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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.spe3 Caxias do Sul  2018  Epub 02-Set-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.dossie.4 

Artigos

A vontade geral não se representa, sempre se presume

The general will is not represented, there is always a presumption of feudalism of liberalism

João Carlos Brum Torres* 

*Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP).


Resumo

A comunicação divide-se em três partes. Na primeira, trata de apresentar os pressupostos conceituais da tese de Rousseau de que a vontade geral é irrepresentável. Na segunda, com base no ocorrido já ao início da Revolução Francesa, mostra que, historicamente, a tese não teve herdeiros. Na terceira parte apresenta as razões que autorizam sustentar a priori que todo poder político é necessariamente representativo e chama atenção para o fato e para o modo em que o Estado de Direito contemporâneo trata de controlar e remediar as distorções políticas inerentes à natureza representativa do poder político.

Palavras-chave: Rousseau; Vontade geral; Poder político; Representação política

Abstract

This paper is divided in three parts. The first presents the conceptual pr esuppositions of R ousseau’s thesis upon the irrepresentable character of general will. Based on what has happened already at the start of French Revolution, the second part shows that such thesis had no heirs. The third part presents the reasons allowing to sustain, in a priori terms, that all political power must be representative and insist in the way contemporaneous Constitutional State deals to control and to remedy the political inconveniences, imbalances and injuries which are inherent to the representative nature of political power.

Keywords: Rousseau; General Will; Political Pow er; Political Representantion

I

No capítulo XV do Livro III de O Contrato Social, Rousseau diz:

A soberania não pode ser representada pela mesma razão por que não pode ser alienada; consiste essencialmente na vontade geral e a vontade absolutamente não se representa. É ela mesma ou é outra, não há meio termo. (1964, p. 429; 1962, p. 85; 2007, p. 107).1

Quase dois séculos depois, na turbulenta Alemanha dos anos 30, Eric Kaufmann, um dos grandes juristas do período, em um pequeno ensaio intitulado Sobre o problema da vontade do povo, viria a condenar exacerbadamente essa tese rousseauísta declarando: “O maior e mais portentoso erro jamais feito em teoria política é o dito de Rousseau: “La volonté ne se représente pás”. (Apud JACOBSON; SCHLINK, 2002, p. 198-199).

Como se sabe, em primeira instância, a posição de Rousseau estava baseada na ideia de que o querer é uma disposição subjetiva havida e determinada sempre em um certo momento do tempo, constitutivamente passível de modificação e, nessa medida também porque imprevisível - insuscetível de transferência a outrem. Este ponto é expresso com grande clareza no Manuscrito de Genebra, no passo em que nos é explicado não apenas que “seria uma temeridade afirmar que se quererá amanhã o que se quer hoje”, mas também a necessidade de se reconhecer que:

a vontade geral que deve dirigir o Estado não é a de um tempo passado e que o verdadeiro princípio da soberania é que haja sempre acordo de tempo, lugar e efeito entre a direção geral da vontade geral e o emprego da força pública, acordo sobre o qual já não se pode contar tão logo uma outra vontade [...] venha a dispor dessa força. (ROUSSEAU, 1964, p. 295-6).

Conquanto, à primeira vista, o pensamento expresso nessas passagens seja claro, a verdade é que ele se sustenta com base em supostos e justificativas que são menos facilmente reconhecíveis e tem implicações que não são fáceis de aceitar. Para tratar de pôr isso à luz, antes de mais, é oportuno observar que o texto manifestamente faz eco à doutrina das unidades de lugar, tempo e ação próprias da tragédia, antecipadas parcialmente na Poética de Aristóteles, a qual foi canonicamente regimentada no século XVIII por Boileau, cabendo, porém, desde logo advertir que, no caso da política, a fundamentação da exigência dessa tripla unidade terá que ser inteiramente outra. Neste segundo domínio não se trata, é claro, de assegurar a consistência da encenação e de garantir a atenção do público, mas antes de reconhecer que as expressões de nosso querer são sempre locadas em tempos e lugares definidos, de modo que a determinação material do que fazemos é sempre indexada segundo essas dimensões contextualizadoras, por condicionamento das quais, além disso, é determinado também o nexo que liga o querer verdadeiro à ação e que o distingue tanto das abstratas especulações sobre o que fazer quanto das meras inclinações.

No caso de Rousseau, isso não quer dizer que se deva identificar a vontade ao último apetite, nem que se deva ter a este, ou ao medo, ou à esperança que sentirmos em um e outro contexto como sendo a própria vontade, à maneira hobbesiana,2 pois, para o genebrino, a vontade está submetida à consciência, no sentido normativo da palavra, isto é, à regra íntima que nos diz o que é preciso fazer.3 Todavia, como Rousseau também sustenta, que, não obstante caber, assim, à consciência dar a norma do bem-querer, é decisivo entender que ela só poderá cumprir essa função a de bem regrar a vontade, repita-se se a razão lhe indicar e disser o bem a ser querido.4 No entanto, tal vinculação à e dependência epistêmica da vontade à razão, não levará Rousseau, contrariamente a Kant,5 a admitir que, passados ao domínio da política, caberá não só aceitar, mas a tomar como necessário que a vontade seja representada.

Mas por que não? Que razões, argumentos de que ordem justificam a tese da irrepresentabilidade da vontade, tão fundamental na estruturação da doutrina política rousseauniana?

Bem, creio que primeiramente por uma razão ao mesmo tempo psicológica e epistêmica, que Rousseau apresenta lacônica e um tanto enigmaticamente ao afirmar:

O soberano pode muito bem dizer: “‘Quero, neste momento, aquilo que um tal homem deseja, ou, pelo menos, o que ele diz desejar”. Mas não poderá dizer: “O que esse homem quiser amanhã, eu também o quererei, por ser absurdo submeter-se a vontade a grilhões futuros [...].” (ROUSSEAU , 1964, p. 368-369; 1952, p. 53; 2007, p. 42).

Um tanto enigmaticamente, digo eu, porque, afinal, explicado não está por que Rousseau tem como absurdo submeter a vontade a grilhões futuros. Para elucidar o ponto, não basta recordar a tese hobbesiana de que “a vontade ela própria não pode ser dita voluntária” (HOBBES, 1992, p. 109; 1982, p. 144),6 mas é preciso ter presente que quando a vontade determina nosso agir, seja quando, comissivamente, fazemos algo, seja quando, omissivamente, agimos por abstenção, ela o faz, como dito há pouco, necessariamente de modo indexado, em função das circunstâncias que situam o agente em lugar e tempo determinados, em meio a uma cadeia estruturada de ações para cujo prosseguimento a vontade é chamada a dar orientação. O que é também dizer que um pressuposto essencial da tese da irrepresentabilidade da vontade é que não somos senhores do que sobrevém no espaço, no tempo e na grande intriga de que somos parte, de modo que a determinação de nosso querer futuro é uma variável insuscetível de encontrar argumentos, para apresentar o ponto tomando de empréstimo termos de lógica. Esta é a razão que leva Rousseau a dizer que, muito embora possamos em um ponto determinado do tempo dizer: quero o que este homem quer’ é insensato dizer que quereremos o que ele vier a querer amanhã.

No entanto, impor ta reparar que a Hobbes isso não parecia absolutamente assim, pois, segundo a lógica das autorizações, que bem trivialmente comanda nosso estabelecimento de procurações e mandatos, podemos, sim, nos fazermos comprometidos com a vontade daqueles a quem tivermos delegado poderes. Por certo, isso exige grande consequência de quem institui um representante, uma visão firme das razões que nos levam a fazer tais delegações, seja, para dar exemplos, ao médico que nos trata, ao piloto que conduz o avião em que viajamos, ou o governante a quem delegamos nossos poderes. Para Rousseau, no entanto, isso não pode ser assim. Não pode porque nossa vontade futura poderá não coincidir com a vontade futura de quem tivermos constituído como nossos procuradores, o que, muito embora, para o bem e para o mal, nos force a sofrer e a assumir as consequências desses atos delegatórios, não por isso nos fará necessariamente querer no futuro o que nossos representantes quererão.

No entanto, a possibilidade de separação do querer futuro de quem faculta a outrem deliberar por si em circunstâncias vindouras, não é mais do que um primeiro aspecto da doutrina rousseauista que fundamenta o princípio da irrepresentabilidade da vontade. Nesse plano de argumentação, o absurdo atribuído por Rousseau à admissão de que quereremos amanhã o que vier a ser querido por nosso representante está baseado unicamente em elementos factuais, justificado em vista das duplicadas contingências que, no plano psicológico e existencial, são as das mudanças no que quereremos ou deixaremos de querer no desdobramento de nossas vidas, e que, no plano objetivo, derivam das imprevisíveis variações sofridas pelo curso do mundo.

No entanto, este argumento é fraco, pois a ele se pode imediatamente opor a observação de que, a admiti-lo, ter-se-ia que também que rejeitar o conceito de obrigação, pois a promessa, ou qualquer outra obrigação de fazer, supõe que, ao adimplir, o faremos voluntariamente. Além disso, é o próprio Rousseau que vincula o conceito de vontade ao conceito de consciência e que entende que esta última é coextensiva à razão, visto que segundo sua análise toda ação decorrente da vontade, distintamente do que fazemos por força das paixões ou por coação, decorre do acerto de nossos juízos. (ROUSSEAU, 1966, p. 364).

Em vista disso, para ganhar consistência, a inadmissão por parte de Rousseau de que possamos vir a ter como nossa a vontade futura de um mandatário, precisa ter como fundamento alguma outra e mais forte razão, o que é exatamente o que se vê ao continuar a ler o texto.

Em primeiro lugar, nos não tão frequentes passos em que fala em termos abertamente metafísicos, Rousseau diz: “eu não sou livre para não querer meu próprio bem”, (ROUSSEAU, 1966, p. 364) afirmação que, contudo, não nos deve levar a concluir que, que mudadas as circunstâncias em que nos encontrarmos, estaremos sempre livres para renegar nossos compromissos. Esse ponto fica claro já à leitura imediata desta passagem, pois a sentença se encontra na mesma página do Emílio em que Rousseau se dedica a mostrar longamente que todos os males que nos afligem provém justamente do que nós mesmos fazemos. Ambas estas qualificações mostram que a determinação modal da necessidade de querer o próprio bem tem caráter puramente normativo, dependente de um esclarecimento da vontade pela razão, graças ao qual, ao agirmos, devemos levar em conta o que nos constitui mais essencialmente e que normativamente exige que não nos deixemos levar por paixões e interesses incidentais, malgrado o fato de que, dada nossa constituição física, psicológica e socialmente influenciável, isso ocorra com frequência.

É verdade que, sendo assim, poder-se-ia pensar que o princípio de que não somos livres para não querer o nosso próprio bem, longe de poder servir como escora à doutrina da irrepresentabilidade da vontade, na verdade a debilitaria, pois se poderia arguir que se o conteúdo do verdadeiro querer depende de um escrutínio racional do que nos constitui mais essencialmente, os resultados dessa análise poderiam muito bem ser epistemicamente acessíveis a qualquer terceiro racional, desde que esclarecido e bem intencionado, ao qual seria, portanto, perfeitamente razoável delegar o comando sobre o que hav eremos futuramente de fazer. No entanto, Rousseau rejeita terminantemente o ponto, como pode ser evidenciado tão só lembrando que segundo sua lição a figura sábia do Legislador não pode pertencer ao corpo político, tampouco podendo, portanto, participar dos atos de determinação da vontade geral.

No entanto, essa conjetura crítica passa ao lado do mais importante, da evidência que violar-se-á o princípio de que não somos livres para não querer o nosso próprio bem sempre que contrairmos obrigações assimétricas, incondicionadamente irrenunciáveis e não denunciáveis,7 como postulado na teoria hobbesiana da autorização, cuja consequência, segundo Rousseau, é a renúncia à mais essencial das condições constitutivas de nosso próprio bem: a liberdade que, perdida, nos faz deixar de sermos ser verdadeiramente homens.8 Esta é, ao final das contas, a base normativa fundamental em que está baseada a defesa do caráter irrepresentável da vontade, lição oferecida e defendida no ponto de partida de O Contrato social, explicitada ali e no Discurso sobre a origem da desigualdade na crítica de Rousseau às admissões por Grotius e Pufendorf da legitimidade da escravidão voluntária.

Este também é o fundamento do modo em que Rousseau vem a formular a equação em que se formaliza o problema da constituição do estado civil e da pessoa pública, daquela que constitui, como ele diz, o que outrora levava o nome de cidade e hoje o de República, equação esta que discursivamente nos é apresentada nos termos seguintes: “Encontrar um forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, ao unir-se a todos, obedeça somente a sim mesmo e continue tão livre como antes”. (ROUSSEAU, 1964, p. 360; 1962, p. 27; 2008, p. 33).

Ora, é evidente que, colocado o problema da instituição do poder soberano nestes termos, segue-se natural e forçosamente a recusa da possibilidade de que o instituto da representação seja compatível com qualquer ordem política legítima, pois só serão admissíveis soluções nas quais o poder originário dos contratantes seja representado por eles próprios (ROUSSEAU, 1964, p. 429-430; 1962, p. 85; 2007, p. 107), passo, aliás, que fundamenta a célebre afirmação de Rousseau de que “o povo da Inglaterra pensa ser livre e muito se engana, pois só o é durante a eleição dos membros do parlamento” e e de que, “tão logo eleitos estes, ele é escravo, é nada.” (ROUSSEAU, 1964, p. 429-430; 1962, p. 85; 2007, p. 107).

Bem explicitados, assim, os fundamentos da tese rousseauniana da irrepresentabilidade da vontade, é hora de dizer que ela é uma herança perdida. Registro que importa apresentar acompanhado de uma explicação de por que foi assim, de porque a tese fundamental de Rousseau foi abandonada e abandonada já por aqueles que, mesmo tendo-o na mais alta conta, deram início à criação das instituições democráticas modernas apenas um ano após a sua morte, no curso do que talvez tenha sido o mais memorável dos acontecimentos políticos que a história consagra.

II

Independentemente dos aspectos metafísicos implicados nas análises e teses que, muito alusivamente, acabei de apresentar, cabe lembrar que Rousseau, além de pensar a vontade geral como tendo que ser objetivamente efetiva, resultante da geração real de um dado povo como um ser coletivo, portador de um eu comum, provido de vida e vontade coletivas próprias (ROUSSEAU, 1964, p. 361; 1962, p. 28; 2008, p. 34), a entendia como devendo necessariamente manifestar-se concretamente nas deliberações legislativas do corpo de cidadãos reunidos em assembleia.9 Isso quer dizer que, institucionalmente, sua posição de fundo implicava dois desdobramentos essenciais: a necessidade de reunião periódica do coletivo de membros do Estado10 e uma distinção clara entre a vontade e a força do povo (ROUSSEAU, 1964, p. 395; 1962, p. 57; 2008, p. 71), conceitos que estruturam a base categorial da separação político-institucional entre o poder legislativo e o poder executivo, vale dizer: entre o soberano e o governo.

No presente contexto importa-nos prioritariamente o primeiro desses desdobramentos e a propósito dele desde logo notar a evidente dificuldade de admitir que o povo ele próprio se faça politicamente presente e de que expresse por si mesmo sua vontade. Para começar, a dificuldade de que o faça tempestivamente, nem atrasado, impotente diante do irremediável, nem fantasiosamente antecipado, querendo decidir sobre o que ainda não se constituiu e propôs. Repare-se que essa dificuldade já o próprio Rousseau apontara, ainda que a afastasse apelando à história e lembrando as frequentes reuniões do povo romano (ROUSSEAU, 1964, p 426; 1962, p. 57; 2008, p. 102). Apelo arrematado, convém lembrar, pela declaração de que, em vista disso do ter sido possível a congregação do povo nas repúblicas antigas - comprova-se que do real ao possível a consequência é boa. (ROUSSEAU, 1964, p. 426; 1962, p. 82; 2008, p. 103)

No entanto, essa lição não foi lembrada quando, no início da Revolução francesa, nos dias críticos de junho de 1789, uma vez reunidos para os trabalhos do então chamados Estados Gerais, os representantes do Terceiro estado, se autoadjudicaram o título e a prerrogativa de membros da Assembleia Nacional, que, de resto, eles, por este mesmo ato, constituiam. Seyès, o Grande Lógico do Pensamento Nacional, como Michelet viria a caracterizá-lo, foi quem deu forma a este ato decisivo tendo redigido a seguinte moção:

A assembleia [...] reconheceu que já se encontra composta por representantes enviados diretamente por 96 centésimos, pelo menos, da nação. [...] A assembleia declara, portanto, que a obra comum de restauração nacional pode e deve ser começada sem tardança pelos deputados presentes e que eles devem levá-la adiante sem interrupção e sem obstáculo. A denominação de Assembleia nacional é a única que convém à assembleia no atual estado de coisas [...]. (BUCHEZ; ROUX, 1834, p. 469-470).

Neste texto, não posso e não importa esmiuçar a complexa situação política que essa moção resolvia e que marca o início, por assim dizer oficial, do processo revolucionário francês. O que aqui importa é simplesmente registrar que esse ato inaugural do processo de instituição de um regime democrático na França, embora certamente, tendo a filosofia de Rousseau como uma de suas referências essenciais, não revelou nenhuma hesitação de seus autores em fazer de um reduzido número de representantes, de resto mandados para o exercício de funções outras e próprias do Antigo Regime, os porta-vozes do povo francês, assumindo em nome deste poderes deliberativos extraordinários, logo formalizados como constituintes.

Ressalte-se que o posicionamento tornado ato na moção que acaba de ser citada, na verdade era uma convicção largamente partilhada pelos membros da Assembleia Nacional e que Sieyès viria expressar em termos doutrinários em mais de uma ocasião, notadamente ao pronunciar-se, algum tempo depois, no dia 7 de setembro de 1789, já em sessão da Assembleia Constituinte. Desse discurso conceitualmente decisivo, para os fins que aqui persigo, é-me necessário citar pelo menos algumas passagens. Primeiramente a afirmação dogmática de que pretender que a vontade nacional pudesse se expressar diretamente seria simplesmente obra de distinções finórias e de confusão, ou, mais claramente, em seus próprios termos:

Eu sei que à força de de distinções e de confusão chegou-se a vontade nacional como se ela pudesse ser algo distinto do querer dos representantes da nação; como se a nação pudesse falar de outro modo que não por seus representantes.” (BNF - GALLICA). Archives parlamentaires, p. 593).

Nesse mesmo discurso, Sieyès insistia no ponto, na segunda vez tratando de tornar mais explícitas as justificativas dessa peremptória denúncia da confusão inerente à ideia de que o povo possa expressar sua vontade diretamente. Ele o faz mediante alegações de um realismo brutal, não isento de um depreciativo prejulgamento com relação à capacidade dos cidadãos ordinários para participarem das deliberações referentes às grandes questões nacionais. A passagem em que isso se expressa com maior clareza, começa contestando diretamente, embora sem citá-la, a alegação de Rousseau de que se na Roma antiga o povo poderia reunir-se com frequência, também contemporaneamente o poderia fazer, pois Sieyès proclama: “Os povos modernos da Europa se parecem muito pouco com os povos antigos”. Mas Seiyès não se restringe a essa observação simples das diferenças históricas e logo passa a explicitar as características da sociedade de seu tempo que mostrariam a inviabilidade prática da tese rousseauniana e então assevera:

Entre nós se trata de comércio, de agricultura, de fábricas, etc. O desejo de riquezas parece fazer de todos os Estados da Europa vastas oficinas [...]. Somos assim forçados a ver na maior parte dos homens máquinas de trabalho. Contudo, vós não podeis recusar a qualidade de cidadãos e os direitos cívicos a essa multidão sem instrução, que um trabalho forçado absorve inteiramente. Posto que eles devem obedecer à lei [...] eles devem também [...] concorrer em fazê-las. [...] Há duas maneiras de assim proceder. Os cidadãos podem depositar sua confiança em alguns dentre eles. Sem alienar seus direitos, eles lhes delegam o exercício. A outra maneira de exercer seu direito à formação da lei é concorrerem por si mesmos, imediatamente, em sua feitura. Essa participação imediata é o que caracteriza a verdadeira democracia. O concurso mediado é o governo representativo. A diferença entre esses dois sistemas políticos é enorme. A escolha entre esses dois métodos de fazer a lei não é, para nós, duvidosa. Um número muito grande de nossos cidadãos não tem nem instrução, nem tempo ocioso suficiente para querer ocupar-se diretamente com as leis que devem governar a França; sua preferência é, portanto, nomear representantes e, uma vez que esta é a opinião da maioria, os homens esclarecidos devem a ela submeter-se como os demais. (Orateurs de la Révolution française, 1989, p. 1022).

Repare-se que a objeção de Sieyès é de caráter factual, baseada, por um lado, na manifesta impossibilidade de reunir-se em deliberação a 26 milhões de franceses e, por outro, na alegada constatação de que, ademais disso, os cidadãos ativos das sociedades modernas, tomados pela exigência do trabalho intenso, não teriam nem a disponibilidade de tempo para ocupar-se das questões de Estado, nem a instrução a tanto necessária. Importa ressaltar que esse juízo não era uma opinião isolada, mas antes o consenso quase imediato dos participantes da Constituinte. Tampouco se tratava de decisão incidental, pois a vemos reaparecer dois anos depois, com não menor eloquência, precisão e profundidade, em um discurso de Barnave, o jovem grande tribuno de Grenoble que foi presidente da Constituinte antes dos 30 anos, pronunciado no dia 10 de agosto de 1791, que vazava o mesmo argumento nos termos seguintes:

Os que desconhecem a natureza, assim como as vantagens do governo representativo, vêm recordar-vos os governos de Atenas e Esparta; independentemente das diferenças que os separam da França - seja pela extensão do território, seja pela população - terão eles esquecido que ali o governo representativo havia sido proibido? Terão esquecido que os lacedemônios só tinham o direito de votar nas assembleias, porque possuíam os ilotas e que é somente por terem sacrificado os direitos individuais que eles, os atenienses e os romanos, tiveram um governo democrático? Pergunto aos que nô-los recordam: é a tais governos que eles querem chegar? Pergunto aos que professam aqui ideias metafísicas porque absolutamente não têm ideias reais, aos que nos embrulham nas nuvens da teoria porque ignoram profundamente os conhecimentos fundamentais dos governos positivos, pergunto-lhes: esqueceram que uma parte do povo só pôde existir graças à escravidão inteira e absoluta da outra parte? (BUCHEZ; ROUX, 1834, p. 281-282).

Nesse discurso que conceitualmente nada deve ao de Sieyès e que lhe acresce uma elegância mais fina, o ponto a destacar é que Barnave explicita que o lazer de que gozavam os cidadãos das Repúblicas antigas baseava-se na instituição da escravidão, que os liberava para a participação na vida pública. Em ambos os casos, no entanto, a ênfase das críticas ao caráter indesejável e ao diagnóstico da inviabilidade de qualquer projeto de instituição de um regime genuinamente democrático nas condições modernas, se apoiava em evidências fáticas, como a impraticabilidade de realizar assembleias de milhões de cidadãos, a indisponibilidade e a falta de interesse desses últimos, sua falta de preparo para se ocuparem das questões de Estado e um regime social em que a obtenção do necessário à sobrevivência e mesmo a determinação dos valores superiores e da felicidade eram já indissociáveis do sucesso material.

É patente, portanto, que os homens a quem coube forjar e instituir as categorias básicas do governo representativo moderno tinham uma visão crítica, clara e diferenciada das inovações que estavam a fazer e da irredutibilidade da nova forma de Estado, então em processo de estruturação, relativamente às formas antigas e clássicas de democracia direta.

Mas é também inequívoco que seus argumentos contra a democracia direta eram, permitam-me repetir, fundamentalmente argumentos de fato: de natureza geográfica, quando apontada a extensão do território francês; de ordem demográfica, quando sublinhado o tamanho da população francesa e sua dispersão territorial; de caráter histórico-sociológico, quando ressaltado que nas sociedades modernas os indivíduos precisam e desejam ocupar-se de seus negócios privados, os quais, além de condição básica para provisão dos meios necessários à vida, são também espaços de afirmação e realização individual dos quais já ninguém mais quer abrir mão; por fim, de natureza cognitiva, quando afirmam que o povo em geral não tem a instrução necessária para ocupar-se da legislação e dos demais atos soberanos.

Ora, por convincentes que tenham sido e que sejam estes argumentos, com base neles não é possível afirmar que os institutos de representação política seriam necessários no sentido estrito do termo, pois sua conveniência e mesmo imprescindibilidade estariam fundadas, contingentemente, na impossibilidade prática de, nos tempos modernos, nas condições estruturais das sociedades avançadas do século XVIII, viabilizar o exercício direto da soberania pelo povo.

Pois bem, o que agora me interessa indagar, e que será o objeto da terceira e conclusiva parte desta comunicação, é se não será possível produzir um argumento que demonstre a priori que a representação política é necessária, que o faça, portanto, em termos absolutos e universais. Se isso for possível, então deveremos aceitar a crítica radical de Kaufmann à tese rousseauniana da irrepresentabilidade da vontade a que nos referimos ao começar.

III

Para dar início a esse ensaio de demonstração o primeiro passo deve ser o de contestar a premissa do argumento rousseauniano cuja conclusão é a de que, no domínio da política e com relação à possibilidade de instituição de um regime genuinamente democrático, do real ao possível a consequência é boa. Como é evidente, esse argumento depende de que nas Repúblicas antigas se tivesse um governo em que, para usar seus termos, cada um, ao viver na cidade, obedeceria somente a si mesmo e continuaria tão livre como antes. Sendo assim, se, portanto, for mostrado que mesmo na Antiguidade isso não era assim, ter-se-á dado pelo menos um primeiro passo na demonstração da inviabilidade de formas de organização políticas não representativas. O que não quer dizer, porém, que isso nos force a desconhecer a diferença entre a liberdade dos antigos e a dos modernos, para usar a expressão famosa de Benjamin Constant.

Pois bem, a primeira parte de meu contra-argumento, ainda de caráter factual, pode ser introduzida mediante a observação de que, mesmo na Atenas posterior às reformas de Ephialtes, no período de máxima participação popular, por grande que fosse o comparecimento às reuniões da ecclesia, já então remunerada, presente estava apenas uma parte do povo, na verdade uma franca minoria, além disso sociologicamente enviesada, uma vez que o povo miúdo do Pireu - marinheiros, sobretudo -- tendia a estar sobrerrepresentado. Mogens H. Hansen um dos maiores, senão o maior dos historiadores e analistas da democracia ateniense, expõe bem o ponto ao observar:

Como dissemos inicialmente, um decreto da Assembleia era tido como uma decisão de todo o povo; mas o fosso entre o princípio e a realidade se havia alargado. Não somente não havia lugar suficiente para conter todo o povo - este havia sido sempre o caso - mas o auditório era muito pequeno para conter todos os que se apresentavam. Assim no IVº século, os atenienses limitavam o acesso à Assembléia, exatamente como haviam feito com relação aos tribunais. Se o total dos cidadãos adultos e varões era de 30 mil, o sítio da Assembléia não podia conter mais do que aproximadamente 20% deles, mas já é muito se se compara como século V, onde talvez se apresentassem somente 10%; em todo caso, é um fato historicamente único o de que os atenienses tenham conseguido reunir em assembleia, quarenta vezes por ano, 20% dos que se encontravam no exercício de seus direitos cívicos. (HANSEN, 1993, p. 162).

Adiante, ao se aproximar da conclusão de seu livro, Hansen volta ao ponto e acrescenta:

Os democratas mantinham a ficção das decisões tomadas pelo corpo inteiro dos cidadãos, mesmo que somente uma minoria pudesse se fazer presente e que uma larga minoria houvesse votado contra e outros se abstido. [...] Eles velavam a face diante da questão da obrigação política: em que medida as decisões da maioria vinculavam os que haviam votado contra ou os que não estavam presentes? (HANSEN, 1993, p. 347-348).

Essas observações tornam evidente, portanto, que mesmo no caso mais reconhecido e arquetípico de democracia direta, o de Atenas no século IVº, as deliberações soberanas não eram executadas pela totalidade do povo. Por uma pequena minoria, na verdade, se aos 80% de cidadãos, varões adultos ausentes das assembleias, acrescentarmos os membros da pólis que não tinham direito de participar das reuniões da ecclesia, notadamente mulheres, crianças, metecos e escravos, cujo contingente estima-se fizesse a população ateniense no século IV alcançar 300 mil habitantes.11

Para meu argumento, o que, porém, mais importa não é o fato de que, mesmo em Atenas, o exercício efetivo do poder político soberano não fosse exercido por todo o povo, mas, na verdade por uma minoria de cidadãos ativos, mas sim que tal exercício era declarado e tido como sendo precisamente do povo ateniense enquanto tal, o que Hansen evidencia ao observar que: “Na Assembléia se reunia o povo de Atenas: a palavra demos é freqüentemente sinônima de ecclesia e os decretos da assembleia começavam pela fórmula édoxê tôi démôi, ‘foi decidido pelo povo’, ou por uma fórmula assemelhada.” (HANSEN, 1993, p. 155).

Sublinhe-se que isso não quer dizer, repetindo o observado há pouco, que se deva minimizar o contraste entre democracia direta no sentido histórico da expressão e democracia representativa, pois não somente há uma diferença de escala entre quem toma as decisões soberanas no primeiro e no segundo casos, mas, ademais disso, há também uma diferença abissal entre as competências reservadas à cidadania de base em um e outro caso, pois, no caso do regime representativo, como Sieyès observa com precisão,12 os cidadãos renunciam ao exercício direto de seus poderes e os delegam ao corpo de representantes, enquanto que, no caso da democracia direta, qualquer cidadão, a qualquer tempo, tem o direito de comparecer a assembleia, de intervir na deliberação e de participar das decisões soberanas, as quais envolviam tanto medidas legislativas, quanto executivas e, no caso de Atenas, até mesmo decisões judiciais ou parajudiciais.

No entanto, a despeito dessa diferença, é impossível negar que a maioria cuja vontade prevalece em uma assembleia em que está presente somente uma minoria do povo e que, não obstante, fala pelo povo e o compromete em decisões que têm grandes impactos não só atuais, mas que são geradoras de importantíssimos compromissos futuros, exerce, volens nolens, real e objetivamente uma função representativa. Uma função representativa, não apenas dos cidadãos ausentes - dos que não compareceram à Assembléia - e dos indivíduos que ainda não gozam do exercício dos direitos cívicos - como é o caso, no exemplo ateniense, dos jovens varões, ou de metecos residentes permanentes -, mas também daqueles membros da cidade que não estão, por princípio, habilitados ao exercício dos direitos da cidadania ativa, como era então o caso, de mulheres e escravos. Mas função representativa ainda - e em um sentido mais profundo e decisivo - da entidade abstrata que é a comunidade: da Atenas cujos tratados de paz ou as decisões de guerra precisam ser honradas para além dos membros efetivos que, em uma e outra circunstância, tomaram decisões sobre esses e outros assuntos essenciais, como os julgamentos, imposição de taxas e demais questões de interesse público.

Isto - eu quero dizer: o fato de que mesmo no caso paradigmático de Atenas seja evidente a existência de uma dimensão representativa das instituições políticas e a despeito de que tal dimensão possa ser considerada como um impensado da prática democrática inaugural - implica que é preciso reconhecer que a palavra representação não apenas designa o resultado da ação de um mecanismo de individuação de porta-vozes e de delegação de poderes a tais procuradores, mas significa, num nível mais profundo e fundamental, também um dispositivo simbólico-institucional mediante o qual o titular do poder soberano efetivo - seja ele indivíduo, casa parlamentar ou assembleia popular - fala e age em nome de uma entidade coletiva, abstrata e ideal, designada pelo nome próprio da comunidade em que se ergue tal dispositivo, e mediante o qual são executadas palavras e atos que vinculam tal entidade para além da variação da vontade e da permanência empíricas dos indivíduos diretamente autores de tais palavras e atos.

Para levar adiante a análise convém, no entanto, examinar mais de perto este segundo sentido que é indispensável atribuir à expressão representação política. Hobbes será aqui o melhor guia. Com efeito, no § 8 do capítulo 12 do De cive lê-se:

[...] constitui um,grande perigo para o governo civil [...] que não se faça suficiente distinção entre o que é um povo e o que é uma multidão. O povo é uno, tendo uma só vontade, e a ele pode atribuir-se uma ação; mas nada disso se pode dizer de uma multidão. Em qualquer governo é o povo quem governa. Pois até nas monarquias é o povo quem manda (porque nesse caso o povo diz sua vontade através da vontade de um homem ), ao passo que a multidão é o mesmo que os cidadãos, isto é, que os súditos. Numa democracia e numa aristocracia, os cidadãos são a multidão, mas o povo é a assembléia governante (the court). E numa monarquia os súditos são a multidão, e (embora isso pareça um paradoxo) o rei é o povo. (HOBBES, 1992, p. 211-212).13

Agora bem, se Hobbes pode chegar a ponto de dizer que o rei é o povo, não os súditos, então isso quer dizer que, segundo sua análise, manifestamente o povo (no sentido jurídico-político da expressão) não pode ser uma realidade empírica, mas tem que ser uma entidade abstrata, gerada precisamente a partir dessa dimensão simbólica dos dispositivos representacionais. Mas como assim? Que força simbólica é esta que se está a dizer capaz de constituir um povo e de fundar uma ordem jurídica? Não se deverá dizer antes, nos termos, por exemplo, do decisionismo schmittiano (SCHMITT 2001, p. 179),14 que o que funda uma ordem jurídica é a potência de uma vontade política efetivamente dominante?15 Num certo sentido, isso é indiscutivelmente verdadeiro, porque não há dúvida de que a instituição de uma comunidade como um povo depende de uma ação real, pois, como diz o próprio Kant uma “constituição civil deriva de um ato” - do fato, aliás inescrutável (KANT, 2014, p. 159; AA 6, p. 339) - “da tomada do poder supremo” por um sujeito real que ao afirmar seu poder incontrastado funda o direito público. (KANT, 2014, p. 198; AA 6, p. 372).

O ponto decisivo, no entanto, é que esse ato de afirmação de um poder existencialmente incontrastado só ganha efetividade como ato de fundação política na medida em que ele não se dá como mero exercício de força, mas pretende e consegue colocar-se em posição de falar e agir em nome da comunidade sobre a qual pretende exercer-se. Se isso é assim, então é claro que a comunidade é constituída como uma entidade política, como um povo, mediante esses atos de autoafirmação de um centro de poder efetivo. Mas compreende-se também então que os atos de fala, o discurso, que o titular do poder soberano faz em nome da comunidade não possa ser nunca expressão direta da comunidade realmente existente sobre a qual o poder é exercido, a qual é inevitavelmente dividida. Dividida regional e locacionalmente, sociológica e economicamente, geracional e culturalmente, ideológica e politicamente.

Mas a verdade é que o poder é exercido sobre agregados populacionais determinados, pois a soberania é uma propriedade constitutivamente relacional, visto que não há soberano sem povo. A primeira consequência disso é que a entidade abstrata e universal que constitui o povo no sentido político e simbólico da expressão é necessariamente lastreada pela comunidade real, pela população a cada momento existente no território circunscrito pelo poder soberano. A segunda consequência é que na medida em que a fala e a ação do poder soberano não podem deixar de se fazer em vista do povo considerado universalmente, tomado como dotado de interesse e vontade comuns transcendentes a segmentação dos interesses e quereres do segmentado povo real em seus diferentes níveis e aspectos de agregação - tais falas e ações se encontrarão permanentemente submetidas às exigências da verdade e da justiça erguidas por este último, sem jamais terem segurança ex ante de que as satisfaçam, pois é do meio das contradições do povo real que se erguem os múltiplos e frequentemente divergentes vereditos sobre a verdade e a justiça do discurso e da ação do poder soberano.

Ora, é nesse exato ponto, que, por razões inversas as dele, se pode resgatar a tese de Rousseau de que a vontade geral não pode ser representada. Deve-se a Robespierre o paradoxal esclarecimento do implicado nessa afirmação, o qual, em discurso proferido em 16 de junho de 1793, de profundidade conceitual e analítica inexcedíveis, assevera que, sim, a vontade geral nunca se representa, mas, antes, contudo, pace Rousseau, sempre se presume, conforme se lê no trecho seguinte:

Eu observo que a palavra representante não pode ser aplicada a nenhum mandatário do povo, porque a vontade não pode se representar. Os membros da legislatura são os mandatarios a quem o povo deu o primeiro poder; mas no sentido verdadeiro não se pode dizer que eles o representam. A legislatura faz leis e decretos ; as leis só tem o caráter de leis quando o povo as tem formalmente aceitas. Até esse momento elas eram apenas projetos; a partir de então ela são a expressão da vontade do povo. Os decretos não são executados antes de serem submetidos a ratificação do povo que é tido como devendo os aprovar: se ele não reclama seu silencio é tomado como uma aprovação. É impossível que um governo tenha outros princípios. Esse consentimento é expresso ou tácito, mas em nenhum caso a vontade soberana se representa, ela é presumida. O mandatário não pode ser representante, isso é um abuso da palavra e na França se começa retornar a esse erro.” (ROBESPIERRE, 2007, p. 569).

Razão pela qual, nas sábias disposições do Estado de Direito contemporâneo, foram criados os institutos da limitação temporal dos mandatos, do sistema de partidos e da divisão dos poderes, mecanismos institucionais destinados todos a limitar e pôr sob controle as falas e atos presuntivos dos titulares do poder político.

Referências

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1O mesmo ponto já havia sido feito no capítulo I do Livro II, às páginas, respectivamente, 368, 35 e 42 das edições citadas.

2Cf. Hobbes (1983, p. 143-146).

3É o que se lê, na seguinte passagem da Nova Heloísa: “[...] a consciência absolutamente não nos diz a verdade das coisas, mas sim a regra de nossos dever; ela, em absoluto, nos diz o que é preciso pensar, mas sim o que é preciso fazer; ela não nos ensina a bem raciocinar, mas si, a agir bem.” (ROUSSEAU, 1878, p. 600). Passagem esta que deve ser lida em conjunto com uma outra, muito oportunamente sublinhada por Raymond Polin (Polin1971, p. 56), onde Rousseau diz: “Não, meu lorde, a vocação do homem é maior e mais nobre; Deus em absoluto o animou para ficar imóvel em um quietismo eterno: mas lhe deu a liberdade para fazer o bem, a consciência para o querer e a razão para escolhê-lo; ele o constituiu em juiz de suas próprias ações e escreveu em seu coração: faz o que te for salutar e não seja nocivo a ninguém.” (ROUSSEAU, 1878, p. 319).

4A propósito desse ponto, lê-se no Emílio, na Profissão de fé do vigário saboiano: “Quando me perguntam qual é a causa que determina minha vontade, eu por minha vez pergunto qual é a causa que determina meu julgamento: pois é claro que essas duas causas são uma só […] [o homem] escolhe o bom conforme tenha ajuizado o verdadeiro; se julga falsamente, escolhe mal.” (1966, p. 364).

5Que Kant concorde com a lição de Hobbes de que: “[...] é a unidade do representante, e não a unidade do representado, que faz que a pessoa seja uma” e de que, portanto, “é o representante o portador da pessoa”, sendo esta “a única maneira como é possível entender a unidade de uma multidão” (HOBBES, 1974, p. 102), fica claro, por exemplo, quando Kant diz: “toda verdadeira República é não pode ser senão um sistema representativo do povo, para em se nome e pela união de todos os cidadãos cuidar dos direitos do povo, por intermédio dos seus delegados (deputados).”( KANT, 2014, p. 161). Posição derivada da tese de Kant de que “Assim que um chefe de Estado se faz representar em pessoa [...] o povo unificado não representa meramente o soberano, mas é ele próprio o soberano.” (KANT, 2014, p. 161).

6Passagem fraseada conforme a tradução de Sorbière. (HOBBES, 1982).

7É o que se vê implicado quando Rousseau diz: “Dizer que um homem se dá gratuitamente é dizer uma coisa absurda e inconcebível; tal ato é ilegítimo e nulo, simplesmente por que quem o faz não se encontra em seu juízo perfeito.” (ROUSSEAU, 1964, p. 356; 1962, p. 23; 2007, p. 28).

8É o que Rousseau explicitamente sustenta ao dizer: “Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem, aos direitos da humanidade e até a seus deveres”. Id. ib. Este mesmo ponto é apresentado mais desenvolvidamente no seguinte passo do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens: “Pufendorf diz que, assim como por meio de convenções e contratos se transfere um bem a outrem, pode-se também abrir mão da liberdade em proveito de alguém. Esse parece-me um raciocínio bem ruim, pois, em primeiro lugar, o bem que alieno torna-se-me uma coisa inteiramente estranha, cujo abuso me é indiferente, mas é de meu interesse que não abusem de minha liberdade [...]. Além disso, o direito de propriedade, sendo apenas de convenção e instituição humana, qualquer homem pode a seu grado dispor do que possui; isso, porém, não ocorre com os bens essenciais da natureza, tais como a vida e a liberdade, de que cada um pode usufruir e dos quais é pelo menos duvidoso que se tenha o direito de abrir mão.” (1964, p, 183-184; 1958, p. 204; 2008, p. 102-103).

9Confira-se o texto em O Contrato Social, Livro III, cap. XII e XIII, passim.

10Este ponto é explicitado em Rousseau, 1964, p. 426; 1962, p. 82; 2008, p. 103.

11Cf., inter alia, (JONES, 1984, p. 157), onde se estima que em 414 A.C a população ateniense deveria estar entre 300 e 350 mil habitantes, contingente que em 317 A. C. teria se reduzido para um número entre 150 e 200 mil.

12No mesmo discurso citado há pouco, Sieyès diz, com efeito: “[...] os cidadãos que nomeiam representantes renunciam e devem renunciar a fazerem imediatamente eles próprios a lei: portanto, eles não têm vontade particular a impor.” (Orateurs de la révolution française, 1989, p. 1026).

13O texto prossegue imediatamente assim: “O vulgo e também aqueles que consideram superficialmente essas verdades, sempre falam de um grande número de homens como se se tratasse do povo, isto é, da cidade; dizem que a cidade se rebelou contra o rei (o que é impossível), e que o povo quer, ou não quer, aquilo que os súditos descontentes e queixosos gostariam que fosse feito, ou que não o fosse, e alegando serem eles o povo incitam os cidadãos contra a cidade, isto é, os súditos contra o povo”.

14E Schmitt acrescenta:”A decisão soberana não é [...] explicada a partir de uma norma nem a partir de um ordenamento concreto, porque, muito pelo contrário, somente a decisão fundamenta para o decisionista tanto a norma quanto o ordenamento. A decisão soberana é o início absoluto, e o início (também no sentido de Üñ÷Þ) não é outra coisa senão decisão soberana. Ela nasce de um nada normativo e de uma desordem concreta.” (SCHMITT, 2001, p. 182).

15Assim Carl Schmitt diz, por exemplo: “Juridicamente podemos encontrar o último fundamento jurídico de todas e quaisquer validades e valores de direito em um processo volitivo, uma decisão que enquanto tal cria o ‘direito’ e cuja ‘força jurídica’ não pode ser derivada da força jurídica de regras de decisão, pois mesmo uma decisão que não corresponde à regra cria direito.” (SCHMITT, 2001, p. 179) E ainda: “Uma norma nunca se estabelece por si mesma (isto é só um modo fantástico de falar) [...].” (SCHMITT, 1981, p. 10).

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