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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.spe3 Caxias do Sul  2018  Epub 02-Set-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.dossie.8 

Artigos

O populismo, a massa e a afetividade*

Populism, the mass and affectivity

Daniel Omar Perez** 

**Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).


Resumo

O objetivo deste artigo é apresentar um dispositivo conceitual desde Laclau e Lacan que permita abordar o fenômeno político nomeado como populismo. Para isso, primeiro, estabeleceremos a definição dos conceitos utilizados. Em segundo lugar, estabeleceremos o contraponto entre populismo, neoliberalismo e fascismo. Finalmente, apresentaremos o populismo como uma possibilidade de saída de crise política, social e econômica. Devemos salientar que o texto esteve intencionalmente elaborado para um debate com uma defesa do liberalismo como saída de crise política, social e econômica.

Palavras-chave: Populismo; Identificação; Afetos; Laclau; Lacan

A crise e o populismo

Crise

Desde alguns elementos do trabalho de Ernesto Laclau, podemos definir provisoriamente uma crise no âmbito das relações sociais de um país a partir da relação entre as demandas populares insatisfeitas e a gestão de um governo.1 Quando as demandas dos cidadãos e dos diferentes grupos e setores sociais não são minimamente satisfeitas pela gestão de governo no Estado se origina um descontentamento geral que provoca uma rejeição discursiva e afetiva tanto por identidades individuais quanto coletivas2 e, mais tarde, se produz uma relação de oposição entre dois polos. Desse modo, o governo (como um dos polos) fica sem legitimidade social e política, e os diferentes setores sociais (como outro dos polos) aparecem sem representatividade na estrutura de gestão do Estado.

Podemos dizer que, desse modo, na distância entre o governo e a população se dá um vazio que, em muitos casos, pode provocar uma situação de desconhecimento entre a maioria da população e o conjunto das instituições do Estado. As instituições do Estado acabam por não representar (isto é, não dar encaminhamento e satisfação mínima às demandas) a maioria dos interesses dos diferentes setores sociais e dos cidadãos e são compreendidas como sendo utilizadas com fins estritamente particulares (pessoais) por aqueles que ocupam cargos de governo gerando a imagem de uma casta. Assim, entendemos que a população tem a percepção subjetiva de que não só o governo do poder executivo desconhece suas demandas senão que os âmbitos legislativo e judiciário, bem como todo o aparelho de gestão institucional do Estado, não correspondem às expectativas almejadas pelas maiorias.

O impasse criado entre um Estado, visto como aparelho financiado por todos a serviço de poucos, e uma população que se reconhece como despojada daquilo que entende como sendo seu, oferece as condições necessárias para uma saída populista da crise.

Populismo

O termo populista tem sido usado durante muito tempo e já a partir do século XIX como um adjetivo com sentido pejorativo, inclusive em textos científicos, em estudos sociológicos e em análises políticas. A valorização moral ou moralização daquilo que se nomeia como “populismo” foi praticada tanto por analistas liberais quanto marxistas. O populismo tem sido definido como um estilo ou modo de fazer política, como uma ideologia mais ou menos oportunista e patética ou como um discurso puramente retórico, vazio e apenas emotivo. Temos no Ocidente uma longa lista bibliográfica que trata o termo populismo desses modos. Não vou me deter nisso aqui. Não vou fazer menção a tais estudos, apenas remetemos aos trabalhos que exaustivamente já o fizeram Ernesto Laclau e Chantal Mouffe por todos conhecidos.3

Limitar-me-ei aqui diretamente à noção de populismo como categoria política a partir da obra de Ernesto Laclau. Existem vários lugares na obra de Laclau onde se define o conceito de populismo; em nosso caso, nos referiremos a seus últimos trabalhos. Não é nosso objetivo reconstruir a história desse conceito na totalidade da obra. Entendemos que é no último período que temos uma definição mais acabada e útil para o nosso interesse. Nesse caso, proponho-me usar o termo populismo como categoria política e não como adjetivo valorativo moralmente, seguindo a orientação de Ernesto Laclau (2008) em seu livro A razão populista.

De acordo com Laclau (2005, p. 91), com relação ao termo populismo tradicionalmente se propõe:

  1. Que el populismo es vago e indeterminado tanto en el público al que se dirige y en su discurso, como en sus postulados políticos.

  2. Que el populismo es mera retórica. Frente a esto, opusimos una posibilidad diferente: 1. Que la vaguedad y la indeterminación no constituyen defectos de un discurso sobre la realidad social, sino que, en ciertas circunstancias, están inscriptas en la realidad social como tal. 2. Que la retórica no es algo epifenoménico respecto de una estructura conceptual autodefinida, ya que ninguna estructura conceptual encuentra su cohesión interna sin apelar a recursos retóricos. Si esto fuera así, la conclusión sería que el populismo es la vía real para comprender algo relativo a la constitución ontológica de lo político como tal.

Finalmente, afirma Laclau (2005, p. 195): No existe ninguna intervención política que no sea hasta cierto punto populista.

Devemos salientar que a expressão “No existe ninguna intervención política” supõe que está se referindo ao ato de massas. É perfeitamente possível imaginar intervenções políticas de gabinete, operações de conspiração, atos de espionagem, sabotagens, extorsões de todo tipo que acabam tendo como consequência uma mudança na relação política de forças. Alguns pesquisadores apontam com razão para a interpretação bastante difundida da espécie de sinonímia que se encontraria entre o conceito de populismo e de política. No entanto, o elemento a destacar na especificidade daquilo que seria o populismo é que esse tipo de fenômeno estabelece:

(1) uma dicotomia originária4 no campo do político (uma tensão originária); e (2) o estado de mobilização permanente5 dos diferentes coletivos de demandas.

No caso da Sul América, no início do século XXI, essa dicotomia se encontra na disputa política entre dois projetos de gestão pública do Estado: o projeto do neoliberalismo e o projeto de inclusão e redistribuição da renda e da riqueza. De acordo com Laclau (afirmação reiterada em várias oportunidades), a oposição aqui não é entre liberais e conservadores (como poderia ser nos EUA) senão entre liberal-conservadores e nacional-populares.

Assim sendo, podemos dizer que, de acordo com Laclau, uma situação social cujas demandas precisam se reagrupar sobre a base de permanecer insatisfeitas é a primeira condição para um tipo de articulação política que aqui estamos denominando de populista. Além disso, Laclau (2005) inclui a relação de equivalência entre elas e o estado de mobilização.

Agora, a partir de alguns elementos da psicanálise lacaniana, tentaremos explicar brevemente a formação dos grupos e suas ações em torno do que se considera uma demanda.

As identificações coletivas6 podem surgir a partir de desejos que se encontram imaginariamente num objeto (imaginário)7 comum, a partir do reconhecimento de traços identitários8 entendidos como sendo o mesmo, a partir do ódio ao excluído do coletivo ou a partir de demandas insatisfeitas. Em todos os casos se produz uma cadeia significante9 (discursos ou segmentos de frases articulados a partir de elementos significantes que não precisam ser verdadeiros, mas fazer efeito de sentido (imaginário) para as maiorias em identificações coletivas) com a qual cada membro se identifica e forma o grupo. Essa coesão social se sustenta no investimento afetivo em relação ao objeto amado ou odiado (em sentido freudiano). A cadeia significante pode ser veiculada em discursos, fragmentos de discursos, frases, palavras, símbolos, cores, músicas, gestos, etc. Assim, cada grupo produz e se reconhece numa estética, quer dizer, cultiva determinados afetos e vibra com determinados sons.

No que nos interessa desde o ponto de vista da conformação do fenômeno do populismo, apenas nos referiremos ao caso das demandas. As demandas sociais constituem identidades coletivas contingentes. Onde há uma demanda aparece o grupo de cidadãos que se identifica em torno dela. Se a demanda for satisfeita a identidade se desfaz; se permanece insatisfeita a identidade se sustenta na falta entendida como carência e os membros do grupo permanecem em coesão (LACLAU, 2005).

Nessa situação, deve aparecer um segundo elemento, um significante (no sentido em que Lacan fala de identificação significante em O seminário 9) que possa vir a funcionar como universal com relação a cada demanda, estabelecendo a possibilidade de equivalência entre demandas por completo heterogêneas.10 Esse significante (que pode ser o nome de uma pessoa ou uma ideia que serve como elemento para estabelecer as equivalências das demandas insatisfeitas)11 deve se opor àquele que aparece como negando a satisfação das mesmas. Assim, se nomeia o antagonismo, se dá nome à oposição que havia entre o governo como elite do Estado e a população como demandante insatisfeita. A nomeação constitui12, isto é, integra e exclui ao mesmo tempo.13 A operação integra as demandas em um sistema de equivalências e exclui a elite como aquilo ao qual se opõe ao povo, como aquele que obstaculiza a satisfação das demandas.

O esquema abaixo procura mostrar o dispositivo de identificação e exclusão que conforma identidades individuais e coletivas a partir da identificação significante.14

S: significante

A e B: os indivíduos que se identificam em S e estabelecem relação de reconhecimento e equivalência entre eles

C: o outro excluído da relação de identificação

Os colchetes definidos entre o imaginário e o simbólico mostram o ato de nomeação pelo significante.

A nomeação, como ato de fala (entre Austin e Kripke), constitui a relação de oposição entre o povo como agente de demandas e a elite como detentora do poder.15 Esses coletivos de identificação, de acordo com Laclau, funcionam como atores políticos e podem determinar a pauta de decisões políticas na toma do poder político e ou na gestão de Estado.

Assim, trata-se de colocar de manifesto um fenômeno de identificação coletiva no âmbito da ação política que possibilite constituir um agente político com poder e legitimidade suficiente, como para tomar o poder político e encaminhar as demandas sociais.

Diferença entre massa e povo

Na lógica das identificações coletivas há uma diferença que pode ser especificada entre a massa e o povo e que aqui é preciso destacar. Enquanto a identidade populista é lograda a partir da lógica das demandas, no caso da massa, a construção de identidade se realiza pelo vínculo libidinal com o líder. O amor e o ódio são fundantes, e a coesão se sustenta verticalmente nessa relação afetiva.

De acordo com Nora Merlin (2017), a massa atualmente tem um líder: a grande mídia. Recordemos que o líder não precisa ser uma pessoa. No caso, se trata da voz, da imagem, do significante veiculado pelo dispositivo da grande mídia. Esse líder tem como tarefa instalar e reinstalar afetividade e oferece, como bem afirmava Gabriel Tarde, no século XIX, alguém a quem odiar. As condutas, os afetos os sentimentos do indivíduo que na intimidade estabelece uma relação passiva com o líder faz massa. No caso da massa, o laço vertical com o líder permite o reconhecimento do outro semelhante como fazendo parte do mesmo grupo. Assim, a massa é o amontoado de indivíduos que na sua particularidade está afetado pelo líder.

No caso do populismo, o laço é a partir da “relação equivalencial” horizontal das demandas (termo formulado por Laclau e elaborado por Merlin). Os coletivos demandantes têm uma autonomia relativa a respeito do líder e do próprio movimento populista. O líder do movimento populista funciona como articulador da equivalência entre as demandas e permite uma coesão da ação demandante.

O líder da massa busca estrategicamente provocar sentimentos de ódio e depreciação com o objetivo do rompimento dos laços sociais. Uma das táticas é nunca deixar aparecer a voz do líder do movimento populista, sempre aparecer como aquele que diz o que o outro teria dito. A pulsão invocante16 é utilizada como um instrumento de poder e de ação política.

O indivíduo e a sociedade

O mito liberal do indivíduo bipolar, constituído por necessidades biológicas e representações mentais, que toma decisões racionais em função das suas necessidades naturais e, desse modo, entra em sociedade estabelecendo um pacto não é apenas um mito, mas um modo de justificar retoricamente o funcionamento de um tipo de Estado. O mito do indivíduo isolado e autônomo faz parte de uma interpretação bastante recortada do Jusnaturalismo, que exclui a vida em comum como fundo originário da aparição do cidadão. Esse modelo de interpretação permite opor o Estado à liberdade do indivíduo e também reivindicar duas ações determinantes do poder do Estado, a saber: reduzir sua intervenção em relação à liberdade individual e reivindicar seu exercício coercitivo quando esta mesma liberdade se encontra ameaçada pelo caos e pela desordem social, isto é, por uma crise. Nesse sentido, opõe-se a identidade do indivíduo e sua liberdade à alienação imposta pelo Estado ou pela desordem atribuída à ação dos grupos demandantes e, eventualmente, ao movimento populista.

A oposição identidade-alienação, onde o primeiro termo é o privilegiado e hierarquicamente superior e o segundo é depreciado, reduz o Estado a uma máquina de repressão em função de uma suposta liberdade individual- natural como elemento de identidade do sujeito e reduz também a mobilização permanente do povo como agente político a mero caos, à falta de institucionalidade.

Contrariamente ao mito liberal, podemos pensar os sujeitos não como indivíduos isolados que tomam decisões racionais em função das suas necessidades biológicas, mas como sempre já dados em um clã, uma tribo, uma horda ou um grupo (hipótese proposta, entre outros por Freud em vários dos seus trabalhos). Poderíamos dizer com Lacan em Os complexos familiares na formação do indivíduo que a alienação é a primeira experiência humana. A mãe não pergunta para o bebê se ele quer ou não entrar na sociedade ou estar ou não com ela, se ele quer ou não satisfazer de tal ou qual maneira suas necessidades biológicas; ele não tem alternativa a não ser estar lançado já numa articulação simbólica e imaginária que conforma o que Lacan denomina de Fantasma em O Seminário 14, o que poderíamos entender muito reduzidamente como a realidade onde se inscreve o desejo. Assim, o indivíduo, para se constituir como tal, precisa, antes de qualquer coisa, estar alienado ao desejo do Outro. A alienação aqui cumpre uma função constitutiva e não pode ser mais degradada para um segundo termo. Aquele que exerce a função materna não só nutre a criança dando resposta às necessidades biológicas, mas também erogeniza o corpo (FREUD, em Três ensaios para uma teoria sexual) dando sentido àquilo que aparece, por exemplo, na forma de choro e estabelecendo um vínculo com aquilo que lhe é apresentado exteriormente para apaziguamento do mal-estar.

Assim sendo, o choro da criança é significado pelo desejo da mãe como fome, como mal-estar estomacal, como sono, etc. Daí que em alguns casos quando o sujeito vivencia uma situação de angústia ou de carência, responde comendo, bebendo ou se ocupando com qualquer atividade, evitando lidar com a falta, procurando não ter que saber daquilo, buscando uma satisfação substitutiva que obviamente terminará por frustrar. Nesse processo, a criança é nomeada e se lhe exige que responda desde esse lugar. Assim, a criança se aliena tanto ao desejo da mãe (que dá sentido às suas necessidades e modos de encaminhar suas satisfações) quanto ao significante (paterno) que a nomeia e lhe possibilita a articulação da relação entre o desejo e a lei. (Lacan, em O Seminário 3). Fora do âmbito familiar, tanto a identificação significante quanto a satisfação pulsional são os elementos que permitem a criação do grupo, do projeto político, da vida em comum.

O sujeito não possui uma identidade pré-estabelecida ou a priori, senão que surge como efeito de um processo de identificação. (Lacan, em O Seminário 9). Não negligenciamos as condições anatomofisiológicas, apenas estamos acrescentando a articulação simbólica do corpo que se inscreve numa linguagem e o constitui. Assim, se reconhece em relação com o outro mediante uma identificação significante em torno da qual se articulam outros significantes produzindo uma cadeia significante, isto é, o sentido comum (termo de Álvaro Garcia Linera) num discurso ou narrativa. É a partir desse discurso que o sujeito aparece como seu efeito.

Ao significante corresponde uma carga afetiva, ou seja, o sujeito investe libidinalmente na identificação que o constitui como tal. Entre o significante e a carga afetiva se articulam os objetos de desejo com os quais o sujeito se relaciona e descarrega pulsionalmente encontrando satisfação parcial. Dessa forma, o indivíduo ou cidadão aparece como sujeito de um discurso e dos modos de descarga afetiva (na forma de ritos, cantos, cumprimentos, etc.) que o torna parte de um grupo, de um clã, de uma família etc. Há um movimento de alienação/separação/alienação que faz toda a diferença para cada um e para o grupo.

Os grupos políticos e o Estado

Os grupos políticos também podem ser acolhidos nesse dispositivo conceitual,17 como mostramos no início deste trabalho. Isso nos permite dizer, entre outras coisas, que a disputa política não se dá entre indivíduos ou entre indivíduos e o Estado, mas entre diferentes grupos e discursos e não opera apenas por argumentação, mas por identificação significante e descarga afetiva. A identificação significante e a descarga afetiva estabelecem o laço a partir do qual se argumenta positiva ou negativamente com relação a uma questão no interior da disputa política.

Chamamos aqui (sumariamente) de Estado, em sentido geral, as instituições político-jurídicas e aparelhos de gestão de uma sociedade produzida a partir de grupos identitários organizados em torno de demandas que conformam um projeto político. Uma sociedade, constituída por indivíduos e grupos de indivíduos, organizada institucionalmente em sistemas de legislação e de coerção, se sustenta a partir de sistemas de repressão e controle de circulação dos desejos dos indivíduos e dos grupos de indivíduos que a integram. Nesse sentido, o Estado não pode ser concebido apenas como aparelho de poder oposto aos indivíduos que passivamente aceitam seu disciplinamento, seu controle ou sua vigilância senão como campo de disputa, como o lugar onde a ação política se exerce fundada no campo de instabilidade originária (antagonismo) que a torna possível. Isso significa também que consideramos a sociedade institucionalizada, ou a comunidade organizada, como o modo em que os indivíduos e grupos de indivíduos usufruem ou são inibidos na sua demanda pulsional e no seu mínimo de satisfação. Isso é, as instituições do Estado e a sociedade institucionalizada conformam o modo como circulam e se satisfazem ou se inibem as demandas e os desejos e a luta política não é outra coisa que a disputa dos diferentes modos de usufruto e de quem usufrui e quem é colocado na situação de insatisfação.

Para sermos breves e esquemáticos em função da apresentação de nosso dispositivo conceitual, dizemos que a sociedade institucionalizada se sustenta com mecanismos de produção, repressão e controle de formas de satisfação. Os mecanismos de repressão e controle que instituem a sociedade exigem a adesão (alienação) dos indivíduos em relações de identificação para poder ordenar a sociedade.18 Dito de outro modo, para participar da sociedade instituída, o indivíduo deve renunciar a determinados encaminhamentos pulsionais (canibalismo e incesto são os que Freud entende como primários e fundamentais) e aderir (se alienar) a outros modos de satisfação.

Essas renúncias pulsionais podem ser ordenadas de duas maneiras diferentes:

  1. De modo a conduzir a saídas sublimatórias das demandas e favorecer a possibilidade de circulação do diverso do desejo por outras vias,19 recriando o circuito pulsional e a variedade de objetos de satisfação parcial. Isso permitiria conviver com a instabilidade entre os conflitos e os consensos contingentes em uma sociedade do usufruto;

  2. De um modo decididamente repressivo, então, a saída será perversa. Nesse caso, os mecanismos de repressão e controle pulsional exigem que o indivíduo deva renunciar à satisfação pulsional das suas demandas em relações de identificação fechadas, restritivas, onde aquilo que é excluído, o inimigo, é reduzido a resto como o resíduo, a escória, o excremento e, portanto, pode ser não só eliminado, mas eliminado sistematicamente (como é mostrado no nosso matema). O outro do identitário, o expulso da identidade é considerado algo que não tem lugar a não ser como objeto sobre o qual se goza perversamente. Se sustentássemos a ideia de desejo de fascismo aqui poderíamos dizer que há um desejo perverso onde o grupo goza20 com a redução a mero resíduo do outro e sua inevitável eliminação.

Esses dois modos de satisfação pulsional (sublimatório e perverso) são os dois extremos de um leque de possibilidades a partir do qual se articulam os modos de encaminhamento e satisfação pulsional em sociedades institucionalmente organizadas.21 Assim, os projetos políticos como modos de entender o encaminhamento e a própria satisfação pulsional podem propor modelos institucionais mais ou menos sublimatórios ou repressivos.

As organizações políticas e os governos que exigem fortes mecanismos repressivos para incluir o sujeito nas suas relações de identificação inibem um grande leque de possibilidades de satisfação em favor de uma promessa de gozo absoluto. Eliminar o resto como resíduo é o empreendimento, o compromisso e a esperança de satisfação absoluta. Há uma promessa de gozo absoluto nessa eliminação do resto como resíduo, um gozo perverso.22 Quanto mais repressivo é o sistema de identificação, quanto mais a identificação se sustente no efeito de massa menos sublimatório, tanto mais poderá ser o encaminhamento e a satisfação pulsional. O sujeito deve reprimir a diversidade dos seus encaminhamentos pulsionais para se identificar e pertencer ao coletivo que contém e dá sentido aos seus sentimentos, emoções e afetos e, desse modo, encontrar reconhecimento no Outro. Assim, o sujeito se reconhece como fazendo parte de algo maior, algo que é anunciado pelo próprio líder, com o qual ele tem uma relação particular. Isso impõe regimes de repressão assumidos como autoimpostos. Porém, em relação àquilo que é excluído do reconhecimento identitário ele não tem barreiras, sobre isso ele pode gozar.

Esse gozo perverso é o que sustentou os mecanismos de eliminação sistemática de pessoas na Argentina de 1976 a 1983 e na Alemanha da solução final. Porém, o gozo perverso que determina esse mecanismo de operação não se reduz a um indivíduo com vontade de fazer o mal, senão que se sustenta em uma infraestrutura. O mecanismo da perversão é fundamentalmente uma instalação que precisa de regras estritas e suporte material. Podemos ver em Sacher-Masoch ou Sade, onde a cena sádica ou masoquista que propicia o gozo exige parceiros, ajudantes, roupas, ambiente adequado, alimentos, bebidas, regras a que todos devem obedecer, posições que todos devem respeitar, etc. A saída perversa não se realiza na improvisação, na espontaneidade ou no caos senão ordenadamente. Não há perversão sem a cena completa e sem a colaboração dos parceiros.

No Estado de identificação de massa, onde o outro é resíduo, o Perverso é o funcionamento determinante. Assim, onde a redução à escória do outro é uma prática sistemática, é preciso do “pervertido” como o ator da cena (o torturador, o repressor), mas também de toda uma infraestrutura que o suporte.

No caso da solução final, foi necessário logística e tecnologia, como as da empresa Man e da empresa Siemens para a construção de motores e fornos crematórios para os campos de extermínio, assim como técnicos e ajudantes para sua instalação, avaliação do consumo de combustível necessário, sistemas de financiamento, etc. Para que o gozo perverso da eliminação do judeu como resíduo fosse possível, a estrutura da perversão foi executada com aposta em jogo de corpos e de gozos.

No caso do terrorismo de Estado na Argentina, não bastaram apenas os torturadores e os sequestradores, quer dizer, o perverso da caricatura do mal, também foi preciso que uma infraestrutura de tecnologia, logística e financiamento fornecesse o suporte imprescindível da cena. Por exemplo, os roubos de quase 500 bebês de mulheres sequestradas, violentadas sexualmente, torturadas, assassinadas e desaparecidas pelo terrorismo de Estado23 exigiram médicos, enfermeiras, advogados, juízes, freiras e padres para completar o cenário. A perversão nunca é um ato solitário e isolado, é uma estrutura. Essa estrutura elimina a prática política e dissolve o próprio campo do político.

Para poder exercer uma prática política como o jogo de interesses que se pauta em um campo de instabilidade fundamental, é preciso não apenas afastar o “pervertido” em favor de exercícios sublimatórios de satisfação, em favor de disputas hegemônicas ou da busca de consensos, mas também desmontar o dispositivo material da perversão desde sua infraestrutura básica. Na Argentina se pensou que o julgamento dos criminosos do terrorismo de Estado e o disciplinamento das forças armadas resolveria o problema. É claro que isso não é pouco. Trata-se do único país que conseguiu julgar seus genocidas em tribunais regulares e normais, sem a necessidade de medidas de exceção. Porém, a estrutura da perversão ainda permaneceu articulada com alguns dos seus elementos: os sistemas de financiamento nos bancos e grupos de investidores, os sistemas de justificação na grande mídia e os sistemas de legitimação em parte do poder judiciário.

Tanto a figura do pervertido quanto a do cínico e do indiferente (lugares de sujeito no neoliberalismo), que dão suporte à cena, devem ser desfavorecidas na sua possibilidade de aparição se quisermos uma prática política que favoreça a diversidade e a sustentação do desejo e suas modalidades de satisfação parcial-sublimatória. Isso implica uma ação política que recrie novas e variadas formas de satisfação pulsional-parcial e a recriação de novas identidades.

Retomada do dispositivo com a introdução da figura do cínico

O cinismo pode ser a estratégia ética do excluído do sistema (do morador de rua, que já cortou os laços da consistência discursiva educadamente aceitável ou do ladrão marginal que nada tem e muito menos a perder) porque sabe que com ele ninguém quer dialogar nem fazer pacto, se espera apenas sua submissão à ordem ou sua desaparição.24 Porém, o cinismo também é uma das formas do poder, mas do poder real (daquele que joga golfe e decide uma situação cuja consequência é uma catástrofe humana), aquele que sabe que não há diálogo nem consenso senão o poder nu e cru.

O fenômeno de concentração extrema do capital impõe aos corpos que habitam seus extremos o fim da política e da fala enquanto lugar de dizer do desejo, das demandas, das insatisfações ou das incertezas. A linguagem e o laço a partir da fala encontram seu limite no exercício do poder que se impõe Real diante do sujeito onde não é reconhecido como tal. Diante do capital, não há um sujeito de desejo; diante da grande maquinaria de guerra, não há um sujeito da falta. A linguagem é usada instrumentalmente pelo poder efetivo para provocar estados afetivos e sentimentais como efeitos de massas que sejam funcionais ao seu mecanismo de produção e gasto (repetição de mecanismo de gozo). Nessa posição meramente imaginária da linguagem, a verdade (como aquilo que nos expõe diante da própria falta, verdade como o compromisso com uma realidade que nos mostra a própria limitação, a finitude, o equívoco, o mal-entendido) é substituída pela adesão a um enunciado ou discurso que não precisa ser nem razoável nem verossímil, mas que permite almejar imaginariamente um gozo perverso (em relação a um outro, tomado como objeto a ser descartado) e/ou uma promessa de gozo, um usufruto privilegiado porque como individuo meritocrático, competitivo, empreendedor esforçado, inteligente e astuto numa sociedade onde cada um busca sua sobrevivência e o sucesso pessoal, já foram cortados os laços com a comunidade, apenas resta a realização individual ou no máximo em relação com os próprios sócios.

O capital concentrado aparece diante do sujeito da falta na sua vida cotidiana: nas relações de trabalho, nos mecanismos de informação e entretenimento, na relação com o dinheiro e nos mecanismos de consumo.

Esquemas de relação Capita/sujeito

Capital --> Sujeito barrado (nessa relação pode acontecer: imposição, interpelação, promessa ilusória de satisfação privilegiada);

Capital ---> Sujeito barrado (o capital se apresenta fora do cálculo como imposição absoluta como Real incalculável);

Sujeito barrado <-- Capital como (A) grande Outro não castrado ordena, exige, demanda, justifica o lugar de reconhecimento de si do sujeito e dá sentido ao seu sofrimento;

Capital (imaginário) ---> Sujeito barrado dá lugar às narrativas de promessas de felicidade que articuladas com o ordenamento simbólico conformam a realidade.

Esses quatro modos de relação entre o Capital e o sujeito são os que operam no rompimento do laço social e no fortalecimento dos efeitos de massa. Desaparece o sujeito de identificações coletivas a partir de demandas e aparece o indivíduo massificado sem comunidade.

A ação política como produção de efeito de sujeito

O modo de não ser eliminado como sujeito de desejo (numa relação com o desejo do outro) pelo discurso da individualização de cidadãos competitivos e de mérito próprio em função da própria reprodução mecânica do capital pelo capital, é provocar efeitos de sujeito.

Os enunciados e discursos do capital25 promovem a individualização como resultado do corte dos laços em um gozo sem vínculo do seguinte modo:

O sujeito é:

  • (1) competidor em relação aos outros indivíduos numa sociedade competitiva e de poucas oportunidades de sucesso (sociedade de escassez);26

  • (2) vítima do roubo do Estado por meio dos impostos; e

  • (3) alheio à política que se apresenta como sinônimo de corrupção.

Isso se logra com efeitos de massa provocados por falas que mobilizam determinados afetos e sentimentos, buscando a adesão hipnótica das maiorias e que se instalam por repetição. Os elementos significantes dessas frases ou fragmentos devem poder veicular afetos e sentimentos.

Uma das operações é usar valores morais e oferecer determinadas figuras como imorais e corruptas em quem descarregar todos os sentimentos de culpa provocados nele (no sujeito) pela própria falta. Com a figura do corrupto o sistema oferece algo em que descarregar o sentimento de culpa como sentimento de indignação.27 Dessa forma, o sujeito não precisa lidar com aquilo que perturba a idealização de seu lugar privilegiado e merecedor de gozo: tem outro pior que eu, logo, eu mereço privilegiadamente, eu posso gozar sem vínculo nem dívida.

Outra das operações de individualização é favorecer a vitimização (pessoal ou de grupo identitário). A vitimização corta os laços sociais, não reconhece a falta no outro nem no grande Outro. O outro semelhante não é reconhecido como sujeito de uma fala porque não “sofreu” aquilo que o indivíduo ou o grupo sofreu ou sofre, portanto, está fora da fala autorizada. Tudo se passa como se o sofrimento fosse em si um valor moral ou um a priori de posição política ou o princípio de uma autoridade moral e política. Assim, só o torturado poderia falar da tortura, só o sequestrado poderia falar de sequestro, etc. Também não reconhece a castração no grande Outro porque coloca O Estado, A Sociedade, etc. Como sendo os culpados pela situação de sofrimento eternizando o fenômeno. A vitimização da vítima é a grande cartada do carrasco.28 Assim, o Outro não castrado é idealizado como O Poder sem falha, sem fenda, sem fissura que oprime sem condição nem limite. Assim, o Outro não castrado ou deveria ser eliminado total e idealmente ou nada poderia ser feito a não ser continuar sendo vítima e enunciando um discurso de denúncia e queixa setorial que é limitado pelos elementos identitários e, quanto mais radical for, mais inofensivo e funcional será.

Assim, a resistência à reprodução da posição de sujeito do discurso capitalista (lacaniano, como posição do sujeito como indivíduo tomado pelos objetos de consumo entre uma promessa de um gozo impossível que nunca chega e a realização de gozos perversos) está em fazer efeitos de sujeito, reconhecimentos identitários na diversidade e na contingência e desidentificações individuais e coletivas e promover a diversidade de satisfações parciais num horizonte de laços entre desejos, de desapegos a objetos e de vínculos sustentados simbolicamente diante do aparecimento do Real como acontecimento a ser suportado mesmo no estranhamento.29

O Capital apresenta a posição do sujeito (individual ou das identificações coletivas) como diante do Real que se impõe e rompe a articulação simbólica e imaginária (coloca em crise o que reconhecemos como realidade - nos referimos àquilo que Lacan chama de Fantasma e já mencionamos aqui - e demanda - como grande Outro - sua rearticulação aos sujeitos da falta), como grande Outro simbólico que ordena, que demanda, que goza sem castração, como imaginário onde se encontra a ilusão de uma promessa de gozo.

Assim, O Capital e a moeda (como objeto de gozo) não são meramente imaginários e nem se sustentam apenas numa crença imaginária, num ato de fé dos indivíduos. Podemos dizer que a moeda se sustenta na aceitação imaginária do seu poder por parte dos indivíduos reunidos numa sociedade. Mas a posição do sujeito nessa aceitação (expressa pelo indivíduo na sociedade) não é meramente imaginária. É um lugar cristalizado desde onde o sujeito responde ao gozo. Há estrutura e não apenas indivíduos mais ou menos livres e autônomos ou mais ou menos ingênuos e incrédulos em relação à moeda. Há estruturas onde o circuito da pulsão encontra seu escoamento em objetos particulares e descarta outros.30

As pessoas não escolhem a “servidão voluntária” diante do capital na forma de moeda por estupidez ou covardia consciente (apenas) senão pelo modo como se reconhecem como sujeitos identitários com relação a ela como significante.31 O reconhecimento de si numa identidade mais ou menos consistente evita ao Ego ter que lidar com o desamparo e, portanto com a incerteza, o imponderável, a ausência de garantias, a singularidade e outorga um lugar que lhe permite dar sentido ao seu sofrimento. Reconhecer- se no lugar da submissão (no discurso do senhor)32 mesmo no sofrimento pode ser mais “razoável” que dar o passo adiante sendo consequente com o próprio desejo que conduz ao Real que se apresenta como sendo um evento fora de controle. O Ato33 que estabelece uma nova relação simbólica desde onde se responde ao Real do gozo é o único ato transformador não só da realidade externa senão também do sujeito da ação política que morre no ato deixando aparecer outro efeito de sujeito como sujeito da falta. Porém, trata-se de um Ato fora da série de eventos do sujeito.

Isso me faz duvidar em seguir utilizando a noção de desejo de fascismo. Para sermos mais precisos: se desejo é falta e excesso e o reconhecimento disso, desde uma posição de sujeito como sujeito da falta (como quer Lacan em O Seminário 7), então a noção de desejo de fascismo não poderia ser utilizada sem dificuldade para o discurso psicanalítico. O fascismo obtura a falta e a nega na tentativa de realização da totalidade, da completude. Porém, se com Lacan (também em O Seminário 7) admitimos um desejo perverso, então poderia haver um desejo de fascismo onde o sujeito corre atrás de uma promessa de completude, totalização e satisfação absoluta. Por cautela aqui falaremos agora de desejo como sujeito da falta e reconhecimento da mesma. Em vez de continuar falando de desejo de fascismo, entenderemos o evento do fascismo como um modo do sujeito não lidar com a falta e se sustentar como sujeito numa promessa de gozo privilegiado que lhe é devido de direito pelo reconhecimento preferencial do pai (líder, grande Outro). Portanto, nesses casos não haveria propriamente Ato num evento de massas fascista.34

O Ato transformador, o novo sujeito da transformação e o excluído

O ato psicanalítico tem pelo menos duas modalidades em Lacan, mas em ambas se trata de romper a realidade (não com ela, senão ela própria), isto é, produz aquilo que não é a mera repetição do mesmo, aquilo que não tem predicado que lhe outorgue especificidade e lugar dentro da série.

Numa sociedade estabelecida imaginária e simbolicamente, romper a realidade que institui o reconhecimento de si dos sujeitos e das identidades coletivas e da consistência das suas instituições ordenadoras exige posições de sujeitos que desconhecem de si, que se reconhecem como sujeitos do fenômeno que repetem e ao mesmo tempo se estranham nessa posição. Esses sujeitos devem poder estar em situação de poder se desapegar dos objetos de satisfação mínima e também do si mesmo que oferece a ilusão de garantia de continuidade do mesmo. Quando se afirmava no século XIX que o proletariado não tinha nada a perder poderia, talvez, significar que estava disposto a perder tudo o que ele era e se perder a si mesmo na revolução. Revolucionário era quem estava em posição de deixar cair seus objetos porque sabia que nunca os tivera. Algo semelhante ocorre na conversão cristã na Bíblia. Quando perguntam para Jesus como fazer para se tornar um de sua religião, ele responde: deve vender tudo e dar para os pobres e isso é suficiente. A transformação está em deixar tudo para trás, se desfazer daquilo que ilusoriamente se possui, até a própria família. O cristão do cristianismo primitivo e o proletário de Marx são aqueles que nada têm por serem excluídos do sistema e ainda têm que abandonar esse nada neles como Ato. Aqui poderíamos ter como metáfora aquilo que se nomeia como sujeito em posição de eventualmente não ceder do seu desejo (não do desejo de algo, mas do desejo enquanto falta, enquanto reconhecimento de sujeito de falta), como formula Lacan em O Seminário 7. Assim, podemos entender a frase: “Tudo o que é sólido se desfaz no ar”.

Entretanto, o tempo após O Ato como corte e encontro com o Real se rearticula na costura entre o simbólico e o imaginário, que provoca desidentificações e propicia novas relações identitárias. Esse novo tempo tem o problema de lidar com o excluído da nova costura. Como temos visto, o outro excluído da relação identitária é um elemento constitutivo dessa relação. Não há identidade sem exclusão, sem aquilo que não é isto (isto é isto porque não é aquilo no ato de nomeação). Portanto, o excluído não está em questão, mas sim a relação com aquilo. Dito com outras palavras, o problema não é excluir ou expulsar o que não cabe na imaginarização e simbolização da relação identitária. O problema está no modo em que aquilo que aparece como efeito de sujeito após O Ato se relaciona com o excluído, com o expulsado, com o resto da identificação. Daqui é que proponho três modos de relação como consta no matema anteriormente formulado:

  • (1) como alteridade;

  • (2) como adversidade;

  • (3) como resíduo.

Esses modos de lidar com o excluído determinam as ações políticas de um poder político estabelecido após O Ato. No primeiro caso temos a política das diversidades; no segundo caso é onde aparecem a disputa e o conflito; e o terceiro oferece as modalidades do neoliberalismo e do fascismo. As duas primeiras foram examinadas parcialmente sob o conceito de sublimação, a terceira e última também foi examinada à luz do conceito de perversão e cinismo.

Considerações finais em dois tópicos

Discurso neoliberal sobre o empreendedor e o “seu” capital

Em algum lugar, o filósofo S. Zizek explica que quando o sistema neoliberal vai tirar a saúde pública universal fala que na verdade está dando a possibilidade de você escolher quem quer que te ofereça assistência; quando tira a educação pública universal e gratuita na verdade estaria dando a possibilidade de você escolher qual prestadora de serviços educativos você quer para seus filhos; e quando aplica projetos econômicos que eliminam postos de trabalho diz que na verdade está dando a possibilidade de você ser um empreendedor, de mostrar seu diferencial no mercado. Não é nem confusão nem fantasia do filósofo esloveno; trata-se da fala do regime de Mauricio Macri na Argentina e de tantos outros. Eles realmente chamam o desempregado de futuro empreendedor, e a precarização das condições de trabalho de flexibilização laboral. Sob o significante da liberdade, o neoliberalismo propõe que o trabalhador possa combinar pessoalmente com o empresário seus horários, o pagamento, os dias de trabalho, etc. Tudo aparece como se um suposto dono da Shell, do HCBC ou da Siemens fosse sentar amigavelmente com o candidato a um posto no departamento de manutenção de uma das filiais de São Paulo para ouvir as demandas e entrar num acordo bom para ambas as partes.

O neoliberalismo ressignifica os termos e dá nome àquilo que te acontece. Oferece uma narrativa para dar forma à afetividade. O discurso que se articula com isso e se repete até a sua naturalização faz parte da estratégia de permanência no poder. Procura inscrever sujeitos num relato, delimitar o mal-estar num discurso que o acolha; neutralizar e obturar a angústia são atividades do poder político exercido pelo projeto neoliberal. Tudo se passa como se não fosse uma política que funciona a partir, em torno e em favor do próprio capital senão uma questão de superações pessoais de metas de vida individual.35

No entanto, quando se problematiza o capital tal como queremos fazer aqui a partir dos elementos de Lacan, temos que declarar que não só se trata de lidar com uma definição em termos de economia senão que também devemos observar o lugar que lhe estamos dando, em que posição reconhecemos sua relação com o sujeito castrado e o gozo. Assim, entendemos que quando falamos de capital em economia e inserimos isso num discurso sobre política devemos levar em consideração os corpos reais que gozam (usufruem, com prazer e com dor) na execução real das estruturas de funcionamento de produção e consumo; e incluir esses elementos nas fórmulas de cálculo e nos esquemas explicativos.

Sem a inclusão do gozo e do desejo, que se articulam de modo conflitante com a necessidade e o interesse, a fórmula do cálculo ou o esquema de explicação econômica fica numa formalização vazia e ingênua. Em política não é pertinente desconhecer o real dos corpos em jogo. Do contrário, podemos entrar na trama de um discurso cínico do poder real que intencionalmente nega os corpos e reduz a economia a cálculo, como se não houvesse interesses e beneficiados imediatos dos resultados das operações matemáticas. Uma teoria econômica que ignora os corpos e os gozos serve para dar aspecto “científico” ao discurso do capital que se reproduz a si mesmo, funciona imaginariamente na produção da individualização e na enunciação de promessas ideais de gozo. Quem planeja a economia de um país em termos de déficit e superávit com as pessoas fora do planejamento, tomou a decisão política de favorecer o capital e desconhecer o real dos corpos. Assim é que nesses discursos vemos que “sobram” aposentados ou postos de trabalho incentivados pelo Estado ou há “gasto” público excessivo em subsídios ao trabalho, ao consumo básico, etc.

Alguém preocupado com os limites epistemológicos das ciências poderia dizer que a introdução de corpos e gozos seria confundir a análise econômica com a psicologia do trabalhador, do empresário ou do consumidor. Nós podemos responder que não se trata de uma questão psicológica, nem antropológica, nem cultural, mas de incluir a contingência e de reconhecer os lugares dos agentes ou dos jogadores que podem modificar a orientação dos movimentos dentro do sistema e, inclusive, destruir o próprio sistema. No jogo da economia o jogador pode fazer uma jogada contra ele próprio respondendo à pura pulsão de morte. Isso é o que deve ser levado em consideração.

A resistência do sujeito da falta ao imperativo do Capital (que se reproduz automaticamente e interpela o sujeito enquanto indivíduo e exige uma resposta desde esse lugar, por isso, o acontecimento nunca é sem corpos reais que ocupam os lugares de execução do mecanismo de produção e consumo e motivam sem causa os desvios) se realiza desde a posição de sujeitos de desejo, propiciando laços de amor (com tudo o que isso pode implicar de inútil) e encontros de desejos em histórias de amor e de amizade, em projetos de construção coletiva, em experiências de comum união onde o desejo se sustenta nos encontros e desencontros com relação ao desejo do outro, na experiência do imponderável, daquilo que não entra nas relações de troca e mercantilização, da doação, do dom, do gratuito, da demora trivial e sem pré-ocupação (no sentido de estar ansioso pela antecipação do evento e permanecer passivo).

Finalmente uma retomada sobre o populismo para concluir

As organizações políticas e os governos cujo regime de renúncia pulsional se articula com o favorecimento de diversos modos de encaminhamento e satisfação e com o reconhecimento de diversos modos de identificação inibe a saída perversa e a instauração de seu cenário. A saída sublimatória se realiza em ações políticas, em políticas públicas capazes de dar um mínimo de satisfação à demanda pulsional e de reconhecer a multiplicidade de relações de identificação que possibilitem a circulação do desejo. O reconhecimento da demanda pulsional e da identificação significante constitui elemento fundamental da ação política.

O reconhecimento do matrimônio igualitário, de direitos dos excluídos e dos povos originários recria novas identificações significantes sobre a base de antigas demandas, permitem o reconhecimento de novos objetos de desejo e possibilitam uma política do usufruto ou do gozo parcial. O Povo como agente político de um movimento populista se sustenta numa heterogeneidade que procura realizar parcialmente as reivindicações propostas. Assim, os grupos e projetos políticos no interior do próprio movimento divergem e convergem nos modos em como percebem os modos de usufruir numa comunidade organizada, tal como era entendida por Juan Domingo Perón.

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Advertência: todos os trabalhos de Lacan mencionados no artigo estão disponíveis em: http://staferla.free.fr/.Links ]

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* Este trabalho foi apresentado num evento de filosofia política em Caxias do Sul organizado pelo professor João Carlos Brum Torres. Agradeço a ele e a Maria de Lourdes Borges o convite e o estimulo para apresentar o texto. A elaboração deste trabalho se vincula à reflexão de uma prática política realizada na Argentina, a qual eu não teria feito pública sem o apoio carinhoso de Maria e João Carlos.

1Pautar-nos-emos fundamentalmente pelo resultado das pesquisas de Ernesto Laclau publicadas em A razão populista. Utilizaremos a edição em português da Editora Três Estrelas de São Paulo, 2013 e a edição em castelhano do Fondo de Cultura Económica de Buenos Aires, 2008.

2Na Argentina existe um debate no âmbito da filosofia política e da psicanálise onde se discute se podemos entender como sujeito uma identidade coletiva ou um grupo identitário. Desse debate participam em posições teóricas divergentes Jorge Alemán, Nora Merlin, Juan Bautista Ritvo, Carlos Kuri, eu, entre outros. Trata-se de esclarecer a noção de sujeito que pode advir da psicanálise e que pode vir a ser utilizada na teoria política. O debate acontece em encontros, seminários e em publicações. Este texto busca cautelosamente propor que uma identificação coletiva pode vir a funcionar como agente em determinados acontecimentos políticos.

3Em vários cursos, conferências e publicações ambos se encarregaram de examinar as posições teóricas mencionadas no corpo do texto.

4A compreensão dessa dicotomia exige uma discussão lógica sobre a diferença entre contradição, oposição e negação. Ernesto Laclau em Los fundamentos retóricos de la sociedade, Buenos Aires: FCE, 2014 tem um capítulo intitulado “Antagonismo, subjetividad y política”. Esse capítulo abre a discussão sobre o tema entendendo que a contradição marxista reduz e confunde aquilo que acontece no fenômeno da luta política. Não se trataria de uma contradição, mas de uma oposição. Para entender a diferença nada melhor que voltar a Kant em um opúsculo menor (mas decisivo) intitulado As magnitudes negativas.

5Para um estudo sobre o estado de mobilização permanente, devemos nos referir a Ernst Junger em O trabalhador e em A mobilização total.

6Referimo-nos aqui aos estudos sobre identificação publicados em Barreiro (2015), Perez (2016), Starnino (2016).

7Utilizaremos os termos imaginário, simbólico e real como Lacan usa desde O Seminário 7 até O Seminário 10.

8Ver Lacan, J. O Seminário 9 a diferença de traço entre significantes.

9Utilizamos o termo “cadeia significante” tal como pode ser entendido desde Lacan, J. “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” de 1957.

10Sobre o universal, estamos levando em consideração os estudos de Monique David- Ménard publicados em Las construcciones de lo universal. Buenos Aires: Ediniones Nueva Visión, 1999.

11Laclau se utiliza em vários momentos desse dispositivo a partir da teoria da identificação de Freud e de Lacan, especialmente em A razão populista.

12O ato de nomeação foi trabalhado em Lacan O Seminário 9, e em Kripke Naming and nessecity e Laclau e Zizek abordam essa questão.

13A necessidade de excluir na produção de identidade está trabalhada exaustivamente em Ritvo Sujeto, masa, comunidad. Nosso trabalho, no que refere á exclusão, avança sob a orientação dessa abordagem.

14Esse matema foi inicialmente elaborado nas minhas pesquisas sobre identificação e apresentado nos cursos de pós-graduação da PUCPR na primeira década do século e nos encontros na Argentina. Depois foi publicado na Revista Sofia, vol. 6, n. 1, Jan.- Jul. 2016, p. 162-210, no artigo “A identificação, o sujeito e a realidade: uma abordagem entre a filosofia kantiana e a psicanálise freudiano-lacaniana”. Mac-Cormick (2014), Barreiro (2015), e Starnino (2016) usam o matema aplicado a diferentes situações.

15Não vamos desenvolver aqui, mas é preciso mencionar que Lacan, em O seminário 9, faz uma crítica à filosofia analítica que trabalha a questão da identidade muito semelhante à que fará alguns anos mais tarde o próprio Saul Kripke (1971). Porém, Lacan poderia ter explorado os atos de fala.

16A pulsão invocante (a voz como laço) está sendo usada tal qual Lacan a entende em seu ensino.

17 Existe literatura sobre essa linha de interpretação que leva adiante análises e debates. Ver Ernesto Laclau (2008), Chantal Mouffe (2009), Yannis Stavrakakis (2007, 2010).

18Aqui nos referimos ao nosso estudo publicado em Perez (2013). Eliminação sistemática de pessoas e os limites do político. Nossa reflexão se pauta inicialmente, mas não apenas, pelo modelo de renúncia pulsional proposto por Freud.

19Nossa orientação aqui está dada pelos resultados das pesquisas realizadas por Joan Copjec e publicadas em Imaginemos que la mujer no existe: ética y sublimación. Buenos Aires: FCE, 2006.

20A noção de gozo em Lacan é fundamental e percorre toda sua obra. Os estudos de Néstor Braunstein publicados em Gozo. São Paulo: Editora Escuta 2007, são os que orientam nosso trabalho.

21Um estudo mais extenso aqui deveria mostrar em que sentido somos herdeiros, mas, ao mesmo tempo, não estamos seguindo dogmaticamente as elaborações de Herbert Marcuse, Erich Fromm e Wilhelm Reich. No entanto, consideramos que trabalhos como Psicologia das massas do fascismo e Medo à liberdade são muito importantes para pensar os elementos da relação entre psicanálise e filosofia política.

22Utilizo a noção de “gozo perverso” por oposição a “sublimado” a partir da leitura de Lacan em O Seminário 7 (LACAN, 1997b). Nesse sentido, pode-se entender o “gozo perverso” como promessa de “gozo absoluto” pela parte e o “gozo sublimado” como um “gozo parcial” em “objetos parciais” de satisfação como pode ser derivado da leitura de O Seminário 16 (LACAN, 2008).

23O terrorismo de Estado na Argentina sequestrou em torno de 500 bebês de mulheres sequestradas e torturadas em centros de tortura. As crianças tiveram sua identidade biológica ocultada e sua história trocada. Assim, muitos deles foram criados como filhos biológicos dos próprios assassinos da mãe. A organização Abuelas de Plaza de Mayo até janeiro de 2018 conseguiu recuperar a identidade de 127 netos e netas. Muitos deles, sendo conscientes da história da sua vida se identificaram com as posições políticas dos seus pais biológicos e hoje são deputados e dirigentes de agrupações nas quais eles militavam, se identificam com os cantos, as bandeiras, as ideias e os discursos daqueles. Cabe destacar que muitos dos netos e netas recuperaram sua identidade na juventude ou na idade adulta, pois até esse momento viveram uma identidade bem diferente.

24A sociedade do sentido comum (continuo usando o termo no sentido de Garcia Lineira) não reconhece nem o evento da morte do excluído enquanto sujeito de um acontecimento singular, nem a percepção dele como pessoa assassinada. Os excluídos não são sentidos, vistos ou reconhecidos como semelhantes, como aqueles que morrem na sua singularidade; eles simplesmente desaparecem ou são numerados. No Brasil dezenas de jovens negros pobres morrem violentamente todos os dias em número crescente, configurando um verdadeiro genocídio, no entanto, isso é apenas um dado, a notícia que afeta e emociona é a morte de franceses em um atentado terrorista em Paris. É claro que o atentado terrorista em Paris é algo ética e politicamente repudiável, mas estou querendo chamar a atenção para o fenômeno que provoca o evento do ponto de vista da identificação com o semelhante e da descarga afetiva: o cidadão de Paris é nosso próximo, nosso semelhante; as dezenas de jovens negros pobres da periferia das grandes cidades brasileiras são os excluídos.

25Estamos nos referindo às elaborações de Lacan desde a noção de “discurso capitalista” proposto a partir da conferência de Milão, em 12 de maio de 1972, intitulada “Do discurso psicanalítico”.

26A ideia de vivermos num mundo de escassez aparece nas viagens da Armada inglesa nos séculos XVIII e XIX que tinham como objetivo impor um modo de relação política e econômica colonialista baseado na extração da matéria prima e a venda de produtos manufaturados e para isso não só se realizavam expedições militares senão também científicas. Os cientistas embarcados nesses buques de guerra desenvolveram a teoria da escassez. Num modelo político e econômico de produção e de consumo dilapidador faz todo o sentido. As culturas ameríndias não têm ideia de um mundo de escassez. É claro, sua relação com a natureza não é de exploração desmedida; para eles a natureza é abundante. Mesmo na Patagônia, ainda no fim do mundo, na Terra do Fogo os Onas nunca tiveram problemas de escassez até a chegada dos espanhóis que se divertiam matando focas por brincadeira nas áreas de reprodução e assim interromperiam o seu ciclo natural. Quando desapareceram as focas os ingleses que substituíram os espanhóis se divertiam matando Onas.

27Freud e antes Gabriel Tarde mencionam esse fenômeno já no século XIX.

28Em vários artigos, livros e conferências Maria Rita Kehl tem abordado a questão da vitimização.

29Estou me referindo ao conceito freudiano Hilflosigkeit e suas derivações em relação com o sujeito tal como Freud entende.

30Com Freud entendemos que a pulsão não tem objeto, quer dizer, não tem objeto necessário, mas deve poder ter objetos onde descarregar ou (lacanianamente) fazer laço. Esses objetos aparecem na construção fantasmática (imaginária e simbólica) da realidade do sujeito. Aqui a moeda tem um lugar privilegiado que deve ser examinado.

31Yannis Stavrakakis em La izquierda lacaniana: psicoanálisis, teoría. política. Buenos Aires: FCE, 2010 se pergunta pela dificuldade de uma identidade europeia que supere os nacionalismos daquele continente. Esse trabalho orienta minhas pesquisas sobre a dificuldade de desidentificação.

32Estou me referindo à teoria dos 4 discursos de Lacan, O seminário 17.

33Estou me referindo a Lacan, O Seminário 15.

34Badiou, com seu conceito de acontecimento, tem dificuldade de lidar com os grandes horrores de alguns eventos de massas; a partir da noção de ato analítico pensamos que se pode evitar o problema dele e, ao mesmo tempo, não moralizar o evento.

35Não estou fazendo nenhum tipo de declaração conspirativa nem de manifestação paranoica. Isso está explicitamente formulado nos trabalhos de Jaime Durán Barba & Santiago Nieto El arte de ganhar: como usar el ataque en campañas electorales exitosas. Buenos Aires: Debate, 2011 e também em outros artigos, livros e cursos ministrados em diferentes universidades pelos autores. Durán Barba é assessor político do regime de Mauricio Macri na Argentina.

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