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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.spe3 Caxias do Sul  2018  Epub 02-Set-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.dossie.9 

Artigos

Rawls, modelos econômicos e o argumento pluralista

Rawls, economic models and the pluralist argument

Fernando L. Schüler* 

*Doutor em Filosofia e professor no Insper.


Resumo

O presente artigo argumenta em duas direções. De um lado, sustenta que a teoria da justiça como equidade, de John Rawls, e em particular o princípio da diferença, antes de representar uma concepção igualitária da justiça, cumpre um objetivo inverso: o de dissociar a justiça social das exigências da igualdade econômica. A desigualdade econômica, na justiça como equidade, surge como um tipo de bem, desde que possa melhorar a posição de todos e em particular a dos menos favorecidos. Para sustentar esta tese, Rawls apela às ideias de pluralismo social e de convergência dos padrões de vida, no âmbito do que chama de uma sociedade bem-ordenada. De outro lado, o artigo sustenta que a teoria pode ser melhor entendida quando desvinculada da adesão a modelos institucionais e de regulação econômica historicamente situados. Uma distinção apropriada entre este sentido ético, dado pelo modo de fundamentação filosófico da teoria, e seus possíveis desdobramentos institucionais, é o melhor caminho para uma teoria que se propõe a servir como ponto de encontro entre as múltiplas visões do bem que competem em nossa tradição democrática.

Palavras-chave: Rawls; Modelos econômicos; Princípio da diferença

Abstract

The article argues in two ways. On the one hand, he argues that John Rawls’s theory of justice, and in particular the difference principle, rather than stablish an egalitarian conception of justice, has an opposite goal: to dissociate social justice from the demands of economic equality. Economic inequality, in justice as fairness, is a kind of good, since it works for the improvement of all individuals prospects, and particularly those of the less fortunate. In defending this concept, Rawls appeals to the idea of social pluralism and the convergence of living standards in the context of what he calls a well-ordered society. The article also argues that the conception of justice as fairness can be better understood when it is detached from adherence to historically situated institutional and economic regulation systems. A proper distinction between the ethical sense given by the philosophical foundation of the theory and its possible institutional developments is the best path for a theory that proposes to serve as an overlapping consensus among multiple visions of good competing in our democratic tradition.

Keywords: Rawls; Economic models; Difference principle

A inovação rawlsiana: justiça desvinculada da igualdade.

Um dos grandes méritos da concepção de Rawls diz respeito à disjunção entre as ideias de justiça e de igualdade econômica. A igualdade econômica não consiste em um bem que devamos considerar como valioso em si mesmo ao pensarmos sobre o ordenamento das instituições. Rawls simplesmente confia que uma sociedade ordenada, segundo os princípios da justiça, não produzirá desigualdades intoleráveis, mas isso não é assegurado pelo princípio da diferença.1 As partes, na posição original, não admitiriam o trade off maiores vantagens X maior igualdade econômica.

Rawls é reiteradamente explícito a esse respeito. Em A estrutura básica como prioridade, escrito no final dos anos 70, lê-se:

Os dois princípios da justiça não postulam que a repartição efetiva deva ser conforme, num dado momento (ou a longo prazo) a uma estrutura observável qualquer, digamos a igualdade, nem que o grau de desigualdade calculado a partir da repartição deva manter- se em certos limites - por exemplo - os valores de um coeficiente de Gini. (RAWLS, 2000, p. 35).

Essa posição situa Rawls na contramão de boa parte da retórica igualitarista presente no debate atual, que insiste na ideia de que a justiça social dependa da fixação de um limite à expansão das desigualdades econômicas, ainda que quase nunca estabeleça com algum grau de precisão que limite seria esse.2 O princípio da diferença é estranho seja à definição de um padrão determinado de igualdade dos resultados obtidos pelos agentes econômicos, seja à chamada igualdade positiva de oportunidades.3 O objetivo é maximizar as expectativas associadas à posição menos favorecida, mensurada em termos de bens primários. A ideia de que haja uma tendência à igualdade, no longo prazo, deve ser compreendida como uma expectativa razoável, e não como um critério suplementar a ordenar as instituições.4

Rawls procura se precaver contra possíveis interpretações do princípio da diferença como um tipo de distributivismo de curto prazo.5 O modo mais plausível de conceber a maximização das expectativas dos menos favorecidos é no longo prazo. “Ao aplicarmos o princípio da diferença” diz, “a expectativa adequada é de que as perspectivas dos menos favorecidos se estendam às gerações futuras.” (RAWLS, 1971, p. 315). Isso pela simples razão de que a justiça tem como objeto a estrutura institucional básica da sociedade,6 espaço em que, por definição, resultados são obtidos de maneira contínua ao longo do tempo.7

Rawls sustenta que, mesmo que o princípio da diferença possa, em tese, engendrar uma profunda desigualdade econômica, isso não deverá representar um problema para a concepção da justiça como equidade. Seu argumento pode ser dividido em duas partes. A primeira sugere que as diferenças tendem a não ser, na prática, muito significativas. (RAWLS, 1971, §26). A segunda sugere que seu impacto será reduzido, em virtude de certas características que são próprias das sociedades organizadas segundo a concepção de justiça.

A primeira parte do argumento é explicitada no artigo “Distributive Justice”, publicado em 1967, em que Rawls apresenta sua formulação definitiva para o Princípio da Diferença, estipulando que o foco da justiça é a maximização das expectativas do grupo menos favorecido.8 Para sustentar a formulação, Rawls lança mão do argumento da conexão em cadeia (chain connection). A ideia, reapresentada posteriormente em A theory of justice (TJ), diz que “se tuma desigualdade faz crescer as expectativas da pior posição, ela faz crescer as expectativas de todas as posições intermediárias.” (RAWLS, 1967, p. 139; 1971, p. 80). Trata-se de uma tese sobre o funcionamento da economia, ainda que Rawls não apresente nenhuma evidência empírica em seu favor. Se as instituições permitem o crescimento da renda do tipo representativo do (grande) empresário, de modo a alavancar correspondentemente a renda dos trabalhadores não especializados, isto fará com que “também cresçam aquelas dos (trabalhadores) semi- desqualificados.” (RAWLS, 1967, p. 139). Por decorrência lógica, também melhorariam as expectativas dos trabalhadores devidamente qualificados (imaginemos professores, enfermeiros, bibliotecários, profissionais com boa formação, mas com remuneração típica de grupos sociais médios), e assim por diante.

Considerações sobre a eficiência do sistema podem determinar a escolha de diferentes pontos de otimalidade, ao longo do tempo, na “curva de reciprocidade rawlsiana.” (SCHÜLER, 1997, p. 169). É do interesse da posição menos favorecida preservar a eficiência econômica do sistema. A escolha será, por óbvio, fonte de imprecisões e alguma instabilidade para a concepção da justiça. Mas em nenhum momento a igualdade econômica surgirá como um critério ad hoc, regulando a modelagem institucional.

Há, por certo, alguma dose de imprecisão nesse argumento. O Estado pode tributar pesadamente a classe média para sustentar programas sociais, transferindo renda aos mais pobres, sem que nenhum ganho real se verifique àquele segmento.9

Dworkin (2000, p. 330) observou que

medidas que melhoram as perspectivas do decil menos favorecido da sociedade, por exemplo, podem desagradar aqueles pertencentes ao quintil mais pobre, que inclui muito mais trabalhadores mal remunerados, e também pode prejudicar as perspectivas dos que se situam entre os 1% menos favorecidos - os gravemente deficientes e permanentemente desempregados - porque um programa feito apenas para eles iria presumivelmente ajudá-los mais.

Aprofundar o tema não é foco do presente trabalho. A suposição de Rawls parece ser, ao cabo, muito simples: o investimento em educação e treinamento de trabalhadores pouco qualificados terá efeitos positivos sobre a produtividade da economia e seus ganhos serão, de um modo ou outro, compartilhados por todos.10 Caberia aos formuladores de políticas públicas realizar os ajustes necessários e harmonizar interesses em conflito. O princípio da diferença funciona como um sentido ético a ser perseguido.

Direitos, pluralidade e convergência dos padrões de vida

Rawls desenvolve três linhas de argumentação que conduzem a uma relativização da relevância ética da desigualdade econômica, no contexto das sociedades bem-ordenadas.11 A primeira delas diz que desigualdades sociais tornam-se menos relevantes, uma vez que os cidadãos dispõem de uma estrutura igual de liberdades e direitos básicos. Indivíduos seguros de sua posição e capazes de perseguir um plano de vida autodeterminado dificilmente seriam afetados pelo sentimento de inveja ou ressentimento social. Uma sociedade justa oferece boas condições para a afirmação da autoestima dos cidadãos e faz com que seja menos provável que eles se aborreçam ou transformem em um problema político a maior ou menor fração da renda nacional (ou global) entesourada pelo top 1%.

Rawls é bastante claro quanto a isso. Ele diz que “as bases para a autoestima, em uma sociedade justa, não é dada pela sua fração de renda, mas pela distribuição publicamente assegurada de direitos e liberdades fundamentais.” (RAWLS, 1971, p. 544). Ele recusa a ideia de vincular o status de cidadania à posição que alguém venha a ocupar na hierarquia econômica de uma sociedade. Direitos e liberdades iguais têm precisamente o sentido inverso: ninguém será discriminado por sua condição econômica. Essa é uma suposição necessária a uma teoria que tem na desigualdade econômica um tipo de bem. Uma condição sem a qual, nas circunstâncias adequadas, estaríamos todos em pior situação.12

A noção de direitos iguais e sua relevância para a justiça tem sido frequentemente diminuída diante da retórica associada ao igualitarismo econômico. A tese de Rawls vai na direção contrária. Direitos iguais são parte essencial da experiência cotidiana dos indivíduos. Não apenas de sua possibilidade de divergir e participar como alguém “soberano e igual” (RAWLS, 1971, p. 536) na vida pública, mas na capacidade de agir com autoconfiança na consecução de diferentes fins que julgam apropriado valorizar. Barack Obama apresentou um argumento, nessa direção, em seu discurso no aniversário de 50 anos da marcha de Selma, em 2015. Após criticar a ideia de que o assassinato de Michael Brown, em Ferguson, ocorrido em 2014, mostrava que nada havia mudado no conflito racial americano, Obama fez a seguinte observação:

Se você pensa que nada mudou no último meio século, pergunte a alguém que viveu em Selma, ou Chicago, ou Los Ângeles, nos anos cinquenta. Pergunte a uma mulher que hoje é CEO e que à época teria sido designada para o time de secretárias, se nada mudou. Pergunte a seu amigo gay se é mais fácil sair à rua orgulhoso, na América de hoje, do que há trinta anos atrás. Negar este progresso seria roubar de nós mesmos nosso sentido de agência (SELMA SPEECH, 2015).

Há um duplo sentido na argumentação de Obama. O primeiro é dar ênfase à ideia de que direitos iguais e oportunidades abertas importam. Isso ficou especialmente claro relativamente a questões associadas à gênero, à raça e à identidade sexual, nos anos recentes. A afirmação de um direito pode ir além de sua consagração em um estatuto legal. Para um casal gay, conviver socialmente sem o medo do preconceito pode ser algo fundamental para seu sentido de autorrespeito. Tudo isso parece bastante evidente. O segundo sentido acrescenta um elemento político ao conceito de agência. Nossas democracias vêm apresentando progressos não apenas na afirmação de um sistema de direitos, mas também de uma cultura de respeito e igual consideração. Rawls observou que um dos fatores que poderia levar ao ressentimento social era justamente a percepção de um mundo sem alternativas construtivas para a afirmação da justiça. (RAWLS, 1971, p. 535). Nesse plano, vivemos em um mundo que progride na direção prescrita pela justiça rawlsiana, ainda que por vezes mais lentamente do que poderíamos desejar.

Rawls formulou a teoria da justiça em meio aos anos sessenta e aos movimentos em torno dos direitos civis. É possível especular que venha daí o lugar particularmente relevante que as ideias de direitos iguais e oportunidades equitativas ocupam em sua visão da justiça. O ponto é compreender a afirmação da justiça como um processo contínuo, no tempo, em que novas exigências de direitos sejam devidamente ponderadas. Quando Piketty (2014) sugere uma comparação entre as desigualdades de nossa época com aquelas vigentes no tempo de Vautrin e Eugène de Rastignac, personagens de Balzac, em Le Père Goriot, ele parece perder de vista esse elemento. Sociedades não podem ser comparadas simplesmente focalizando- se estratificações de renda. Direitos iguais permitem que, apesar das assimetrias em riquezas, as pessoas disponham de um status similar, no espaço público e no mercado, e tenham chance de seguir em frente com suas escolhas e projetos de vida.

A segunda linha de argumentação conduz ao que irei denominar de argumento pluralista sobre a justiça. Ele diz que a justiça tende a não ser afetada pela desigualdade dado que essa é menos visível na grande sociedade, em que os cidadãos conduzem suas vidas em uma multiplicidade de grupos e associações. Mesmo que os indivíduos comparem a sua situação com a dos demais, a comparação tende a ocorrer preferencialmente no interior de cada grupo, havendo menos entre os diferentes grupos.

A pluralidade de associações em uma sociedade bem-ordenada, cada qual segura em sua vida interna, tende a reduzir a visibilidade, ou ao menos a visibilidade dolorosa da variação das perspectivas dos indivíduos. Pois tendemos a comparar nossas circunstâncias com a dos outros dentro do mesmo grupo, ou em grupos similares aos nossos, ou em posições que consideramos relevantes segundo nossas aspiraçõ es. As diversidade de associações tende a compartimentar a sociedade em grupos não-comparativos, sendo que as discrepâncias entre eles não atraem o tipo de atenção que perturba a vida dos que estão pior situados. (RAWLS, 1971, p. 536-7).

Trata-se de uma visão pluralista da justiça social. Rawls não explicita que grupos são esses, mas se pode imaginar: comunidades de vizinhança, com hábitos e padrões de renda similares; comunidades profissionais, com perfil educacional homogêneo, ou grupos que compartilham aspirações, gostos e valores em comum. Difícil é não perceber uma aproximação disso que poderíamos chamar de argumento rawlsiano da não-comparação com a abordagem pluralista da justiça, formulada por Michael Walzer.13 A diferença entre ambos reside no fato de que não há, na formulação de Walzer, isto que Rawls irá denominar de um “consenso sobreposto” (overlapping consensus) entre concepções éticas que coexistem em uma sociedade pluralista, e que torna plausível a convergência dos cidadãos em direção a uma mesma “concepção dominante de justiça.”14 O pluralismo rawlsiano é ao mesmo tempo realista e pragmático. Pessoas seguras do valor de seu plano de vida e de sua habilidade de levá-lo à frente, “não são dadas ao rancor nem cultivam ciúmes relativamente a sua boa sorte”. Ele recusa qualquer racionalidade ao chamado efeito de nivelamento para baixo (levelling down effect). Mesmo que os indivíduos pudessem, eles “não teriam o desejo de diminuir as vantagens dos outros às expensas de algum custo para si mesmas.” (RAWLS, 1971, p. 535).15

Pessoas gostam de esportes. Não faz diferença que seus ídolos ganhem bastante mais do que a imensa maioria. Os dez atletas mais bem pagos do mundo receberam, ao longo de 2014, mais de U$ 650 milhões. Isso não parece ter afastado nenhum apreciador de esportes dos estádios e arenas. E eles não são poucos. O mesmo ocorre com a música, com os ícones empresariais e mesmo com a política. A chegada de Barack Obama à presidência dos Estados Unidos não parece ter provocado inveja, ressentimento ou instabilidade entre a comunidade afro-americana, mesmo que ela tenha se tornado presumivelmente mais desigual (em um aspecto relevante), dado que um de seus líderes tenha acumulado uma extraordinária quantidade de poder.16 Fãs, torcedores e eleitores são pessoas que vivem, formam suas ambições e medem seu sucesso em esferas próprias de relacionamento e poder, que envolvem distintos sistemas de distribuição de recursos, poder ou prestígio.17

Uma segunda linha de argumentação sugerida por Rawls para lidar com o problema das desigualdades chanceladas pelo princípio da diferença, diz respeito à convergência dos padrões ou estilos de vida. Uma sociedade tende à instabilidade em virtude de explosões de ressentimento,18 quando os cidadãos carecem de autorrespeito ou quando “a discrepância entre uns e outros torna-se visível dada a estrutura e o estilo de vida da sociedade.” (RAWLS, 1971, p. 535). Há uma dupla dimensão aí. De um lado, a ausência de “entusiasmo” (zest) e sentido de potência individual. De outro, a visibilidade ou discrepância exagerada dos padrões de vida. Nada disso diz diretamente respeito à desigualdade de renda.

A sugestão de Rawls é bastante clara. Desigualdades sociais tendem a não representar um problema, para a justiça, nos termos de uma sociedade bem-ordenada, uma vez que se verifique uma aproximação dos estilos de vida e padrões de consumo, por parte dos cidadãos. Por certo, não um acesso igualitário, mas de algum modo equivalente. O desafio é saber qual é a definição plausível de equivalência quanto a padrões de consumo, e se nossas sociedades caminham (ou não) na direção de sua consecução. Um padrão de vida equivalente deve dizer respeito ao acesso a bens e recursos básicos para uma vida com autonomia, ou ao acesso a bens de luxo e certas prerrogativas de distinção e vantagens posicionais?19 Rawls parece favorecer a primeira alternativa, ainda que não o faça de modo exaustivo. Banir o consumo de bens de luxo, por parte de uma parcela da sociedade, parece afinal de contas bastante irrelevante, de um ponto de vista ético. Nosso argumento vai um pouco além: a revolução tecnológica recente associada à expansão da riqueza e redução da pobreza, no plano global,20 vem gradativamente aproximando os padrões de consumo. Isso ocorre primordialmente no que diz respeito a bens e recursos básicos, mas também em relação a certos bens de consumo cultural, viagens, formas de entretenimento e distinção. Esse é o ponto enfatizado pela economista americana Deirdre McCloskey (2016, p. 50), em seu monumental Bourgeois equality:

Boudreaux observou que um bilionário frequentando um de seus cursos não parecia muito diferente de um estudante de graduação “empobrecido” (impoverished) apresentando um trabalho sobre o coeficiente de Gini. Em muitos aspectos básicos da vida, praticamente todos os americanos são tão favorecidos (well off) como Mr. Bucks (pseudônimo para o bilionário). Se a diferença de riqueza entre bilionários e americanos comuns é pouco visível nos aspectos mais rotineiros do cotidiano, angustiar-se com o coeficiente de Gini é sobrepor uma abstração etérea sobre a realidade palpável da vida.

Donald Boudreaux não está dizendo que a vida de um bilionário típico é equivalente a de um tipo menos favorecido em todas as suas dimensões. Ele trata do acesso ao básico: os recursos essenciais para uma vida que aspira à autonomia individual, o desenvolvimento de capacidades e a participação na vida democrática. Trata-se daquilo que é suficiente, na expressão consagrada por Harry Frankfurt (1987). Se uma pessoa não tem acesso ao básico, o raciocínio de Boudreaux perde inteiramente sua força intuitiva. O ponto é um olhar mais amplo, no tempo, sobre a evolução dos padrões de vida, torna bastante plausível a percepção de Boudreaux. Em 2013, o US Bureau of Labor Statistics publicou dados que abrangem a história norte-americana ao longo do século XX. O relatório mostra que, em 1901, um domicílio americano gastava em média 42,5% de sua renda com alimentação, e que esse porcentual caiu para 13,2%, em 2002-03.21 O dados mostram tendência similar para virtualmente todos os aspectos que alguém possa relacionar ao conceito de bem estar.”22 E, por óbvio, há ganhos de qualidade. Peter Diamandis, talvez com algum exagero, observou que qualquer pessoa dispondo de um smartphone e acesso ao Google, tem hoje mais informação disponível do que um presidente americano tinha duas ou três décadas atrás.23

Tudo isso é bastante conhecido. A questão central para o debate sobre a desigualdade é o registro de uma inequívoca convergência dos padrões de vida e acesso a bens e recursos básicos. Quando Rawls lançou TJ, 37% da população global com idade superior a 15 anos não dispunha de nenhuma forma de educação formal. Esse percentual caiu para 14% em 2015.24 O acesso à educação fundamental define um elemento essencial no que tomamos como básico. Sua expansão, na base da pirâmide, tem um efeito igualitário inequívoco. Indivíduos que já dispõem de muito podem acrescentar algum luxo a seu modo de vida, ao ampliar ainda mais seus rendimentos; indivíduos que escapam da pobreza encontram um significado bastante distinto ao obterem acesso à educação e outros recursos básicos: a diferença entre a privação absoluta e uma vida potencialmente plena de significado. Trata-se de um incremento no sentido do que Elizabeth Anderson chama de “igualdade democrática”, isto é, a ideia de igualdade que concentra sua atenção no modo de relação entre as pessoas (que diz respeito a status, poder e respeito mútuo) “ao invés de um mero padrão na distribuição de bens divisíveis.” (ANDERSON, 1999, p. 336).25 A variável acentuada por Anderson diz respeito à equivalência no acesso a bens básicos e é perfeitamente compatível com a ênfase dada por Rawls às condições de autorrespeito que uma sociedade deve assegurar a todos, sob pena de transformar a desigualdade econômica em um problema para a concepção de justiça.26

Uma variante do argumento enfatizando a convergência dos padrões de renda e estilos de vida, no plano global, é dada pelo efeito marginalmente decrescente da renda relativamente a ganhos de bem-estar. Angus Deaton e Daniel Kahneman (2010) apresentaram um estudo relevante nessa direção. Analisando dados coletados em um amplo estudo conduzido pelo Gallup- Healthways Well-Being index, eles concluíram que “para além de uma renda anual de U$ 75 mil, não se registra nenhum incremento das três medidas relativas a bem-estar emocional.”27

O estudo demonstra que o crescimento da renda, a partir do patamar identificado, não faz aumentar o que habitualmente chamamos de felicidade.28 A pobreza, por outro lado, tende a ser uma previsível fonte de infelicidade. Baixos rendimentos, diz o estudo, “exacerbam a dor (emotional pain) associada a infortúnios como o divórcio, a doença e a solidão.” (KAHNEMAN; DEATON, 2010).29 Basta observar o rápido processo de redução da pobreza, no plano global, para perceber o que está em curso: uma progressão dos padrões de igualdade relativos a uma medida relevante de bem-estar. Essa não é a métrica adotada por Rawls,30 como é sabido, mas diz respeito a um aspecto não negligenciável da experiência humana, associado à autoestima individual e à disposição que os indivíduos apresentam para levar à frente seus planos de vida. Uma sociedade bem- ordenada, segundo o padrão rawlsiano, incrementando continuamente a situação dos menos favorecidos, tende a produzir igualdade nesse plano. Uma vez mais, é redução da pobreza, ao invés da assimetria econômica, na grande sociedade, que parece indicar um sentido ético da justiça social.

Desigualdade e influência política

A tese de Rawls vai na contramão da ideia comum no debate igualitarista contemporâneo segundo a qual seria preciso conter a desigualdade econômica em função de seu impacto negativo sobre a democracia e o valor das liberdades políticas dos cidadãos. Sendo mais direto: não há, na formulação rawlsiana, uma regra ad hoc para reduzir desigualdades dada a suspeita de que os mais ricos possam usar sua capacidade econômica para fazer lobby, financiar eleições e influenciar o sistema político.

Em TJ, Rawls (1971, p. 278) parece mostrar certa ambiguidade em relação ao tema. De um lado, sugere que desigualdades acima de um certo padrão poderiam colocar em risco o sistema de oportunidades iguais e o valor das liberdades políticas formalmente garantidas aos cidadãos.31 Por outro, não indica que padrão seria este, nem estipula um critério para conter estas desigualdades, distinto daquilo que prescreve o princípio da diferença.

Rawls, de fato, não sugere um rearranjo na distribuição de bens econômicos apenas para evitar que alguns tenham mais poder político do que outros. Seu argumento orienta-se em duas direções. A primeira, como já observamos, aposta na eficiência da lógica maximinimalista contida no princípio da diferença. A oferta dos bens polivalentes (bens associados, de um modo geral, à capacidade econômica) requeridos para o pleno exercício das liberdades políticas seria ainda menor em um mundo em que as desigualdades admitidas pelo princípio estivessem fixadas abaixo de seu ponto de otimalidade. Rawls (1993, p. 326) diz que “a estrutura básica da sociedade é ordenada de forma a maximizar os bens primários à disposição dos menos favorecidos para que estes façam uso das liberdades garantidas a todos. Isto define um dos objetivos centrais da justiça política e social.”

Esse é, em última instância, o argumento central. A teoria claramente associa o problema do déficit no valor das liberdades políticas (para além de sua disponibilidade formal) ao tema da “pobreza e da ignorância” (RAWLS, 1993, p. 325) e não à desigualdade econômica per si. Não faria nenhum sentido, nessa lógica, lançar mão da ação coercitiva do Estado para reduzir, vamos imaginar, de 18% para 14% a proporção da riqueza detida pelo top 1%. Por um lado, não há como saber se isto irá produzir algum resultado, reduzindo a capacidade de lobby e a influência dos mais ricos eles ainda assim continuarão muito ricos; por outro, seria preciso saber se uma interferência desse tipo traria algum efeito prático para o incremento do valor efetivo das liberdades políticas dos cidadãos, em particular para os menos favorecidos. O problema, como observamos anteriormente, reside no fato da pobreza, que tende a gerar dependência dos indivíduos em relação ao Estado e na relação com os outros.

A segunda direção diz que os sistemas legais, em especial as regras de financiamento eleitoral, devem ser pensadas de modo a proteger “grosso modo (roughly) uma igual oportunidade para que os cidadãos influenciem as políticas governamentais.” (RAWLS, 1993, p. 358). As liberdades políticas constituem uma família de direitos. Sua efetividade frequentemente induz a escolhas difíceis e a um exercício de compatibilização entre prerrogativas conflitantes. Rawls exemplifica seu ponto na crítica à decisão da Suprema Corte Americana nos casos Buckley v. Valen e First National Bank v. Bellotti, nos anos 70. A Corte considerou, em síntese, que era “inteiramente estranha à Primeira Emenda” a ideia de “restringir a voz de alguns, em nossa sociedade, de modo a reforçar o peso relativo da voz dos outros.” (RAWLS, 1993, p. 360). Rawls contestou a decisão da Corte com o argumento de que a liberdade formalmente irrestrita de opinião, chancelada pela Primeira Emenda, não poderia ser tomada como um valor absoluto e desconectado da garantia de um valor efetivo, ou competitivo (vamos supor, em um processo eleitoral), dos direitos à expressão política.

A ênfase da argumentação recai sobre questões relativas à restrição de doações eleitorais privadas, uso de espaços públicos e financiamento eleitoral por parte dos contribuintes. Há uma ampla agenda aí. No caso brasileiro, seria plausível imaginar que uma regra permitindo o autofinanciamento ilimitado de campanhas (como autorizado em resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no Brasil, em fevereiro de 2018) seria vetada, na lógica rawlsiana.32 O importante é enfatizar que se está tratando de formas institucionais de proteção de uma relativa igualdade de participação política e eleitoral, e não sugerindo que se deva limitar a desigualdade econômica em si mesma para assegurar algum padrão de equidade na competição política ou eleitoral.

Parece uma ideia um tanto frágil imaginar que um nível maior ou menor de desigualdade econômica, por si só, irá determinar variações significativas no grau de vulnerabilidade das instituições à ação de grupos de pressão na sociedade.33

Modelos institucionais e direito à propriedade

Da mesma forma como a teoria rawlsiana não apresenta um compromisso estrito com o igualitarismo econômico, também sua visão sobre o desenho das instituições, a partir da concepção de justiça escolhida pelas partes, na posição original, é bastante aberta e explicitamente não dependente da adoção desse ou daquele modelo regulatório ou distributivo. Isso sem prejuízo de que Rawls tenha manifestado sua simpatia por arranjos institucionais determinados. Em TJ, contrastando com os regimes lastreados na propriedade privada e modelos de economia socialista, o tema é tratado de modo bastante claro:

não pode ser decidido com antecedência qual desses sistemas e as muitas formas intermediárias melhor responde aos requisitos da justiça. Presumivelmente não há uma resposta geral a esta questão, pois isto depende em grande parte das tradições, instituições e forças sociais de cada país, e suas circunstâncias históricas particulares. (RAWLS, 1971, p. 242).

Uma boa forma de compreender a abertura oferecida por Rawls, nesse tema, é ressaltar sua intenção de construir uma teoria capaz de atravessar o tempo. Variações históricas, modelos culturais, padrões de desenvolvimento econômico, escassez ou abundância, e uma infinita gama de fatores contextuais, seguramente irão afetar a interpretação que o mundo político, nos estágios constitucional e legislativo, fará relativamente à concepção de justiça originalmente definida. A teoria é bastante flexível nisso, e tem aí uma de suas forças para aproximar e produzir algum consenso entre visões políticas divergentes em nossa tradição democrática.

Nesse plano, não considero correta a ideia de que exista uma oposição fundamental, no plano institucional, entre a justiça como equidade e variantes do liberalismo clássico. Lucas Petroni, em um recente e bem-estruturado artigo, vai nessa direção ao sugerir que a tese da legitimidade rawlsiana “não é apenas igualitária como é francamente contrária ao liberalismo clássico”. Seu argumento diz que teorias da justiça necessitam atender às demandas distributivas e que, sob a ótica da teoria da legitimidade de Rawls, “o poder de uma autoridade política fundada nas premissas dessas duas teorias (o libertarianismo e o liberalismo clássico) deve ser considerado como moralmente ilegítimo” (PETRONI, 2017, p. 157).

O argumento é sedutor. É bastante plausível associar Rawls a tipos diversos de distributivismo econômico. Em diversos momentos, em TJ, bem como nos escritos posteriores, ele discutiu mecanismos de tributação da renda e do consumo, ainda que tenha procurado deixar clara sua predileção pela ideia de um mercado aberto à concorrência como a melhor forma de expressar o sentido da justiça puramente processual. (RAWLS, 1971, p. 242).

Petroni (2017, p. 158-159) elenca três razões que determinariam esse sentido de ilegitimidade: a inexistência da oferta de um mínimo social incondicional assegurado a todos os cidadãos; a falha em proteger adequadamente o valor equitativo das liberdades políticas dos cidadãos; e a defesa de um amplo direito à propriedade privada sobre bens produtivos como um requisito fundamental da justiça política. Veremos como soluções diversas, muitas delas associadas a variantes do liberalismo clássico, podem oferecer uma boa resposta a esses três condicionantes.

Nosso argumento diz que não há razões para que uma ordem liberal, dotada de um sistema robusto de proteção da propriedade privada, não possa cumprir adequadamente os requisitos estabelecidos, de um modo mais amplo, pela justiça rawlsiana. Imaginar que tão somente modelos dotados de forte tributação, restrições à liberdade econômica e coisas do gênero possam expressar, no plano institucional, o sentido ético subjacente à concepção da justiça como equidade, significa confundir os planos de justificação filosófica da teoria e seus estágios subordinados de deliberação constitucional e legislativa.

Rawls (1993, p. 340) enfatiza que a aplicação dos princípios de justiça, no mundo político, não diz respeito a “como se espera que funcione qualquer regime constitucional.” Ele imagina uma hierarquia na deliberação pública partindo, em um plano muito geral, de um tipo de crença iluminista: a possibilidade de um consenso muito amplo em torno de princípios primeiros de justiça na sociedade. Consenso que será tanto mais viável e consistente quanto menos estiver amarrado a compromissos políticos-contextuais. O estágio seguinte é constitucional. Trata-se de ordenar os direitos fundamentais. Ele não explicita detalhes de uma política distributiva, nem a forma de lidar com as exigências do princípio da diferença. (RAWLS, 2001, p. 162). O objetivo é dar permeabilidade, nos estágios legislativos e ao nível da escolha pública ordinária, à variabilidade da cultura política pública e à devida análise econômica. Não há, na teoria, nem pode haver, compromissos distributivos fortes e historicamente datados a restringir ou definir fundamentalmente a concepção de justiça.

Rawls deixa claro que a opção entre modelos institucionais fundados na garantia da propriedade privada capitalista, ou na propriedade social não é feita no plano propriamente filosófico da teoria, quando as partes deliberam sobre a concepção de justiça, na posição original. Os princípios são bastante genéricos e não envolvem a definição do arcabouço de regras que define a estrutura econômica da sociedade. Isso será definido sob o impacto de um conjunto de informações, por definição inacessível na situação originária, e vinculado à tradição política, traços culturais e circunstâncias econômicas de uma sociedade determinada. (RAWLS, 1993, p. 338).

Rawls (2003, p. 195) manifesta sua preferência por modelos institucionais associados ao que denomina “socialismo liberal” e, mais especialmente, à chamada “democracia de proprietários.” (property-owning democracy).34 Ao especular sobre esses modelos, entretanto, ele esclarece se tratar de “argumentos e sugestões imprecisos e intuitivos” e “comentários ilustrativos e muito provisórios.” (RAWLS, 2003, p. 191-2). Em TJ, ao tratar de modelos econômicos, Rawls já havia tido o mesmo cuidado, ressaltando fazer apenas “suposições imprecisas e supersimplificadas.” (RAWLS, 1971, p. 265). Ele evita a análise propriamente econômica e não tem a preocupação de apresentar evidências empíricas sobre os modelos que sugere.35 Trata-se de um exercício especulativo bastante impreciso e sujeito a variações consideráveis sobre mecanismos regulatórios. Em um momento, é sugerido um modelo de tributação sobre a renda, eventualmente dispensando qualquer taxação progressiva. (RAWLS, 2001, p. 161 ). Em outro, surge a possibilidade de um sistema que não tributasse a renda, mas apenas o consumo:

Ao tributar o total de gastos apenas acima de certa renda, pode-se ajustar o imposto de forma a possibilitar um mínimo social apropriado. O princípio da diferença poderia, assim, ser aproximadamente satisfeito elevando-se e abaixando-se esse mínimo e ajustando-se a taxa marginal constante da tributação. (RAWLS, 2001, p. 161).

Ainda mais adiante, uma alternativa similar é considerada, apenas substituindo-se a tributação sobre o consumo por um imposto de renda proporcional e ajustando-se a faixa de isenção desse mesmo tributo, para cima ou para baixo, conforme as circunstâncias, de modo a produzir os resultados esperados segundo a lógica do princípio da diferença.

Rawls deixa claro que esse tipo de escolha irá depender do domínio de informações, da capacidade de análise e da interpretação de fatores contextuais que vão muito além do que é possível a uma teoria da justiça. A definição desse ou daquele modelo, incluindo-se aí a adesão a sistemas pelos quais Rawls demonstra maior simpatia, não constituem uma aspecto essencial de seu argumento teórico sobre a justiça. “É importante manter em mente que nosso foco é a teoria da justiça e não a economia”, mesmo a mais elementar”, diz Rawls. (1971, p. 265). É perfeitamente possível concordar com o sentido geral da teoria da justiça rawlsiana sem chancelar suas considerações mais específicas sobre instituições econômicas.

Uma forma de compreender isso é oferecer uma interpretação adequada ao conceito de distribuição. Ele pode ser entendido de duas maneiras. Em sentido amplo, a ideia de distribuição remete à lógica procedimental da justiça como equidade, e diz respeito à obtenção de um certo estado de coisas, associado à ideia de maiores benefícios aos menos favorecidos (relativamente a modelos institucionais alternativos). Em sentido restrito, diz respeito a diferentes modos de regulação econômica e arranjos institucionais, dependentes da análise econômica, e que podem levar à obtenção do padrão de justiça escolhido. É um erro confundir essas duas coisas. A teoria rawlsiana tem um compromisso essencial com o padrão distributivo, em sentido amplo, determinado pelos princípios de justiça, em particular pelo princípio da diferença. Da mesma forma, tem um compromisso apenas circunstancial com a defesa de certos sistemas e arranjos econômicos. É sugestiva, nessa direção, observar como Rawls situa a definição do princípio da diferença como um tipo de “aspiração política da sociedade”, que pode, eventualmente (mas não obrigatoriamente), constar como um preâmbulo constitucional, mas carente de força legal propriamente dita. (RAWLS, 2001, p. 162). Claramente, estamos tratando de um sentido ético para o ordenamento das instituições, e não de um receituário de mecanismos distributivos em sentido restrito.

Vincular a aceitação dos princípios originários de justiça à adesão a um ou outro sistema econômico (especificando tipos de propriedade e tributação, ou um leque de agências governamentais) traria comprometimentos ao desafio pluralista da teoria (que é, ao cabo, um de seus elementos centrais), a saber: sua capacidade de congregar e dar a consideração devida a argumentos originários e um amplo leque de concepções sobre a justiça que integram nossa cultura democrática, o qual, por evidente, abrange soluções liberais vinculadas ao liberalismo clássico em suas múltiplas variações.36 É justamente para que a concepção de justiça possa funcionar como ponto de encontro entre visões rivais, em uma democracia, que se estipula a devida distância entre os planos de deliberação filosófica e de escolhas institucionais. Há uma divisão de trabalho aí. Os agentes da escolha, na posição original, e os agentes que deliberam sobre as instituições políticas, nos planos constitucional e legislativo, são tipos distintos. Ao fazer considerações sobre modelos econômicos, Rawls está, por assim dizer, jogando em ambas as posições. Trata-se de um exercício perfeitamente plausível e mesmo instrutivo, mas com um risco: de fazer imaginar a existência de um vínculo forte entre o plano geral e mais abstrato da concepção teórica da justiça e escolha de um modelo econômico determinado.

Modelos institucionais associados ao liberalismo clássico não apenas são legítimos, nos termos de nossa tradição política, como podem ser aceitos, em tese, como compatíveis com os princípios de justiça formulados por Rawls. Basta que legisladores, em uma democracia, concluam, a partir de uma ponderada análise contextual, que uma ordem econômica liberal é a melhor solução para fazer valer a base de direitos, oportunidades iguais e dar realidade ao padrão distributivo estipulado pelo princípio da diferença.37 O sentido dos princípios de justiça é definir “padrões através dos quais podemos analisar as organizações e políticas econômicas e suas instituições básicas.” (RAWLS, 1971, p. 41). O padrão definido pela teoria nunca variou, desde a primeira formulação definitiva do princípio da diferença, feita em Distributive justice (1967). O foco é usar a informação contextual, histórica e econômica, para dar a solução mais eficiente e fazer valer o padrão maximinimalista definido originalmente. O contrário seria, por assim dizer, trair o mandato dado pelos agentes na posição original. Significaria confundir a teoria com algum tipo de fetiche distributivo, priorizando-se o modelo institucional às regras de justiça. Não é esse o sentido geral, ou a melhor interpretação, da posição de Rawls.

Não faz muito sentido imaginar, no debate político realmente existente em nossas democracias, que um modelo fechado e bem-acabado de instituições, seja de matriz liberal clássica, socialdemocrata ou liberal- socialista, será adotado, em sua integralidade, para ordenar as instituições. Modelos regulatórios demandam contínua avaliação e revisão, há espaço para inovação e aprendizado e parece não passar de ingenuidade a ideia de que um certo modelo econômico, herdado da tradição, de forma exclusiva e imune ao tempo irá atender adequadamente às demandas de uma teoria da justiça. Instituições tendem a adotar sistemas mistos de regulação, a partir de um dada experiência histórica. Nos estágios constitucional e legislativo, os agentes devem considerar um arco o mais amplo possível de arranjos institucionais, originários de diversas tradições políticas, buscando fugir de estereótipos e preconceitos de natureza ideológica, de forma a produzir o melhor resultado possível para a justiça. Isso significa agir com prudência, considerando princípios previamente acordados e a observação empírica, no interesse daqueles que estão ali representados.

Não seria demais dizer que também no universo da deliberação constitucional e legislativa há um véu da ignorância. Ele tem uma natureza distinta relativamente ao que ocorria na posição original, mas supõe alguma forma de neutralidade quanto a modelos, regimes e tipos de políticas públicas. John Tomasi (2012, p. 2017) sugere uma espécie de critério de possibilidade para incluir ou excluir modelos institucionais de uma adequada consideração. Trata-se de um apelo ao realismo e uma forma de precaução contra o dogmatismo, além de evitar formas comuns de viés de confirmação38 e desatenção a consequências indesejadas da ação.39 Os legisladores devem se perguntar, a cada momento, sobre a eficiência das soluções institucionais, para a justiça, à longo prazo, à luz dos conhecimentos sociológico e histórico disponíveis. Uma forma de expressar essa visão é dizer que, também no plano da consideração de modelos institucionais, é preciso “estender o princípio da tolerância à própria filosofia”, como fez Rawls na justificação de seu liberalismo político. (RAWLS, 1993, p. 10).40 Vamos imaginar que o parlamento esteja discutindo ajustes ao modelo previdenciário. Uma teoria da justiça favoreceria a adoção de um sistema de capitalização ou de repartição simples? O primeiro põe ênfase na responsabilidade dos indivíduos; o segundo atribui maior discricionariedade ao sistema político. Responder a uma questão como essa, em abstrato, é algo perfeitamente sem sentido, para uma teoria da justiça. O mesmo vale para uma extensa agenda regulatória. Daí a insistência da teoria no peso que as circunstâncias históricas adquirem, em especial a partir do estágio legislativo.

Como ilustração, podemos considerar a seguinte pergunta: instituições inspiradas nas ideias de Hayek, assegurando uma base de direitos iguais e uma provisão social (associada à garantia de educação básica e ao mínimo social),41 poderiam, dado um certo contexto, representar uma alternativa mais eficiente para se obter os resultados requeridos pela justiça rawlsiana?42

A pergunta nos obriga a enfrentar um velho debate, não isento de viés ideológico. Petroni sugere que um modelo liberal clássico seria ilegítimo, entre outras razões, dada sua incapacidade de assegurar “um patamar mínimo de segurança social aos cidadãos.” (PETRONI, 2017, p. 142). Pois bem, é bastante conhecida a defesa feita por Hayek (1976, p. 55) de uma “renda mínima para todos, ou um certo patamar abaixo do qual ninguém precisa cair caso não seja capaz de prover para si mesmo.” Trata-se de um argumento recorrente na tradição do liberalismo clássico.43

O tema é provocativo. No universo das visões sobre sistemas econômicos, que coexistem em nossa tradição democrática, as ideias de uma democracia de proprietários e de um Estado mínimo hayekiano são fortemente opostas. Hayek por certo consideraria excêntrica a ideia de usar o poder do Estado para obrigar as pessoas a distribuirem seu dinheiro, via taxas elevadas sobre herança, ou tributar os cidadãos para que o governo compre ativos empresariais, como forma de aumentar o controle social sobre a propriedade, ou para obrigar empresas a terem gestores eleitos pelos funcionários. É possível que ele tenha razão, em contextos determinados, e feito a devida análise empírica. A filosofia moral tem um limite bastante claro para tratar desses temas. Ela pode fixar um critério, ou um conjunto de critérios, mas dificilmente evitará um certo dogmatismo e mesmo ingenuidade, se avançar para o terreno da medição empírica e análise econômica de modelos regulatórios. O melhor, nesse âmbito, é assumir uma atitude de prudência e distanciamento entre as suposições originárias da concepção ética da justiça e os diversos arranjos institucionais por ele admitidos e requeridos.

Ao considerarmos a compatibilidade entre uma regulação econômica genericamente orientada pelo liberalismo clássico e a justiça como equidade, estamos efetivamente lidando com uma convergência da base institucional. Não está em jogo um acordo no plano da fundamentação filosófica ou normativa. É esse precisamente o sentido do liberalismo político de Rawls. No plano das visões éticas abrangentes, que envolvem temas mais amplos sobre a vida humana e a organização da sociedade, simplesmente não há acordo possível nos termos de uma sociedade pluralista. Uma teoria política que ignorasse esta questão dificilmente obteria algum tipo de consenso sobreposto (overlapping consensus) capaz de obter a adesão de visões de mundo divergentes no plano ético e político mais geral. Trata-se de uma operação bastante delicada. As partes ingressam, por assim dizer, de boa fé no debate mais abstrato sobre a justiça. O mesmo ocorre nos demais estágios de deliberação, ainda que com padrões de informação distintos. Recusar, de antemão, a consideração de diferentes matrizes e modelos institucionais, incluindo-se aí soluções de corte liberal, é um procedimento estranho ao sentido geral da tese rawlsiana e a qualquer teoria que pretenda produzir algum nível de consenso político em uma sociedade pluralista.

Havia uma terceira condição, na visão de Petroni, que impediria a aceitação da legitimidade de visões associadas ao liberalismo clássico. Ela diz respeito a garantias quanto à propriedade sobre bens produtivos. De modo sintético, tentarei argumentar que garantias associadas a um direito mais amplo à propriedade e à iniciativa econômica estão longe de ameaçar a legitimidade de qualquer proposição liberal, à luz das exigências da justiça como equidade. Ao contrário: é possível que Rawls tenha subestimado, quando definiu o alcance das liberdades protegidas no primeiro princípio, o valor do aspecto propriamente econômico da liberdade na cultura política pública de nossas sociedades democráticas. De qualquer forma, garantias quando à propriedade de bens econômicos parecem consistir em um dos elementos centrais da visão institucional rawlsiana. Isto dado a razões de eficiência econômica e a temas mais fundamentais, ligados à expressão das visões individuais sobre o bem e à afirmação da independência política dos cidadãos.

Ou vejamos. O sentido original da democracia de proprietários era a ideia de que o acesso à propriedade conferia poder aos cidadãos diante do Estado, das empresas e dos demais. Há o reconhecimento de um vínculo entre independência pessoal e propriedade. Por isso essa última deveria ser, na medida do possível, disseminada. James Meade (1993, p. 41) diz que “um homem com muita propriedade tem maior poder de barganha e maior sentido de segurança, independência e liberdade. E ele dispõe dessas coisas não apenas vis-à-vis os cidadãos menos aquinhoados, mas também vis-à- vis as autoridades públicas.”

De um modo bastante intuitivo, é esta a perfeita sensação que temos quando visitamos um país socialista. Pessoas privadas do acesso à propriedade, ou simplesmente da possibilidade da geração de valor, na forma de rendas e riqueza, tornam-se presas fáceis do Estado, em diferentes dimensões da vida. Modelos de socialismo de Estado não passam de espantalhos, nos dias de hoje, mas esse não é o ponto. O aspecto relevante, aqui, é inquirir sobre a razoabilidade de uma teoria que admite a ideia de vetar, ou restringir severamente, o acesso ou a garantia da propriedade privada sobre bens produtivos, no plano constitucional.

Temos aí um possível paradoxo da tese rawlsiana. Ele é explícito, na defesa de DP, ao argumentar sobre a necessidade de que as instituições básicas “desde o início, coloquem nas mãos dos cidadãos, amplamente, e não apenas para uns poucos, meios produtivos suficientes para que eles sejam membros plenamente cooperativos da sociedade.” (RAWLS, 2001, p. 140). Muito se poderia especular sobre o que significa a ideia de um “início”. As sociedades funcionam continuamente no tempo. A ideia, muito provavelmente, esteja em linha com a lógica de DP, que atribui um valor central à disseminação da propriedade entre os indivíduos. O foco parece ser o de dotar o cidadão da capacidade de prosperar economicamente, eventualmente tornando-se ele mesmo um empresário, acionista ou investidor. O conceito geral parece ser o de não permitir que o capitalismo concentre a iniciativa econômica (e não simplesmente a renda), nas mãos de alguns poucos. Quem sabe se poderia pensar na disseminação de políticas de microcrédito ou na proliferação de fundos de venture capital. A imaginação é livre, nesse âmbito, e por certo o mundo econômico sofreu transformações importantes nas décadas que se seguiram à publicação do livro de Meade (1964) e às reflexões de Rawls. Não é foco deste trabalho detalhar o leque de possibilidades que se abrem nesse terreno. O ponto é apenas enfatizar que, tendo acesso à propriedade o significado a um só tempo ético e político que Rawls, na linha de Meade, sugere, seria mesmo desejável suprimir sua garantia do ordenamento constitucional? Rawls não diz que isso deva ser feito, mas admite essa possibilidade, retirando o direito à propriedade sobre bens produtivos (ou meios de produção) do arco de garantias fundamentais chanceladas pela teoria.

Há duas questões aí. Uma delas pergunta sobre a plausibilidade de uma teoria que se pretende imparcial em relação a visões éticas abrangentes assumir uma escolha sobre que tipos de liberdade, ou aspectos da liberdade individual, que efetivamente importam para a realização humana e, pois, merecem as garantias chanceladas pelo primeiro princípio da justiça. Trata- se de um tipo de excepcionalismo econômico, que tende a compartimentar a liberdade humana, atribuindo um valor substantivo distinto a cada uma de suas faces. Se o plano de vida de alguém exigir maior espaço à iniciativa econômica, envolvendo a posse de bens produtivos, haverá aí uma frustração. Rawls parece sugerir que planos de vida com esse perfil estariam fora do arco razoável de visões sobre o bem e demandariam algum tipo de correção. Uma segunda questão diz respeito especificamente a essa suposição forte que está na raiz de sua defesa de DP. Sendo o acesso à propriedade um elemento decisivo para a independência, autoconfiança e poder de ação dos indivíduos, faria sentido restringir ou eliminar as garantias institucionais relativas à sua proteção? É possível disseminar o acesso à propriedade sem assegurar um direito à propriedade?44

John Tomasi referiu-se a esse elemento constitutivo do direito mais fundamental à propriedade produtiva para a autonomia individual, em sentido amplo, tão cara à tradição liberal. Ele explica que

[o] direito à propriedade sobre bens produtivos provê segurança. Propriedades produtivas (digamos, uma poupança na forma de ações ou títulos), provê indivíduos e famílias com uma medida de independência [...]. Pessoas com títulos sobre bens produtivos são, por esta razão, capazes de caminhar com seus próprios pés e fazer escolhas de vida fundamentais [...]. A segurança e independência que estes direitos provem não dizem respeito apenas a uma elite econômica, mas à experiência cotidiana dos cidadãos em sociedades que os garantem.” (TOMASI, 2012, p. 78).

Tomasi e Meade têm um ponto em comum (ainda que por certo defendessem, cada um a seu tempo, modelos institucionais distintos). O acesso à propriedade não funciona apenas como afirmação da independência dos cidadãos e de sua capacidade de interpor resistência à autoridade, mas também como uma condição não desprezível para a realização de seus fins como uma pessoa livre e igual. Na formulação rawlsiana, esse é um elemento central na justificação do primeiro princípio. Não tendo informação sobre os indivíduos que representam, na posição original, as partes terão interesse em proteger um arco mais amplo de dimensões da liberdade humana, e não o contrário.45 Não passa de especulação vazia dizer que a propriedade sobre bens pessoais é mais importante, para a afirmação da liberdade e autonomia individual, do que a propriedade de bens econômicos. Uma teoria que se quer neutra em relação a concepções substantivas do bem não pode assumir um compromisso como esse. Tomasi acrescenta a essa proposição um elemento contextual, sugerindo que o crescimento econômico acelerado e a forte redução da pobreza global, registrados em nossa época, acentuaram ainda mais esse traço de nossa cultura pública. Pessoas com um maior leque de escolhas diante de si, no universo do trabalho e do mercado, tenderiam a demandar mais, e não menos, autonomia para tomar decisões econômicas. (TOMASI, 2012, p. 61).

Aprofundar esse tema não é foco do presente trabalho. Uma interpretação talvez mais atenuada do argumento de Rawls diria que ele simplesmente rejeitou atribuir ao direito de propriedade o status de um direito natural. (RAWLS, 1993, p. 339). Isso em um plano filosófico bastante abstrato, a partir de uma leitura daquilo que se exige de uma teoria visando alcançar algum consenso entre as visões ético-políticas que competem em nossa tradição democrática. No plano da interpretação constitucional e legislativa, é possível imaginar que a teoria tenha envelhecido, ao relativizar um direito mais amplo à propriedade produtiva e favorecer modelos que sugerem uma ampla e discricionária intervenção do Estado na vida econômica e nas escolhas individuais. Feita a devida leitura das transformações econômicas do nosso tempo, parece implausível imaginar um mundo que prive os cidadãos do direito mais elementar de abrir negócios, comprar ações, dar um sentido produtivo aos bens que possuem e tomar decisões econômicas com uma ampla margem de liberdade individual. É possível imaginar que Rawls se dispusesse a rever algumas de suas opiniões, que ele mesmo definiu como intuitivas e provisórias, sobre modelos econômicos, meio século após a redação de TJ. Seria natural que isso ocorresse com aspectos históricos e circunstanciais de sua teoria, até mesmo para que seu sentido ético essencial possa preservar sua força através do tempo.

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1Tem sido uma postura relativamente comum, no debate acadêmico, identificar a justiça rawlsiana, e em particular o princípio da diferença, como um tipo de igualitarismo econômico (MILANOVIC, 2011, 2003; ROEMER, 2017; PETRONI, 2017).

2Ver Piketty (2014); Atkinson (2015); Stiglitz (2015); Wilkinson (2009).

3Uso a expressão de Nagel (1991, p. 119).

4

Uma progressão PG-PA seria, em um nível muito abstrato, uma representação plausível do tipo de assimetrias admitidas pelo princípio da diferença. A e B representam, respectivamente, as posições mais e menos favorecidas. A cada nova situação distributiva S, a renda média de A e B apresenta variações assimétricas, crescendo (A) geometricamente e (B) aritmeticamente.

S1

S2

S3

S4

S5

A

1

2

4

8

16

B

1

2

3

4

5

O modelo sugere um aumento exponencial da assimetria de renda, ainda que seja compatível com a descrição formal do princípio da diferença (supondo-se que, tudo devidamente considerado, essa era a mais favorável progressão possível para o grupo menos favorecido). Não se trata de um tipo de progressão que Rawls considera provável ou desejável, dado o risco de instabilidade que uma assimetria exagerada representa à concepção de justiça, mas é possível que as coisas ocorram dessa maneira.

5Rawls estabelece um critério definindo o ponto de eficiência do princípio da diferença. Transferências à posição menos favorecida são autorizadas até um ponto em que duas situações são possíveis: “ou a poupança adequada não pode ser feita ou os maiores impostos interferem tanto na eficiência econômica que as perspectivas dos menos favorecidos da geração presente deixam de melhorar e começam a cair. Em qualquer um dos dois casos, o mínimo correto foi atingido. O princípio da diferença foi satisfeito, e não se exige um aumento maior.” (1971, p. 316b).

6Imagine-se, por exemplo, que seja necessário implantar e fazer funcionar um sistema de acesso universal à educação básica e à saúde. Ou ainda que um adequado sistema de incentivos econômicos, segurança judicial, abertura comercial, investimentos em infraestrutura, entre muitas variáveis. Imagine-se que seja necessário implantar políticas sociais eficientes e sustentáveis. Muitas suposições podem ser feitas, aqui. Nenhuma indica que seja realista esperar por resultados de curto prazo.

7O presente artigo tem como foco apresentar aquela que imagino ser a melhor interpretação da posição de Rawls frente à igualdade econômica e a relação entre a teoria e distintos modelos regulatórios. Não se trata propriamente de uma defesa da posição de Rawls. Em outro artigo (SCHÜLER, 2014), procurei argumentar que as partes, na posição original, partindo das próprias premissas apresentadas por Rawls, não fariam a escolha do princípio da diferença, como regra distributiva. Em seu lugar, escolheriam o que chamei de concepção da justiça basal. Não é este, entretanto, o foco do presente artigo.

8Em seu artigo seminal, “Justice as Fairness”, de 1958, Rawls havia estabelecido que o segundo princípio estabelece que uma desigualdade é autorizada apenas se existir motivos para acreditar que a prática com a desigualdade, ou dela resultante, produzirá vantagens para todas as partes nela envolvidas. (RAWLS, 1958, p. 50). Essa formulação foi mantida até a publicação de “Distributive justice”, em 1967.

9Variações nos decis de renda intermediários não são o foco da teoria. A justiça rawlsiana é um tipo de prioritarismo vinculado à posição menos favorecida, cuja definição apresenta variações que vão além do interesse deste texto. O ponto é ressaltar a posição estrita de Rawls, segundo a qual “qualquer desigualdade deve ser ordenada em benefício do menos favorecido, mesmo se algumas desigualdades não tragam benefícios aos situados em posições intermediárias.” (RAWLS, 2001, p. 139).

10“Apesar de nada garantir que as desigualdades não serão significativas”, diz Rawls, “há uma tendência persistente de que elas serão niveladas, através do aumento de habilidades especializadas e o incrento da oportunidades.” (RAWLS, 1971, p. 158).

11Sociedades cujas instituições são devidamente organizadas segundo a concepção da justiça como equidade.

12Rawls ergue seu edifício teórico a partir de uma proposição, ao cabo, muito simples, segundo a qual “se há desigualdades na estrutura básica que melhoram a posição de todos, em comparação com um padrão qualquer (benchmark) de igualdade inicial, por que não permiti-las?” (RAWLS, 1971, p. 151). A economia é um tipo de jogo soma variável. Todos podem ganhar caso se permita que o talento prospere e a economia opere com máxima eficiência de mercado. A teoria não trata especificamente de indivíduos ou grupos sociais específicos. Muitos podem perder ou ganhar, no dia a dia da vida econômica. O requisito central é que os menos favorecidos possam ganhar, no longo prazo, mais do que se poderia esperar que ganhassem sob a vigência de arranjos institucionais alternativos.

13Em que pese sua ideia de igualdade complexa seja, sob certo aspecto, diametralmente oposta à justiça rawlsiana (um caso de igualdade simples, em sua linguagem), Walzer (1983) capturou um elemento central da complexidade implicada nas conversão da justiça em um bem social. A grande desigualdade, na sociedade, não é convertida de igual modo, ou correspondente, para os diferentes grupos e universos sociais próprios nos quais as pessoas, de fato, vivem, criam laços, exercem poder, buscam reconhecimento e comparam o seu sucesso com o dos outros. É possível especular que uma grande sociedade corresponde a um tipo de esfera da justiça cujo bem restringe-se, em última instância, às instituições que definem as regras do jogo.

14 Walzer (1983) afirma duvidar que as mesmas pessoas que estivessem, por hipótese, situadas ou representadas em um experimento mental para a definição de uma concepção da justiça, como é a posição original, iriam “reiterar sua hipotética escolha ou mesmo reconhecê-la como sua, uma vez que estivessem novamente transformadas em pessoas normais, com a percepção clara de sua identidade, com seus próprios valores e bens em mãos, ocupados com seus problemas diários.”

15O ponto é evitar as condições que possam fazer florescer o ressentimento social e conduzam os cidadãos a decisões coletivamente irracionais, como o nivelamento para baixo. Rawls menciona o Nietzsche (1996) de A genealogia da moral, numa alusão ao ressentimento como um tipo de psicologia negativa ou doença social que pode ameaçar, em certas situações, a estabilidade da concepção de justiça.

16O raciocínio é o mesmo para múltiplas esferas. Uma eventual inveja produzida pelos sucessos de Obama não configuraria um tipo de ressentimento social. Os demais cidadãos preservam seus direitos e sabem que Obama obteve sucesso segundo regras que valem igualmente para todos (agradeço, neste ponto, o diálogo com o Professor Dr. Marco Azevedo, que me permitiu melhor compreender essa questão). Haveria um elemento a mais aí: a ampliação da desigualdade pode reforçar a autoconfiança e o entusiasmo por parte dos indivíduos. O sucesso de alguns, em diferentes esferas da vida, pode servir de incentivo, fazendo com que muitos percebam que é possível ir mais longe.

17Walzer expressou essa ideia com maestria quando observou que, “via de regra, os mais talentosos políticos, empresários, soldados e amantes serão pessoas diferentes, e contando que os bens que possuem não tragam outros bens a reboque, não temos motivo para temer suas realizações.” (WALZER, 2003, p. 24).

18O ressentimento diz respeito ao que Rawls chama de “inveja geral”, cuja raíz se encontra a percepção generalizada de que certos grupos sociais não estejam sendo tratados de maneira justa. (RAWLS, 1971, p. 531). Trata-se de um sentimento eticamente justificável, causado não pela assimetria econômica em si mesma, mas pela percepção de que essas desigualdades são o resultado de um processo injusto.

19Bens posicionais são aqueles cuja utilidade deriva, ao menos em parte, da relativa escassez e exclusividade social. Frequentar uma ópera nos primeiros lugares pode ser um bom exemplo. Seja qual for o padrão de renda de uma sociedade, continuarão existindo apenas alguns primeiros lugares para assistir a uma sessão de Madama Butterfly. Nosso argumento supõe que, por definição, nenhuma teoria da justiça pode requerer acesso igualitário a bens posicionais.

20Para uma análise dos efeitos da globalização e da revolução tecnológica, ver Baldwin (2016) e McClouskey (2016).

21100 Years of U.S. Consumer Spending, disponível em: https://www.bls.gov/opub/uscs/reflections.pdf . Bureau of Labor Statistics, 2013.

22 Meyer e Sullivan (2012) mostraram que a pobreza, nos Estados Unidos, mensurada em termos de capacidade de consumo declinou 26,4% entre 1960 e 2010. O índice de pobreza, medido dessa forma, caiu de 30% para pouco mais de 3%, o que representa uma redução aproximada de 90%. Os autores argumentam que a capacidade de consumo é um indicador mais consistente de bem-estar do que a renda. O declínio registrado reflete um amplo conjunto de fatores associados ao aumento da renda, ganhos de escolaridade, mudança tecnológica, políticas sociais e tributação.

23Disponível em: <https://singularityhub.com/2012/06/28/abundance-the-future-is- better-than-you think/#sm.00011y2ldbnaddfeq1516pwdc0owm>.

24Disponível em: https://ourworldindata.org/primary-and-secondary-education

25 Petroni (2017, p. 235) denomina de “igualitarismo social” essa vertente do debate sobre a justiça que, sem recusar comprometimentos distributivos, enfatiza a dissolução de vínculos de hierarquia e subordinação como essenciais à justiça. A tese refere-se a autores como Samuel Scheffler, Jonathan Wolff, Álvaro de Vitta e Nilo Kolodny. Vale observar que o elemento cultural envolvido nesse argumento. Vínculos de hierarquia não se fazem sentir apenas no plano institucional. Eles são frequentemente invisíveis. Sandel (2012) tratou disso de modo provocativo em seu O que o dinheiro não compra. O ponto aqui é: não é a desigualdade, e sim a pobreza que faz com que pessoas sejam contratadas para permanecer algumas horas em uma fila, no lugar de alguém com mais dinheiro (não se trata de um serviço particularmente caro), para comprar em primeira mão o último modelo de celular. Os exemplos seriam muitos, nessa direção, envolvendo o acesso à fruição cultural, ao lazer, ao uso da tecnologia e à mobilidade. Pessoas eventualmente sofrem ou se sentem humilhadas não porque tem menos, mas por não dispor do suficiente para estabelecer seus próprios critérios de escolha. Isso inclui direitos, oportunidades, rendas e algo bastante difuso que Rawls identificou como certas condições sociais para o autorrespeito. (RAWLS, 1971, p. 440-1). Não estou afirmando que se possa enquadrar a tese de Rawls como um tipo de igualitarismo relacional, mas enfatizando que ele inclui um argumento nesta direção quando explica por que uma sociedade bem-ordenada tende a tornar o problema da assimetria econômica fundamentalmente irrelevante, de um ponto de vista ético.

26Rawls sugere que o ressentimento social, que pode levar a uma situação de instabilidade e sensibilidade moral à desigualdade, nasce em circunstâncias em que os menos favorecidos são levados a compreender sua condição como uma experiência de “dor e humiliação.” (RAWLS, 1971, p. 469).

27Disponível em: http://www.pnas.org/content/107/38/16489.full.

28Deaton e Kahneman (2010) associam bem estar à “qualidade emocional da experiência cotidiana dos indivíduos”, o que inclui a frequência com que as pessoas sentem “ansiedade, alegria, fascinação, raiva ou tristeza”. Uma segunda dimensão do conceito de felicidade, associada à avaliação da vida como um todo apresenta maior elasticidade-renda, mas igualmente apresenta causalidade irrelevante a partir de uma renda anual de U$ 120 mil.

29É possível especular na direção oposta, a saber: de que, em especial nos países em desenvolvimento, uma maior desigualdade produza efeitos positivos sobre a felicidade. Isso porque a percepção do sucesso e o exemplo oferecido pelas pessoas que alcançam projeção econômica e social, em diversas áreas, serve como fonte de “esperança”. Esse argumento é apresentado por Pinker (2018, p. 101), com base nos estudos de Kelley e Evans (2017).

30Uma variante promissora do conceito usual de felicidade é sugerida por Rawls (1971, p. 290), em A theory of justice, e diz respeito à ideia de realização ou florescimento individual. Rawls diz que “o que os homens querem é um trabalho pleno de sentido em livre associação com os outros”. E acrescenta: “para atingir este estado de coisas, uma grande riqueza não é necessária. De fato, além de um certo ponto, ela tende a ser positivamente um obstáculo, na melhor hipótese uma distração sem sentido, senão uma tentação para a indulgência e para o vazio.” A definição de Rawls também sugere uma curva de utilidade marginal decrescente da riqueza, relativamente à geração de felicidade associada à ideia de florescimento humano. A redução da pobreza, nesses termos, igualmente produziria um efeito igualitário.

31Thomas Pogge (2006, p. 19) atribui a percepção rawlsiana sobre o impacto negativo das desigualdades sobre a democracia, ao menos em parte, a uma difusa interpretação sua, no final dos anos 60, de que a influência excessiva dos mais ricos e das grandes corporações estava na raiz da guerra do Vietnã, que ele considerava injusta e à qual se opôs ativamente. Pogge tendo razão, não parece que a percepção de Rawls estivesse correta. Os anos 60 foram, em geral, mais igualitários, de um ponto de vista estritamente econômico, do que a época atual. A assimetria econômica cresceu, nos Estados Unidos, no último meio século, e isso não parece ter sido acompanhado, ao mesmo não no mesmo ritmo, pelo ânimo beligerante do governo americano.

32Seria possível ir muito longe nesta linha de raciocínio. Rawls manifesta simpatia pelo sistema de financiamento público de campanhas, e dificilmente (podemos imaginar) chancelaria um modelo, tal como aprovado recentemente no Brasil, em que parlamentares com mandado recebem até R$ 2 milhões do fundo público de financiamento eleitoral para concorrer com adversários que nada recebem. Parlamentares com mandato, no sistema brasileiro, tem a seu dispor estruturas de gabinete, que utilizam para campanha eleitoral, e dispõem de uma fatia generosa do orçamento público, na forma de emendas individuais ao orçamento, que distribuem a municípios e organizações situadas em sua base eleitoral. São formas de financiamento público que, presumivelmente, produzem mais desigualdade. Uma igualdade aproximada do uso das liberdades políticas poderia corrigir estas questões bastante complexas Da mesma forma, poderia vetar o uso de estruturas sindicais (laborais ou patronais), para fins político-eleitorais, entre muitos outros dispositivos. Uma teoria da justiça não irá especificar cada uma dessas questões. Seu objetivo é estabelecer um princípio regulador. Ajustar razoavelmente a legislação de forma que o maior poder econômico e/ou político não contamine demasiadamente o livre-exercício das liberdades políticas, por parte dos cidadãos.

33Gordon Tullock (2007) acentuou o papel desempenhado pelos grupos de pressão, envolvendo sindicatos, grupos econômicos, burocracia pública e outros no mercado político. Não passa de uma argumentação vazia sugerir que haverá uma diferença significativa na influência econômica sobre o sistema político, em uma grande democracia, se o top 1% deter 10% ou 15% da renda nacional. Tão pouco se pode assegurar que a influência dos “de baixo”, através da organização sindical, partidos e movimentos políticos, ou no interior da própria máquina estatal, não terão grande capacidade de afetar decisões públicas, ganhar eleições e implementar diretamente políticas públicas. Tudo isto é bastante vago para fundamentar, por si só, um argumento distributivo. A qualidade das instituições, sistemas eleitorais e políticas de transparência parece desempenhar um papel determinante nesse plano.

34A ideia da democracia de proprietários (também traduzida, no Brasil, como “democracia dos cidadãos-proprietários”) é inspirada no modelo proposto pelo economista britânico James Meade (2012).

35Rawls enfatiza que, para se saber se as exigências do princípio da diferença são atendidas, é preciso “uma compreensão completa sobre como funciona a economia, o que é extremamente difícil fazer com exatidão.” (RAWLS, 2001, p. 162). Há, por exemplo, pouca informação sobre a ideia de um “socialismo liberal”, tal como descrito por Rawls, em que “a direção e a gerência de uma empresa é eleita pela sua força de trabalho.” (RAWLS, 2001, p. 138). Não há notícia de que ideias como essa obtiveram alguma viabilidade, em escala mais ampla, na história econômica.

36É sugestiva, neste ponto, a indicação feita por Petroni (2017, p. 157), de que “a família de concepções de justiça compatíveis com os critérios de legitimidade democrática propostos por Rawls é bem mais restrita do que poderíamos imaginar à primeira vista.” Se o objetivo é vincular a teoria a esse ou àquele modelo econômico ou institucional (desde formas variadas de “distribuição de riqueza até o financiamento público de campanhas eleitorais), excluir teorias, sob o rótulo de ilegitimidade, torna-se uma tarefa bastante simples. Aceita esta premissa, produziríamos uma restrição, no ponto de partida da teoria, com base em elementos que deveriam ser objeto de deliberação em seu ponto de chegada (os estágios constitucional e legislativo). É como se a história e as circunstâncias da vida social tomassem dianteira sobre o terreno da deliberação filosófica, na teoria, e o jogo já estivesse, por assim dizer, jogado desde o início.

37Na divisão de trabalho sugerida pela teoria, cabe ao estágio constitucional, conforme observamos, lidar com a estrutura de direitos fundamentais. O estágio legislativo trata da ordem econômica. Exige-se aí a ponderação de uma imensa quantidade de informação econômica e abrirá um amplo espaço à controvérsia. (RAWLS, 1971, p. 199). Está muito longe da perspectiva ralwsiana imaginar que um tipo preciso e bem-estabelecido de mecanismos distributivos estejam já contidos na definição originária e bastante abstrata do princípio da diferença.

38Viés de confirmação (confirmation bias) ocorre quando alguém sustenta uma opinião política ou econômica a partir de premissas já autorreferentes, ignora o contraditório, desmerece evidências empíricas em contrário e seleciona fontes de informação de antemão favoráveis a seu ponto de vista.

39A ideia de consequências não intencionadas da ação remete ao trabalho seminal de Robert Merton, e diz respeito a falhas de raciocínio nas escolhas públicas referentes à informação deficiente, considerações de urgência, indeterminação ou à impossibilidade de prever resultados dada a dinâmica própria da ação coletiva. (MERTON, 1936).

40A filosofia política, na visão de Rawls, cumpre uma função prática. Ela busca aproximar concepções rivais, em amplo sentido, que integram o debate público e a tradição democrática. Isto envolve visões filosóficas, éticas ou religiosas. A pergunta elementar é: tendo essa perspectiva em vista, que sentido haveria em vincular a teoria a uma doutrina econômica ou modelo distributivo, em sentido restrito (que corresponde a um tipo determinado de política tributária ou de propriedade)? O único resultado possível de uma atitude como essa seria destituir a teoria como um todo de seu fim mais elementar. É esse o raciocínio que leva a uma atitude pluralista, de prudência e distanciamento em relação a modelos econômicos, sem prejuízo de que Rawls especule sobre os arranjos institucionais de sua preferência.

41Conforme defendido por Hayek no livro II de Law, legislation and liberty.

42Hayek e Rawls têm em comum o foco na estrutura básica e no sentido procedimental de uma teoria da justiça. Foi essa a razão que levou o primeiro a observar, talvez com algum exagero, que eram mais “verbais do que substanciais” as diferenças entre ambas as teorias. (HAYEK, 1976, p. xii). Hayek enfatiza o aspecto institucional na teoria rawlsiana. Definidas as regras do jogo, segundo o que prescreve a concepção de justiça (como um fim ético), os indivíduos são livres para fazer escolhas, no mercado, com base em seus planos e preferências. A “distribuição resultante, qualquer que seja, deve ser considerada justa (ou ao menos não injusta).” (HAYEK, 1976, p. 100). O elemento de divergência, por óbvio, entre as duas teorias, é a estipulação rawlsiana do padrão distributivo prescrito pelo princípio da diferença. Nada impede, não obstante, que isso possa ocorrer, ao longo do tempo, adotando-se muitos dos arranjos institucionais e mecanismos regulatórios sugeridos por Hayek.

43É conhecida a defesa de Milton Friedman relativamente a um imposto de renda negativo, com base na ideia não só de assegurar um patamar mínimo de bem-estar, para os cidadãos, como também para evitar que os recursos públicos fossem consumidos pela burocracia estatal, como usualmente ocorre na gestão de programas governamentais. (FRIEDMAN, 1962). Também Luigi Zingales defendeu a oferta de um mínimo social com base na ideia de que, além de ganhos sociais, haveria um ganho para o funcionamento da economia como um todo, uma vez que as empresas perderiam o argumento da ameaça de desemprego para pressionar o governo por mais incentivos e privilégios. (ZINGALES, 2012). No debate brasileiro, um indicador de que temas como o mínimo social garantido são em grande medida comuns a posições socialdemocratas e liberais, é o quase consenso na defesa de programas como Bolsa-Família e Benefício de Prestação Continuada (BPC) verificado no sistema político. Seria um equívoco apresentar estes programas como a tradução de um princípio caro ao liberalismo clássico, mas por certo eles expressam uma ênfase dada por pensadores representativos dessa tradição. É esse o mesmo caso, no Brasil, do Programa Universidade para Todos (ProUni), que consiste em uma variante de voucher educacional, tema dos mais caros à tradição liberal, de J. S. Mill a Milton Friedman. O ponto a enfatizar aqui é o de que políticas públicas fazem-se mais de nuanças e proposições mistas do que da aplicação de modelos uniformes de ordenamento institucional.

44Rawls explicita essa contradição quando apresenta sua crítica aos modelos de welfare state, favorecendo a democracia de proprietários, visto que essa evita a concentração dos meios de produção nas mãos de uma minoria “garantindo uma ampla disseminação da propriedade de ativos produtivos e capital humano.” (RAWLS, 2001, p. 139). Permanece a questão: faz sentido atribuir importância central à disseminação de um tipo de bem e simultaneamente rejeitar sua garantia como um fundamento da justiça e, por decorrência, como um ingrediente central do ordenamento institucional?

45Este é o ponto acentuado por Loren Lomansky quando diz que as partes, na posição original, não conhecendo os fins e modos de excelência que terão a adesão das pessoas que representam, terão boas razões “para valorizar um escopo mais abrangente de liberdade, ao invés de mais estreito.” (LOMANSKY, 2005, p. 183). Lomansky diz que a teoria e a experiência histórica demonstram que a liberdade tem melhores chances de prosperar em uma ordem que garanta a propriedade privada de bens produtivos do que em uma ordem de controle por parte de burocratas do Estado. Poder-se-ia pensar ainda em um mundo onde alguém, ao tomar a iniciativa de abrir uma empresa, só pudesse dirigir a própria empresa caso fosse eleito pelos funcionários que acabara de contratar. A ideia parece um tanto excêntrica, mas o ponto é que a teoria não parece demandar, efetivamente, o compromisso com nenhuma dessas soluções. Empreender ou não, adquirir ações no mercado, investir em um fundo imobiliário, adquirir criptomoedas, ser remunerado por palestras ou inscrever-se como motorista em um aplicativo de transporte (transformando seu próprio automóvel em um bem produtivo) são escolhas que podem compor muito do que alguém defina para si mesmo como um exercício de autoria da própria vida. Em uma medida relevante, a distinção entre aplicar recursos em um bem de uso pessoal e um bem produtivo é uma simples questão de preferência temporal. Alguns preferem consumir, outros investir e usufruir de bens pessoais mais adiante. Ou simplesmente usufruir da sensação de ser um investidor e adiar o consumo. As variações, nesse plano, são infinitas, e parece muito difícil que compromissos fortes quanto a esses modos de ser sejam assumidos pelas partes na posição original, no âmbito de uma teoria que se pretende neutra em relação às concepções de cada indivíduo sobre a vida que vale a pena viver.

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