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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.spe3 Caxias do Sul  2018  Epub 02-Set-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.dossie.12 

Artigos

Por que política? Moralidade, excedente de sentido e democracia

Why politics? Morality, surplus of meaning and democracy

Cicero Araujo* 

*Uma versão inicial deste trabalho foi apresentada no colóquio “Ética e Democracia”, ocorrido em agosto de 2017, na Universidade de Caxias do Sul (UCS), sob a coordenação do Prof. João Carlos Brum Torres. Posteriormente, as ideias lá esboçadas transformaram- se num projeto de pesquisa apoiado pelo CNPq. Como se verá, o artigo visa à delimitação de uma hipótese teórica que, porém, ainda carece de uma pesquisa bibliográfica mais


Resumo

Partindo de uma visada crítica das chamadas “teorias político- normativas”, este artigo rediscute a questão das relações entre política e moralidade sob regimes democráticos e explora a hipótese de que o esforço mesmo de realização de seus valores fundamentais, ao produzir efeitos não intencionados - um “excedente de sentido” - induz esses regimes a um movimento de fuga da moralidade. Movimento contraditório, apto a produzir um mal-estar difuso com a própria democracia. Contudo, o artigo explora a hipótese complementar de que é exatamente por meio dessa contradição que emergem as possibilidades de um campo próprio da ação política.

Pa lavras-chave: Moralidade; E xcedente de sentido; Política democrática

Abstract

Out of a critical vision of the so-called “normative political theories”, this article engages the issue of the relationships between politics and morality under democratic regimes. The article sounds out the hypothesis that the democratic regimes’ own endeavour to actualize its moral values, in so far as it produces non-intended effects - a “surplus of meaning” - makes them to move outside of the moral borders. That movement, being contradictory, produces also a malaise in relation to democracy. Yet, the article approaches the additional hypothesis that it is precisely thanks to that contradiction that the chances of a democratic politics in its own right arise.

Keywords: Morality; Surplus of meaning; Democratic politics

Nas últimas décadas, temos vivido uma espécie de saturação de questões éticas na teoria política. Não raro, ela aparece nas modalidades mais exigentes, seja na forma de uma ética das virtudes, seja na de uma ética deontológica. A reflexão política, ancorada diretamente em conceitos e concepções da tradição da filosofia moral, especialmente a desta última modalidade (deontológica), é o que na Ciência Política passou a ser chamado de “teoria político-normativa”. Se este autor não está enganado, é o tipo de abordagem predominante nos principais meios acadêmicos internacionais que hoje lidam com teoria política.1

Neste artigo, vai-se discutir algumas de suas consequências para pensar a política propriamente dita. Antes, cabe notar algo mais: é interessante que no mesmo compasso em que amadurecia, essa abordagem se aproximou bastante do Direito, em particular do Direito Constitucional, mas não só. Pensa-se até que essa aproximação explica por que aquelas teorias políticas passaram a ser chamadas de “normativas”. O vínculo com a moralidade é decisivo, mas há que pensá-lo no âmbito das instituições: daí o elo com o Direito.

Incentivo adicional à aproximação ao Direito é o fato de que essa disciplina passou, nas últimas décadas, por análoga saturação de questões éticas. A tendência veio junto com as massivas críticas ao chamado “positivismo jurídico”. E então começamos a ouvir que o Direito não deveria ser mais pensado como um campo prático autônomo, mas como um território específico dentro do continente mais amplo da moralidade, cujos conceitos fundamentais deveriam brotar, tal como na teoria política normativa, diretamente da filosofia moral. No campo do Direito Constitucional, a abordagem aprofundou uma distinção crítica entre “princípios” e “regras”, atribuindo aos primeiros uma capacidade superior de elucidar os propósitos e a própria letra da lei, para além das intenções dos legisladores e mesmo do precedente.2

(Isso, cabe observar en passant, tem repercutido na prática cada vez mais frequente de juízes que, bebendo dessas águas, passam a sentir-se menos constrangidos de experimentar decisões que, supostamente justificadas por “princípios”, acabam expressando suas próprias convicções morais, quando não ideológicas.3)

Mas não se está querendo, com essas observações, iniciar uma arenga contra a ideia de uma interlocução, teórica e prática, entre política e moralidade, ou entre direito e moralidade. A interação desses campos é fundamental e enriquecedora, mas não é disso que se trata. Antes, o propósito aqui é iniciar uma avaliação crítica de uma tendência que ultrapassa esse limiar. Tendência que se traduz numa demanda por “subsunção”, por redução de uma a outra: uma nova síntese capitaneada por alguma modalidade de ética - qual modalidade sendo, aliás, o que produz as mais intensas (e mesmo as mais ricas, filosoficamente falando) controvérsias dentro da própria teoria normativa. Ou seja, a política e o direito entendidos simplesmente como a moralidade writ large - a moralidade aplicada à inteligência do poder comunitário.

A remissão ao direito, ademais, é para sugerir que isso que se está chamando, neste artigo, de “ressaca moral”, não se limita ao universo restrito da reflexão e da crítica acadêmicas. Podemos encontrar ecos e repercussões dela em diversos campos da vida social, embora em modalidades distintas. Talvez as evidências disso ainda sejam muito discutíveis, mas este autor percebe na questão um sintoma de época, vale dizer, uma ressaca moral muito mais abrangente, que atinge de forma aguda as sociedades contemporâneas, especialmente as governadas por regimes democráticos. No final do texto, se vai esboçar uma hipótese para compreendê-la.

Insiste-se: não se quer, nem de longe, sugerir que a política nada tenha a ver com a dimensão moral da vida. É claro que tem. Pensemos na retórica, uma arma imprescindível da ação política: ela seria impensável sem a linguagem moral e, de modo mais amplo, sem supor uma sensibilidade moral compartilhada entre o orador e sua audiência. Ou pensemos a indução de políticas a partir de críticas da ordem social em vigor e as projeções de alternativas - não raro, críticas e projetos moralmente inspirados. Enfim, a política, como prática e como pensamento, entrelaça-se com a moral e se vale dela para fazer sua própria lavra. Uma coisa, no entanto, é a relação, a interação, entre política e moral - e, mais extensamente, entre direito e moral, ou entre política e direito. Outra, a pura e simples subsunção. Também, uma coisa é pensar uma interação tensa, às vezes de consonância, às vezes de dissonância, entre uma e outra. E outra, a ideia de uma relação de simples complementaridade, de um contínuo sem sobressalto, do menos para o mais, do individual para o coletivo.

Entretanto, o que seria este “próprio” da política? O que a política teria “a mais”, ou “a menos”? É o que se quer discutir.

Mas cabe uma advertência preliminar: nem a moral, nem a política têm sentido unívoco. Já se aludiu antes a diversas modalidades de ética. Também é possível dizer o mesmo em relação à política. “Política” e “moralidade” (ou “ética”) são, na verdade, nomes que abarcam uma constelação de concepções, não fadadas a convergir, sobre o que é a própria política e a moral. Assim, se trata de discutir uma visão de política (mas que não é a única possível) que este autor pensa ser a mais apropriada para pensá-la como uma dimensão peculiar da vida social, distinta de outras dimensões, inclusive da moral - em quaisquer de suas modalidades - admitindo, contudo, que ela seja afetada pelas demais.

Que a política não tenha um sentido unívoco deriva do próprio fato de ela não ser uma coisa, um dado natural do mundo, como os objetos físicos que nos cercam. A política é uma prática e, como tal, não existe do mesmo modo que esses objetos: ela requer certas condições intersubjetivas, certas disposições das partes que a praticam, para fazer ou deixar de fazer. Cessadas essas condições e disposições, cessa-se a política, pelo menos no sentido pretendido aqui. No entanto, essa prática estaria fadada à inibição ou mesmo ao desaparecimento, tivessem os sujeitos sociais de limitar seus recursos de agência apenas àqueles que a linguagem e as clivagens morais (assim como as jurídicas) oferecem.

Mas por que precisaríamos ir além desses recursos? Por que eles não seriam suficientes?

Sugere-se que pensar e agir politicamente implicam imaginar a ampliação das possibilidades de interação humana em espaços e ocasiões que, em princípio, se levássemos em conta outras considerações - aqui, novamente, se está pensando especialmente na dimensão moral da vida - permaneceriam bloqueadas. Em particular, podemos imaginar sua ampliação para as relações adversariais; mas não a adversariedade entre indivíduos, e sim as que se dão no campo dos conflitos sociais. Conflitos esses, vale frisar, que não se restringem aos derivados das carências econômicas ou das desigualdades sociais - os chamados “conflitos de classe”. Assumindo que não há uma mesma fonte subjacente a todos eles, os conflitos sociais podem tomar as mais variadas formas e emergir dos mais diversos motivos. Habitualmente, pensamos que eles derivam do fato de existirem grupos sociais com interesses próprios divergentes dentro de uma mesma comunidade a razão do “egoísmo” em sua forma coletiva. Isso é verdadeiro em parte. Mas não é infrequente que a divergência provenha daquilo que cada lado estima sinceramente ser o “bem comum”, o mais “justo” ou o bem humanamente mais “nobre” ou mais “digno”. Isso significa que, de maneira similar ao choque religioso, o próprio valor moral, em vez de arrefecer, pode desencadear conflitos. E então se disputa e se luta, e nesse caso por razões que, justamente por parecerem mais elevadas, conduzem o conflito para o limiar do intratável.

Não se está sugerindo nesse ponto a ideia de que a política, ao ampliar as alternativas da interação social, é um recurso para dissolver o conflito. Na verdade, ela apenas possibilita deslocá-lo de uma dimensão da vida social para outra: aquela em que o conflito é reencenado numa arena com regras próprias, distintas daquelas em que o conflito se originou. Daí ser a política, por esse prisma, eminentemente “representativa”, em dois aspectos. Primeiro, ela busca apresentar algo outra vez (reapresentar), porém não em sentido literal, mas vestido de algum outro modo4; segundo, seus protagonistas desempenham “papéis”, e não suas próprias pessoas morais, e com esses papéis procuram dar novo sentido ao conflito social de origem.

Dar novo sentido requer, entre outras coisas, ampliação e enriquecimento linguístico, vocabular e sintático. Nessa dimensão, não se trata mais de limitar as escolhas entre as antípodas do “bem” ou “mal”, “certo” ou “errado”, “vício” ou “virtude”; ou, para estender a questão ao campo do direito, entre “legal” ou “ilegal”, “culpado” ou “inocente”, etc. Isto é, a dimensão da política, quando faz alguma diferença na vida social, não pode se limitar a esses tipos de avaliação e escolha, mesmo que a própria ação política seja avaliativa e implique escolhas: o ponto é que ela só faz sentido se a vida civilizada mesma admite - e não de um modo envergonhado ou subterrâneo um horizonte mais amplo de opções.

Por outro lado, nada disso precisa apontar para a ideia de que a política ocupa uma posição superior na escala do que é importante na vida: não se trata de propor uma hierarquia, muito menos uma teleologia do fazer social. O homem é um “animal político” tanto quanto é um “animal moral” e “econômico”. E a política é - ou melhor, não é, mas pode ser - simplesmente uma dimensão adicional, e por isso mesmo, distinta, da existência social, não redutível às demais. “Pode ser”, em vez de “é”, porque a política, na medida em que não é uma coisa, um dado natural, requer que a sociedade de certo modo a veja como necessária e resolva fazê-la. Por isso, é perfeitamente possível, também, que resolva não fazê-la. Então, neste último caso, em vez de buscar ampliar a superfície do contato social - leia-se, adversarial no sentido definido acima -, acaba decidindo por reduzi-la. Como saber se isso está acontecendo? Difícil definir critérios precisos. Mas talvez a “subsunção” ou “redução” teórica da política à moral - mas a observação poderia se estender a qualquer outra dimensão (ao direito, à economia etc) -, aludida no início, já seja o reflexo de uma redução mais ampla, em vigor em diversos campos da prática social.

Política e moral: as exigências e contradições da democracia

Podemos entender a democracia como a forma da política que mais sistematicamente explora as oportunidades do contato adversarial. A democracia, nesse sentido, simplesmente, eleva ao máximo uma tendência inerente ao fazer político. Por quê? Por conta de sua propensão a incluir. Porém, não tanto porque inventa modos de incluir as chamadas “maiorias sociais” no processo decisório. Isso também é verdade, mas há que não se restringir a uma concepção numérica, quantitativa, da inclusão. O fundamental é sua propensão a incluir o discordante, o dissidente - ou, para usar um termo que parece apropriado à visão defendida neste texto - o estranho. Daí serem as liberdades democráticas tão constitutivas dessa forma da política. Elas definem o mínimo do que se pode esperar de um regime democrático. E, porém, definem o essencial.

O estranho não é o “inimigo”, tanto quanto o familiar não é o “amigo”. A dicotomia schmittiana - embora se assemelhe ao esforço feito nestas linhas para distinguir a política de outras dimensões da vida - não serve para pensar a política democrática. O estranho expressa, antes, o fato de que a ação humana, que tem uma natureza intencional, ao somar-se a outras ações (intencionais), mesmo com idênticos sentidos, sempre produz, em maior ou menor grau, uma “sobra” não intencionada, um excedente de sentido. A política, e a política democrática acima de tudo, busca lidar exatamente com essa sobra da qual os atores não tenham premeditado. Ela torna pensável - mas não confundir “pensável” com o que é imediatamente “aceitável” ou “desejável” - aquilo que não havia sido pensado no plano das intenções.

Incluir o estranho significa, é claro, incluir o indesejado, mesmo o indesejado pela esmagadora maioria. E isso sugere, sem dúvida, uma contradição interna da forma democrática da política. Pois, ao mesmo tempo que inclui o indesejado, a democracia é o regime político que enseja as expectativas mais elevadas de promoção de certos valores morais, enfim, daquilo que seria “aceitável” ou “desejável”: o bem comum, o tratamento justo, a igualdade social, etc. Em rigor, isso invoca não a contradição ela mesma, mas a possibilidade de uma contradição. Porque, numa ponta, a democracia pretende incluir tudo, mesmo o indesejado; mas na outra ponta ela promete que tudo que for incluído, mesmo o indesejado, se tornará, de algum modo, desejável mais à frente. Ou seja, a promessa de algo como uma alquimia social. Mas essa última nunca está garantida de antemão. No entremeio, o indesejado acaba se confrontando com o desejável, isto é, com os valores projetados pelas instituições democráticas. A democracia, na fórmula feliz de Nadia Urbinati é um “time regime”, um regime do tempo5: mas isso nos leva à ideia de um regime político disposto a suportar aquela contradição no cerne mesmo de seu funcionamento. Um regime assim vive a criar mecanismos para resgatar tempo, ganhar tempo, a fim de aumentar as chances de cumprir as promessas daquela alquimia: transformar o originalmente indesejado num patrimônio comum. Enquanto isso, é de se esperar que ele deixe seus cidadãos em estado de recorrente perplexidade e mal-estar.

A título de ilustração, examinemos esse ponto considerando a relação entre política e imparcialidade. Exatamente porque a democracia é pressionada a ganhar tempo, esse aspecto da prática política é crítico. Mas não se trata de propor a imparcialidade ao modo de cidadãos e governantes imparciais. Quer dizer, a democracia não precisa ancorar toda sua esperança de sucesso em sujeitos moralmente motivados pelo valor da imparcialidade. A imparcialidade democrática tem outro sentido: ela mesma é um recurso da política. Ao invés de cidadãos imparciais, regimes democráticos requerem espaços onde a imparcialidade possa ser representada: vale dizer, encenada. Mas isso só faz sentido porque, em outra ponta, a parcialidade dos cidadãos é permitida - aliás, não só permitida, mas promovida.

A democracia, por esse ângulo, consagra o direito à parcialidade. Libera- a, em vez de reprimi-la. Se não o faz, o recurso político da imparcialidade se torna impotente, anulado pela própria anulação de seu par oposto (e, porém, complementar). Ou, pior ainda, acaba se tornando uma exigência moral hipócrita, cujo efeito é bloquear, em vez de incluir, o estranho e o indesejado. Na política democrática, a imparcialidade, assim como a parcialidade, implicam-se mutuamente. Ao mesmo tempo, todavia, atritam- se, uma vez que refletem impulsos evidentemente contrários...

É tentador, nesse quadro, imaginar que seria possível suprimir essa contrariedade real valendo-se da dimensão da moralidade: por exemplo, ainda que reconhecendo que a democracia é conflito, apostar (e até exigir!) que seus protagonistas estejam subjetivamente disponíveis para a imparcialidade. Mas não se está afirmando, nesse argumento, que os atores sociais são moralmente indiferentes ou imorais. De novo, a questão é outra: é que os valores morais, inclusive a imparcialidade (enquanto valor pessoal), não apenas são insuficientes para dar conta do conflito social, como frequentemente o intensificam. Assim, pressupor a imparcialidade moral é tão irreal (para não dizer enfadonho) quanto uma novela açucarada: seria como assumir as teses expostas em O liberalismo político, de John Rawls, sem contrabalançá-las com as de Capitalismo, socialismo e democracia, o clássico de Joseph Schumpeter. Na verdade, Rawls e Schumpeter expressam, cada um a seu modo, esse misto complicado e contraditório do desejável e do indesejado que as democracias carregam em suas práticas.

Uma democracia aberta à prática da imparcialidade, portanto, não poderia fazer-se por uma representação, digamos assim, autoindulgente. Só uma representação que gerasse tensão (“dramática”) daria sentido ao surgimento de um espaço neutro no qual, aí sim, se fizessem representar os papéis e as regras de arbitragem, assim como os critérios para definir como e quando os contendores ganham ou perdem. O que é sem dúvida fundamental, uma vez que se perceba ser impossível que, mesmo em regimes democráticos, todos ganhem sempre. Nesse aspecto a democracia não é muito diferente de qualquer outra forma de política: às vezes se ganha, outras vezes se perde. E às vezes todos ganham também, mas isso só ocasionalmente. Em definitivo, porém, não é um jogo fadado à soma positiva: pretendê-lo seria não só querer contar mais uma estória açucarada, mas dizer uma pura e simples contrafação.

De resto, a questão crucial não é essa: a escolha crítica é permanecer ou não na arena, mesmo quando se perde. A resposta positiva a essa questão é indissociável da crença na promessa alquímica dos regimes democráticos. E o ponto dessa promessa não é que o perdedor um dia se tornará vencedor, e vice-versa - porque nesse caso nada mais se estaria produzindo do que uma variação das gramáticas dicotômicas justamente aquilo que a política, se é que ela faz alguma diferença, teria de ultrapassar. A promessa é que ambos, perdedor e vencedor, se tornem, no processo, alguma outra coisa.

A “ressaca moral” e a paralisia do tempo

Retomemos agora, para concluir, a sugestão inicial de que não só a teoria política experimenta hoje uma saturação de questões éticas, mas que a contemporaneidade mesma vivencia uma espécie de “ressaca” moral. Vai se indicar, de modo muito breve e precário, uma hipótese para pensá-la.

Já faz algum tempo que uma ampla literatura histórica, social e filosófica - cuja “caixa” nem sequer se vai tentar abrir neste espaço - tem procurado, de diferentes perspectivas, fazer uma crítica à experiência moderna enfocando, em particular, o modo com que ela foi agenciada politicamente. Grosso modo, essa crítica aponta que nos dois últimos séculos, mas especialmente ao longo do século XX, os Estados soberanos, associados ou não a outras agências, sociais e econômicas, foram concentrando enorme poder sem que, ao mesmo tempo, tivessem aprendido a exercê-lo com prudência. Ao contrário, muito do exercício desse poder redundou em enormes catástrofes humanas. Em retrospecto, parecerá que, subjacente a esse poder concentrado, esteve em operação uma política que simplesmente desprezou os limites morais que deveriam se impor a toda ação humana, para evitar que, entre outros, o próprio poder estatal se transformasse na “máquina mortífera” que efetivamente se transformou.

Essa ilimitação, contudo, não teria sido um desdobramento natural do exercício sem freios do poder político, ou a mera degradação de algo que, originalmente pelo menos, havia sido bem concebido. Foi, ao contrário, o resultado de uma concepção da história que prometia um futuro feliz para a humanidade, a despeito dos males que tivessem de ser cometidos no presente. Isto é, a crença de que os sacrifícios do presente - necessários, uma vez que sem eles a história não poderia avançar - seriam convertidos num bem para toda a espécie, no futuro. Por isso mesmo, as restrições morais à agência política - com sua luz projetada nesse futuro -, deveriam ser mesmo levantadas, ou, pelo menos, relativizadas.

Essa crença, expressa em diferentes conteúdos programáticos, teria seduzido todas as correntes ideológicas que, ao longo desse período, se propuseram a tomar o leme dos Estados; porém, acima de tudo as correntes progressistas, as quais - como o próprio adjetivo indica - foram as mais empenhadas em elaborar, e as mais entusiastas a defender, uma filosofia da história à altura da própria crença.6

Por outro lado, a crítica lúcida dessa filosofia da história - tão intensa nos últimos anos, a ponto de ter se tornado um lugar comum - veio acompanhada de uma retomada da importância do juízo moral. Em princípio, uma retomada muito salutar, na medida em que veio a fornecer novos elementos para repensar o exercício do poder político...

Contudo, em vista do que se discutiu acima, talvez deveríamos nos perguntar agora se, justamente por meio desse impulso, e como subproduto imprevisto dele, não se teria, de algum modo, ingressado num caminho que, ao fim e ao cabo, nos levou ao crescente bloqueio da ação política, a ponto de neutralizá-la como uma dimensão distinta da vida social. Um processo, portanto, que, em seu desdobramento radical, parece fazer muito mais do que simplesmente voltar a reconhecer a importância do juízo moral. Enfim: o que cogitamos é se, pouco a pouco, graças a um mecanismo perverso de socialização da crítica, em vez de um saudável ceticismo, não se acabou produzindo uma nova forma de dogmatismo, sobrecarregando a consciência coletiva.

Sobrecarga da consciência: eis como se poderia traduzir a metáfora da “ressaca moral” sugerida no início deste texto. Metáfora de um sintoma de época, cujo dogmatismo consistiria, basicamente, nesta ideia: pensar uma história sem horizonte. Concepção que, num sentido mais ou menos inverso da visada predominante anterior, bloqueia expectativas sobre o futuro e nos faz imaginar, às vezes até com um viés reconfortante, que poderíamos viver o presente “em sua inteireza”.

Ocorre que a natureza fluida do próprio tempo presente nos induz a imaginar, bem ao contrário, a história como algo em constante movimento. É isso que nos dá margens de manobra para jogar, para frente ou para trás (futuro ou passado), o excedente de eventos imprevistos - o excedente de sentido a que também se referiu antes - que, de outra forma, sobrecarregaria o presente. Em consequência, esvaziar expectativas sobre o futuro pode levar a uma limitação desse recurso imaginário, pelo menos no que respeita a um dos lados dessas margens.7

Recorramos a outra metáfora (de resto bem antiga) para deixar mais claro o que se quer dizer: é como fazer da história algo parecido a um trem cujo vagão dianteiro tivesse sido submetido a um tremendo freio, fazendo o vagão intermediário se chocar com ele. E assim também os demais vagões traseiros, um após o outro, numa reação em cadeia. Em resumo, passado e futuro terminando, ambos, por submeter o presente a um implacável garrote temporal. O resultado é mais ou menos o seguinte: em vez de vivermos livremente o presente, é o passado que acaba “se recusando a passar”.8 E então - para recorrer pela última vez à imagem que orienta a hipótese que aqui se procura elaborar - a ressaca se expressa como um imenso remorso daquilo que já aconteceu.

O que “aconteceu”, porém, não é um fazer anônimo, impessoal. Ao contrário, é tudo aquilo que “alguém fez” “eu” ou “você”, “eles” ou “nós” o que significa imputação moral. Processo esse que, ao se acumular num tempo “paralisado”, tende a uma espécie de paroxismo da responsabilidade. Contudo, uma vez que não se pode esperar nada do futuro, é ironicamente outro tipo de responsabilidade aquela disposta a um olhar prospectivo, a qual Max Weber famosamente definiu como próprio do fazer político , que fica obstado. Eis que o tempo assim paralisado faz o juízo moral produzir um senso de responsabilidade no sentido inverso, de olhar retrospectivo, cujo afã é punir em vez de redimir.

Este autor pensa que essa visada talvez permita compreender melhor o movimento das sociedades contemporâneas no sentido de retrair a dimensão autônoma da política, reatrelando-a firmemente ao campo da moralidade. De novo: que o juízo moral sirva de ponta crítica a uma filosofia da história progressista de pendor dogmático, parece muito saudável. Mas o que se pretende apontar nesta reflexão é um movimento que vai além, isto é, algo como um ceticismo histórico que se transforma pouco a pouco num “medo- pânico” do que está por vir.

Suas consequências para a política democrática não são nada desprezíveis. Pois, se for mesmo correto dizer que a democracia é um “regime do tempo” - o que permite pensá-la como uma forma de política que faz do futuro um espaço imaginário de vazão dos conflitos sociais -, é evidente que essa retração da política afeta negativamente o dinamismo do regime, sua capacidade mesma de se reciclar. Mas afeta, especialmente, seu potencial de incluir, uma vez que, com o futuro congelado, o indesejado (o estranho) tende a ser, pura e simplesmente, igualado ao indesejável. Bloqueada a possibilidade de que, sendo um “mal” provisório, venha a se tornar um “bem”, o estranho parece estar condenado, nesse novo enquadramento, à vala do mal absoluto.

Referências

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ARAÚJO, C. A forma da república: da Constituição Mista ao Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2013. [ Links ]

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LASCH, C. The true and only heaven: progress and its critics. Nova York: W. W. Norton & Co, 1991. [ Links ]

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SHAPIRO, I. Os fundamentos morais da política. Trad. de F. Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2006. [ Links ]

URBINATI, N. Representative democracy: principles & genealogy. Chicago: Chicago University Press, 2006. [ Links ]

1Para ter um excelente panorama das diferentes vertentes desse campo, mas que, já na introdução, indica seu ponto de partida comum - isto é, a continuidade entre filosofia política e filosofia moral, e o entendimento de que a primeira seria, fundamentalmente, um tipo de “argumento moral” - ver Kymlicka (1990). No mesmo sentido, ver também Shapiro (2006).

2Dworkin, um dos mais poderosos críticos contemporâneos do positivismo jurídico, é o autor do campo político-normativo que mais sistematicamente elaborou esse ponto. Entre outros, Dworkin (1986; 2006).

3Não estou me referindo apenas ao que vem acontecendo no Brasil, nos dias de hoje, mas a um fenômeno que já ocorre há um bom tempo, em vários países. O Brasil talvez seja um caso até tardio.

4 Pitkin (1967, p. 9): “We can simply say that in representation something not literally present is considered as present in a nonliteral sense.”

5Cf. Urbinati, 2006, p. 31 ss.

6Para uma reconstrução do longo debate em torno dessa concepção e de sua crítica filosófico-moral, em particular no contexto intelectual norte-americano, ver Lasch (1991).

7Sobre o horizonte temporal aberto para frente e a imaginação histórica correspondente como uma forma de vazão do conflito, ver Araújo (2013, Caps. 3 e 4).

8A excelente discussão sobre o “passado que não quer passar” no livro de P. Arantes (2014, Cap. 1).

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