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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.spe3 Caxias do Sul  2018  Epub 02-Set-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.dossie.10 

Artigos

A moralidade na interpretação histórica do direito: reflexões sobre o caso Michel Villey

La moralité dans l’intérpretation historique du Droit: reflexions sur le cas Michel Villey

Alfredo Storck* 

*Professor de Filosofia da UFRGS.


Resumo

Este artigo propõe retornar à interpretação histórica de Michel Villey acerca do direito que ele desenvolveu ao longo de sua carreira como filósofo e historiador do direito. Em primeiro lugar, será questão de reconstruir as linhas gerais de sua crítica à noção de direitos humanos e de mostrar como, segundo o filósofo francês, essa crítica deve ser entendida por relação ao nascimento da noção de direito subjetivo no final da Idade Média (William de Ockham) e no início do período moderno (Thomas Hobbes). Na segunda parte, será questão de apresentar as principais críticas dos historiadores do direito e da filosofia à tese de Villey, em particular as de Brian Tierney. Além da crítica histórica, também será questão de se perguntar pela correção conceitual de sua tese. O artigo tentará mostrar que a tese de Villey esta baseada em um equívoco sobre a relação entre direito e política.

Palavras-chave: Moralidade; Interpretação Histórica; Filosofia do Direito

Resumé

Cet article propose de revenir sur l’interprétation historique du droit avancée par Michel Villey au long de sa carrière de philosophe et historien du droit. Dans en premier temps, il sera question de reconstruire les lignes générales de sa critique à la notion de droits de l’homme et de montrer comment, selon le philosophe français, elle doit être comprise par rapport à la naissance de la notion de droit subjective à la fin du Moyen Âge (Guillaume d’Ockham) et au début de l’époque moderne (Thomas Hobbes). Dans en second temps, il s’agira de présenter les principales critiques adressées par les historiens du droit et de la philosophie à la thèse de Villey, notamment celles de Brian Tierney. Outre les critiques historiques, il sera également question de se demander sur la correction conceptuelle de cette thèse. L’article essayera de montrer que la thèse de Villey repose sur une conception erronée des rapports entre droit et politique.

Mots-clès: Moralité; Intérpretation Historique; Philosophie du Droit

1 Introdução

Minha proposta aqui não será a de tratar diretamente do caso concreto sobre como se estruturam as relações entre Moral, Direito e Política no atual cenário nacional.1 Procurarei antes abordar essas relações de um modo mais abstrato na esperança, talvez remota, de iluminar de um modo lateral o problema.

O que vou tentar fazer aqui, e adianto que o farei de um modo um tanto rápido e extremante resumido para poder ficar no tempo a nós estabelecido, será indicar brevemente as linhas gerais de uma tese que possuiu um certo apelo na França dos meados do século passado e que, para minha surpresa, continua a ser razoavelmente difundida no Brasil atual por meio de manuais de introdução à filosofia do direito. Vou chamar a atenção para alguns elementos dessa tese, não de todos, mas apenas daqueles que considero suficientes para torná-la reconhecível e que me permitirão apontar, ainda que parcialmente, minhas distâncias para com ela.

2 A tese interpretativa sobre a origem dos direitos humanos

Adotarei como fio condutor um problema específico o qual, julgo, está na raiz dessa tese, a saber: quais os pressupostos morais que estão na base do discurso acerca de direitos. Dito de outro modo, haveria ou não uma concepção acerca da natureza humana ou de agente moral que forneceria sustentabilidade ao discurso jurídico sobre direitos? Ou ainda: ao empregarmos o vocabulário jurídico de direitos (uso de direitos ou reivindicações de direitos), ao valermo-nos dessa linguagem, estaríamos ou não comprometidos com uma certa noção de sujeito moral sem a qual a própria linguagem dos direitos não faria sentido?

Não deixa de ser surpreendente que a tese que vou abordar (e que é uma dentre outras respostas afirmativas à questão) articule-se precisamente como uma crítica bastante contundente à própria noção de direitos. Crítica da noção de direito subjetivo, em um primeiro momento, e, em um segundo, das noções de direitos fundamentais e direitos humanos.

Em outras palavras, não somente haveria uma certa concepção de agente moral na base do discurso sobre direitos, mas é precisamente porque existe tal concepção que o discurso sobre direitos estaria equivocado e, portanto, deveria ser abandonado. Certamente radical, a tese possui diversas versões e formulações. Cito uma dentre outras:

O surgimento dos direitos do homem testemunha a decomposição do conceito de direito. Seu advento foi o correlato do eclipse ou da perversão, na filosofia moderna individualista, da ideia de justiça e de seus procedimentos, a jurisprudência. Essa tinha por finalidade a medida das relações justas. Esta arte autônoma desempenhava uma função própria e insubstituível. As filosofias da Europa moderna a sucatearam. A preocupação com uma justa repartição desapareceu de suas obras [i. e., das obras dos filósofos]. Esses não-juristas que foram os inventores dos direitos do homem sacrificaram para eles a justiça; sacrificaram o direito.

Assim, os filósofos modernos dotaram-nos de uma linguagem cujo resultado mais claro é a imersão na neblina. Uma linguagem indefinida, perigosamente imprecisa, geradora de ilusões e de falsas reivindicações impossíveis de serem satisfeitas. Se seu triunfo é total no século XX, isso se deve à decadência da cultura ser o reflexo do progresso técnico. (VILLEY, 1983, p. 154).

Sublinho alguns aspectos dessa declaração.

Primeiramente, a crítica do discurso sobre direitos como um discurso irrealista e portador de ilusões, uma vez que proclama o indivíduo como portador de direitos, ao mesmo tempo que acaba por reconhecer que esses direitos não são e nem mesmo podem ser totalmente alcançados, pelo menos no modo geral e irrestrito como são prometidos. Seria simplesmente irreal esperar que a totalidade dos direitos seja efetivada (VILLEY, 1983, p. 11). Consequência disso é o discurso acerca dos direitos necessitar refugiar-se na generalidade e na imprecisão. Permite-se que proliferem direitos nas mais variadas áreas mesmo que esses acabem por revelar-se conflituosos e mutualmente excludentes. Como diz o autor em outra passagem: “É prazeroso ver-se prometido o infinito, mas depois não se queixe se a promessa não for mantida!” (VILLEY, 1983, p. 12).

O segundo ponto envolvido nessa tese é a historicidade do discurso acerca dos direitos, ou seja, o reconhecimento de que esse discurso é um fenômeno contingente e historicamente datado, tratando-se de tarefa precípua do historiador do direito2 e da filosofia a identificação desse acontecimento histórico, bem como a elucidação das condições possibilitadoras de seu aparecimento. Mais ainda, tratar-se-ia de explicar o que levou o século XX a “precisar de um sonho”.3 (VILLEY, 1983, p. 12) encarnado na forma de direitos que se transfiguram em direitos humanos.

Identificada a tese e seus objetivos, vejamos agora como ela está estruturada. Chamo a atenção para dois momentos. Em primeiro lugar, encontramos a caracterização de uma etapa na qual não faria sentido falar- se de direitos, momento esse que corresponderia historicamente ao período de desenvolvimento do Direito Romano clássico e que seria, ao menos aos olhos de Villey, de inspiração notadamente aristotélica. Dito de maneira sumamente resumida, a filosofia de Aristóteles teria, segundo o historiador francês, lançado as bases da jurisprudência romana por intermédio de uma concepção de justiça dita principalmente justiça particular, ou seja, aquela que é primeiramente a virtude dos juízes. Auxiliados pela lei, os magistrados teriam por incumbência procurar determinar a coisa justa (res iusta) ou a correta divisão ou distribuição de encargos e benefícios entre as pessoas de uma determinada associação política. Nas palavras de Villey:

segundo a análise de Aristóteles, o direito é descoberto pela observação da realidade social e a confrontação de pontos de vista diversos acerca dessa realidade, pois o direito, objeto da justiça no sentido particular da palavra, é precisamente o meio termo, a boa proporção das coisas distribuídas entre os membros de um grupo político. (VILLEY, 1983, p. 54).

As bases da jurisprudência romana podem bem estar em Aristóteles, mas, certamente, esse não teria sido o seu ápice. O movimento histórico prosseguiria e alcançaria sua culminância no século XIII na obra de Tomás de Aquino. “Jamais a cultura dos teólogos atingiu um tal ápice como no tempo de Santo Tomás. Certamente não no século XX”, sustenta o autor (VILLEY, 1983, p. 109) ao mostrar uma das facetas marcantes de seu historicismo, o de um “católico conservador que encarna uma velha tradição de hostilidade da Igreja romana face ao individualismo moderno”. (PIRON, 2008). Ainda segundo Villey, Tomás de Aquino teria, em sua Suma de Teologia, retomado Aristóteles, não no Tratado das Leis (como faria talvez uma mente moderna que confundiria as meras regras da ação humana com o justo, objeto próprio da justiça), mas no Tratado da Justiça. Tomás defenderia que “o ‘objeto da justiça’ é uma ‘coisa’, uma realidade, a realidade justa (res justa)”, aquela realidade inerente ao corpo político e que expressa “a justa relação dos bens e coisas repartidas entre os cidadãos”. (VILLEY, 1982, p. 124). O segundo momento histórico seria o da ruína, ou seja, o do surgimento das filosofias que reagiram ao pensamento de Tomás de Aquino, basicamente Duns Scotus, mas sobretudo o nominalismo de Guilherme de Ockham, o qual teria reduzido toda a realidade a substâncias individuais e terminaria por recusar realidade a qualquer ordem ou relação entre indivíduos, inviabilizando assim o significado do direito como a coisa justa ou como a justa distribuição. Se não há ordem a ser reconhecida, não haveria como determinar o que é justo. Restaria tão somente o caminho de pensar o direito como permissão e poder para agir, pois lá onde a lei divina silencia, deixaria Deus ao homem a liberdade originária. Liberdade e poder para agir, eis o real legado do nominalismo. Eis as raízes do individualismo e do subjetivismo que caracterizam a modernidade. Abrir- se-ia também assim o caminho histórico que, no século XVII, conduziria ao aparecimento das doutrinas ditas positivistas do direito cujo expoente primeiro seria, sempre na perspectiva do pensador francês, Thomas Hobbes. E isso por ser o inglês quem por primeiro expressamente identificou na vontade livre e no poder dos indivíduos a origem derradeira dos direitos humanos. Ao passo que os juristas romanos e Tomás de Aquino reconheciam no direito a repartição da parte justa que deveria caber a cada cidadão, e isso em relação aos demais membros de sua comunidade política, os individualistas modernos, e Hobbes antes de todos, consideravam os seres humanos de forma isolada.

O Robinson sozinho, em sua ilha, é o sujeito de direitos; o homem do ‘estado de natureza’ de Hobbes já possui um direito subjetivo. O direito está apenas vinculado ao seu sujeito. Não é mais um ter, mas uma qualidade inerente ao indivíduo. [...] O jus não evoca mais o dever que nos impõe a lei moral, mas, ao contrário, uma permissão que nos concede a lei moral - uma licentia - ou uma liberdade - libertas. A ciência abstrata dos modernos isola no direito a vantagem que ele constituirá para o indivíduo. (VILLEY, 1982, p. 146-147).

Identificada a mudança de concepção sobre o direito, passemos agora a suas causas. Vinda da pena de Villey, essas não são apresentadas de forma menos surpreendente. Eis como ele as encontra primeiramente em Hobbes para, posteriormente, generalizá-la:

Sobre direito civil - direito romano - sua informação é medíocre. Tive o cuidado de verificar seja no Leviathan (a análise dada do contrato, a propósito do contrato social possui algo de direito canônico, da moral cristã-estoica, da ideia bíblica de Aliança, convenant, mas é completamente estranha à tradição jurídica), seja na obra póstuma Dialogue between a philosopher and a student of the Common laws of England.

Nada é mais favorável à criação de uma linguagem jurídica nova que essa esplêndida ignorância do Corpus Iuris Civilis. Já o dissemos a propósito de Guilherme de Ockham e a observação vale também para a maior parte dos autores da Escola moderna do direito natural, frequentemente mais professores de moral, de philosophia moralis, de teologia que juristas de formação. Os “direitos do homem” são obra de não-juristas. (VILLEY, 1983, p. 137).

Há um sentido nitidamente retórico nessa afirmação de ignorância. O que ignorariam os filósofos que, na idade moderna, buscaram fundar o direito no indivíduo seria precisamente a jurisprudência, aquela arte pela qual os juízes romanos identificavam o devido a cada um em uma certa distribuição. A carência de expertise jurídica esvaziaria, portanto, o direito de conteúdo ao desconsiderar a ordem e lugar de cada um no agrupamento político.

Deixando de lado os demais detalhes dessa reconstrução histórica, o que chama a atenção é o modo singular como essa tese tem sido recepcionada. Mesmo autores simpáticos ao discurso sobre direitos e que não necessariamente compartilham das críticas endereçadas por Villey acabam por aceitar a existência dos dois momentos históricos sucessivos. Reconhecem em Tomás de Aquino a defesa de uma concepção de direito como significando a coisa justa e identificam no abandono dessa posição (ainda que não necessariamente por Ockham ou Hobbes) as condições de surgimento da noção de direito em sentido subjetivo. A seguinte passagem de John Finnis é eloquente nesse sentido:

Tomás introduz seu elaborado estudo da justiça com uma análise do jus no início do qual ele fornece uma lista dos significados de “jus”. O significado primário, afirma, é “a coisa justa ela mesma” (e por “coisa”, como o contexto deixa claro, entende atos, objetos e estados de coisas considerados como os temas das relações de justiça). Poder-se-ia dizer que, para Tomás, “jus” significa primariamente “o justo” ou “o que é justo”; [...] Ele passa então a listar os significados secundário e derivados de “jus” (relações de justiça): “a arte pela qual alguém conhece ou determina o que é justo” (e os princípios e regras da sua arte, acrescenta, são o direito), “o local no qual o que é justo é reconhecido” (i.e., em sistemas jurídicos modernos, a corte) e finalmente “o reconhecimento (mesmo se injusto) do juiz como aquele cujo papel é fazer a justiça. Se agora pularmos uns 340 anos até o tratado da Lei escrito pelo jesuíta espanhol Francisco Suarez (c.1610), encontraremos outra análise do significado de “jus”. Aqui o significado “verdadeiro, próprio e estrito” de “jus” é dito ser: “um tipo de poder moral [facultas] que todo homem possui seja sobre sua propriedade ou com respeito ao que lhe é devido. (FINNIS, 1980, p. 206-207).

A citação de Finnis acima ilustra como a tese historiográfica de Villey, base para a sua crítica aos direitos humanos, foi capaz de sobreviver de forma independente às consequências tiradas pelo próprio autor. Parece ter contribuído para isso o fato de Villey não ter sempre apresentado sua tese historiográfica como uma crítica aos direitos humanos, mas principalmente como endereçada ao individualismo e subjetivismo modernos (VILLEY, 1962). Ainda que os dois aspectos fossem inseparáveis aos olhos de seu autor, pensadores ligados a outras correntes e formas de cristianismo buscaram conservar o aspecto crítico à modernidade e, ao mesmo tempo, apropriar- se do discurso sobre os direitos humanos, propondo-lhe uma fundamentação teológica baseada na noção cristã de pessoa.4

Independentemente das vicissitudes de sua recepção, importa agora perguntar se a tese de Villey está certa ou equivocada, uma vez que, como anunciei no início dessa comunicação, ela continua a ser amplamente defendida e vinculada tanto na França como no Brasil. No pouco tempo que resta, gostaria de apontar quais seriam, a meu juízo, os dois tipos de equívocos envolvidos na formulação proposta por Villey.

Em primeiro lugar, a tese equivoca-se do ponto de vista histórico ao identificar dois momentos distintos e sucessivos de compreensão do que é o direito, atribuindo a Tomás de Aquino o lugar singular que a tese lhe confere. Desde o final da década de 80 do século passado, historiadores têm buscado refutar em diversos níveis a tese de Villey. Um dos primeiros, senão o primeiro, a fazer isso de modo mais sistemático e influente foi certamente Brian Tierney (TIERNEY, 1997). O autor sustentou que, desde o século XII no Ocidente latino cristão (portanto, antes mesmo de Tomás de Aquino ter escrito sua Suma de Teologia), já havia um uso articulado do discurso sobre direitos no âmbito da canonística medieval. Tomando explicitamente a obra de Villey como ponto de partida, Tierney demonstrou que, quando Guilherme de Ockham escreve, as alegadas novas definições que o frade franciscano introduz no século XIV já eram conhecidas. Tratava- se, na verdade, daquelas mesmas que os canonistas empregavam já no século XII. Tierney reivindicou igualmente que as definições dos medievais não diferem em muito das que contemporaneamente empregamos quando atribuímos direitos. Obviamente, e esse foi um segundo aspecto marcante de sua interpretação, para estar apto a comparar períodos históricos tão diversos, Tierney necessitava de uma definição precisa do que são direitos e a encontrou na obra de Wesley Hohfeld. (HOHFELD, 1920). Ou seja, Tierney adotou como ponto de partida algo que os próprios autores contemporâneos admitem, a saber, que as concepções jurídicas fundamentais contidas no discurso sobre direitos são, ao menos parcialmente, aquelas identificadas por Hohfeld. Villey admite igualmente essas relações, mas nega que sejam empregadas por juristas antes das mudanças introduzidas pelo nominalismo. Todavia, como Tierney argumentou, os canonistas as reconheciam já, no mínimo, desde o século XII ao mesmo tempo que empregavam a definição de direito transmitida pelo Digesto como sendo a coisa justa. Todavia, não se trata, para Tierney, apenas de identificar a presença de um certo vocabulário dos direitos empregado de forma aleatória no período medieval, mas antes de defender que, no âmbito do direito canônico medieval, ocorria um uso coerente e articulado desses conceitos.

Caminho bastante próximo foi trilhado por Fred Miller Jr., mas tendo por alvo principal a obra de Alasdair MacIntyre, ainda que Villey também fosse diretamente visado. Adotando igualmente como ponto de partida a definição de direitos de Hohfeld, sustenta que “Aristóteles e seus contemporâneos empregam locuções que se alinham com as diferentes concepções de direitos distinguidas por Hohfeld” (MILLER JÚNIOR, 1995, p. 106) e conclui ser “legítimo falar do ‘conceito de direitos’ de Aristóteles” (MILLER JÚNIOR, 1995, p. 106). A crítica de Miller pode ser vista como mais radical que a de Tierney justamente por remontar as origens do debate à filosofia grega e, por via de consequência, permitir que sejam introduzidos temas de filosofia aristotélica no debate contemporâneo sobre direitos (movimento que, diga-se de passagem, em nada agradaria a Villey). Miller defendeu essa mesma interpretação em outras oportunidades e retomando basicamente os mesmos argumentos (MILLER JÚNIOR, 2009 e 2014). Ainda assim, sua interpretação não tem sido bem recebida entre os especialistas que têm preferido seguir as pistas deixadas pelos estudos de Tierney (MÄKINEN, 2014). A tendência tem sido antes a de buscar nos elementos estoicos e na sua interpretação em ambientes marcados pelo cristianismo a fonte das teorias acerca dos direitos.

Deixando agora de lado a pergunta acerca da correção histórica da tese de Villey, passemos a considerar, ainda que brevemente, sua justeza conceitual. Com efeito, é importante notar que a tese de Villey erra conceitualmente. A demonstração que gostaríamos de propor pode ser esboçada do seguinte modo. Partamos do que poderíamos designar como a tese da independência das noções de direito e normatividade e aceitemos não fazer parte da noção de um ordenamento normativo que ele empregue o vocabulário dos direitos. Um sistema normativo pode distribuir encargos e mesmo benefícios sem que esses sejam vistos como constituindo direitos. Note-se que a interpretação de Villey deve necessariamente reconhecer essa independência para que sua própria tese faça sentido, valendo o mesmo para os historiadores que, como Tierney, têm se contraposto à obra do pensador francês. Perguntemos, em seguida, o que ocorre quando da introdução, em um sistema normativo, do vocabulário sobre direitos. Novamente, Villey deve admitir que, com a introdução de direitos, abre-se o espaço para o emprego das noções de poder e liberdade como características do sujeito de direitos. Poderes e liberdades jurídicas são entendidos como explicitando as capacidades dos sujeitos de direito. Todavia, e esse é o ponto central do argumento, introduzir a noção de direitos não equivale a comprometer-se com uma concepção forte de pessoa moral. As capacidades jurídicas atribuídas aos sujeitos de direitos podem revelar, e normalmente revelam, quais são os valores e características morais que o direito busca garantir ou promover. Entretanto, o vocabulário dos direitos não determina o tipo de pessoa moral que vai ser reconhecido ou promovido. Apenas, por assim dizer, abra-se o espaço para a introdução de uma dentre outras concepções de pessoa moral, sendo que o exato modo como esse espaço vai ser preenchido não é determinado por ele próprio. Não é o discurso jurídico que impõe uma certa noção de agente, mas é uma concepção moral ou política de agente que vai ser utilizada para preencher o espaço aberto pela introdução do vocabulário de direitos. Não é o conceito de direito que traz consigo uma concepção de pessoa moral, mas é uma concepção de pessoa construída em termos políticos ou morais que conferirá conteúdo ao ordenamento jurídico. Dito em termos mais gerais, as relações jurídicas que podem ser estabelecidas em conformidade com o vocabulário dos direitos são de distintas ordens. Hohfeld as expressa nas formas de conceitos opostos e correlatos. São correlatos o direito como pretensão e o dever; a liberdade (privilégio) e a ausência de pretensão; o poder (no sentido de capacidade de modificar voluntariamente uma relação jurídica) e a sujeição; a imunidade (ou ausência de sujeição) e a incompetência. Nada disso impõe, entretanto, e por si só, que os portadores de direitos estejam normativamente autorizados a um amplo uso de suas capacidades morais. Dito de forma mais específica, o estado democrático de direito não é subdeterminado pelo conceito de direito, pois não é o formal que determinará os conteúdos do estado democrático. Se direitos podem ser amplamente reivindicados e usufruídos em um estado democrático de direito, isso se deve ao modo como politicamente são determinados os conteúdos dos direitos e não unicamente pelas estruturas formais de oposições ou correlações que vigoram entre essas noções.

Referências

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1O presente artigo consiste em versão levemente revisada do texto apresentado na mesa: Moral, Direito e Política do Colóquio Ética e Democracia: Ao ensejo da grande crise moral e política por que passa o Brasil, evento realizado entre os dias 10 e 11 de agosto de 2018 junto ao curso de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Caxias do Sul. Optei por preservar na revisão o tom coloquial próprio da apresentação. Agradecimentos especiais ao professor João Carlos Brum Torres pelo convite para participar do evento bem como pela excelente organização do mesmo.

2Sobre o ponto de partida histórico de Villey, veja-se o prefácio dos editores da nova coleção de ensaios do autor (Villey, 2014, p. 7).

3Expressão de um colega de Villey transcrita pelo próprio autor no epílogo da obra citada.

4Para um panorama geral, veja-se a coletânea: (WITTE JR e ALEXANDER, 2010). Sobre o debate em torno da noção de lei natural e direitos na perspectiva de MacIntyre, outro pensador importante neste contexto, veja-se: (CUNNINGHAM, 2009).

O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Brasil (306662/2013-2).

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