtes, continuados pela política de Péricles e desafiados pelas difíceis circunstâncias da guerra com Esparta logo após a morte desse em 429; de outra, a reação oligárquica, empenhada por uma nova geração que anelava voltar ao governo aristocrático, plasmado artificialmente nos fulgurantes intervalos do 412 ao 404 (FORREST, 1988, p. 191-202). Sob a ótica dessas atitudes sociais encontradas, a filosofia política de Aristóteles será, inserida no curso descendente da democracia restaurada, fruto de uma Atenas que haveria de empreender seu próprio risorgimento material e espiritual em pleno século IV. (JAEGER, 1967, Livro III, Caps. I e II), recebendo das passadas atitudes práticas o acirramento da divisão e, ciente desse mesmo passado, decidida estava a encarar o exame coletivo de seus erros. Por conseguinte, além de aproveitar as apreciações que, olhando para a realidade e para o pensamento do regime democrático, pronunciaram-se sobre a identidade política de Aristóteles, e tendo entrevisto, desse modo, as condições histórico-intelectuais de sua formulação teórico-política, corresponde, a seguir, a despejar a bruma de indefinição que invade a Política no que toca às noções primárias e aos seus princípios estruturantes.

Com efeito, no que resta deste estudo se arguirá que o sentido democrático da teoria política de Aristóteles há de ser buscado, inicialmente, numa proposição abstrata que vertebra o Livro I da Política: a tese ou o argumento da prioridade cívica. Assimilada, quando não relegada pelos intérpretes, que a subordinaram a um naturalismo político (Pol. I, 2) assentado nas teses conclusivas do ser ou da existência natural da pólis (Pol. 1252b30) e do homem definido como animal político (1253a2-3), o propósito aqui será elucidar, no entanto, o alcance e a significação conceitual dessa premissa fundamental na qual repousa, segundo se evidenciará, uma concepção sistêmica e funcional da comunidade política.6

Principiando com o naturalismo político de Aristóteles na chave enunciada, é importante lembrar, como recalcara em seu ensaio pioneiro A. C. Bradley, a valência dupla, solidária de um interesse histórico-teórico, da Política em seu conjunto. (BRADLEY, 1991).7 Essa estimação favorece uma entrada no Livro I que apele à estrutura interna do texto mediante a qual seu autor, Aristóteles, amarrou conceitos referenciais e proposições formais a um processo material e real, o da formação e organização da pólis, operação que radicou, em primeira e última instâncias, na ordenação unitária do tratado (STARK, 1965; KEYT; MILLER, 1991, p. 2ss; DESLAURIERS; DESTRÉE, 2013, p. 7-8) e, como atributos promotores dessa consistência, na maleabilidade e na sistematicidade de um vocabulário, que recortam essa especial entidade objeto de indagação na argumentação coerente do Livro I: a cidade ou, se preferir a expressão definidora pelo gênero e a diferença, a comunidade política. Não seria em vão repetir as palavras de Aubenque que, trazidas para aquém das razões por ele mesmo aduzidas, resgatariam a estrutura primária do naturalismo, conforme as quais “a reabilitação da democracia não é em Aristóteles uma tese circunstancial e isolada, mas está ligada a teses essenciais de sua filosofia [política]”. (AUBENQUE, 1993, p. 262). No gênero da realidade política, a natureza recobra seu sentido liminar através do deslizamento para o duplo método postulado na transição dos dois primeiros capítulos do Livro I. Eis o ponto nodal ao qual se engata a Física e onde a Política e o mundo natural ficam a par. De um lado, na forma de um raciocínio silogístico, infere-se que a comunidade política (koinonía politiké), a pólis, assim como acontece em todas as ações humanas (finalizadas em vista do que parece ser o bem), é a comunidade principal que visa ao bem supremo. (Pol. I, 1, ab initio). Por principal e suprema deve entender-se: qualitativamente superior e distinta e mais compreensiva ou abarcadora em extensão. Essa é a diferença específica constitutiva do naturalismo político, em razão da qual se atribui ao governo político um domínio próprio e uma finalidade inclusiva mais elevada. Desse modo, a caracterização da cidade compromete a filosofia da natureza de Aristóteles, posto que pressupõe uma matéria dada (as comunidades menores reunidas em torno de uma finalidade comum: EN 1160a8-29), uma forma determinada (o ser da comunidade política em sua identidade e permanência: Pol. III, 3), um desenvolvimento de índole natural (a atualização do ser comunitário, completada pela intervenção humana, em direção à autarquia ou perfeição: 1280b29 ss; VII, 8, ab initio), e um fim ou télos (como mecanismo teleológico da atividade ou da ação: EN, ab initio).8

Aristóteles estava ciente da íntima controvérsia que entranhava essa compreensão profunda do ser comum natural. Em seguida, tornando explícito o alcance polêmico da argumentação, confronta seu critério qualitativo de demarcação com o critério quantitativo em que se haviam baseado aqueles que, à maneira de Sócrates e Platão,9 entenderam o princípio (arkhé) da autoridade política como se fosse mera ampliação numérica do mando da casa e do poder despótico sobre os escravos. (Pol. 1252a7-16). Estritamente, sequer poderia considerar-se verdadeira a diferenciação ulterior, obtida por Platão em O político, entre a autoridade exercida pelo rei e a exercida pelo governante político, que estribaria numa falaz distinção funcional (e epistêmica) que preserva, mantido o mesmo número de governados, a homologação genérica do poder (Pol. 258b-268d). Perante semelhante confusão, Aristóteles propõe-se, então, clarificar a questão dos tipos de poder intermediando dois métodos complementares, na medida em que ambos parecem adequados à determinação da especificidade da autoridade ou do poder político por conectarem, na transição de um capítulo para o outro, a composição natural da cidade e seu desenvolvimento formativo-natural. Pelo primeiro método, que tem sido denominado analítico (WOLFF, 1999, p. 48-9), o composto (sýntheton) que é a cidade se dividirá até seus componentes mais simples, qual as menores partes do todo. Com o segundo, assim chamado genético (p. 48-9), ver-se-á a cidade desde o princípio (ex arkhés), tal como o caso das coisas geradas que crescem por e para si. Por meio desse duplo método, que visivelmente faz da pólis um ser e uma comunidade natural, a investigação política emprega aquilo que, por princípio, compete à filosofia da natureza.

Por conseguinte, de outro lado, é mister adicionar o conceito de natureza (phýsis) que, de acordo com Aristóteles, reveste-se dos vários significados entrelaçados que se registram no primeiro capítulo do Livro II da Física. Nesse texto fundamental, natureza, “um certo princípio e causa do mover-se ou estar em repouso naquilo no que se dá primariamente, por si mesmo e não por concorrência [ou acidente]” (Phys. 192b20-22),10 é dito de todas aquelas coisas que possuem esse princípio, pois o que é por natureza ou conforme a natureza reside, sempre, em algo que subjaz ao movimento e repouso intrínsecos à coisa, a todos seus atributos essenciais e a todas suas propriedades acidentais, em suma, a substância ou entidade que é ou existe. Natureza é, logo, cada coisa plenamente desenvolvida, resultante de um processo de gênesis (como o evidencia o sufixo -óéò do termo öýóéò) e composta da matéria (hýle) primeira subjacente (a carne ou o osso do homem em potência [dýnamis], ainda indeterminado) e da forma (eídos) - a configuração só separável segundo a definição (o homem determinado a partir do homem, em atualidade [entelékheia] e não mais em potência).11 Nada poderia ser mais integralmente circular e claro: “Para cada uma das coisas que possuem em si mesmas um princípio de movimento e mudança” (193a28-29), “a natureza entendida como ‘processo de geração’ é um caminho para a natureza”. (b12-13, ênfase do tradutor).12

Na metafísica de Aristóteles, a substância ou, para expressá-lo em consonância com a multiplicidade do mundo físico, as entidades sensíveis que têm realidade primária, desenvolvem-se em direção a um fim, isto é, atuam por e para uma causa final (II, 3, 7, 8).13 Aquilo “para o qual” (194b33), ademais de pressupor uma teleologia, rege internamente os organismos vivos em todos os casos sujeitos a processos naturais de geração. E a geração natural, o que vem a ser em virtude de um princípio interno de movimento e mudança, aplica-se, também em geral e na vasta maioria dos casos, às mesmas realidades substanciais.14 Teria que ver, sem embargo, como a definição dinâmica e mutável de natureza, e a força integradora que se percebe num processo genético, recaem sobre o argumento naturalista da prioridade da pólis em Pol. I, 2. Certamente, da sua transposição política dependerão, se a hipótese de interpretação levantada está correta e alternativamente dirigida, o esclarecimento das teses do naturalismo político e o componente democrático que está em jogo nesse tipo específico de naturalismo, pedra angular de uma teoria que deveria poder acolher o embasamento da democracia em suas fundações materiais.

Devido à irregularidade e variabilidade das coisas humanas, a disciplina política permite apenas menor exatidão ou precisão. (EN 1094b11-27). De alguma maneira, isso justifica a exposição esquemática e, por sua vez, sequencial e densa com a qual se procede à explicação da formação e do desenvolvimento da pólis, a partir de sua origem, na continuidade da argumentação. Tem-se, basicamente, a primeira comunidade, primeira na geração e por sua mais simples composição: a comunidade familiar, a casa (oikía, Pol. 1252a26-b15). Essa se forma pelas duas relações recíprocas e elementares da existência, uma e outra relativas à procriação e à segurança. A relação entre o homem e a mulher responde pela geração, numa união destinada a assegurar os próprios fins humanos da vida, indo além da procriação comum dos animais e da não menos comum tendência, presente nos seres vivos, de deixar atrás de si outro ser semelhante, conforme a reprodução biológica da espécie (eídos).15 Ao mesmo tempo, a preservação e a manutenção da vida são reasseguradas pelo mando previsor do amo e a execução obediente do escravo “por natureza”, relação que reforça suas mútuas vantagens e que se conjuga com a anterior, diferenciando a função que lhe cabe, dentro de cada relação, à mulher e ao escravo, o que deixa “naturalmente constituída para a satisfação das necessidades cotidianas” (1252b13-14) a comunidade do lar.16

Por extensão e complexidade crescentes, das várias comunidades originárias se constitui a aldeia (kóme, 15-27), proliferação ou “colônia” da casa, que amplia a união pelo parentesco, e governada por um rei, figura tomada do chefe de família e mais ancião.17 A finalidade dessa comunidade intermédia pode ser suposta olhando para outros lugares em que se enumeram as funções que cumprem a forma tribal: a celebração do culto religioso ancestral e, com toda probabilidade, a administração da justiça de sangue.18

Com isso, a aldeia, feitura de lares, atingirá, por conta de seu crescimento e alcance progressivos, a etapa posterior e final do desenvolvimento histórico- natural que se realiza na comunidade política ou cidade (Pol. 1252b27 ad finem): “A comunidade perfeita (téleios) de várias aldeias é a cidade, que tem, assim dizendo, o extremo de toda suficiência (autarkeías), e que surgiu por conta das necessidades da vida, mas existe agora para viver bem (eú zén)”. Em termos demográficos, quer dizer, pelo número de habitantes que incorpora, a cidade é a única comunidade capaz de atender à exigência mínima e limitadora da autossuficiência (1326b2-25);19 o que não significa tão somente que a cidade cumpre essa condição e persegue aquele fim, senão que ela, em si mesma e para si mesma, estipula a condição estrutural da autarquia, necessária para viver em comum,20 que possibilita uma vida feliz e bela. Essa é a comunidade que materializa e informa uma vida perfeita e autárquica, que se basta a si mesma, na qual, naturalmente, enraízam os laços de amizade, as linhagens e fratrias (casas e famílias, aldeias, etc.) que a compõem e por cuja pertença natural o homem se torna plenamente homem no desenvolvimento do ser comum (1280b33-1281a2).

A modo de resultado simultâneo do decurso histórico-natural das etapas progressivas dos agrupamentos humanos, conclui-se que toda cidade é ou existe por natureza (1252b30: pása pólis phýsei estín) - como o são ou existem as comunidades primeiras (prótai koinoníai, 31); e, dado que a cidade é uma dentre as coisas naturais, o homem é, por natureza, um animal político (1253a2-3: ánthropos phýsei politikón zSion) - enquanto o privado de pólis (ho ápolis) por conta da natureza (diá phýsin) e não por mero acaso (ou diá týkhen, 3-4),21 ou é um homem mau, ou é mais do que um ser humano. Assim, combinando e hierarquizando as duas teses naturalistas antecedentes, pode-se ainda afirmar que a cidade é, por natureza, primeira, quer dizer, anterior à (próteron... é, 1253a19) casa e a cada um de nós (oikía kaí hékastos hemón) - pois o todo (hólon, 20) é, necessariamente, anterior (próteron) à parte (mérous).22 Tendo em mãos as três teses até aqui reconstruídas, uma inversão heurística do naturalismo de Aristóteles que reponha a última delas, a tese da prioridade cívica, poderia ajudar a despejar o caminho para uma mais cabal compreensão do assunto e, por sinal, da estrutura democrática da teoria.

O argumento da prioridade finca, aliás, no centro democrático onde gravita o naturalismo político de Aristóteles, posto que dota de novo sentido a tese do ser da cidade. De fato, detrás da existência da pólis se acha a premissa de que a natureza é fim (télos, 1252b32) e, consequentemente, a noção de phýsis entendida como processo de desenvolvimento natural (em direção ao fim) que, paulatinamente, avança na ordem da geração até alcançar sua realização completa e perfeição.23 Esse fim acabado é a natureza para a qual tendem as comunidades anteriores que existem, portanto, com vistas ao melhor (béltiston, 34 e 1253a1), isto é, a autarquia, constando, porque de maneira alguma poderia excluí-la desse enfoque, a analogia que opera a semelhança entre o desenvolvimento na ordem da natureza (um homem ou um cavalo ou, em definitivo, qualquer substância sensível) e a criação técnica e artificial (uma casa, ou qualquer outro objeto útil ou belo).

A comunidade política, predicada e especificamente diferenciada, é a essência por natureza realizada das comunidades humanas originárias, a mudança finalizada, de gênese e movimento, ultrapassado o umbral de satisfação vital que culmina na autossuficiência plena. Na visão de uma hermenêutica sistematizada, o processo de geração e de ser natural da pólis é susceptível de duas grandes interpretações: a causal interna e a teleológica. (MILLER, 2001, p. 37-45). A leitura ancorada na causalidade interna assevera que a cidade é ou existe por natureza em sentido restringido, já que possui em si mesma um princípio ou causa de movimento e do estar em repouso, que em todo organismo vivo é sua alma, definida como forma do composto substancial atualizado. (De an. 412a15-22). Em paralela prolongação, a leitura teleológica revela que, no sentido estendido da phýsis, o que existe por natureza é tal se tem a função própria de atender a um fim natural a serviço daquilo do qual resulta, como todas as coisas que vem a ser por natureza sempre ou no geral, nas quais existe a finalidade porque se originam e são desse modo. (Phýs. 198b34-199a8).24

Nem uma nem outra; quiçá, o sentido restringido e o sentido estendido de natureza fundem-se numa phýsis processual e compreensiva que inclui, em correspondência com a pólis, cuja estrutura comporta uma progressão finalizada de comunidades, uma hierarquia teleológica de necessidades e bens, material e formalmente tendente à cidade que visa ao fim de se bastar a si mesma. Esse bem supremo, a que aspira a política, leva o nome de felicidade (eudaimonía), fim que queremos por si mesmo, causa de querer outros bens, e escolhido por si mesmo, pondo limite ao desejo em infinita regressão (EN 1095a14-20; 109418-22; I, 1, ab initio; 1097a34-b11 e infra). E aquela comunidade final, ser da política, leva consigo o fato de ser dita sujeito último da predicação, não mais predicado de outro, nem secundariamente, ou como acidente, sendo também, do ponto de vista de sua existência particular, coletiva e comum, a essência separável pela definição do gênero e da espécie de uma forma comunitária desenvolvida na matéria e compondo com essa uma substância (ousía) individualizada completa (Met. 1017b21-26; 1037a21-b7; 1032b1-2; 1029b22-1030a27; Æ, 6; 1029b12-16).

O devir reverte no que já é. A pólis é o todo natural que precede logicamente às partes orgânicas que o compõem, às quais informa e atualiza em suas potencialidades materiais: posto que o todo é primeiro com respeito à parte,

destruído o todo, não haverá pé nem mão, a não ser equivocamente [por homonímia] (homónymos), como se pode chamar a uma [mão] de pedra: uma mão morta será algo semelhante. Todas as coisas se definem por sua função e suas faculdades, e quando estas deixam de ser o que eram não se deve dizer que as coisas são as mesmas, mas do mesmo nome (homónyma). (Pol. 1253a20-25).

O recurso à homonímia convida à analogia biológica25 que, mais do que um útil modelo heurístico, sustenta de modo coerente a existência natural da cidade, um organismo inteiro sui generis formado por partes funcionais em operação ou, numa expressão equivalente, por órgãos naturalmente posteriores à existência de um todo substancial, comunitário e autossuficiente, pelo e para o qual desempenham suas respectivas funções recebendo dele as respectivas razões de ser e capacidades operativas. Em consequência, resume e confirma Aristóteles sem vacilo algum:

A cidade é por natureza e anterior ao indivíduo [cada um] (hékastos), porque se o indivíduo separado não se basta a si mesmo será semelhante às demais partes em relação com o todo, e aquele que não pode viver em sociedade [comunidade], ou não necessita nada por sua própria suficiência, não é membro da cidade, mas uma fera ou um deus. (25-29).

Considerando a dependência essencial e a interconexão funcional de cada parte integrada ao todo, põe-se em manifesto um arcabouço de adequações conceituais que se impõe esclarecer.26

Não há como deixar de recordar a muita tinta que tem sido vertida com o intuito de debelar a tese da anterioridade da cidade, tão provocativa na ótica liberal dos modernos, e, apesar disso, consistente no que tange à sua formulação abstrata e às suas implicações concretas, a seu raciocinar equilibrado, por vezes tão próximo do senso corrente grego, segundo era hábito intelectual de Aristóteles. Não obstante, o sentido ocasional de prioridade que ele assume não parece evidente de imediato. Para além dos diversos sentidos que lhe foram concedidos ao termo próteron em seu uso ao longo do corpus aristotelicum e das longas disquisições especializadas que esses usos têm suscitado, problema infindável que não seria demasiado produtivo neste ensaio de interpretação mais limitado, há um sentido relevante, determinado pela infraestrutura política da proposição, que exige, ante tudo, ser respeitado.27 Esse significado estrutural centra-se no que caberia denominar de concepção sistêmica da pólis, transmitida por meio do ajuste da pertinência da prioridade a um contexto, por assim dizer, político. As evidências textuais são, decerto, esparsas, mas a crítica oportuna pode permitir-lhes recobrar a verdadeira relevância semântica e um poder explicativo maior se analisadas à luz da doutrina da substância sensível organicamente desenvolvida.

Em EN 1168b31-34, no segundo dos livros sobre a amizade, um denso e abstraído fragmento exprime a ocorrência mais significativa da equiparação da pólis com um todo orgânico: “da mesma maneira que uma cidade e todo outro organismo sistemático (sýstema) parecem consistir sobretudo em seu elemento principal, assim também o homem”.28 A compaginação dessa passagem com um trecho da Metafísica, no qual se sintetiza o pr ocesso de composição das substâncias sensíveis, “as substâncias reconhecidas por todos”, não faz mais do que reforçar a afinidade (1042a24-31):

É substância o sujeito [substrato] (hypokeímenon), num sentido a matéria (ao dizer matéria me refiro à qual, não sendo em ato algo determinado [tóde ti], é em potência algo determinado), e em outro sentido o enunciado (lógos) e a forma, o que, sendo algo determinado, é separável (horistón) pelo enunciado; e, em terceiro lugar, ao composto de ambas coisas, o único do qual há geração (génesis) e corrupção e é plenamente [absolutamente] (aplós) separável.

Sem embargo, algumas reservas, de similar base textual, são necessárias: uma substância não se compõe de substâncias (1039a7-8; 1041a4-5), ao passo que um todo é chamado assim por natureza em razão de não lhe faltar nenhuma parte e conter muitas coisas integrando-as numa unidade, sem chegar a ser uma entidade (Ä, 26); em contraste, uma pólis compõe-se de “lares e famílias” (Pol. 1280b33), e é por natureza um todo (v. supra). Diante desses assertos que se enfrentam, urge dar conta dos nexos e pontos nodais que, enlaçados pelo sentido sistemático de prioridade, permitem conceituar a cidade como um ser unitário e múltiplo.29

Na postulação dessa nota diferenciadora que aúna unidade e multiplicidade, observe-se que Aristóteles, alongando a polêmica contra o Sócrates platônico, personagem que propugnara a manutenção estratificada e unitária da cidade (Rep. 423c e 462a-b), mostra-se contrário a qualquer movimento, por ele considerado autodestrutivo, de homogeneização (Pol. 1261a17-22):

Pois a cidade é por natureza uma multiplicidade (pléthos), e ao fazer-se mais uma, se converterá de cidade em casa e de casa em homem, posto que podemos dizer que a casa é mais unitária que a cidade e o indivíduo [um só] mais que a casa. De modo que, ainda quando alguém fosse capaz de fazer isso, não deveria fazê-lo, porque destruiria a cidade.

A conformação plural, ou melhor dizendo heterogênea da pólis, depende, em sua especificidade, da diversidade entre seus componentes humanos, heterogeneidade regulada pela igualdade na reciprocidade (íson antipeponthós, 30).30 O critério da reciprocidade, visto na sua extensão político- institucional, supõe o primeiro traço estruturante e democrático da doutrina, “já que isso [a reciprocidade] tem de dar-se ainda entre homens livres e iguais, porque não é possível que governem à vez, mas por anos ou seguindo qualquer outra ordem de sucessão”. (32-34). É por essa condição estrutural que todos governam, alternando na função, como se sapateiros e marceneiros não fossem sempre os mesmos; o que, a contrario, levanta a prescrição: de ser possível, seria até melhor que os mesmos governassem em se tratando da comunidade política. No entanto, nos casos em que não o é, “por serem todos naturalmente iguais” (39-b1), valha dizer, por conta do desenvolvimento da democracia cidadã, é “justo” (díkaion) para os iguais “participar” (metékhein) do governo, tidos como semelhantes, de forma que “uns governam e outros são governados, como se alternativamente se convertessem em outros”. (4-5).

Por sua vez, na própria alternância no poder ou no governo por turnos cristaliza a justiça política como reciprocidade, pois, inclusive entre os governantes, se verifica a distribuição e diferenciação de funções. Daí, insiste- se, a impossibilidade da cidade unitária, cuja diversidade funcional radica na sua própria natureza essencial. Adicionalmente, enfim, a complexidade social assim descrita revela o outro aspecto de sua diferença específica, a gênese finalizada da mesma comunidade política: a superioridade da autarquia, da suficiência preferível e, sistemicamente primeira, da comunidade política com respeito à casa e ao uno “individualizado”, incapaz de tolerar a tentativa unificadora à que pretendeu submetê-la Platão.

Nesse aspecto processual e autossuficiente, a pólis reveste-se da organização funcional prototípica, diferenciando-se em seu interior as partes necessárias e as partes propriamente ditas que são, nessa ordem, por um lado as condições essenciais (estruturais) necessárias da sua existência e, por outro, as definidoras da sua especificidade (1328a21-25; 1291a24-28):

Nos demais entes [coisas] compostos [/as] por natureza não são forçosamente partes da composição inteira aquelas sem as quais não existiria o todo, e do mesmo modo, é evidente que tampouco devemos considerar como partes da cidade tudo aquilo que as cidades ou qualquer outra comunidade cuja espécie seja uma hão de ter necessariamente (anankaíon).

Com efeito, os membros da comunidade devem ter algo em comum (koinón), “tanto se participam disso igual ou desigualmente” (26-27; 1260b36ss; 1328a27-33). Veja-se, aqui, a necessidade da propriedade, feita de partes (animadas) sistemicamente relacionadas; e, no nível global, a cidade, “uma comunidade de indivíduos semelhantes para viver o melhor possível”. (35-37). A vida em comum aspira, é claro, à felicidade, que, dessa perspectiva, concebe-se como um uso perfeito da virtude,31 da qual os seres humanos participam em graus diferentes causando a existência de distintas formas de póleis e de constituições, pois os meios com os quais se persegue o fim ocasionam diferentes modos de vida e regimes políticos.

Assim sendo, as partes indispensáveis, materialmente necessárias para a existência da cidade, entranham uma gama de funções interconectadas (1328b2 ad finem): alimento, ofícios (como instrumentos requeridos à vida), armas (em posse dos membros da comunidade, com vistas à ordem interior e à defesa externa), certos recursos em relativa abundância (atendendo às necessidades próprias e da guerra), religião e culto (serviço de importância máxima), e uma autoridade que julgue acerca do conveniente e justo (parte mais necessária à cidade). Se faltasse algum desses elementos funcionais - labradores, artesãos, soldados, provisão de recursos,32 sacerdotes e juízes, uma pólis “absolutamente autárquica” será mera quimera e uma negação prática da rude necessidade, sujeita a uma multidão qualquer, informe e desorganizada.

Mas o realismo que palpita na morfologia sistêmica de Aristóteles não se esgota nessas duas notas aspectuais da unidade plural, intimamente associadas à distinção entre propriedades essenciais e propriedades necessárias da cidade,33 fornecendo ainda uma visão de conjunto do sistema político em que desenha a cidadania simples e clara. O cidadão, o único que pode ser chamado de parte no estrito sentido do vocábulo, que alterna com seus iguais nas funções de governante e governado, que manda e obedece alternativamente e conforme um mandato limitado no tempo e na sua esfera de atuação, participa de maneira ativa por ser livre, em status e de palavra, da Assembleia do povo, o órgão e ator institucional soberano (Pol. III, 1, 2, 4 e 5, 1274b41: politón ti plethós; 1275a28-29: kyriotátous; b17-21: polítes [...] koinoneín arkhés bouleutikés é kritikés, [...] légomen pólin tó tón toioúton pléthos) que paira sobre as restantes instituições de governo. A democracia deixa-se ver, nesse ponto, em seu traço teórico mais marcante e discernível, impresso nas raízes profundas da pólis naturalmente engendrada e evoluída. A democracia depreende-se, qua realidade política, da estrutura da phýsis, e, como a natureza que habita, ama ocultar-se, mas nesse movimento incessante de formação acaba pondo em manifesto o processo de geração e desenvolvimento de um sistema.

O sistema da pólis é idêntico à sua forma política, à constituição que é a ordem fundada e restabelecida pela ação do cidadão dentro do âmbito de deliberação que a natureza habilita e dos tipos de regime político cuja titularidade disputam os setores da cidade (III, 1, 3, 6, 7 ad finem, 1274b38: politeía [...] táxis tis; 1276b1-8: koinonía - pólis - politeías - eídos; 1278b8-11: politeía póleos táxis tón te állon arkhón kaí málista tés kyrías pánton. [...] Políteuma estín he politeía). Não por acaso, tantos séculos depois, a ciência política norte-americana fervorosamente ideou um modelo comportamental, adaptativo, autoequilibrado e retroalimentado do sistema político, que se converteria numa tentativa de entender o desenvolvimento (e a mudança política) recorrendo a uma noção capaz de integrar a estrutura e a cultura, suas propriedades interdependentes e seus papéis fixos, mantendo-se atenta à circulação do fluxo de informações e funções que, no final, configura a capacidade de processamento e resposta da dimensão social detentora do uso legítimo da coação física. (EASTON, 1969). Anos mais tarde, já no mais amplo campo sociológico, o sistema político haveria de ser reconduzido à matriz básica dos sistemas sociais, que um esboço de teoria geral chegou a assimilar à natureza crescida e normativamente realizada, no decorrer da história, pela maior complexidade das interações humanas em sua interpenetração com a forma sistêmica e a estrutura objetiva do tempo. (LUHMANN, 1998).34

Todas essas elucubrações mais atuais apontam para um paralelismo que Aristóteles havia sublinhado muito antes de que essa dimensão fosse reeditada pela biologia moderna na teoria geral dos sistemas: a cibernética. Numa das investigações biológicas do filósofo, emerge a comparação orgânica (e normativa) com o correto governo político (MA 703a29-30): “O organismo animal deve ser concebido como próximo em similitude com uma pólis bem governada”. Efetivamente, a peculiaridade da cidade e das espécies da escala animal, a especificidade do sociopolítico e do biológico- natural assentam-se numa relação de semelhança estrutural, dada pelos respectivos princípios sistêmicos de organização, a saber, a alma, princípio de vida e movimento de um animal, e o regime de governo, princípio de autoridade e identidade da cidade, ambos exercendo ora a direção da divisão e da coordenação funcional entre as partes, ora mediante a individuação e conexão natural entre as mesmas, ora mediante a execução ordenada e a repetição costumeira de cada uma. (30-b2).

Com respeito a alma (psykhé), e segundo o que havia sido precisado (v. supra), pode-se aceitar que “[s]e temos que dar uma fórmula geral aplicável a toda classe de almas, devemos descrevê-la como uma atualidade (entelékheia) primeira de um corpo natural organizado.” (De an. 412b4-6, a27-b4). A alma é uma atualidade, um princípio vital de movimento que indica a existência prévia da forma, tendo primariamente a vida em potência (dýnamis, 28; 415b8-20). Por isso, é não menos evidente que a alma é a causa final, aquilo em nome do qual os animais (ou, igualmente, as plantas) seguem a ordem da natureza para cada um de seus órgãos. (órgana, 412b1). Nas palavras de um biólogo contemporâneo que, com curiosidade itinerante, adentrara nas investigações naturais de Aristóteles, a alma de um ser vivente se resume “[n]a soma de suas características funcionais.” (LEROI, 2015, p. 159). Assim, como um desfecho de sua exploração intelectual, colige: “A alma aristotélica certamente tem várias propriedades de um sistema. É uma série de unidades inter-atuantes (órgãos) que formam um todo integrado (um corpo). [...]. É, verdadeiramente, um sistema cibernético.” (p. 176-7, ênfase do original).35

Costuma ser esquecido, em certa hora, que quando Aristóteles compôs a Política, de novo em Atenas após mais de uma década, a experiência das viagens e da descoberta zoológica tinha-o convertido num homem de ciência que olhava para o mundo usando o método da divisão natural e um enfoque sociológico que secionava a comunidade em partes substancias e funções orgânicas. Sem dúvidas, é essa a melhor prova e a razão de ser da “parte empírica” da obra (Pol. IV, V, VI), que Aristóteles mesmo, ou quiçá um editor antigo ligado à escola peripatética, interpôs à construção da pólis imaginável e desejada dos dois últimos livros da sequência. (Pol. VII, VIII). Ainda que nessa parte final construtiva fosse apropriado acudir, como já foi visto, a uma caracterização ontológica e analítica da comunidade política, o bloco positivo tinha sido decididamente anteposto com o objetivo de esmiuçar as subespécies dos tipos constitucionais e os diversos grupos e subgrupos comunitários. (IV, 3-6). Do bloco empírico brota, pois, uma autêntica morfologia da cidade - uma “sociologia” da pólis - que não se isenta de explicar e prescrever, através da mudança das constituições (V, 1-4) e do acesso à mistura moderada garantida pela politeía do estrato médio e os sempre presentes elementos oligárquicos e democráticos do regime (IV, 8, 9, 11), as inesgotáveis realidades humanas e os remédios administráveis para combater as patologias coletivas.

Apesar da rejeição ortodoxa que possa despertar, é no terreno da empeiría e ao compasso dessa amarração sequencial dos livros provista pela teoria interna que surgem as versões manifestas da prioridade, facilitadas com um reingresso ao Livro I e aos temas e pressupostos que sua estrutura ilumina. Entretanto, do ponto de vista do naturalismo político, essas enunciações colaterais depreendem-se das características formativas do sistema comunitário composto por partes ou órgãos, vale dizer, pelas funções recíprocas biológica e socialmente coordenadas. Por conta disso, em primeiro lugar, na integração de cada parte ou órgão ao todo ou ao organismo definidor do sentido funcional dos componentes, o sistema compreensivo organizado como ser vivo, tanto considerado em seu conjunto como analiticamente diferenciado, é separável de acordo com a prioridade que sua própria existência designa (Met. 1019a1-4; Cat. 14a29-35). Assumindo essa separação, a tese da prioridade sistêmica propõe a consubstanciação de, por um lado, o organismo e seus órgãos individualizados e, pelo outro, a pólis e suas partes agrupadas e diferenciadas qua constituintes essenciais e necessárias. As partes do corpo total (uma mão ou um pé: ver supra, Met. 1036b30-32; ou um dedo: 1035b23-25) não são partes stricto sensu se estão desvinculadas desse todo ao qual servem, do mesmo modo que os membros da pólis (cidadãos e setores sociais diversos, etc.) não podem existir em atividade recíproca, isolados do todo autárquico que é assistido pelas capacidades atualizadas dentro dele.

Essa visão da prioridade na existência separada, integradora e cooperativa, cobra força quando reparamos na comparação substancial entre o membro grupal, ou individual, da cidade e um pé ou uma mão: a homonímia, o simples e múltiplo equívoco nominal, opõe-se à precisa definição essencial que se declara levando em conta a capacidade potencial e o desempenho da função da parte. (Meteor. 390a10-13). A citada comparação se sustenta porque a pólis dimana análoga a um organismo animal (Met. 1036b28-30): por todo natural entende-se toda substância ou entidade sensível composta de partes que é ou existe por natureza, produto de um processo de geração e desenvolvimento que se move em direção a um fim. (ver supra).

A analogia entre a pólis e o ser vivo é sinônima da semelhança estrutural entre o organismo animal e o organismo social.36 Compreende-se, agora, a inteligência do significado específico, isto é político, do naturalismo que, transladado à análise das partes constitutivas da cidade, anuncia a casa e suas partes e relações (Pol. I, 3, ab initio): “Uma vez que temos colocado em manifesto de que partes consta a cidade [I, 2], temos que falar, em primeiro lugar, da administração doméstica, já que toda cidade se compõe de casas.” A distinção primordial é dada entre escravos e livres, e segue até os elementos básicos das relações domésticas que se classificam como relações entre o senhor (despótes) e o escravo (doúlos), o marido e a mulher, e o pai e os filhos; adicionalmente, tem-se um terceiro elemento, de uma forma ou outra ligado à administração doméstica (oikonomía), chamado crematística (khrematistiké). O do escravo é, na origem, o paradigma mais plausível e decisivo, pois confronta diretamente com a opinião daqueles que veem a dominação despótica como contrária à natureza (pará phýsin, 1253b20) e à escravidão como obra da pura convenção (nómôi, 21); ou com o pensamento dos que, no passado, fizeram do governo da casa (despoteía) um homólogo do poder político (politiké) e do rei (basiliké, 19-20) [v. supra]. Ao se contrapor às posições divergentes conhecidas, Aristóteles buscará reafirmar seu conceito da phýsis processual e a prioridade do sistema sócio-político.

O escravo, possessão do amo e parte da propriedade (ktésis) que é, ademais, parte (méros) da casa, ocupa o lugar e a função de um instrumento (órganon) prévio a outros instrumentos, marcando a subordinação da produção (poíesis) à ação (práxis) segundo a qual é determinado esse órgão animado, prático e distinto (I, 4).37 A justificativa da escravidão enquanto parte e “subsistema” não se faz esperar e vem respaldada pelo princípio natural de mando e subordinação: de forma similar à alma racional que deve comandar o corpo e o apetite, os animais domésticos se submetem ao homem, e a fêmea, ao macho. (1254a34 ss). Trata-se, então, de uma legitimação de índole prática conforme a natureza (phýsei, 17), nunca legal ou convencional (katá nómon, 1255a5), o que significa, em puridade, que a escravidão é sistematizada dentro do marco de referência dos fundamentos materiais e relacionais do lar e analisada junto com aqueles componentes e relações hierárquicas que condizem com o processo de formação e incorporação paulatina dos agrupamentos associativos menores a uma estrutura social crescentemente complexa. Não precisa ser acrescentado que na estrutura da comunidade política subsistem, em benefício de sua reprodução como modo de existência e convivência humanas, as formações originárias que naturalmente alimentam sua gênese mediante a conservação de sua organização elementar funcional. Por isso, tampouco parece descabido o asserto que reintroduz o escravo, homem dependente de outro homem, razão menoscabada que apenas reconhece e participa da razão do possuidor e cujas aptidões físicas e intelectuais o tornam incapaz à vida política (1254b14 ss), na relação entre o livre e o escravo em seu conjunto, reformulada como um esquema de conveniência comum imbuído de uma relativa amizade e cooperação recíprocas no interior do qual sedimenta uma condição de mando e obediência irreversível (1255b5 ss).38

Por natureza, a escravidão é, consequentemente, justa (díkaion, a2) e, dessa maneira, ancorada no vínculo mútuo de ambas as partes que se justifica e explica pelos seus lugares sistêmicos e a origem desenvolvida e progressiva do todo comunitário. Para a totalidade do corpo social, a escravidão aparece como uma pré-condição necessária, uma parte imprescindível, embora não definidora, de sua existência, situação “fática” da qual se deduz a especificidade dos princípios de governo (políticos e não políticos) e a base simétrica da superestrutural condição cidadã (I, 7, ab initio):

Essas razões põem também em manifesto que não é o mesmo o governo do amo (despoteía) que o da cidade (politiké), nem todos os poderes (arkhaí) entre si, como dizem alguns, pois um se exerce sobre pessoas livres por natureza e outro sobre escravos, e o governo doméstico é uma monarquia [monarkhía] (já que toda a casa é governado por um só), enquanto que o governo político é de livres e iguais (eleuthéron kaí íson).

O princípio político de autoridade por excelência debela o traço igualitário cum liberdade da cidadania genética, desenhando-se um modo epistêmico de mando no uso dos escravos,39 que em delegação ou relativo distanciamento brinda ao déspota ócio (skholé, VII, 14) e a possibilidade de dedicar-se “a fazer política ou filosofia”. (1255b37).

O igualitarismo da cidadania que Aristóteles remete à gênese processual, por e conforme a phýsis, fica fora de toda dúvida. Falta demostrar que esse traço igualitário entranha um caráter natural inerentemente democrático. Nesse aprofundamento argumentativo, ao que se chega num segundo momento e de modo derivado, aquele organismo posterior, surgido daquilo que vem primeiro na ordem da geração, leva a término um desenvolvimento perfeito e completo. (PA 646a24-b5; GA 742a18-b17; Phýs. 260b16-19, 261a13-14; Met. 989a15-17; È, 8; 1019a7-10 ). A pólis é um sistema acabado e o é porque primeira e mais plena que “a casa e cada um de nós”. Tecnicamente, numa linguagem conceitual, essa completude, ou perfeição, denomina-se autarquia (autarkeía), dado que a condição política do homem, sua felicidade, o bem perfeito e suficiente ao qual pode aspirar, não pode conseguir-se em situação de isolamento com respeito aos demais, desentendendo-se dos laços familiares, comunitários e cívicos que são a matéria subjetiva da vida comum. (EN 1097b8-11). Em outras palavras, esse bem humano, um fim em si mesmo (I, 7), antes que supor ou pedir a solitude, traz, em rigor, a confirmação de que cada um e cada lar se acha imerso numa trama de relações que só realiza a autarquia como resultado da cooperação social (EE 1242a7-8;40EN 1177a27-b1; 1178a34-b7). A analogia das partes que se encaixam entre si em nome do bem comum da cidade repousa, precisamente, na capacidade global que essa possui de total integração, funcionalização e individuação de tarefas e atividades coordenadas e complementares.

Se a autarquia consiste em “estar provido de todo e não carecer de nada” com vistas ao fim (Pol. 1326b29-30; EN 1097b15-17), então se adota de forma explícita a perfeita e completa função do todo: um ser humano situado fora desse todo que significa a pólis se assemelharia a uma mão ou a um pé separado do corpo e, portanto, destruídos (diaphthareísa: 1253a22), sendo, consequentemente, incapazes ou estando impossibilitados de lograr a autossuficiência. Sem embargo, prescreve o investigador, “temos de estudar o natural nos seres que se mantêm fieis a sua natureza (katá phýsin) e não nos corrompidos (diephtharménois)” (1254a36-37); por esse motivo, numa inversão exata da prioridade que faz da cidade um sistema em existência independentemente separada e funcionalmente completa, aquele que “não pode viver em comunidade, ou não necessita nada por sua própria suficiência”, não é um ser político, “mas uma fera ou um deus.” (ver supra). Aquém do natural impulso (hormé, 1253a29) à comunidade política, e do primeiro que a organizou ou compôs (systésas) erigindo-se em causa fundadora de grandes bens (30-31), somente existem a degradação biológica da espécie e a queda até os escalões mais baixos da animalidade (31-33, ss): “Assim como o homem perfeito (teleothén) é o melhor dos animais, apartado (separado: khoristhén) da lei e da justiça é o pior de todos...”.41

A autarquia denota, por conseguinte, a acepção sistêmica da suficiência por meio da integração da pólis completamente desenvolvida. A felicidade e o bem humanos seriam quimeras vãs em ausência da pólis e suas instituições: a condição política do ser humano se realiza em circunstâncias específicas de vida, em conexão e no interior do lar, com a família e na organização legal e educadora da comunidade - isto é, na interação sociopolítica da amizade (ver supra; EN X, 9; IX, 9; MILLER, 2001, p. 52, 66-7). Mais ainda, a reiteração conjugada das duas teses que desembocam no processo genético e formativo da cidade (Pol. 1253a25-26) une em imbricação mútua sua existência natural e prioritária: a autarquia proporciona as condições formais e materiais tendentes à realização do bem comum (tó koini symphéron) e fim principal da vida boa (zén kalós) tanto para a coletividade como para cada um separadamente. (1278b21-24).

Voltando ao subsistema das necessidades, cujos membros orgânicos se incorporam ao sistema prioritário devido à multiplicidade e reciprocidade da cidade, efetiva-se nele uma ordenação hierárquica que replica, na escala menor do lar familiar, uma função integradora e coordenadora análoga. O tema geral da propriedade (ktésis) e da riqueza (ploútos), ademais da escravidão que foi reconhecida como parte daquela, inclui, do ponto de vista da técnica, a economia ou a administração doméstica, encarregada de utilizar as coisas para a vida, e a crematística que, por natureza, é parte distinta da anterior, descrita como arte aquisitiva dos bens de uso e consumo alimentar. (1256a1 ss).42 Mas as partes relacionais da administração doméstica são três, e essas três relações verticais assimétricas acabam expressando de maneira invertida o paradigma democrático subjacente. Nada mais patente que a expressão de mando a partir das classes de autoridade, as quais personificam os elementos sociais da família, entre os quais se espalha a virtude de um modo desigual e de acordo com o papel ocupado. (I, 12, 13). Em especial, a administração doméstica deve zelar pelas virtudes dos homens livres, sem esquecer que a possessão das virtudes particulares (temperança, valor, justiça, etc.), como as enumerava Górgias, variam em cada membro elementar. Talvez ao escravo caiba, estando destinado a obedecer, participar da virtude, bem que seja em qualidade de instrumento servil das necessidades do lar. Em cada caso, seguindo a guia que havia proporcionado a alma, dividida esquematicamente entre o racional (tó lógon) e o irracional (tó álogon), há um princípio de mando e governo e um princípio de obediência entre todos os elementos do lar. Entretanto, as diferenças internas, originárias da natureza específica do governo, emanam de uma formulação abstrata dessa esfera sobreposta de liberdade política e acesso à deliberação cidadã. (1260a9-14):

O livre (tó eleútheron) rege ao escravo de outro modo que o macho à fêmea e o homem à criança, e em todos existem as partes da alma, mas existem de distinto modo: o escravo carece em absoluto (hólos) de faculdade deliberativa (tó bouleutikón); a fêmea tem, mas desprovida de autoridade [não-suprema: ákyron]; a criança tem, mas imperfeita (atelés).

A virtude moral perfeita (teléan [...] tén ethikén aretén, 17-8) e a medida em que todos devem participar (metékhein, 15) dela corre paralela, pois, a essas pré-determinações relacionais e, assim como acontece com a plenitude racional do mestre em seu ofício, cada um dos elementos domésticos a possui no grau correspondente e suficiente a sua função. (Érgon, 17, 18).

Contra Sócrates e a definição unívoca da virtude, o problema da excelência moral, da sua racionalidade intrínseca e possessão “gradual”, tomando como base a unidade econômica da pólis, tem de ser explicado em sua generalidade e particularizado para cada elemento relacional doméstico e categoria sociológica da oikía, um estado resultante do processo natural de divisão entre o governante genérico e o subordinado (20 ss). O escravo e a escravidão, parte e situação cruciais desse subsistema econômico, ajudam a fixar com clareza, em conformidade com as pré-condições biológico- materiais demarcadas pelas tarefas corporais atreladas aos trabalhos necessários (tanankaía khrésimon, 34), o umbral híbrido em que se pode entrever o exclusivo espaço político.43 Expresso numa prescrição contundente, uma vez estabelecido que a comunidade familiar é parte da cidade, e as relações domésticas, partes constitutivas do lar, as virtudes e funções das partes devem examinar-se em sua conexão funcional com o todo, ainda mais sabendo, como tem sido suficientemente dito, que mulheres e crianças são também partes necessárias da cidade, categorias sociais adscritas, determinadas pela natureza no sentido político das implicações estruturais que Aristóteles concede nesse contexto ao vocábulo, a serem educadas tendo em vista, em concreto, o desenvolvimento genético e organizativo que conforma a constituição ou regime (in fine).

A estrutura formal e o desenvolvimento socionaturais que Aristóteles avalia e convalida excedem qualquer tipo de legitimação simples e direta. A análise que efetua é sistemática, funcional e orgânica, centrada nos fundamentos materiais e partitivos da totalidade humana. Nessa investigação da realidade das comunidades helênicas antigas, da sua história e sua base de produção escravocrata, da sua política e de sua esfera igual de cidadãos livres, e da absorção e superação das comunidades originárias por um processo natural de incorporação progressiva, emerge a política em seu acerto de contas com as etapas formadoras da cidade e os predecessores que propuseram constituições na prática e na teoria (Pol. II). Aristóteles vasculha numa política experimentada e indagada, excludente e livre, igualitária e hierarquizada, e racionalmente grega. A política, assim entendida, gravada em conceitos, proposições e argumentos, é a que conheceram as singulares póleis e a pólis de Atenas. Sua nota específica, acaso a de toda política, acolhe uma práxis teorizada consumida na vida coletiva e no movimento do tempo, passado arcaico e familiar da monarquia, presente da democracia,44 futuro de uma existência primeira. (1259b1-17 ad finem):

Três eram as partes da administração doméstica: a do senhorio [...], a paterna e a conjugal. O pai e marido governa a sua mulher e a seus filhos como a livres em ambos os casos, mas não com a mesma classe de autoridade: mas à mulher como a um cidadão (politicamente: politikós) e aos filhos de modo real (basilikós). Com efeito, a não ser excepções anti-naturais (pará phýsin), o macho é mais apto para a direção que a fêmea, e o de mais idade (presbíteron) e homem já de fato (completo: téleion), mais do que o mais jovem e ainda imaturo. Pois bem, na maioria dos regimes de cidadãos (en [...] taís politikaís arkhaís taís pleístais), estes alternam (metabállei) sucessivamente nas funções de governante e governado (pois são iguais quanto a sua natureza [tén phýsin] e não diferem nada) [...]. A relação do macho com respeito à fêmea é sempre dessa maneira. Diferentemente, a autoridade que se exerce sobre os filhos é régia, porque quem os engendrou governa em razão do afeto e de sua maior idade, no que consiste precisamente a essência da autoridade real. Por isso Homero invoca com razão a Zeus chamando-o “pai dos deuses e dos homens”, já que é rei de todos eles. O rei tem de ser, com efeito, naturalmente distinto dos súditos, mas da mesma casta, e nessa relação está o mais velho com respeito ao mais jovem e o pai com respeito ao filho.

***

A significação democrática do naturalismo político de Aristóteles não costuma atrair atenção especializada. Os trabalhos dirigidos a reconstruir a teoria e os princípios democráticos do mundo grego repararam, de uma parte, nas alegações que os democratas do século V, ora expondo razões diretas (Cléon), ora apresentando uma reivindicação do ideário e o imaginário cívico (Péricles), proferiram em resposta aos partidários da oligarquia e aos críticos da elite culta ateniense. (TUCÍDIDES, [História da Guerra do Peloponeso], III, 37, II, 37-41 apud FORREST, 1988, p. 200-2). De outra parte, derradeiramente, mas com base nos discursos de oradores e retóricos do século IV, pareceu aceitável recriar as linhas argumentativas elaboradas em face das ofensivas contrarrevolucionárias e as intervenções crítico-intelectuais vindas da filosofia teórica de Platão e, em diversa espécie, de Aristóteles (ver, por exemplo, Lísias e, sobretudo, Demóstenes, ambos citados em Jones (1958, p. 41-62). Qualquer que seja a escolha trilhada, os fundamentos estruturais, biológicos e sociológicos, modulados por uma argumentação raciocinada como a que informa o Livro I da Política em seus dois primeiros capítulos, permaneceram à margem da cogitação interpretativa.

Ao contrário, foi Aristóteles o mais agudo observador que notou que a democracia estava intimamente ligada à evolução natural das comunidades primigênias da pólis. O decurso formativo dessas comunidades e da comunidade política suprema resolve-se, em sua perspectiva, na sucessão própria do tempo e do movimento dos seres vivos. Por isso, a tese segundo a qual a cidade é primeira com respeito à casa e a cada um de nós demanda a existência natural de um ser substancial orgânico de acordo com uma concepção sistêmica e funcional de sua gênese e de seu desenvolvimento. Até que ponto tão impactante concepção porta consigo um mero expediente metódico, uma heurística refinada e analógica, ou uma autêntica definição e caracterização relativa a uma espécie de supraentidade orgânico- compreensiva de outros órgãos que, enquanto são partes formadas, integraram-se, em coordenação e complementação recíproca, desempenhando suas funções e cooperando com vistas ao fim e ao bem superior do todo primeiro, deveria a essa altura da exposição já ter sido esclarecido. Em verdade, não há divórcio entre o caminho para o conhecer e o conhecimento em si mesmo mais do que como instâncias analíticas de uma síntese intelectual única, fases contínuas do método da ciência e da ciência com método, que induza a deslindar aquilo que costuma ser dito e ouvido na linguagem da investigação e no processo de raciocínio conclusivo. (Met. 995a12-14, 994b32-995a12): “É preciso aprender previamente como poderá ser compreendida cada coisa, pois é absurdo buscar ao mesmo tempo a ciência e o modo da ciência.”

Não menos imaginável é acessar a compreensão da natureza evitando os caminhos que conduzem a ela, porém ainda menos fatível seria retirar da demarcação do naturalismo político ali contida a intervenção humana reclamada por esse princípio de movimento e mudança que, nas fendas de incompletude que sua constância e regularidade não chegam a obturar, descobre e possibilita a causa eficiente e criadora: a força e a finalidade que nos impulsionam à vida política não teriam completado seu processo de não haver sido o primeiro benfeitor que fundou a pólis. (1253a29 ss, ver supra).45 A ação do homem, mais (mállon) um ser político que qualquer animal gregário por estar dotado de palavra (lógos; 1253a7-9 ss) e dessas “armas” com as quais “engendra” a justiça, a prudência e a virtude (1253a33-37), pressupõe a prioridade natural do todo e a matéria plural que a phýsis informa e fornece.46 Desenrolado esse plano antropológico posterior, Aristóteles se sente mais uma vez forçado a repor a estrutura em sua visão de síntese. A justiça (dykaionsýne; díke), que arremata o segundo capítulo do Livro I da Política, é uma coisa política (politikón), a ordem ou a organização (táxis, 1278b9) da comunidade particularizada em cada juízo a - racional e discursivo - do que é justo. (1253a37 ad finem). Partindo da origem e culminando no fim e na organização da cidade, que não é mais que a constituição na forma da identidade de si e da determinação dessa ordem (1276b2, 1278b9, ver supra), perpassa o significado da prioridade do sistema político, de sua história desenvolvida e da evolução orgânica da cidade grega, gravado na tradução da realidade em pensamento e conceitos. Oscilante entre a teoria política de Aristóteles e a atitude prática e intelectual de crítica e justificação da experiência singular da Atenas antiga, a democracia (entendida como processo de geração) foi, porque ainda é para todo o tempo inacabado, um caminho para a democracia.

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1As traduções do inglês e do espanhol são sempre minhas.

2Ver também o artigo no qual Ober (2008) resenha o atual estado da discussão em torno da democracia ateniense, servindo aqui de apoio às próximas linhas.

3Para uma consideração dos autores e pensadores clássicos vinculada à teoria política e à democracia de Atenas, desde a Idade Arcaica e passando pelo percurso da ideia democrática assumida pelas diferentes concepções do homem em suas fases trágica e religiosa, da Ilustração sofística, tradicionalista e ético-filosófica, ver também Rodríguez Adrados (2007). Para um trabalho em língua hispana subsidiário do enfoque antecedente, fundamentalmente centrado no fenômeno literário dos gêneros discursivos coetâneos à “configuração da comunidade [ateniense] como sujeito político a partir do agir da assembleia”, que se permite assim incorporar as obras da história, da sofística e da tragédia de Ésquilo por sua imanência ao pensamento da política e aos desdobramentos da democracia, ver Gallego (2003, p. 23). Mais uma vez, o interessante para esse historiador é sublinhar as insuficiências da teoria político-deliberativa de Aristóteles, tendo como ponto de referência o Livro III da Política, insuficiências que revelam suas limitações para captar o caráter performativo do dispositivo da assembleia do povo. (Cap. V).

4Ver Tierno (2012), para uma primeira formulação da questão que faz um exame da bibliografia qualificada. Tem-se que fazer, no entanto, duas ressalvas: uma teoria assim reconstituída só poderia servir como ferramenta heurística se, ademais, permitisse iluminar o passado intelectual arcaico do ponto de vista político (primeiros pensadores gregos); e, por adição, se essa teoria pudesse ser contrastada com o background cultural e artístico no qual se inseriu e que, ao mesmo tempo, promoveu-a, o que obriga a levar em conta a tragédia e sua multivocalidade, o status problemático da comédia, e a abrangente sanção de uma paideía ao longo do século IV. Sobre a primeira matéria, com uma cobertura parcial, ver Tierno (2017); sobre o estatuto social da tragédia e da comédia, suas implicações democráticas e para a teoria política, ver Hall (2003); Winkler; Zeitlin (1992); Euben (1986).

5Seguindo a ordem de aparição dos três enfoques mencionados: para o primeiro, ver Wolff (1999, p. 103-51; 1993); para o segundo, ver Aubenque (1993; 2003); para o terceiro, ver Narcy (1993). Mais recentemente, com possibilidades de ser incluído no último enfoque, Melissa Lane (2013) renovou o tratamento da deliberação democrática efetuado em Pol. III, 10-18, a seu entender concludente em favor de uma concepção minimalista do processo institucional decisório (semelhante ao da democracia representativa), enquanto se diferencia desse por sua defesa da participação popular nas deliberações e na prestação de contas dos magistrados (contra uma concepção a Schumpeter que rejeita a ideia de que o povo realmente governe, inclusive quando escolhe, processo eleitoral mediante suas autoridades).

6Para a reconstrução de uma perspectiva assaz diferente que, adotando um rigorismo lógico exagerado também alimentado pelas premissas complementares concernentes à filosofia natural de Aristóteles, procura exibir a inconsistência das teses naturalistas ao deduzi-las dos respectivos argumentos políticos (formalizados) - ver, por exemplo, a gênese natural da pólis, a natureza e o fim político do homem, sua capacidade linguística distintiva e o caráter orgânico do todo comunitário -, ver Keyt (1991).

7 Bradley (1991, p. 14 ss), que incidiu na síntese de Baker, igualmente enfatizou as particularidades das “condições políticas” do Estado grego.

8 Wolff (1999, p. 35-45).

9Xenofonte, Memoráveis, III, 4, 12; tb. III, 6, 14, passagens destacadas por Wolff (1999, p. 46-7, n. 6); para a concepção madura de Platão, ver. Rep. 416d-417b e esp. Livros V e VI.

10As traduções e modificações para o português das edições das obras de Aristóteles em inglês ou espanhol são sempre minhas.

11Esses princípios firmam-se no livro anterior: ver Phys. I, 7, 8.

12Met. Ä, 4. Sobre os “diferentes” significados de phýsis em Aristóteles, ver Guthrie (1999, p. 142).

13Para o parágrafo que vem a continuação, Miller (2001, p. 27-29).

14Met. 1032a12 ss. Há, não obstante, uma exceção relevante, que não o é tanto se constatamos que se trata da região do universo situada acima da linha que divide os elementos simples e inferiores (como a terra, a água, o ar e o fogo) dos corpos celestes, sendo esses últimos seres divinos como a própria lua, o sol, os planetas e as estrelas fixas, contidos em esferas compostas de invisível e eterno éter, porém de existência natural e necessária e em permanente movimento circular irregular: Key (1991, p. 122-3), junto à observação crítica de Miller (2001, p. 37, n. 25), e os trechos primários, os comentários secundários e a sucinta observação da n. 15, infra.

15EN 1162a15-24; De an. 415a27 ss GA II, ab initio. A perpetuação das determinações fixas de um grupo postula, através da geração, a eternidade das espécies, o ciclo da natureza que se dá no nascimento e na morte de cada ser individual enquanto integrante da unidade específica do eídos: para as considerações biológicas, cosmológicas e ontológicas implicadas nessas determinações. (WOLFF, 1999, p. 55-9).

16A superioridade do senhor sobre o escravo reverte, acaso em igual medida, na incompletude natural de ambos, revelando-se em sua dependência recíproca que também o trabalho econômico, executado na comunidade doméstica, é produto de uma obra comum hierarquizada. Não obstante, e diferentemente do que acontece entre os bárbaros, é preciso ver que a relação entre o homem e a mulher ocupa um posto distinto “porque a natureza [...] faz [...] cada coisa para um só fim [uma coisa só]; e cada órgão pode levar a cabo sua função da melhor maneira se não serve para muitas, mas para uma só”. (1252b1-5): ver Wolff (1999, p. 60-4).

17O vilarejo representa, por sua parte, a superação empírica da dispersão primitiva dos homens, ao passo que comprova a estagnação evolutiva da monarquia entre os bárbaros e a ativa vigência desse mesmo governo na vida dos deuses.

18 Wolff (1999, p. 67), quem remete a EN 1162a16-24, em passagem que parece mais apropriado ler em combinação com 1160a8-29 por sua melhor inserção no tema da amizade, e, numa remissão menos fidedigna, a Pol. 1328b6-14, que, no contexto de sua localização em VII, 8 induz a ser entendida fazendo alusão às partes necessárias, mas não essenciais ou definidoras stricto sensu, da cidade, tendo em vista os requerimentos funcionais que ela deve preencher, a fim de conseguir uma vida autárquica. (ver também, infra).

19 Wolff (1999, p. 68-70).

20Protágoras (Prot. 322b-c) e Platão (Rep. 369b-c) já haviam sublinhado as insuficientes técnicas defensivas, de reunião e de abastecimento do homem na origem das cidades (WOLFF, 1999, n. 16). Quanto às motivações para a convivência segundo Aristóteles, ver infra.

21O termo tem reminiscências trágicas, sobretudo ao recuperar o motivo do herói que se vê forçado a sair dos limites da sua comunidade política em condição de exilado ou, inclusive, que corre o risco de ficar, completamente, sem pólis. Para o uso do vocábulo ápolis, ver Filoctetes, v. 1018, Édipo em Colono, v. 1357, Antígona, v. 370 e Hall (2003, p. 97); no entanto, o encontramos, acercando-se a esse sentido, igualmente em Heródoto (VIII, 61, 3).

22Para Balot (2006, p. 238), a teoria naturalista de Aristóteles aplica-se à combinação dessas três teses, que suportam uma “definição politicamente robusta do indivíduo”. Outras análises têm preferido resolver a hierarquia daquelas proposições: Keyt tornou a tese do animal político um corolário da existência natural da pólis, e esta última, uma premissa da tese da prioridade da cidade; Miller, corrigindo-o, subordinou a existência natural da cidade a uma interpretação teleológica que converte a natureza humana no fundamento último da pólis, uma vez que a prioridade desta é interpretada no sentido do desenvolvimento completo e específico da comunidade (um todo), cujo fim compartilham os seus membros (partes) através da realização de suas funções naturais. De modo que, de repente, as conclusões de Miller dão de cara com a concepção individualista auferida por Balot. Um desdobramento estimulante e mais recente do naturalismo político de Aristóteles que renova a ênfase no zSon politikón entende que o homem, agente da ação, só pode se aperfeiçoar moralmente na pólis, fundando a interação social na prática da justiça para com os outros (ZINGANO, 2013, p. 201-3).

23De acordo com o particípio passivo aoristo teletheíses da linha 33 e o téleios transcrito supra, na linha 28.

24Exemplos de coisas naturais que vem a ser em direção ao fim (24-32): as folhas das plantas, que existem para proteção do fruto, ou suas raízes, que crescem para abaixo com vistas ao alimento; e o ninho construído pela andorinha e a teia da aranha, que são, por natureza, para algo.

25Homonímia: Cat. 1a1-6; De an. 412b17-22; Meteor. 389b31-390a16; PA 640b29-641a5; GA 734b24-31. Comparação da cidade com o corpo de um ser vivo ainda na Política: 1277a5-6; 1290b23-39; 1302b33-1303a2; 1309b18-35; 1326a35-b2 (neste excerto, ademais, aquela é comparada a um artefato). Para o conteúdo resumido e algumas considerações gerais sobre cada passagem, ver Kraut (2002, p. 213, n. 40; p. 255, n. 18).

26Sobre as projeções normativas do conceito de natureza na Política, tanto com base no caráter natural da pólis quanto a partir da definição do homem como zSion politikón, ver, em cada caso, Reeve (2009) e Lord (1993).

27Usualmente, vemos consignados quatro sentidos de prioridade ou anterioridade: a) genético (sentido temporal); b) cognoscitivo (denotado, ora na fórmula da definição, ora na percepção dos individuais); c) completa (sentido referido ao desenvolvimento pleno); e d) substancial (sentido ementado na existência separada). Para esse leque de sentidos, sua localização no corpus e a análise de seu respectivo emprego para significar a posterioridade de cada indivíduo com respeito à cidade, ver Miller (2001, p. 46-56); Keyt (1991, p. 126-7, 135-40). Por acréscimo, Kraut (2002, p. 253-76), respaldado pelas peculiaridades do contexto ético-político, contempla a possibilidade de que a tese da prioridade cívica tenha um sentido de avaliação próprio associado ao bem maior da pólis e, portanto, prático e valorativo. Enfim, vinculada à hipótese de argumentação sustentada neste trabalho, uma apropriação particular e derivada dos sentidos (c) e (d) será efetuada adiante (v. infra).

28A palavra sýstema reitera-se em outras partes dos tratados, v. g.: na obra biológica, significando um todo orgânico composto de partes ou membros (GA 740a20; 752a7 e 758b3); no inautêntico De Mundo, como todo organizado (391b9); e, sob a forma de composição literária, em Poet. 1456a12.

29Acerca das relações de correspondência entre a metafísica e a política de Aristóteles, de uma “metapolítica” e uma “teoria metafísica da sociedade” exageradamente essencialista plasmada na teoria política dos princípios que se deriva das quatro causas aristotélicas, ver Riedel (1975).

30Sobre a reciprocidade nas associações de intercâmbio e a concomitante proporcionalidade, mas não igualdade, que por essa via mantém unida à cidade, ver EN V, 5. Por certo, a pólis não deve confundir-se nem com uma aliança militar, nem com uma tribo ou um povo, já que nesses dois agrupamentos importa, sobretudo, a quantidade (Pol. 1261a24-29; III, 9, 1280a25 ss, ad finem).

31EN 1098a16-18 (13-16; I, 7-8): “O bem humano é uma atividade da alma conforme à virtude (kat’ aretén), e se as virtudes são várias, conforme à melhor e mais perfeita, e ademais em uma vida inteira.”

32EN 1099a32-33 (1099a31; 1101a15-16; sobre a autarquia da vida contemplativa, 1177a28-b26, 1178a22-b7, 34-1179a9; Pol. 1289a32-33; 1323b40-a2; e, sobre a natureza e as condições necessárias da felicidade, EE I, 2): “Pois é impossível ou não, é fácil fazer o bem quando se está desprovido de recursos (ónta [coisas, propriedade, fortuna])”.

33Ou, do ponto de vista da doutrina da substância, fala-se dos “acidentes inerentes” à entidade enquanto tal: Met. 1025a30-32.

34Nesse sentido, para Luhmann (1998, p. 199-200, 284-5), as imposições normativas da ordem social e o desenvolvimento da natureza humana, com especial relevo na passagem do zSion politikón para o animale sociale medieval, remetem à capacidade racional do ser humano (phrónesis, ratio). Essa questão, obviamente, repercute nas teses de Aristóteles sobre a “politicidade” natural e o lógos antropológico, que por razões de foco e delimitação argumentativa não é possível discutir neste ensaio. Contudo, uma argumentação futura exigiria, é justo reconhecê-lo, reconstruir as conexões lógicas do naturalismo político em sua totalidade.

35Merece destaque o fato de que a biologia moderna atualizou e reabilitou a ciência natural de Aristóteles. “O biólogo sistêmico B. Ø. Parsons - agrega Leroi - o colocou do seguinte modo: ‘os componentes vêm e vão, portanto uma característica chave dos sistemas viventes é como seus componentes estão conectados entre si. A interconexão entre células e componentes celulares define a essência do processo da vida’. Retiremos a referência às células e isso é Aristóteles puro.” (LEROI, 2015, p. 176-7). Para um modelo formalizado do ciclo termorregulador cardiorrespiratório com o qual se ilustra o insight sistêmico e cibernético do filósofo, ver também, Appendix IV, pp. 403-4. No passado, as leituras filosófica e filológica tinham assinalado outras maneiras de compreender o conceito de sistema em Aristóteles: como a analítica própria desse e a sistemática dos comentadores da antiguidade tardia (JAEGER, 2002, p. 426 ss) e, retomando o juízo de Jaeger sobre a filosofia de Aristóteles, como unidade do conjunto e rede conceitual (BERTI, 1997, p. 320 ss).

36Na visão de Kullmann, o símil biológico tem apenas uma utilidade heurística, emprestando um auxílio metafórico próprio de um “modelo analógico” (W. Friedler): apudKullmann (1991, p. 98, n. 12; p. 108-14).

37Para a problemática da escravidão nesses capítulos da Política, com comentários críticos da bibliografia secundária essencial, ver Wolff (1999, p. 96-102); e, mais extensamente, Tierno (2016).

38É coerente com minha interpretação a evidência textual que mostra como Aristóteles, a despeito da adscrição funcional e ante a admitida impossibilidade de se ter uma verdadeira amizade com o escravo enquanto escravo, não o exclui nem lhe nega a própria condição humana (EN 1161b4-7). Na mesma tessitura, pontua que, por idênticas razões, o escravo não pode aspirar à felicidade, já que ele nunca teve a chance de “escolher (katá proaíresin) sua vida.” (Pol. 1280a33-34).

39Antecipando a discussão do conhecimento aquisitivo, Aristóteles assinala (1255b37-40): “Quanto à ciência de adquirir escravos -entende-se, de um modo justo- [...] se relaciona com a guerra ou a caça.”

40Citado em Miller (2001, p. 50).

41Os termos e o texto dos manuscritos são examinados por Miller (2001, p. 51).

42A crematística natural contrapõe-se, na análise evolutiva das formas de aquisição e produção do alimento e das formas de intercâmbio de bens (troca limitada pela necessidade compra e venda mercantil via introdução convencional da moeda), à crematística artificial, ilimitada e desnecessária, condição da acumulação e da usura, em geral, I, 8-11.

43Em razão disso, todos aqueles que “participam” de alguma sorte de “escravidão”, mesmo que limitada como no caso do artesão ou artífice manual (bánausos tekhnítes), mostram- se proporcionalmente condicionados no que diz respeito à virtude, sem no entanto estarem implicados de modo idêntico numa relação despótica de dependência completa e estabelecida “por natureza” com um possível amo (v. e cf. 36-b7).

44A democracia sobreveio de uma combinação de fatores diversos, entre os que se consideram o progresso técnico-econômico e demográfico, a participação das camadas médias e populares e a pressão exercida sobre as estruturas políticas e sociais. (1297b16-28, 1286b7-22).

45“Todo o que se deve à [n]atureza, produz-se assim sempre ou pelo geral (é aieí hoúto gígnetai é hos epí tó polý)” (Phýs. 198b35-199a1), ao passo que “deliberamos sobre o que está ao nosso alcance e é realizável (tón eph’ hemín kaí praktón)” (EN 1112a30-31), vale dizer, acerca daquilo “que acontece por mediação nossa não sempre da mesma maneira.” (b3). A aproximação do âmbito da contingência cosmológica de Aristóteles, o qual compromete a virtude intelectual da prudência (phrónesis; EN, VI), abrange, enquanto espaço de indeterminação próprio da ação humana, sua designação e situação relacionadas à natureza e à arte, aos acidentes e ao acaso, ao que se dá por necessidade (Phýs. II, 4-9), e aos assim chamados “falhos” da geração natural (GA IV, 3-4): para essa cosmologia estruturante, recomenda-se a central monografia de Pierre Aubenque (2003, esp. Segunda Parte, Capítulo II, §1º); para o problema da analogia entre a natureza e a arte, ver Guthrie (1999, p. 126-9). No contexto político de que se tem ocupado este estudo, o dilema da natureza e da arte reaparece insistentemente ante cada tentativa de reconstrução das teses naturalistas (MILLER, 2001, p. 38-9, 41-2). Por razões óbvias e antes consignadas (supra, n. 34), não será possível tratar desses desdobramentos antropológicos e de suas ramificações modernas na atual abordagem, cujo interesse radica num mais estrito recorte de interpretação: para as devidas ampliações acerca da feitura artificial do legislador como causa motriz (fundadora) da justiça e de toda vida política, ver Miller (2001, p. 56-66) e Wolff (1991, p. 94-5).

46“Da mesma maneira que a política não faz os homens mas os toma da natureza e se serve deles, [...] não é próprio da arte têxtil fabricar a lã, mas se servir dela e saber qual é boa e útil e qual ruim e inútil.” (1258a21-27).

1 Cf. nota 62 de LOPES, Daniel R. N., em Górgias de Platão: obras II. São Paulo: Perspectiva, 2011. Independentemente do modo de interpretação da filosofia platônica, se é o tradicional ou da doutrina não escrita, parece que alguns conteúdos como o que seja o Todo, o Bem, os Princípios, especialmente na leitura da Carta VII, são tematizados pela oralidade dialética, portanto, não são expostos como as demais questões e por escrito.

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