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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.spe3 Caxias do Sul  2018  Epub 02-Set-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.dossie.5 

Artigos

Virtudes e democracia

Virtues and Democracy

Denis Coitinho* 

*Professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Filosofia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).


Resumo

O objetivo central deste artigo é refletir sobre a importância da conexão entre virtudes privadas e virtudes públicas de forma coerente para a garantia tanto da estabilidade psicológica como da social, visando ao fortalecimento da democracia. Para tal fim, investigo o papel das virtudes públicas da razoabilidade e tolerância. Posteriormente, tematizo a importância da identidade coletiva e da intencionalidade comum para lidar com a complexidade moral e política, bem como ressalto a característica intersubjetiva do conhecimento moral. O passo seguinte é investigar a relevância das virtudes privadas de integridade e autonomia. Termino o texto defendendo a vantagem de se usar uma teoria liberal-comunitarista que pode conectar coerentemente as virtudes privadas e as públicas, como forma de identificar mais claramente quais seriam as nossas obrigações comuns.

Palavras-chave: Virtudes; Democracia; Identidade coletiva; Conhecimento

Abstract

The main aim of this paper is to reflect on the importance of the connection between private and public virtues in a coherent way for the guarantee of both psychological and social stability, aiming at strengthening of democracy. To this end, I investigate the role of the public virtues of reasonableness and tolerance. Subsequently, I discuss the importance of collective identity and common intentionality to deal with moral and political complexity, as well as emphasizing the intersubjective characteristic of moral knowledge. The next step is to investigate the relevance of the private virtues of integrity and autonomy. I conclude the text by advocating the advantage of using a liberal- communitarian theory that can coherently connect private and public virtues as a way of identifying more clearly what would be our common obligations.

Keywords: Virtues; Democracy; Collective identity; Knowledge

I

Muito se tem discutido sobre a atual crise ética da democracia brasileira, desde as manifestações de 2013 até o processo do impeachment presidencial de 2016 e suas várias consequências, como o descrédito pelas instituições políticas. Parece haver uma compreensão generalizada de que a corrupção e a consequente crise política seriam a principal ameaça ao nosso sistema democrático. Essa percepção parece ser comprovada por várias pesquisas. Por exemplo, segundo informe 2017 do Latinobarómetro, a corrupção aparece como a principal preocupação dos brasileiros, com 31% dos cidadãos entrevistados considerando-a o problema nacional por excelência. Além disso, a pesquisa também revela que a satisfação do brasileiro com a democracia é de apenas 13%, e que 97% do total pesquisado fez críticas ao governo por ele não defender o bem comum, perseguindo apenas os interesses privados de seus membros.1

Mesmo considerando a relevância dessa percepção, penso que podemos levantar alguns questionamentos sobre sua correção. Se a corrupção realmente fosse considerada como a total responsável pelos nossos problemas, porque ela seria tão seletiva, isto é, por que ela não recairia igualmente sobre as ações dos agentes privados, concentrando-se, fundamentalmente, nos agentes públicos? Lembremos o caso da máfia das próteses que veio a público em 2015, em que médicos chegaram a faturar R$ 100 mil mensais em esquema de desvio de dinheiro do SUS, ao indicar, muitas vezes, cirurgias desnecessárias para receber de 20% a 30% do valor das próteses vendidas, trazendo, por consequência, o encarecimento dos planos de saúde. Por que será que o caso não gerou a mesma censura popular, com manifestações e panelaços, exigindo a apuração dos fatos e a punição exemplar dos culpados de forma semelhante ao exigido à classe política?2

Minha hipótese é a de que exista uma assimetria entre a exigência das virtudes nos âmbitos privado e público, e que isso seria o nosso maior problema político que ameaça, constantemente, a nossa jovem democracia. Veja-se que, quando se trata de agentes privados, como médicos, advogados, engenheiros, professores, entre outros, se aceita que os mesmos persigam apenas seus interesses pessoais, inclusive tomando as outras pessoas apenas como meio para seus fins, como lucrar com um ato de corrupção, por exemplo. Por outro lado, quando a atenção recai sobre agentes públicos, tais como governadores, senadores, deputados, ou mesmo presidentes e juízes, a exigência é de que os mesmos sempre ajam em prol do bem comum, não sendo aceitável que persigam apenas seus próprios interesses. Em outras palavras, se exige que o agente público aja virtuosamente, ou seja, com transparência, imparcialidade, impesssolidade, civilidade e, até mesmo, com lealdade, fidelidade e generosidade, enquanto se aceita que o agente privado aja de forma viciosa, sendo parcial, egoísta, desleal, infiel, ou mesmo incivilizado.

Mas o que isso parece demostrar? Penso que esse fenômeno de assimetria entre virtudes e vícios revelaria algum tipo de esquizofrenia nos nossos juízos morais-políticos cotidianos. Por um lado, aceita-se e defende-se a neutralidade da ética privada e, por outro, exige-se demasiadamente um comportamento virtuoso do agente público. Em outras palavras, o agente público é alvo central de nossa censura pelo seu comportamento egoísta e desleal, enquanto o mesmo comportamento egoísta e desleal é tolerado ou até mesmo incentivado quando realizado pelo agente privado. Pensemos no caso da sonegação de impostos. Isso seria exequível, uma vez que o agente público é também um agente privado? Em outros termos, como poderíamos lidar com essa assimetria de censurabilidade pensando na estabilidade psicológica pessoal ou mesmo na estabilidade social? Sendo a corrupção tolerada no domínio privado, mas condenada no público, como os cidadãos irão compreender suas obrigações morais em relação aos outros? A estabilidade social não exigiria algum tipo de padrão normativo comum?

Se esse diagnóstico estiver ao menos parcialmente correto, creio que a forma mais eficiente de enfrentar esse problema seria estabelecendo uma conexão entre as virtudes morais públicas e as privadas de algum modo coerente, por exemplo, conectando a razoabilidade e a tolerância exigidas no domínio público com a integridade e autonomia que seriam demandadas no domínio privado. Veja-se que o problema seria o de como poderíamos compreender nossas obrigações morais-políticas com a sociedade sem fazer uso de um padrão normativo moral consistente. Como seria possível falar de nossa responsabilidade pelos erros passados de uma nação, como a discriminação das mulheres ou a escravidão, ou como falar dos deveres que deveríamos assumir ante as novas gerações, tais como diminuir a emissão de carbono ou modificar nosso padrão de consumo, ou mesmo, como poderíamos reconhecer nossa obrigação de não sermos corruptos sem poder contar com certo padrão normativo com coerência interna?3

No decorrer do texto, defenderei a necessidade de contar com uma teoria política mista liberal-comunitarista que conecte as virtudes morais públicas e privadas de forma coerente, respeitando a neutralidade ética privada de maneira mitigada, isto é, respeitando uma pluralidade de concepções de bem, desde que haja um compartilhamento valorativo-moral que seja suficiente para garantir as estabilidades psicológica e social. Para tal, inicio com a investigação das virtudes públicas da razoabilidade e tolerância. Posteriormente, tematizo a necessidade de contar com a identidade e a intencionalidade coletivas para lidar com a complexidade moral-política, bem como chamo a atenção para a importância de compreender o processo do conhecimento moral como intersubjetivo. O próximo passo será o de refletir se as virtudes privadas da integridade e autonomia seriam necessárias (ainda que não suficientes) para a garantia da estabilidade. Por fim, estipulo que a maneira mais eficiente para reconhecer nossas obrigações morais e políticas seria através de uma conexão coerente entre as virtudes morais públicas e as privadas de forma a não subscrever nem o paternalismo estatal e nem o moralismo jurídico.

II

Deixem-me iniciar apontando o que creio ser a limitação do argumento da corrupção como ameaça à democracia para, posteriormente, defender que seriam as estabilidades pessoal e social que garantiriam a força do sistema democrático e que, para tal, precisaríamos contar com certas virtudes públicas e também privadas. Se entendo corretamente, o referido argumento sustenta que, em razão dos agentes públicos serem corruptos ou praticarem atos de corrupção, as pessoas (cidadãos) perdem a confiança nas instituições políticas, tais como: partidos, processo legislativo, governo e até sistema judiciário, e seria esse descrédito nas instituições políticas que enfraqueceria o próprio sistema democrático, uma vez que se poderia querer alcançar a segurança tanto individual quanto social e a prosperidade econômica com um regime político alternativo, por exemplo, com uma ditadura ou um governo de experts. Como na democracia representativa a soberania é exercida pelo povo através de seus representantes, ela parece ter que contar com a confiança dos cidadãos nos seus agentes públicos e instituições políticas, para garantir sua eficiência e até existência.4

O principal problema no argumento em questão é que ele parece excluir, de forma geral, a corrupção privada também como causa do problema, concentrando-se, exclusivamente, na corrupção pública. Da forma como vejo o caso, sua limitação estaria em não apresentar uma premissa adicional questionando as razões da corrupção, quer dizer, procurando questionar o que levaria os agentes públicos e privados a ser corruptos? Como disse, um agente público é também um agente privado. Antes de alguém ser um representante político, como deputado ou senador, é um profissional, pai, mãe, filho ou amigo de alguém, que foi criado e educado segundo os valores comuns (morais, políticos, sociais, religiosos, etc.) de uma dada sociedade. Se esse representante comete um ato ilícito e errado, tal como um ato de corrupção, deixaria de ser também uma pessoa privada desonesta? Não parece ser esse o caso, uma vez que a corrupção é um problema eminentemente moral e não exclusivamente político, já que se localiza na consciência individual das pessoas, não sendo um caso de deliberação pública.

Abordemos o problema a partir do caso da sonegacão de impostos. Em muitos cenários, o sonegador não sofre censura e, em algumas vezes, é até elogiado, enquanto um ato de parcialidade na administração pública, como o de indicar um parente para um cargo público como o de ministro, recebe forte censura popular. Mas isso não seria contraditório, uma vez que tanto a sonegação de impostos como a indicação de um parente parecem visar ao mesmo fim: a busca dos próprios interesses e não o bem comum? Se (todos) os agentes em uma comunidade política aprendem que é correto perseguir seus interesses pessoais sem ter preocupação com o bem dos outros, por que apenas os agentes públicos deveriam ter uma preocupacão especial com o bem comum? Como essa exigência seria adequada? Em outros termos, seria possível que uma virtude pública (como a da imparcialidade) não estivesse sustentada em alguma(s) virtude(s) privada(s)? Se olharmos para a história, creio ser difícil encontrar alguma sociedade estável pelas razões apropriadas que é (ou foi) formada por agentes totalmente viciosos privadamente, agindo virtuosamente apenas no domínio público. Talvez somente em uma ficção distópica isto seja possível, pois, no mundo real, sociedades estáveis parecem contar com um mínimo de coerência normativa.

Alternativamente, penso que são a estabilidade psicológica e a social que seriam a base do sistema democrático e, para tanto, precisaríamos contar com cidadãos que possuissem certas virtudes públicas e privadas. Mais detalhadamente, o ponto central que quero defender é que, para assegurar a democracia, seria necessária a existência de uma estabilidade pelas razões apropriadas, e isso significa que os cidadãos deveriam agir a partir das regras acordadas, isto é, deveriam cumprir as regras que eles mesmos fizeram, bem como as instituições políticas, econômicas e sociais deveriam agir a partir dessas mesmas regras, quer dizer, deveriam usar esse padrão normativo comum como base de suas práticas. E, para termos a estabilidade psicológica dos agentes e a estabilidade no interior da própria sociedade, precisaríamos contar com certas virtudes públicas e privadas, isto é, precisaríamos contar com agentes que poderiam viver uma vida significativa e coerente, bem como assumir certos deveres coletivamente. E, assim, as ações virtuosas garantiriam a própria força ou eficiência da democracia, uma vez que elas seriam a base da confiança mútua.5 Creio que a vantagem desse argumento como o estou formulando seja o de se contrapor ao fenômeno da assimetria entre vícios e virtudes, se apresentando como um antídoto para a esquizofrenia moral-política vigente, o que parece poder aproximar os domínios privado e público que são essenciais na vida de qualquer pessoa que vive em uma sociedade democrática contemporânea e busca a felicidade.

Tomando, por hipótese, que esse argumento da estabilidade realmente fosse mais vantajoso, cabe, agora, esclarecer quais virtudes públicas e privadas seriam necessárias para tal feito, uma vez que estamos em busca de um padrão normativo-moral comum que possa orientar a conduta dos agentes em toda sua formação e atuação cidadã, já esclarecendo que, como a virtude nada mais é que um padrão comportamental desejável por garantir um vida bem-sucedida, isto é, uma vida boa, sua conquista depende de exercício constante, de repetição, o que parece implicar ter de contar com certa cultura de seguir regras, isto é, uma cultura que incentive e cobre esse padrão normativo comum. Iniciemos com as virtudes públicas da razoabilidade e tolerância.

Cotidianamente, somos demandados pelos outros a nos comportarmos de certa maneira. Por exemplo, exigem que sejamos moderados; que ponderemos as razões ao agir; que sejamos sensatos, justos, racionais, coerentes; que levemos os outros em consideração, inclusive, no sentido jurídico. Essas, entre outras, são exigências de razoabilidade. Para ilustrar, chegar 30 ou 40 minutos atrasado em um compromisso não é razoável em situações regulares, bem como não seria razoável nunca cumprir as promessas ou acordos celebrados. Também, não seria razoável agir sem nenhuma consideração para com o meio ambiente, desperdiçando água, ou sem consideração aos direitos políticos e econômicos das pessoas, como defendendo a volta da escravidão, ou mesmo não se abalando com uma terrível ameaça proferida. Esses casos já servem para destacarmos dois sentidos essencias da palavra razoável que nos interessam aqui: ela é usada geralmente para caracterizar coisas ou situações logicamente plausíveis ou racionais, aceitáveis pela razão, como equivalente o bom-senso, mas também é usada para se referir ao que não é excessivo, isto é, que estaria entre quantidades moderadas.6

Agora, qual seria a importância da razoabilidade se pensarmos na complexidade de uma sociedade democrática contemporânea, que é composta por múltiplos agentes que possuem interesses diversos e até mesmo antagônicos? Creio que seu valor poderia ser compreendido como a condição de possibilidade da própria convivência harmônica entre diferentes pessoas. Ela poderia ser tomada como uma disposição do agente em abrir mão de seus desejos individuais e prestar atenção nos interesses dos outros, buscando certo equilíbrio entre as razões: a do próprio agente e as dos outros. Uma pessoa razoável provavelmente respeitaria uma decisão de alguém que fosse contrária à sua, como certa posição sobre o aborto ou eutanásia. Entendida dessa maneira, a razoabilidade parece ser uma virtude pública essencial para a estabilidade social, uma vez que ela poderia oportunizar o convívio harmônico dos diferentes.

Interessante é notar que a razoabilidade também é uma categoria central em teorias neocontratualistas, como é o caso da teoria da justiça como equidade, de John Rawls. Nessa paradigmática teoria contemporânea, a razoabilidade é tanto uma disposição de propor e cumprir os termos equitativos de cooperação, o que implicaria partir da ideia de sociedade equitativa para o estabelecimento do critério moral público, que é a reciprocidade, quanto é uma disposição para reconhecer os limites da razão e dos juízos, o que significa reconhecer o fato do pluralismo razoável e o fato da opressão. Nas palavras de Rawls,

O primeiro aspecto básico do razoável é, portanto, a disposição de propor termos equitativos de cooperação e cumpri-los, desde que( os outros também o façam. O segundo aspecto básico, como agora revejo, é a disposição de reconhecer os limites do juízo e aceitar suas consequências para o uso da razão pública na condução do exercício legítimo do poder político em um regime constitucional. (1996, p. 54).

Dessa forma, podemos entender que, para Rawls, a razoabilidade seria uma virtude moral, em primeiro lugar, pois é uma disposição da pessoa em cumprir os termos do contrato, isto é, seguir os dois princípios de justiça que defendem a liberdade, a igualdade e o bem comum, podendo ser entendida como um senso de justiça. Em segundo lugar, ela seria uma virtude intelectual, na medida em que é uma disposição para reconhecer que a razão é limitada ao estabelecimento da verdade sobre crenças e princípios morais e, dessa maneira, a melhor condução, no âmbito público, seria a de tolerância com as crenças divergentes. Por isso, o reconhecimento do fato do pluralismo razoável e do fato da opressão seria sua consequência lógica.7

Além da razoabilidade, outra virtude que parece essencial à democracia é a tolerância, e isso por todos terem, nesse regime, os mesmos direitos civis e políticos, além do mesmo direito de escolher sua forma de vida. Ela é uma atitude que exige de nós o controle de certos sentimentos de contrariedade e desaprovação aos diferentes, isto é, ela parece exigir que consigamos conviver com as diferenças religiosas, culturais, políticas, entre outras. Como dito acertadamente por Scanlon, “a tolerância requer que aceitemos as pessoas e consintamos em suas práticas mesmo quando as desaprovamos fortemente. A tolerância, então, envolve uma atitude intermediária entre a absoluta aceitação e a oposição imoderada.” (2003, p. 187).8

Veja-se o caso da tolerância religiosa. Nas religiões de matriz africana no Brasil, como umbanda e candomblé, é recorrente o sacrifício de animais como oferendas aos orixás. Entretanto, nas religiões cristãs, como catolicismo, protestantismo e (neo)pentecostalismo, que são majoritárias no País, essa prática não é requisitada e seria censurada se fosse praticada por seus membros, o que parece indicar desaprovação. Uma atitude de tolerância, nesse contexto, parece apontar a uma aceitacão da prática do outro, mesmo que ligada a uma desaprovação per se pela ação mesma. Por outro lado, uma atitude intolerante reivindicaria uma posição privilegiada aos próprios valores e à forma de vida, defendendo que essa prática de sacrifício de animais seria primitiva e deveria ser criminalizada. Mas isso não significaria, em um certo grupo, ter sua forma de vida estabelecida como verdadeira e obrigatória, anulando toda pluralidade? Seria diferente de um ritual religioso que exigisse sacrifícios humanos. Aqui, sua criminalização não seria intolerante em razão do dever de não causarmos danos aos outros, que deve ser reconhecido coletivamente.9

Note-se que essa virtude - a tolerância - parece requerer que não se privilegie um grupo em detrimento de outros na distribuição de prerrogativas e benefícios, negando certos direitos civis e políticos a determinados cidadãos, bem como parece requerer de nós mesmos que aceitemos como iguais os que têm posições diferentes da nossa. No caso LGBT, por exemplo, a tolerância requereria que o Estado assegurasse os mesmos direitos a essa comunidade, assim como garantisse os mesmos benefícios, bem como requeriria que a população heterossexual os aceitassem como iguais. Diferentemente da República platônica, em que apenas os governantes deveriam ser completamente virtuosos, sendo moderados, corajosos, prudentes e sábios, em uma democracia, as virtudes essenciais devem ser compartilhadas por todos os seus membros para a garantia da estabilidade social, ou, em outras palavras, para assegurar uma convivência harmônica ou pacífica.

E essa parece ser a importância central da tolerância, que é o de garantir a coexistência pacífica entre os cidadãos de uma dada sociedade, o que parece implicar a garantia da própria vida desses cidadãos, como também das suas diferenças.10 Por certo, a aquisição dessa disposição pessoal para certas atitudes de aceitação dos diferentes não parece ser uma tarefa nada fácil, embora se mostre como vital, porque qualquer alternativa à tolerância nos colocaria em uma situação de forte antagonismo com nossos concidadãos. E, provavelmente, esse antagonismo tornaria impossível o reconhecimento de uma identidade coletiva, isto é, os traços comuns que nos possibilitariam ser um certo povo de uma dada nação. E como poderíamos reconhecer nossas obrigações comuns sem esse sentimento de pertença a um grupo? Como poderíamos saber o que devemos aos nossos concidadãos sem esse tipo de reconhecimento?

III

Na seção anterior, disse que precisamos das virtudes públicas da razoabilidade e da tolerância para assegurar estabilidade social, e que essa estabilidade é fundamental para a sustentação da democracia e que, para adquirmos essas virtudes, precisamos contar com um tipo de identidade coletiva e um tipo de conhecimento interpessoal que nos possibilitaria o reconhecimento de nossas obrigações comuns. Cabe, agora, esclarecer o que seria mesmo algo como uma identidade coletiva e conhecimento intersubjetivo. Inicio com a identidade coletiva.

Consideremos a seguinte situação. Como se responsabilizaria os cidadãos de certo país que durante séculos discriminaram parte da sua população em razão de seu gênero impedindo as mulheres de participar da política, permitindo abusos psicológicos e sexuais ou mesmo naturalizando situações de assédio? Considerando que o repúdio à discriminação se dê em t2 (tempo presente) e os atos discriminatórios em t1 (tempo passado), como se daria a responsabilização, isto é, a quem seriam direcionadas a censura moral e a merecida punição? Note-se a dificuldade do caso pois, individualmente, os cidadãos que de fato teriam discriminado em t1 já não estariam mais vivos ou seriam muito velhos, similarmente aos que teriam sofrido com a discriminação. Além disso, os cidadãos do país no presente não seriam os que teriam discriminado e nem os que teriam sofrido com tal situação imoral. Então, como lidar com esta difícil questão?

Uma forma que vejo como sendo interessante seria a de reconhecer que haveria algo em comum entre os cidadãos em t1 e t2: eles compartilhariam certos laços culturais e emocionais, tais como uma língua, valores culturais e morais e, em muitos casos, uma religião comum, laços esses que possibilitariam reconhecer o caráter de um povo. Em outras palavras, esses laços compartilhados pelos cidadãos do referido país poderiam ser entendidos como a identidade coletiva de um povo. Retomando o nosso caso, penso ser razoável estipular que seria a identidade coletiva que possibilitaria que, em t2, seus concidadãos se sentissem responsáveis pela discriminação das mulheres ocorrida em t1, em razão de reconhecerem que faziam parte do mesmo grupo e teriam um objetivo comum de estabilidade social e prosperidade econômica. Como isso, eles poderiam, além de censurar seus antepassados ou até mesmo punir seus contemporâneos, se esses repetissem o erro, tentar encontrar mecanismos que possibilitassem uma maior integração na sociedade.11

Parece que seria esse sentimento de vinculação a um grupo que obrigaria os cidadãos em t2 a buscar formas de reparação com alguma ação afirmativa ou política que visasse a compensar o erro ocorrido, estabelecendo cotas para as nominatas partidárias nas eleições, ou mesmo criminalizando a violência às mulheres. Note-se a dificuldade em justificar ações afirmativas ou políticas similares apenas usando uma noção tradicional de responsabilidade moral e intencionalidade, uma vez que o problema não se encontraria na culpa individual do agente que erra ao não reconhecer certos direitos. Ao contrário, parece que o erro seria coletivo e, assim, a responsabilidade estaria ligada a comprometimentos e à intencionalidade comuns. Tomando o fenômeno da intencionalidade coletiva inicialmente como pausível, então, poderíamos admitir sua importância para resolver casos morais complexos e, assim, contar com um “nós intencionamos” no interior mesmo do raciocínio moral-político, de forma a tornar mais claro quais seriam os nossos deveres como membros de uma coletividade.12

Nessa altura da investigação, alguém poderia objetar legitimamente que a defesa do coletivismo frente ao individualismo implicaria a eliminação mesma da moralidade pública, uma vez que a identidade do grupo, bem como sua intencionalidade, obscureceriam a própria autonomia do sujeito, sua capacidade de querer, pensar, pesar razões e escolher, e também de assumir certos deveres. Como falar, então, de responsabilidade moral ou jurídica sem contar com um sujeito? Casos de comportamento coletivo agressivo, como linchamentos, saques e quebra-quebras, não comprometeriam nosso argumento sobre a preponderância da realidade coletiva para a compreensão da complexidade moral?13

Lembremos o caso do linchamento de Fabiane Maria de Jesus, ocorrido no Guarujá, em 2014, que chocou todo o País. No dia 3 de maio de 2014, uma centena de moradores do Bairro de Morrinhos IV, periferia da cidade de Guarujá-SP, linchou Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, dona de casa e mãe de duas crianças. Fabiane foi espancada e arrastada pelas ruas do bairro por cerca de cem pessoas que a confundiram com uma raptora de crianças depois que a dona de casa ofereceu uma fruta a uma criança que estava na rua. Isso desencadeou um processo de fúria coletiva que culminou no assassinato da vítima. Esse e outros casos similares de linchamento já não serviriam de alerta para desconfiarmos do coletivismo, dimensão em que o sujeito perderia sua individualidade comportando-se irracional e perigosamente, assumindo a “alma da multidão?”14

Importante é esclarecer que não estou advogando em favor de uma posição coletivista contraposta à individualística; ao contrário, estou defendendo uma posição holística em contraposição ao atomismo. E isso seria equivalente a pensar na realidade individual sempre em relação aos demais sujeitos, isto é, em suas interações sociais, econômicas e políticas. Seguindo Pettit (1993, p. 111-116), creio que esta posição nos permitiria avaliar a dimensão social do indivíduo adequadamente, isto é, como uma forma de “individualismo holístico”. Para tal fim, tentarei esclarecer com maiores detalhes o que seria mesmo essa dimensão da intersubjetividade, porque a intersubjetividade parece se constituir como a característica central da realidade social, que não poderia ser confundida com a realidade objetiva dos fatos brutos e nem redutível a uma mera soma da realidade subjetiva dos agentes, tal como ligada aos seus desejos e gostos. A estratégia será a de abordar o conhecimento, em especial, o moral-político, como uma atividade coletiva e não estritamente pessoal, que é intersubjetivo em sua natureza. Vejamos.

Dizer que o conhecimento é uma atividade coletiva significa, inicialmente, dizer que ele se dá em um mundo social e não em um mundo privado. Embora seja comum a imagem de um sujeito do conhecimento solipsista, que através de seu pensamento desvela o mundo, não podemos deixar de observar a dimensão coletiva do pensamento, uma vez que ele é um ato de seguir regras e esse ato é eminentemente social e, sendo assim, o próprio pensamento seria um ato eminentemente social. Isso parece implicar ver o conhecimento dos cidadãos em uma sociedade a partir de certas práticas comunicativas cotidianas, buscando as rotas sociais para o conhecimento, como no exemplo da política, do Direito e da educação, bem como observando os grupos como sujeitos do conhecimento, tais como a sociedade, os jurados, os legisladores, etc. Por exemplo, o que diferenciaria a deliberação jurídica de uma deliberação individual seria exatamente o fato de se tomar um conjunto de regras e princípios morais como orientadores da decisão, o que nos remeteria a ter que considerar como os tribunais decidiram em casos anteriores ou, até mesmo, a procurar identificar os valores constitucionais que serviriam de critério normativo.15

A segunda caraterística é que esse conhecimento não seria uma propriedade de um sujeito isolado, mas seria algo comum ao grupo. Deixem-me dar um exemplo disso. Saber que a escravidão e a discriminação da mulher são injustas é o caso de um conhecimento comum em razão de estar baseado em uma deliberação coletiva, além de parecer orientado, também, por uma intencionalidade coletiva, e isso seria inteiramente diferente do conhecimento de um sujeito particular sobre o modelo econômico mais eficiente. Para um propósito comum de viver em coletividade justamente, o grupo deve pesar razões e escolher o melhor meio para esse fim. Possuir o propósito comum já parece requerer discussão e deliberação sobre os juízos que a coletividade pode endossar. Importante é ressaltar que essa deliberação não seria um caso de pesar razões por um sujeito isolado, como no caso de saber se se deve ser caridoso ou não. Antes, ela teria por base pesar razões pelo grupo, o que conduziria para uma consideração da história. Assim, os juízos coletivos corretos seriam os que passariam pelo teste da consistência com os juízos tomados como corretos de um ponto de vista interpessoal, o que nos levaria à afirmação dos direitos da dignidade, da liberdade e da igualdade humana.16

Isso já introduz a uma terceira característica importante do conhecimento que é sua intersubjetividade. Abandonando o mito positivista de que a superioridade do conhecimento científico adviria de sua fundamentação na observação, que seria o único critério capaz de exercer um controle objetivo nas hipóteses científicas e servir para a determinação da verdade ou falsidade, podemos reconhecer mais facilmente esse aspecto interpessoal do saber. Em muitos casos, a ciência não é inteiramente independente dos contextos social, político e econômico, sendo esses fatores impactantes no resultado da própria ciência. Vejam-se os casos da teoria de darwinismo social de Spencer e, até mesmo, da teoria eugenista de Galton. Onde estariam as evidências da superioridade dos homens brancos ante os indianos, negros e judeus? Será que as ideologias imperialista e nazi-facista não influenciaram nessas teorias? Também é possível reconhecer casos em que a credibilidade do saber é validado não pelas evidências, mas pela afirmação dos especialistas. Note-se o exemplo da teoria geral da relatividade de Einstein. As suas predições sobre o tempo e o espaço careciam de evidências ao tempo de sua enunciação, o que não impediu a comunidade científica de aceitá-las.17

Mesmo podendo reconhecer que até mesmo o conhecimento científico não poderia ser visto como inteiramente objetivo, em razão da influência do contexto no seu resultado, bem como da credibilidade do saber não depender exclusivamente das evidências, creio que seja o conhecimento moral e político que melhor pode revelar esse aspecto intersubjetivo. E isso por apontar para uma perspectiva que claramente não seria reduzida a uma realidade externa, como no caso de uma descrição neutra do peso de um objeto. As atitudes reativas de indignação, ressentimento e culpa, mostrariam a limitação de se pensar na moralidade em termos de razões neutras ao agente. E, assim, parece que a responsabilização dos agentes, bem como o estabelecimento de deveres e direitos, já pressuporiam exigências interpessoais.

Partindo desse pressuposto, Darwall defende que a moralidade se daria em uma perspectiva de segunda pessoa. Para ele, a maioria dos conceitos morais, tais como obrigação ou dever, direitos, certo e errado, entre outros, tem uma estrutura em segunda pessoa que é irredutível. Com isso, estipula que esses conceitos implicitamente se referem a reivindicações e demandas que devem ser capazes de ser endereçadas em segunda pessoa. Em suas palavras:

Por exemplo, eu defendo que é parte da própria ideia de um direito moral (reivindicação) que o titular do direito tem a autoridade de fazer a reivindicação de uma pessoa contra àquelas a quem os direitos são exigidos e responsabilizá-las pelo seu cumprimento. Como P. F. Strawson argumentou de forma influente em “Freedom and Resentment” a meio século atrás, a responsabilidade é, em sua natureza, em segunda pessoa (como ele coloca, é interpessoal). (DARWALL, 2013, p. xi).

Note-se que o ponto central do argumento é ressaltar que a moralidade se daria em uma perspectiva interpessoal e não em uma perspectiva objetiva. E isso é assim porque os conceitos morais teriam implicações fundamentais no tipo de razões que tomamos para justificar crenças e atitudes que envolvem esses conceitos. Se uma pessoa (ou grupo) exige que respeitemos seu direito de crença religiosa, isso implica que ela exige o cumprimento de um dever moral de respeitarmos a diversidade religiosa. Isso parece ter por consequência a exigência do uso de uma razão moral de tolerância, o que conectaria o agente moral com o grupo. Assim, nossa obrigação moral seria bipolar, uma vez que teríamos o agente que é obrigado, bem como o grupo ao qual ele é obrigado, revelando que a normatividade seria relacional.18

IV

Após esse detalhamento do conhecimento moral-político como sendo intersubjetivo, bem como o esclarecimento do que seriam a identidade coletiva e a intencionalidade comum, tratemos, agora, da importância das virtudes privadas de integridade e autonomia para a garantia da estabilidade pessoal-psicólogia necessária para o fortalecimento do regime democrático. Deixem-me iniciar com a virtude da integridade, já esclarecendo por que ela poderia ser tomada como uma virtude, bem como destacando seu aspecto privado.

A integridade pode ser considerada uma virtude em razão dela ser um traço comportamental desejável, manifestado nas ações habituais, que é algo bom para a pessoa possuir, em razão de garantir uma vida bem-sucedida. Tal como a curiosidade e a moderação, o comportamento íntegro é tomado socialmente como essencial para uma vida boa. Não é necessariamente moral, pois um agente íntegro poderia realizar ações erradas como atos de fanatismo. Creio que ela pode ser melhor compreendida como uma virtude epistêmica, uma vez que estaria conectada a uma disposição do agente em ter valores coerentes e agir coerentemente a partir de seus comprometimentos mais profundos. Mas é claramente privada, pois tal como a curiosidade e a moderação, ela depende da disposição de uma pessoa específica em agir de certa forma para a obtenção do sucesso, não sendo requerido que os outros ajam de forma similar, como é o caso da tolerância e da razoabilidade ou mesmo civilidade. A felicidade, aqui, requer apenas atitudes pessoais e não coletivas, o que não significa negar o seu caráter social.19

Dito isso, creio que podemos destacar que a integridade exige que as ações dos agentes tomem como critérios normativos o conjunto valorativo que conta com sua aprovação. Isso parece implicar, em primeiro lugar, a harmonização dos vários tipos de desejo, desejos de primeira ordem, como: o de possuir certos bens, de tirar férias em certos lugares e comer em certos restaurantes com os desejos de segunda ordem, tal como: se orientar por certos princípios e valores. Em segundo lugar, isso parece significar coerência entre ações e valores dos agentes, de forma que haja coerência entre os comprometimentos, princípios e valores de alguém, bem como coerência entre as ações e esse conjunto valorativo. Um agente íntegro não poderia desejar carros de luxo, comer em restaurantes caros e passar férias nos locais mais badalados e, simultaneamente, desejar viver segundo os valores de simplicidade e sustentabilidade ambiental. Veja-se que esse seria um caso de inconsistência. De forma similar, uma pessoa íntegra não poderia trabalhar em um laboratório que faz pesquisas com armas químicas e, ao mesmo tempo, ser pacificista, mesmo precisando muito do emprego para sustentar a família. A ação inconsistente com os valores pessoais parece implicar a violação da própria identidade.20

O problema parece ser que violar um comprometimento de identidade seria deixar de ser a pessoa que se acreditava ser, mas seria possível alguém ser feliz com esse tipo de violação? Provavelmente não, uma vez que a felicidade requereria uma atribuição de valor da forma que vivemos nossa vida, incluindo aqui o conjunto normativo que serve de parâmetro para nossas ações. Imaginemos o caso do pacifista que aceitasse o emprego em um laboratório que faz pesquisas com armas químicas. Mesmo considerando a felicidade familiar que esse ato poderia gerar, com a maximização do bem-estar dos envolvidos, essa violação do comprometimento pessoal com a paz implicaria a violação do critério pelo qual o agente atribui valor à sua própria existência. E de que maneira poderíamos considerar esse tipo de alienação do agente consigo próprio como uma base adequada para uma vida feliz, bem-sucedida?

Importante é reconhecer que essa virtude se mostra basilar não apenas para a felicidade pessoal, garantindo a estabilidade psicológica do agente, mas também parece ser tomada como uma virtude essencial até no mundo do trabalho. Além da integridade ser sabidamente uma qualidade fundamental do gestor, muitas empresas estão usando atualmente o critério de integridade como uma importante qualidade normativa na seleção de seus colaboradores, bem como uma maneira de lidar com casos de corrupção e assédio que pretendem evitar. Há inclusive um teste de integridade que está sendo aplicado em várias empresas para saber se seus funcionários compartilham valores éticos organizacionais, chamado de Potencial de Integridade Resiliente (PIR), como sendo um modo de mostrar a capacidade de resistência dos agentes a pressões quando expostos a situações de conflito e dilemas éticos.21

Por mais que tal teste de integridade possa trazer uma série de problemas futuros, quero destacar que ele parece apontar para uma mudança importante e significativa. Se antes a integridade era apenas uma virtude que poderia ser exigida de um agente público, tal como um juiz, agora o próprio mercado está usando esse critério normativo para selecionar profissionais mais eficientes que, além de sua competência técnica, apresentassemuma competência específica de resiliência e coerência com os comprometimentos organizacionais. Talvez isso já esteja apontando que essa separação radical entre o domínio privado e o público não seria mais desejável, uma vez que a estabilidade social parece conectar-se intrinsecamente com a estabilidade pessoal, e que a felicidade e a prosperidade dependem dessa estreita conexão.22

Passemos agora para a virtude da autonomia. Por mais estranho que pareça tratar do conceito de autonomia como uma virtude, penso que podemos justificar nossa posição, uma vez que ela pode ser entendida também como a capacidade de um agente racional tomar uma decisão não tutelada, baseada nas informações disponíveis e que, para tal, necessita de disposição pessoal, de seu empenho e exercício para sua conquista. A tomando como autonomia pessoal preferencialmete à autonomia moral, ela pode ser definida como um traço comportamental de independência e autossuficência que os indivíduos podem exibir em relação a vários aspectos de sua vida, podendo ser melhor classificada como uma virtude intelectual ao invés de moral. E esse traço comportamental de independência em decisões e resolução de problemas, que capacita o indivíuo a viver de acordo com as razões e os motivos estipulados ou justificados pelo próprio sujeito, parece ser muito valorizado socialmente. Tanto a escola como a universidade, ou mesmo o mercado de trabalho e a área da saúde apoiam e incentivam esse tipo de comportamento autossuficiente para a conquista de uma vida bem-sucedida, como talvez demonstre a prática de consentimento esclarecido que hoje é habitual na medicina.23

Por mais que a autonomia se mostre muito relevante em diversas áreas, tais como a educacional, econômica, médica e até moral, destaca-se a sua importância para a política, isto é, chama-se a atenção para o valor dessa capacidade de tomada de decisão não tutelada para o fortalecimento da própria democracia. E isso porque a autonomia garante uma simetria entre os concidadãos de certa comunidade política, exigindo um compartilhamento de responsabilidades. Como em uma democracia a soberania é do povo e, em sendo assim, são as pessoas que devem, além de escolher seus prepresentantes, se posicionar seriamente sobre as principais questões políticas, econômicas e sociais, ela parece ter que contar com esse traço comportamental de autossufiência dos agentes. Como seria possível tomar posição diante desses complexos problemas sem essa capacidade de deliberar e decidir de forma independente? De que maneira um comprometimento não reflexivo sobre uma concepção de bem não ameaçaria o próprio regime democrático? Lembremos o caso do nazismo e do fascismo. Até que ponto a falta de autonomia de parte dos cidadãos alemães e italianos não teria sido responsável pela popularidade dessas doutrinas que defendiam, inclusive, a eugenia e o antissemitismo?

Com isso posto, quero frisar que a autonomia exige dos agentes que eles pensem por si mesmos, investiguem as causas dos problemas, estipulem soluções; enfim, assumam o risco de viver de acordo com certas razões e motivos que seriam estabelecidos por si mesmos e não produto de manipulação ou forças externas. É dessa maneira que penso que a autonomia permite que os cidadãos de uma dada comunidade democrática possam viver conforme uma relação de simetria. Em um regime político aristocrático ou de experts, a relação dos agentes seria fortemente assimétrica, uma vez que apenas os governantes e seus técnicos teriam a responsabilidade de pensar na solução dos problemas, não exigindo igualmente de todos o esforço investigativo e deliberativo. Mesmo reconhecendo que o regime democrático é muito mais exigente, parece que não aceitaríamos viver em um tipo de organização política que negasse a nossa capacidade de tomada de decisão, mesmo com a garantia de bem-estar, segurança e prosperidade. Sem autonomia, seria difícil obter a estabilidade psicológica, uma vez que parecemos atribuir muito valor às nossas escolhas, o que possivelmente já implicaria uma rejeição ao paternalismo.24

Note-se a importância desse ponto. O valor atribuído à nossa capacidade de escolher autonomamente se constitui como uma clara oposicão ao paternalismo e uma forte defesa do liberalismo. E isso porque uma posição paternalista em política parece defender que os agentes não teriam a capacidade de decidir com sua própria consciência, precisando que o Estado dissesse o que eles devem fazer, condenando certos atos, como: fumar, consumir drogas e pornografia infantil e incentivando outros, como: tomar vacinas, votar e ter uma vida saudável com a prática de exercícios, dieta balanceada, entre outros. O problema do paternalismo é que o Estado parece tratar os agentes políticos como pessoas que devem ser tuteladas, sem muita fé em sua autonomia. O liberalismo, por sua vez, defende uma posição muito diferente, apostando nesta capacidade de independência dos agentes para tomar decisões políticas. E assim, casos complexos como: aborto, eutanásia ou mesmo consumo de drogas, deveriam ser decididos individualmente pelos agentes, com a consequência de responsabilização individual pelas escolhas feitas, tomando a capacidade mental reflexiva como fonte de toda normatividade.25

V

Importante é salientar nesta parte final do texto que não estou defendendo uma posição perfeccionista, de forma a estipular uma fundamentação moral absoluta para a política com a exigência da excelência moral e intelectual dos cidadãos, não identificando diferenças relevantes entre o justo e o bem; ao contrário, estou defendendo a necessidade de contar com uma teoria política mista, que seja liberal, por um lado, ao respeitar a neutralidade ética dos agentes, mas impondo a todos um critério normativo público e, por outro, que seja comunitarista ao exigir um padrão normativo-moral comum tanto público como privado, mas que não seja paternalista, dizendo como os indivíduos devem viver sua vida na maior parte dos cenários sociais.

Penso que uma teoria política liberal-comunitarista poderia conectar coerentemente certas virtudes privadas, como a integridade e a autonomia, com algumas virtudes públicas, como a razoabilidade e a tolerância, respeitando a pluralidade de concepções razoáveis de bem, desde que com a aprovação de um padrão normativo moral-político que seja suficiente para garantir tanto a estabilidade psicológica dos agentes como a estabilidade social, isto é, suficiente para possibilitar a unidade de toda a sociedade e, assim, fortalecer a própria democracia.

Note-se que esse tipo de liberalismo não é muito diferente do proposto por John Rawls ou Martha Nussbaum, estando muito próximo, também, do que é defendido por Charles Taylor, creio. Por exemplo, Martha Nussbaum, em Political Emotions: Why Love Matters for Justice, defende que uma teoria política liberal, por ser independente das doutrinas abrangentes razoáveis, deve considerar as emoções de forma apropriada. Seu ponto é mostrar que precisamos contar com certas emoções, como: empatia, compaixão e certos tipos de amor, como patriotismo, bem como excluir outras emoções: o medo e a inveja, como meio de garantir estabilidade social e como condição de possibilidade da própria democracia, em razão dela ser um regime de vida comum com discordâncias. Faz referência, inclusive, que certos líderes políticos souberam conectar apropriadamente essas emoções no universo público, como Mohandas Gandhi e Martin Luther King Junior, e que isso foi fundamental para o sucesso de suas causas. O caminho seria imaginar formas em que as emoções apoiariam princípios básicos da cultura política.26

Tendo em mãos uma teoria política desse tipo, penso que estararíamos melhor aparelhados para enfrentar o grave problema da assimetria entre as exigências das virtudes nos domínios público e privado e, assim, procurar superar nossa deficiência através de uma melhor compreensão de nossas obrigações comuns. Voltemos ao caso da corrupção. Parece que uma teoria liberal-comunitarista poderia fornecer uma base mais sólida para o estabelecimento de um combate à corrupção de forma mais eficiente, uma vez que tomaríamos, como ponto de partida, a exigência para os agentes tanto privados como públicos de viverem de maneira coerente com os valores professsados, bem como uma exigência para o reconhecimento dos deveres intersubjetivos que deveriam ser o fundamento normativo de uma sociedade harmônica. Nesse modelo, as exigências de integridade, autonomia e de razoabilidade e tolerância não estariam restritas apenas aos agentes públicos, sendo o erro fortemente censurado também no domínio privado. Entretanto, essa censurabilidade deveria se restringir apenas ao que coletivamente podemos estipular como errado, como é o caso da corrupção mesma ou da discriminação racial ou de gênero, justificando-se o erro em uma perspectiva de segunda pessoa.

É claro que alguém poderia objetar legitimamente que essa assimetria entre censura e elogio seria necessária em uma sociedade democrática em razão do importante papel que desempenham as instituições públicas para a garantia da estabilidade social. Em uma sociedade liberal pluralística, as instituições públicas são tomadas como o padrão normativo que devem orientar os cidadãos e, assim, a atenção especial aos agentes públicos seria justificada. Mas, note-se o problema com esse argumento. Seria possível tratar de nossos deveres com as gerações futuras, discutindo sobre a necessidade de mudarmos nosso padrão de consumo, bem como sobre a urgência de diminuirmos a emissão de carbono, com um padrão normativo que esteja restrito à esfera pública? Creio que não, uma vez que estaríamos falando de deveres positivos e não apenas de deveres negativos, o que parece exigir de nós comprometimentos mais profundos.

Mas isso não implicaria paternalismo estatal ou mesmo moralismo jurídico? Creio que uma maneira de evitar essas consequências indesejadas seja estabelecer uma conexão entre as virtudes privadas e públicas de forma coerente. Por exemplo, a virtude da coragem e moderação ou mesmo da sabedoria teórica não parecem coerentes com as virtudes públicas da razoabilidade e tolerância, porque um agente poderia ter uma série de conhecimentos específicos, como: conhecimento médico, arquitetônico ou militar e, além disso, controlar seus apetites e medos e mesmo assim não conseguir conviver com as diferenças. Por outro lado, creio que a virtude da integridade, que exige que a ação do agente se dê a partir de seu conjunto valorativo coerente, parece ter algum tipo de relação com as virtudes públicas de razoabilidade e tolerância, que apontam para uma disposição para a convivência com os outros, o mesmo se dando com a virtude da autonomia, que exige um comportamento autossufuciente do sujeito.

E isso porque a integridade tem um caráter claramente social, de forma que o agente que possui essa virtude conseguiria, de modo mais apropriado, conectar-se com os valores estabelecidos pela sociedade. De maneira similar, a virtude da autonomia aponta para a atribuição de valor que dispensamos às nossas escolhas tanto no nível instrumental como no representativo e mesmo no simbólico. Essas virtudes privadas parecem coerentes com as virtudes públicas em razão de ambas as exigências se darem em um nível epistêmico, de forma a cobrar do agente uma reflexão sobre a correção de seus comprometimentos mais profundos, bem como certo reconhecimento da ausência de uma pura objetividade nas escolhas, o que poderia ser tomado como uma condição de possibilidade de convivência harmônica com as pessoas que possuem outras concepções de bem. Em muitos casos, até concepções antagônicas de bem.

Essa conexão entre as virtudes privadas e públicas de forma coerente pode sustentar a democracia de maneira mais sólida, uma vez que a exigência de correção recairia sobre todos os agentes de forma equivalente. Assim, penso que um sonegador de impostos ou mesmo um médico que fraudasse o SUS poderia receber a mesma censura por parte da comunidade política do que um deputado ou senador que viesse a votar certa lei em troca de compensação financeira. Como a democracia depende da confiança das pessoas nos seus representantes e nas suas instituições, creio que tal conexão coerente de virtudes poderia nos assegurar uma confiança mútua entre os concidadãos, o que já poderia indicar uma condição necessária para a eficácia desse regime. Ainda que não o suficiente, creio que a superação da assimetria entre vícios e virtudes dos agentes nos domínios privado e público poderia oferecer uma rota alternativa mais promissora do que a atual, que deposita toda sua esperança no fortalecimento das instituições, sobretudo as políticas, apenas com a punição de seus agentes públicos.

Talvez com a constatação de que as pessoas, na maior parte das vezes, poderiam identificar razões morais e agir moderadamente a partir delas, teríamos uma forma inicial mais consistente de lidar com nossa esquizofrenia moral-política em busca da estabilidade. E mais: talvez não seja equivocado pensar que os agentes não poderiam realmente ter uma vida bem-sucedida sem a posse de determinadas virtudes. Mas, se isso é ao menos parcialmente verdadeiro, é possível que tenhamos que enfrentar o desafio de esclarecer para nós mesmos qual seria o padrão normativo comum que poderíamos exigir uns dos outros, resguardando, por um lado, as liberdade individuais, mas sem esquecer de nossos deveres morais-políticos interpessoalmente identificados e justificados. Também é provável que tenhamos de contar com certa cultura de seguir regras que seriam a base social da felicidade pessoal que ainda se mostra incipiente em nossa sociedade.

Referências

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1Pesquisa realizada a partir de 20.200 entrevistas em 18 países latino-americanos, entre junho e agosto de 2017, representando um total de 600 milhões de pessoas da região. A pesquisa releva que o Brasil está abaixo da média em vários cenários. Por exemplo, a corrupção aparece apenas em quarto lugar como principal problema latino-americano, bem como a satisfação com a democracia é de 30% e não de 13%, e a insatisfação com os governos é de 75% ao invés de 97%. ( Ver Inflatinobarómetro, Corporación Latinobarómetro, Santiago de Chile, Informe 2017, p. 16-18, 34-35).

2Reportagem apresentada por Giovanni Grizotti no programa Fantástico (Globo), em 20/01/2015 que revelou esquema de corrupção de alguns médicos da área de ortopedia, neurocirurgia, cirurgia plástica e cardiovascular que recebiam comissões que variavam entre 20%-30% do valor das próteses vendidas. Em alguns casos, os profissionais orientavam os pacientes a procurar a Justiça para fazer com que o SUS e os planos de saúde custeassem os produtos cobrados acima do valor de mercado. Ainda mais grave, alguns médicos indicavam cirurgias desnecessárias para lucrar mais. Para mais detalhes, ver artigo de Cláudia Colluci publicado na Folha de São Paulo, em 20/01/2015.

3Em Contrato e virtudes defendo uma teoria moral mista que faz uso de uma ética neocontratualista em conexão com uma ética das virtudes. Penso que a vantagem dessa teoria normativa mista de decisão racional/razoável é que ela parece poder contar tanto com aspectos internalistas como com aspectos externalistas para a justificação de crenças e princípios morais de forma coerentista e contextualista e, assim, parece se aproximar de modo mais pertinente da maneira como julgamos os casos morais e políticos tanto no âmbito público como no privado. (Ver COITINHO, 2016, p. 23-37, 193-196).

4Estamos tomando a democracia como a “democracia liberal representativa”. Dessa forma, ela é o regime político em que a soberania é exercida pelo povo. É o regime político em que o povo elege livremente seus representantes e exerce a soberania do Estado mediante um sistema partidário-pluralista, com liberdade de imprensa, de manifestações, de associação e de organização política, além do respeito aos direitos civis e individuais dos cidadãos. Além dessas características gerais, quero chamar a atenção ao fato de que o fundamento de uma sociedade democrática seria o pacto mútuo de não agressão e, mais importante, o pacto de obedecer as regras livremente acordadas, pactos esses garantidos por um poder comum. Sobre os fundamentos da democracia (BOBBIO, 1999, Cap. 7).

5O conceito estabilidade pelas razões apropriadas está sendo tomado em sentido similar ao utilizado por John Rawls quando fala em “estabilidade pelas razões corretas - stability for the right reasons”. Para ele, uma sociedade bem ordenada seria aquela que garantiria sua própria estabilidade em razão de: (i) todos aceitarem os mesmos princípios de justiça; (ii) a estrutura básica da sociedade aplicar estes princípios; e (iii) os cidadãos possuírem um senso de justiça efetivo, que lhes capacitaria a cumprir essas regras acordadas. (RAWLS, 1996, p. 35-40).

6Em termos jurídicos, a razoabilidade é uma diretriz do senso comum aplicada ao Direito. Esse bom senso jurídico é importante à medida que as exigências formais (que decorrem do princípio da legalidade) tendem a reforçar mais a letra da lei que o seu espírito. O ponto central é que esse princípio da administração tem que obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional em coerência com o senso normal de pessoas equilibradas. O princípio da razoabilidade é um método usado no Direito Constitucional brasileiro para resolver casos de conflito de princípios jurídicos, por vezes chamado de princípio da proporcionalidade ou da adequação dos meios aos fins. (DI PIETRO, 2001, p. 80).

7A ideia geral é que agentes razoáveis podem compreender as limitações racionais para a comprovação de seus próprios pontos de vista e, assim, deveriam reconhecer dois fatos: o primeiro é o da existência da diversidade moral razoável, isto é, que pessoas podem ter diferentes concepções de bem e, mesmo assim, conviver pacificamente a partir do reconhecimento comum do critério de justiça; o segundo é que a única forma de garantir uma unidade moral contemporaneamente seria com um Estado forte que teria que obrigar as pessoas a aceitarem uma dada concepção de bem, e que essa opressão seria negativa. (RAWLS, 1996, p. 54-58, ver, também, RAWLS, 1999, p. 429-434).

8No seminal artigo “The difficulty of tolerance”, Scanlon aborda a dificuldade das atitudes de tolerância em sociedades democrático-complexas, como é o caso dos EUA, como atitudes difíceis de serem cultivadas, mas acredita na tolerância a despeito de seus riscos, uma vez que qualquer alternativa a ela nos colocaria em uma relação antagônica e alienada com nossos concidad ãos tanto amigos como inimigos. (SCANLON, 2003, p. 200-201).

9Em A letter comcerning toleration, Locke (2010) conclui seu texto apresentando a seguinte regra liberal que vincula as proibições com os direitos dos agentes: as coisas que se permitem fora do culto, aquelas que dizem respeito apenas ao bem de cada um, inclusive à sua salvação pessoal, que também se permitam dentro dele; as que se proíbem fora do culto, aquelas que causam danos a terceiros ou põem em risco a sociedade civil, que também se proíbam dentro dele. (LOCKE, 2010, p. 40-43).

10Esse é o ponto central defendido por Michel Walzer ao dizer que a tolerância sustenta a vida e torna possível a diferença. Em suas palavras: “Ela sustenta a própria vida, porque a perseguição muitas vezes visa à morte, e também sustenta as vidas comuns, as diferentes comunidades em que vivemos. A tolerância torna a diferença possível; a diferença torna a tolerância necessária.” (WALZER, 1997, p. xii).

11A identidade coletiva se refere ao processo de identificação de um indivíduo a um grupo, em que essa forma de identificação grupal é significativa para a identidade individual. Usualmente, falamos de identidade como se fosse atribuída fosse apenas a um indivíduo, em termos de identidade pessoal e identidade psicológica, isto é, com a discussão das características que fariam a pessoa única, diferente de todas as outras. Por outro lado, a identidade social se refere ao pertencimento de um agente a certo grupo social. E, assim, a identidade coletiva pode reconhecer a interconexão entre a identidade individual e a social ao invés de ser tomada como em oposição ao individualismo, contrastando com as ideias de autonomia individual e liberdade. Sobre identidade coletiva (McLAREN, 2011).

12Segundo Searle, a intencionalidade coletiva é uma capacidade natural de não apenas se engajar em algum comportamento cooperativo, mas de compartilhar estados intencionais, tais como crenças, desejos e intenções. Assim, poderíamos contar com um “nós intencionamos” no interior mesmo do raciocínio moral, de maneira a tornar mais claros para nós mesmos quais seriam os nossos deveres morais como membros de uma coletividade. Sendo os problemas morais e políticos comuns a todos os participantes de uma comunidade, buscar soluções solipsistas não parece uma alternativa viável. Sobre intencionalidade coletiva. (SEARLE, 1995, p. 23-26).

13O comportamento coletivo pode ser definido quando cada indivíduo, em um grupo, é levado a pensar ou agir sob a influência de certo estado mental compartilhado por todos e com o qual cada um contribui. Importante é notar que nem todo comportamento coletivo é agressivo, como podemos ver pelos movimentos sociais de reivindicação de direitos, por exemplo, ou mesmo em movimentos de contestação política. O ponto central é que parecem afirmar valores e códigos compartilhados. (DEL PRETTE, 1993, p. 12-14).

14Embora não seja essencial, é importante fazer referência que Fabiane foi apontada, falsamente, como raptora de crianças para sacrifícios em rituais de “magia negra”, o que remeteria a uma discussão sobre a responsabilidade das informações disponibilizadas nas redes sociais. Sobre o caso, ver matéria de Bruno Ribeiro publicada no O Estado de São Paulo em 7/5/2014. Sobre o comportamento coletivo como irracional e perigoso. (LE BON, 1960).

15Alvin Goldman diz corretamente que a epistemologia tradicional sempre foi fortemente individualista, tendo por foco operações mentais de agentes cognitivos isolados, mas que, dada a natureza interativa do conhecimento no mundo contemporâneo, a epistemologia precisaria de uma contraparte social. (Ver GOLDMAN, 1999, p. 3-40). Isso parece evidente no raciocínio jurídico, que deve identificar o que as regras e os princípios requerem. Para Dworkin, por exemplo, essa tarefa é digna de um Juiz Hércules, uma vez que seria necessário identificar que conjunto de princípios melhor justificaria os precedentes, bem como reconhecer a moralidade política da comunidade para decidir acertadamente. (DWORKIN, 1977, p. 81-130).

16Pettit analisa que uma deliberação coletiva acontece pelo uso de uma razão coletiva. Falar de uma razão coletiva é falar de grupos com propósitos que usarão um procedimento de silogismo prático, o que significa um procedimento em que a conclusão do processo deliberativo será resultado do reconhecimento comum da adequação das premissas. (PETTIT, 2011, p. 250-253).

17Uma forma de questionar o verificacionismo seria dizer, com Popper, que “o melhor que temos a dizer a respeito de uma hipótese é que até agora ela foi capaz de mostrar o seu valor e que ela tem tido mais sucesso que as outras hipóteses, embora em princípio ela não possa nunca ser justificada, verificada ou mesmo ser mostrada provável.” (POPPER, 1959, p. 315).

18É importante notar que essas obrigações morais bipolares parecem requer uma autoridade discricionária em segunda pessoa, de forma que o grupo que obriga deve fazer reivindicações para os que têm obrigações e exigir uma responsabilidade pessoal. Assim, o que faz uma razão moral - que é uma razão conclusiva de fazer uma dada ação - uma razão de segunda pessoa é que ela é fundada na autoridade e legitimidade das demandas que fazemos uns aos outros. (Ver DARWALL, 2013, p. 151-167. Ver, também, DARWALL, 2009, p. 39-61).

19Concordando com Calhoun, a integridade possui um caráter social, de forma que uma pessoa íntegra não agiria apenas consistentemente com seus comprometimentos, mas que estaria conectada com valores estipulados pela comunidade da qual ela faz parte. E, assim, a integridade seria uma questão de ter um olhar apropriado para o seu próprio papel no processo comum de deliberação sobre o que teria valor. (CALHOUN, 1995, p. 258).

20Este é um exemplo dado por Bernard Williams para se contrapor ao modelo utilitarista de raciocínio moral. George é químico e está desempregado, precisando sustentar a família. Surge uma oportunidade de emprego em um laboratório que realiza pesquisas com armas químicas. Ele deve aceitar o emprego ou não, considerando que ele se opõe ao uso de armas químicas? Do ponto de vista utilitarista, a resposta seria positiva, uma vez que aceitar o emprego é o que maximizaria o bem-estar dos envolvidos. Mas, de um ponto de vista pessoal, isso implicaria a alienação de George aos seus próprios valores, isto é, a perda de sua integridade. (WILLIAMS, 1973, p. 97-98).

21A S2 Consultoria, especializada em prevenir e lidar com casos de fraude e assédio nas organizações, oferece uma ferramenta de gestão e desenvolvimento humano que analisa a postura ética dos candidatos, funcionários e mesmo fornecedores, chamada de Potencial de Integridade Resiliente (PIR). E uma vez identificada a distância entre os valores individuais e os valores esperados pela organização, a plataforma contribui com a diminição dessa distância através de um programa de treinamento interativo, discutindo e analisando casos similares à realidade profissional. A ideia geral é defender uma “integridade inteligente”, de forma que os interesses pessoais não sejam inteiramente coibidos, mas que sejam mitigados conforme as circunstâncias concretas de maneira realista. Ver artigo de Vera Batista no Correio Braziliense, de 27/3/2017, que aborda esta realidade de teste de integridade para seleção de funcionários.

22Para Dworkin, por exemplo, em Law’s empire, a integridade é uma virtude pública que instrui os juízes a identificar direitos e deveres legais a partir dos pressupostos que foram criados pela comunidade política personificada, expressando uma concepção coerente de justiça e fairness. E, assim, poderiam identificar as proposicões jurídicas verdadeiras, que seriam as derivadas dos princípios de justiça, mais a equidade (fairness), além do respeito ao devido processo legal, oferecendo a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade. (DWORKIN, 1986, p. 176-224).

23Estou tomando o termo autonomia de forma similar ao termo autarkeia como usado na filosofia antiga. Tanto em Platão como Aristóteles, a autarkeia significava autossuficiência, estando associada ao ideal de humanidade ou à falta de dependência dos outros. Para Aristóteles, a autossuficiência é um ingrediente central para a felicidade (eudaimonia) e envolve a ausência de dependência de condições externas para a garantia da vida boa. Inclusive, é um critério para distinguir senhores de escravos. Em suas palavras: “Por ora definimos a autossuficiência (autarkeia) como sendo aquilo que, em si mesmo, torna a vida desejável e carente de nada. E como tal entendemos a felicidade.” (ARISTÓTELES, 1999, 1097b 15-17).

24Scanlon defende que a escolha não tem apenas um valor instrumental, mas também representativo e simbólico. No valor instrumental, ou preditivo, a escolha envolve uma satisfação futura, como escolher um prato do cardápio de um restaurante. A escolha, aqui, é um instrumento para um futuro prazer. Outra forma de escolha tem um valor representativo, como no caso de se escolher um presente para a esposa. A escolha que se faz representa quem se é. O valor simbólico da escolha se dá no âmbito de importantes decisões a tomar, como no caso da escolha da carreira, onde trabalhar, com quem casar. Importante é notar que o valor atribuído às nossas escolhas parece fundamentar a rejeição razoável do princípio de intervenção paternalística. Poder-se-ia dizer que essa interferência: (a) anularia a possibilidade das pessoas fazerem escolhas com significativo valor instrumental; (b) interferiria nas escolhas que têm importante valor representativo, isto é, na forma como as pessoas moldam sua vida e expressam seus valores; e (c) estigmatizaria as pessoas sob interferência como imaturos ou incompetentes. (SCANLON, 1998, p. 251-255).

25Em The sources of normativity, Korsgaard defende corretamente que a automia é fonte de toda normatividade e, mais especificamente, é fonte da obrigação moral. O seu argumento estipula que como é a capacidade humana de pensar sobre si mesmo, suas crenças e ações que colocam o problema normativo de como devemos agir, é essa mesma capacidade mental-reflexiva que deve encontrar uma resposta, significando o bom e o correto por “eu estou satisfeito, feliz, comprometido” ou “certo, você me convenceu”, apontando que o trabalho reflexivo foi realizado. (KORSGAARD, 1996, p. 93-94).

26Nussbaum aponta que esse modelo que está propondo tem origem no liberalismo político de John Rawls, uma vez que haveria conexão entre certas emoções com os princípios de justiça para assegurar estabilidade social pelas razões corretas: “Estabilidade, além do mais, deve ser assegurada ‘pelas razões corretas’, em outras palavras, não por mero hábito ou aceitação relutante, mas em razão de um endosso real dos princípios e instituições da sociedade. De fato, uma vez mostrado que a sociedade justa pode ser estável é uma parte necessária de sua justificação, a questão da emoção é integral aos argumentos para a justificação dos princípios.” (NUSSBAUM, 2015, p. 9).

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