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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.spe3 Caxias do Sul  2018  Epub 02-Set-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.dossie.11 

Artigos

Cooperação, promessa e obrigação na teoria do contrato de Thomas Hobbes#

Coopération, promesse et obligation dans la théorie du contrat chez Thomas Hobbes

Wladimir Barreto Lisboa* 

*Doutor em Filosofia, professor na Ufrgs e pesquisador do CNPq.


Resumo

Ao apresentar a estratégia dos agentes racionais na situação do estado de natureza em Hobbes como de não coordenação, tem-se como resultado uma situação em que a melhor escolha individual alcança o pior resultado em termos coletivos. Hampton pretende mostrar que a melhor estratégia para resolver essa aporia consiste em eliminar, na argumentação de Hobbes, o uso de conceitos jurídicos, como o de obrigação ou contrato. Desse modo, é possível resgatar a coerência argumentativa hobbesiana a partir simplesmente da ideia de um acordo autointeressado, isto é, a partir da situação em que os benefícios da barganha mostram-se suficientes para as partes realizarem um acordo. O presente texto procura mostrar a incoerência de tal argumentação. Eliminar a noção de obrigação que sustenta as promessas presentes nos pactos inviabiliza, em Hobbes, qualquer possibilidade de equilíbrio e convergência das ações humanas.

Palavras-chave: Escolha Racional; Promessa; Obrigação; Teoria do Contrato

Résumé

En présentant la stratégie des agents rationnels dans l’état de nature chez Hobbes à partir de la non-coordination, on aboutit à une situation où le meilleur choix individuel réalise le pire résultat en termes collectifs. Hampton a l’intention de montrer que la meilleure stratégie pour résoudre cette aporie est d’éliminer, dans l’argument de Hobbes, l’utilisation de concepts juridiques, tels que l’obligation ou le contrat. De cette manière, il est possible de sauver la cohérence argumentative hobbesienne à partir de l’idée d’un accord intéressé, c’est-à-dire de la situation où les avantages des échanges sont suffisants pour que les parties parviennent à un accord. Le présent texte cherche à montrer l’incohérence d’un tel argument. Éliminer la notion d’obligation qui sous-tend les promesses présentes dans les conventions rend impossible tout équilibre et toute convergence des actions humaines dans la condition naturelle.

Mots-clés: Choix Rationnel; Promesse; Obligation; Théorie du Contrat

No parágrafo 42 da Theory of justice, Rawls (1999) caracteriza o estado de natureza em Hobbes como um caso geral do dilema do prisioneiro. O isolamento imposto por tal estado implicaria decisões individuais piores para todos, ainda que racionais. Há, aqui, uma estratégia dominante para um indivíduo racional que, juntamente com as estratégias dominantes dos demais indivíduos, produz um resultado inferior para ambos. Mas se tal é o resultado, então o auto interesse racional conduz a uma situação em que todos recebem o pior resultado. Entretanto, se a combinação de tais escolhas consiste em um equilíbrio em que os indivíduos preferem um certo curso de ação sem considerar as decisões dos demais, então tem-se que tal equilíbrio é obtido não pela coordenação dos indivíduos, mas pela não coordenação:

Nessas observações, eu distingui problemas postos pelo isolamento e pela confiança. O primeiro tipo de problema ocorre quando o resultado das decisões tomadas por muitos indivíduos isoladamente é pior para todos do que outro curso de ação - mesmo se, tomando como dada a conduta dos outros, a decisão de cada pessoa é perfeitamente racional. Tal é simplesmente o caso geral do ‘dilema do prisioneiro’ do qual o ‘estado de natureza’ de Hobbes é o exemplo clássico.1 O problema posto pelo isolamento consiste em identificar essas situações e em verificar qual é o engajamento coletivo a ser tomado que seria melhor do ponto de vista de todos. (Rawls, 1999, p. 237-238).

Mas se o estado de natureza é estruturado a partir do dilema do prisioneiro, então os indivíduos racionais receberão, a partir da melhor escolha a ser tomada em tal situação, o pior resultado do que em outras condições. A questão posta consiste em saber de que modo indivíduos racionais podem abandonar tal estado, isso é, sob que condições é possível estabelecer uma base racional para um acordo que estabeleça uma convergência das expectativas e ações dos agentes.

Esta é a pergunta que se põe Hampton (1986, cap. 6), ao investigar o modo pelo qual indivíduos que não podem racionalmente cooperar no estado de natureza são capazes de obter cooperação para a instituição de uma soberania. Isto é, por qual gênero de ações indivíduos são capazes de limitar seu direito natural a todas as coisas (1986, p. 132). Se não é possível manter a maioria dos contratos no estado de natureza porque a confiança mútua não pode ser alcançada, então por que confiaríamos uns nos outros no cumprimento do pacto que institui a República? Assim, se os primeiros tipos de contratos falham, por que não deveria também falhar, pelas mesmas razões, o segundo?

Para clarificar esse ponto, Hampton reivindica o uso de certos conceitos e técnicas da moderna teoria dos jogos. Isso, afirma, não constitui um anacronismo, pois o que interessa é salvar a consistência do argumento.

Essas críticas acreditam que é logicamente confuso utilizar conceitos jurídicos para expor o critério da legalidade. Expondo o modo pelo qual Hobbes pode evitar o uso desse conceito jurídico para expor a criação do Estado, indicarei o modo através do qual todas as teorias do contrato social podem ser interpretadas de modo a que essa ‘confusão lógica’ seja evitada. (Hampton, 1986, p. 137, grifo nosso).

A solução ao problema da instituição do poder soberano será apresentada, então, de modo a se evitar a utilização de conceitos jurídicos, ou seja, não pela via do contrato, mas através de um “acordo autointeressado”. Esse acordo, denominado por Lewis (2002, p. 24) de “equilíbrio de coordenação”, é definido como uma situação na qual a combinação da ação dos players é tal que ninguém estará melhor se qualquer player individual atuar diferentemente. Desse modo, prossegue Hampton:

Denominarei tais acordos que produzem uma convenção de acordo “autointeressados” ou acordos AI. Esse nome identifica uma característica centralmente importante que os distingue dos contratos: nos acordos AI, o cálculo racional autointeressado, mais do que o sentido de “dever” oriundo das promessas ou o medo de um poder coercitivo, é o motivo para a ação de cada um na direção do ato acerca do qual concordaram. (1986, p. 139).

O ponto, aqui, para Hampton, consiste em apontar, seguindo Lewis (2002, p. 34), que a simples troca de declarações do atual interesse é já suficiente para realizar um acordo autointeressado, uma vez que, em tal acordo, será do interesse de cada um proceder exatamente segundo o modo da expectativa gerada nos demais. Tal ação será melhor para cada um se os demais agirem segundo tais expectativas. A diferença, então, entre os acordos autointeressados e o contrato consiste em que os benefícios da barganha são suficientes para motivar as partes a realizarem a ação acordada.

A promessa, nessa suposição, seria desnecessária, uma vez que é acrescentada à declaração individual da vontade, sendo o apelo ao autointeresse suficiente para manifestar o acordo. Assim, conclui Lewis: “Temos uma convenção apenas após a força de nossas promessas haver-se eclipsado ao ponto em que é verdadeiro e conhecido pelas partes que cada uma se conformará a uma regularidade alternativa R’ ao invés de R se as demais também o fizerem”. (2002, p. 147).

A promessa, entendida como um ato de auto comprometimento, é, desse modo, desnecessária. O esforço em eliminar o vocabulário jurídico da promessa destina-se a exibir, vimos, por que é racional não apenas realizar, mas manter nossos acordos autointeressados. E Hobbes? O anacronismo proposital justificado, segundo Hampton, em razão de conferir coerência aos argumentos hobbesianos, cumpre ele seu propósito? Para responder negativamente a essa pergunta, coloquemos, primeiramente, o horizonte a partir do qual se coloca a problemática dos direitos e do contrato em Thomas Hobbes. A teoria do comando talvez seja um dos pontos centrais a partir do qual podemos começar a resposta. E ele é central por uma razão negativa e outra positiva. A razão negativa consiste em ser um lugar privilegiado a partir do qual costuma-se caracterizar em Hobbes uma determinada teoria descritiva do comando que o identifica a partir das práticas daqueles cujas ordens são, mediante ameaça, habitualmente obedecidas e que, por sua vez, não obedecem a mais ninguém. Tal é o soberano, tais são seus comandos. Essa descrição equivocada da teoria do comando, enquanto atribuída a Hobbes, permite-nos, e esta é a razão positiva, a partir de sua correta reconstrução, identificar a origem do vocabulário jurídico em sua teoria política e, o que é mais importante aqui, exibir de que modo ele não pode prescindir da noção de promessa e de obrigação que estão na base de sua teoria da autorização e, portanto, no fundamento da própria noção de soberania.

A seguir tal interpretação equivocada, parece que aos cidadãos restaria apenas secundar para sempre os comandos de uma autoridade absoluta. O ato irrevogável de instituição do poder político, ao assegurar ao soberano o monopólio da criação da lei civil, deixaria aos indivíduos assim alienados apenas a tarefa de obedecer pelo medo da espada. Todavia, Hobbes não define a lei civil a partir da ameaça. Tal lei não se constitui enquanto um comando endereçado por alguém a não importa quem, mas: “[é] o fato apenas daquele cujo comando dirige-se a um homem previamente obrigado a lhe obedecer. E não há mais nada na expressão da lei civil senão a menção da pessoa que ordena, que é a persona civitatis, a pessoa da República”. (HOBBES, 2012, p. 414).

Fica claro, desse modo, que a força dos comandos da República repousa sobre uma obrigação prévia que deve sua origem justamente ao momento de constituição dessa persona civitatis.2 Ou seja, a obrigação precede o comando. Mas qual é então a sua origem? Deve haver, segundo Hobbes, uma outorga autorizadora prévia que vincula ao comando, que obriga diante de uma autoridade que comanda. Sem identificar a origem dessa noção de obrigação permanece infundada, segundo Hobbes, a própria República. Para esclarecermos esse ponto e mostrarmos a insuficiência da teoria que procura justificar a autorização enquanto apenas fundada no autointeresse, precisamos retomar a teoria do contrato e da promessa em Hobbes.

Um contrato, diz Hobbes no De Cive (2010, I, II, 9), é uma transferência mútua de direitos a partir de, acrescenta ele nos Elements of law (1969, I, XV, 8), uma consideração de um benefício recíproco. Essa transferência mútua diferencia-se, portanto, da simples renúncia de direito, na qual o destinatário permanece indefinido. A renúncia ou a transferência são feitas por palavras ou ações (frequentemente por ambas, diz Hobbes). Por tais palavras e ações, os homens vinculam-se. Todavia, esse vínculo não retira sua força de tais atos. É o que ocorre, por exemplo, no dom. Por quê? O dom é a promessa de um ato por vir e, portanto, sempre retratável. Quando alguém diz, por exemplo, “amanhã darei”, sua vontade não é a do tempo presente e, assim, está sujeita, amanhã, a uma retratação. Não se transfere, no tempo da promessa, qualquer direito. No Leviatã latino, Hobbes é mais claro nesse ponto: “Se elas [as palavras] dizem respeito ao futuro (eu darei, eu concederei), elas contêm, sem dúvida, a promessa de uma transferência de um direito, mas, no momento, elas não transferem absolutamente nada.” (HOBBES, 2002, p. 205).

Palavras do tempo por vir, desse modo, são insuficientes para contar como sendo a vontade daquele que fala. Meras palavras, quando estão no tempo futuro, não transferem direitos e, consequentemente, não criam uma obrigação. A exceção ocorre quando aquele que promete algo sob a condição de um propósito a ser alcançado por outrem permite àquele a quem se prometeu que dê início à sua busca. É o caso, por exemplo, da promessa de uma recompensa ao ganhador de uma competição. Se não quiséssemos nos obrigar, não teríamos organizado o evento da corrida: “com efeito, se ele não quisesse que suas palavras fossem assim compreendidas, não deveria ele ter deixado partir os competidores”. (HOBBES, 2002, p. 206).

Outro caso de palavras ou atos que não vinculam mediante uma obrigação é o da promessa mútua em que nenhuma das partes se executa no tempo presente, pois uma confia na outra, diferindo, ambas, a execução a um tempo futuro. Nesse caso, afirma Hobbes, na hipótese de que não haja um árbitro que as submeta, isso é, na condição natural, tal contrato é nulo, pois não é racional que se suponha por parte daquele que primeiro se executa que, na ausência de um poder coercitivo, a ambição, a avareza e a cólera, em uma condição de igualdade em que todos são juízes da correção de seus próprios temores, não sejam tomados como a medida da ação a ser presumida. Consequentemente, afirma Hobbes, “aquele que primeiro se executa entrega-se ao inimigo, contrariamente ao direito, que ele não pode jamais abandonar, de defender sua vida e seus meios de vida.” (HOBBES, 2002, p. 210). Ou, dito de outro modo, dado que o objeto que todo homem persegue em todas suas ações voluntárias é seu próprio bem (HOBBES, 2002, p. 230), e o direito natural colocando como estratégia ineliminável a busca pela ação que julgamos a mais à consecução desse fim, então estará sempre presente a difusão dessa tarefa a todas as suas ações voluntárias. Não se pode compreender, nessas circunstâncias, senão por ignorância, que a antecipação de uma renúncia diante da renúncia futura incerta de terceiros possa ter sido objeto de sua deliberação e, consequentemente, que tal contrato seja válido.

Mas, se as palavras de futuro, nessas circunstâncias, inviabilizam a cooperação a ser obtida pela renúncia recíproca de direitos, como, então, viabilizar a possibilidade de que se possa tomar a intenção das partes, suas promessas, como expressando uma vontade imutável de realizá-la? Tal propósito, vimos, não pode ser extraído das próprias palavras. Mas como, então, efetivá-lo? Que outros sinais para além de meras palavras são necessários, na condição natural, para que se interprete a intenção do agente? É na definição de pacto que Hobbes avança sua resposta:

Por outro lado, um dos contratantes pode entregar a coisa ou executar o contrato antes da outra. Dizemos então dessa segunda parte que nós lhe concedemos crédito e que nela temos (fides); sua promessa é nomeada pacto, e não o executar é violar sua fé (fidei). (HOBBES, 2002, p. 205).

Mas por que, poder-se-ia perguntar, aquele que promete possui a obrigação de uma prestação? Primeiramente, os pactos ocorrem mediante uma deliberação que se encerra em um ato de vontade daqueles que neles se engajam (HOBBES, 2010a, II, 14), a vontade sendo, então, o último ato daquele que delibera. Suas ações futuras, no que diz respeito à sua vontade já expressa, não mais permanecem sendo um objeto de deliberação. E qual é o objeto dessa vontade? Sua vontade é expressa pela fruição do benefício da transferência do direito. É isso que afirma Hobbes na seguinte passagem:

Todo contrato é uma transferência mútua, uma troca de direitos; e essa é a razão pela qual aquele que apenas fornece a promessa deve, pelo fato de que ele já recebeu a vantagem que motiva sua promessa, ser compreendido como se tivesse a intenção de que seu direito passe a outrem: com efeito, se ele não tivesse consentido a que suas palavras fossem compreendidas desse modo, o outro não teria se executado primeiro. (HOBBES, 2002, p. 206, grifo nosso).

Portanto, tendo usufruído do benefício de sua promessa, ele se obriga de modo que não mais está no escopo de sua ação futura obrigar-se ou não, cumprir ou não cumprir. O usufruto da obrigação expressa uma ação voluntária presente que determina a irrevogabilidade da promessa. Ou, como diz Hobbes no capítulo XI do Leviatã, “o benefício obriga, e a obrigação é uma escravidão”.

Fica claro, então, a partir dos argumentos hobbesianos sumarizados acima, que a confiança mútua, na condição natural, é insuficiente para assegurar o cumprimento de promessas. Na condição natural humana, isso é, na ausência de poder político, não há e não é racional supor haver um equilíbrio e convergência das intenções humanas. Nessa condição de incerteza, a estratégia a ser suposta pelos demais repousa sempre na opacidade de atos e palavras, não restanto, portanto, senão a antecipação. Sem as noções de obrigação e de contrato, a cooperação sustentada pelas promessas não pode senão fracassar diante das externalidades hiperbólicas pelas quais são interpretadas as ações e intenções humanas.

Referências

HAMPTON, Jean. Hobbes and the social contract tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. [ Links ]

HOBBES, Thomas. Leviathan, or The Matter, Forme, & Power of a Common- Wealth Ecclesiasticall and Civill. (Ed. by Noel Malcolm). Oxford: Oxford University Press, 2002. v. 2. [ Links ]

_____. [De Cive] Éléments Philosophiques Traitant du Citoyen. Trad. Philippe Crignon, Paris: ed. Flammmarion, 2010. [ Links ]

_____. The Elements of Law Natural and Politic. Londres: Frank Cass, 1969. [ Links ]

LEWIS, David. Convention. Oxford: Blackwell Publishers, 2002. [ Links ]

LISBOA, W. L. A representação política e seus intérpretes: acerca da recepção de Thomas Hobbes. Revista Dois Pontos, v. 13, n. 12, p. 99-107, 2016. [ Links ]

RAWLS, John. A theory of justice. Cambridge: Harvard University Press, 1999. [ Links ]

# A ideia desse artigo surgiu a partir uma palestra proferida por Martine Pécharman em um seminário no ano de 1999. Sua brilhante análise dos capítulos XIV e XV do Leviathan inspirou este texto.

1A nota 8 da página 238 apresenta uma longa explicação sobre o dilema.

2Desenvolvi esse argumento com poucas modificações, em Lisboa (2016).

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