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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.spe3 Caxias do Sul  2018  Epub 02-Set-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.dossie.13 

Artigos

Elementos para uma metateoria da democracia

Why politics? Morality, surplus of meaning and democracy

Delamar José Volpato Dutra* 
lattes: 7826882124566360

*UFSC/CNPq


Resumo

O texto apresenta, resumidamente, quatro teorias ou modelos de democracia: agregativa, deliberativa, agônica e homogênea. Apresenta, em seguida, diversas críticas endereçadas a tais modelos. Considerando essas teorias e suas críticas, o presente estudo busca apresentar elementos que seriam indispensáveis ao tratamento da democracia. Ao final, tece algumas considerações críticas e construtivas a respeito da importância de que tais elementos sejam considerados ao se tratar da democracia.

Palavras-chave: Democracia; Elementos; Metateoria; Direito; Política

Abstract

The text presents, in brief, four theories or models of democracy: aggregative, deliberative, agonistic, homogeneous. It then presents various criticisms addressing such models. Considering these theories and their criticisms, the present study seeks to present elements indispensable to the treatment of democracy. In the end, it makes some critical and constructive remarks about the importance of such elements being considered when dealing with democracy.

Keywords: Democracy; Elements; Metatheory; Law; Politics

Introdução

A democracia pode ser estudada sob vários vieses, a começar pela discussão se ela tem um valor intrínseco ou não,1 bem como se é um sistema de governo confiável ou não. (ELY, 1980). Para os teóricos defensores da democracia, ela é analisada a partir de vários pontos de vista, desde aquele da representação (MIGUEL, 2014), até aquele da sua relação com os direitos humanos. (HABERMAS, 2001). Ademais, há pelo menos quatro modelos de democracia que atualmente disputam o campo de sua compreensão. O primeiro é o modelo agregativo, representado por Schumpeter (2003), Downs (1957), Arrow (1963), dentre outros. O segundo modelo é o deliberativo, representado exemplarmente por Rawls (2005, 1999) e Habermas (1997), a despeito de Miguel (2013, p. 65) creditar esse modelo mais a Habermas do que a Rawls. O terceiro modelo é aquele agônico de Mouffe e Laclau (2001). Finalmente, o quarto é o modelo da homogeneidade, defendido por Schmitt.

Desse modo, o tratamento da democracia parece levar o estudioso ou a ter que se filiar a um desses modelos ou a ter que propor uma nova teoria, o que, neste último caso, é deveras difícil devido à longa tradição de reflexão sobre a temática. Em razão disso, escolheu-se trilhar um outro caminho, aquele de uma metateoria sobre a democracia. Tal metateoria pretende escrutinar alguns elementos cujo tratamento seria imprescindível para haver uma teoria da democracia consistente e coerente.

Outrossim, para apontar a direção do proveito de tal empreendimento, escrutinam-se algumas críticas tecidas aos principais modelos vigentes, a fim de exemplificar o uso que se poderia fazer da metateoria da democracia, no que diz respeito precisamente a tentar superar tais críticas.

Modelos de democracia

A literatura aponta vários modelos, concepções e conceitos de democracia. Habermas (1997) no cap. VII de Direito e democracia começa por distinguir uma avaliação da democracia a partir de uma perspectiva interna ou de uma perspectiva externa, uma distinção importante, certamente, para o tratamento do tema da legitimidade. A seguir, distingue três modelos de democracia: o liberal, o republicano e o discursivo, este último aquele defendido por ele mesmo. Mouffe (2005), por seu turno, apresenta três modelos de democracia: o modelo agregativo, o modelo deliberativo e o modelo agônico. Miguel (2013) parece acompanhar Mouffe nessa trilogia.

I

O modelo agregativo de democracia é de natureza mais descritiva do que normativa. Isso implica que os indivíduos agiriam não por razões morais, mas com base em interesses e preferências. De acordo com o modelo, a ordem e a estabilidade, adviriam não da participação, do consenso no bem comum, sempre ilusório, mas de compromissos entre interesses. (MOUFFE, 2005, p. 12). Para fazer escolhas sociais, dever-se-ia seguir mecanismos de mercado baseados em interesses e preferências. Miguel. (2013, p. 31) vincula essa corrente à chamada teoria das elites, a incluir Schumpeter. Este último teria consolidado a tese da democracia concorrencial, sendo essa a corrente dominante atualmente. (MIGUEL, 2013, p. 49).

Esse modelo tem vários vieses: avalia como problemático o excesso de participação política, haja vista, por exemplo, Hitler ter chegado ao poder depois de intensa participação política; desacredita a noção de bem comum e foca nos indivíduos atomizados. (MIGUEL, 2017, p. 49-50). De fato, para Schumpeter (2003, p. 269), na teoria clássica da democracia, o povo julgava as questões políticas e escolhia representantes para executar seus julgamentos. O que ele se propõe a fazer é desconstruir o primeiro aspecto e fortalecer o segundo. Ou seja, não há propriamente o povo, como não há um bem comum determinável e, em acréscimo, as pessoas não sabem decidir questões políticas. Por isso, ele supõe que os dois mencionados aspectos devam ser revertidos. Ou seja, o papel do povo é o de produzir um governo, governo esse que decidirá as questões políticas. Daí a sua definição de método democrático: “And we define: the democratic method is that institutional arrangement for arriving at political decisions in which individuals acquire the power to decide by means of a competitive struggle for the people’s vote.” (SHUMPETER, 2003, p. 269). Como bem se vê, a democracia aponta para a eleição de líderes que terão o poder de decidir.

Segundo o destaque de Miguel (2013, p. 53), isso implica uma liberdade formal, a de votar, e a redução da participação política a um mínimo, precisamente, votar. Com isso, líderes são eleitos, mediante uma disputa por votos. O líder ou partido vencedor forma um governo para decidir as questões políticas. Miguel (2013, p. 54) registra que a principal inspiração oculta de Schumpeter é Hobbes, cuja principal preocupação seria a estabilidade, não a liberdade. Segundo Miguel, a concepção schumpeteriana estaria presente inclusive na teoria pluralista de Dahl.

Alguns problemas que podem ser apontados em relação a essa teoria são os seguintes: o primeiro deles, é que a política é isolada das desigualdades materiais e simbólicas (MIGUEL, 2013, p. 58), devido a ficar reduzida à votação para escolha de líderes; outro problema é a concepção atomizada de pessoa que não considera os processos de produção das vontades dos indivíduos. (MIGUEL, 2013, p. 63).

II

O modelo deliberativo, como bem pontua Mouffe (2005, p. 12), pretendeu dar conta de problemas de legitimidade pela conexão da justiça com a política. Isso pode ser verificado pela análise que Rawls (1999) faz de Arrow (1963) e de Downs (1957): “And this would seem to imply that the application of economic theory to the actual constitutional process has grave limitations insofar as political conduct is affected by men’s sense of justice, as it must be in any viable society, and just legislation is the primary social end.” (p. 317). Rawls se indispõe, aqui, com a concepção de democracia de Downs e Arrow, a qual se atém ao processo formal de escolha dos líderes, sem considerar que determinações de justiça deveriam permear o todo da democracia, inclusos os seus resultados.

De acordo com Miguel (2013, p. 66), para essa corrente: a democracia não visa a agregar preferências já consolidadas, pois essas são construídas socialmente; enfatiza a participação e não só a votação; resgata também a possibilidade de o povo participante debater e decidir questões concretas a respeito do bem comum. Em vez de interesses e preferências, esse modelo se centra no papel que a argumentação pode desempenhar no processo de decisão, cujo objetivo é chegar a um entendimento. Como observa Mouffe (2005, p. 12), essa perspectiva é normativa e não descritiva. Ela busca lealdade com base na legitimidade que une soberania popular e direitos humanos.

Apontam-se vários problemas para esse modelo. Segundo Miguel (2013, p. 61), a deliberação não pensa adequadamente a política como conflito, como interesse, dominação, o que levaria, inclusive, a uma acomodação à ordem vigente. Como já dito, ela tem dificuldade em lidar com a noção de interesse. (MIGUEL, 2013, p. 72-73). Ao invés, a teoria tenta dar conta do diagnóstico da crise de legitimidade pelo apelo a um consenso em bases morais. (MOUFFE, 2005, p. 12). Portanto, não seria uma resposta propriamente política. Ademais, a proposta idealizaria as condições da comunicação e seria insensível à exclusão/inclusão de grupos sociais. (MIGUEL, 2013, p. 68-70). Por ser processual e formal, a igualdade substantiva não lhe seria importante (p. 69). Por conseguinte, não trataria adequadamente o fato de os cidadãos serem abstratamente iguais sob o viés político, mas desiguais economicamente (p. 73), além de ser cega às desigualdades de poder, de status e de linguagem padrão (p. 75). Além disso, ainda parece descartar a representação (p. 75-76). Em suma, por não ser representativa, por não considerar as desigualdades e os diversos tipos de dominação, não seria um modelo realista (p. 77), sem contar que seria uma versão de democracia com viés conservador, pois quando não se chegasse a um consenso, restaria preservado o status quo (p. 81).

Essa mesma crítica é endereçada, até de forma mais contundente, ao véu de ignorância de Rawls, que camuflaria ou eliminaria o conflito político (MIGUEL, 2013, p. 78-79), justamente escondendo-o sob o véu.

Em suma, “Rawls, Habermas e Honneth são a linha de frente da percepção de que o conflito de interesses é um mal a ser extirpado”. (MIGUEL, 2013, p. 84). Para eles, no lugar do conflito é posta a imparcialidade, o diálogo e o altruísmo, respectivamente.

Nesse ponto, as críticas de Miguel se somam àquelas de Mouffe, como se verá, já que, para ela, a versão deliberativa de democracia eliminaria o conflito a propósito das interpretações diferentes dos princípios da liberdade e da igualdade.

A querela da economia

Que a economia seja importante, pode ser visto na consideração crítica que Habermas faz a propósito da impotência do dever-ser em Rawls: “A realidade recalcitrante com a qual o raciocínio normativo quer entender-se não é feita apenas e, em primeira linha, de pluralismo de ideais de vida e de orientações axiológicas conflitantes, mas também de um material mais duro que são as instituições e os sistemas de ação.” (HABERMAS, 1997a, p. 92).2 São sistemas de ação os mercados, ou seja, a economia, e as burocracias estatais. (HABERMAS, 1997a, p. 153).

A querela da relação entre economia e democracia vem pelo menos desde Aristóteles, já que esse relaciona a democracia ao governo dos pobres:

A verdadeira diferença entre oligarquia e democracia é a pobreza e a riqueza. É inevitável que quando o poder se exerce em virtude da riqueza, quer sejam poucos ou muitos, trata-se de uma oligarquia; quando os pobres governam, trata-se de uma democracia. Acontece, porém, conforme notamos, que os ricos são escassos e os pobres numerosos. É que a riqueza é de poucos, enquanto a liberdade é de todos: estas são as causas pelas quais uns e outros reclamam o poder” (Política. 1279b40-1280a5).

Marx protestara ao dizer que, politicamente, os cidadãos são considerados iguais, mas, economicamente, os homens estariam em situação desigual: “Assim como os cristãos são iguais no céu e desiguais na terra, também os membros singulares do povo são iguais no céu de seu mundo político e desiguais na existência terrena da sociedade”. (MARX, 2005, p. 97).

Ou seja, trata-se de como conciliar a economia desigual com a política igual. (MIGUEL, 2013, p. 70, 84, 94). Inclusive, a questão social de Arendt é interpretada por Miguel como degradação da política, na medida em que as necessidades corroeriam a busca pela liberdade. (MIGUEL, 2013, p. 70). Nesse ponto preciso, alega ele, Habermas criticaria o idealismo arendtiano, mas teria sido vitimado por um problema análogo. Aliás, esse ponto é alavancado por Miguel (2013) a “calcanhar de Aquiles” de toda e qualquer teoria, a atingir especialmente o paradigma comunicativo entendido como superação do paradigma do trabalho. (p. 94). Não só isso, quando Rawls, em O liberalismo político e Habermas em Direito e democracia descem do céu à terra, suas obras vêm marcadas pelo elogio do presente e, portanto, pela despotencialização da crítica às desigualdades. (MIGUEL, 2013, p. 95).

Como visto, as duas falhas principais do modelo deliberativo seriam em relação à representação e à base material. Com isso, o mundo material se torna o foco, a justificar até “um uso (legítimo) de coerção, impondo aos grupos privilegiados a subtração de suas benesses”. (MIGUEL, 2013, p. 95). Pare ele, a democracia é um governo com conteúdo, o governo dos pobres. A democracia não é aceitação de determinados valores ético-políticos ou regras do jogo: “O antagonismo entre dominantes ou dominados pode se expressar ou pode ser escamoteado, mas não há fórmula retórica que o faça ser transcendido.” (MIGUEL, 2013, p. 96). A versão radicalizada de democracia busca justamente pôr um fim às relações capitalistas de produção:

Of course, every project for radical democracy implies a socialist dimension, as it is necessary to put an end to capitalist relations of production, which are at the root of numerous relations of subordination; but socialism is one of the components of a project for radical democracy, not vice versa. (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 178).

Tratar-se-ia de uma luta de classes? Tratar-se-ia de guerra, não de política? Não, pois uma tal proposta faria terra arrasada de várias diferenças relevantes. Afinal, quem são os dominados? Quem são os dominadores? A mesma pessoa pode ser vítima e algoz. Pode ser um trabalhador miserável, misógino, machista. Por isso, para os autores, a proposta tem que ser democrática, no sentido de requerer a participação de todos:

When one speaks of the socialization of the means of production as one element in the strategy for a radical and plural democracy, one must insist that this cannot mean only workers’ self- management, as what is at stake is true participation by all subjects in decisions about what is to be produced, how it is to be produced, and the forms in which the product is to be distributed. Only in such conditions can there be social appropriation of production. To reduce the issue to a problem of workers’ self-management is to ignore the fact that the workers’ ‘interests’ can be constructed in such a way that they do not take account of ecological demands or demands of other groups which, without being producers, are affected by decisions taken in the field of production” (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 178).

Isso remete, uma vez mais, ao fato de a política não ser pensada como um jogo de soma zero. (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 193). Trata-se, a bem da verdade, de repensar os conceitos de liberdade e de igualdade de uma forma diferente da interpretação capitalista. (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. XV).

É se se perguntar, no entanto, na perspectiva defendida por Miguel, segundo a qual não cabe o entendimento discursivo como cariz próprio da democracia, se é possível até mesmo a hegemonia sustentada por Mouffe, pois tal conceito pressupõe a aceitação de um núcleo ético básico universal, justamente o que permite a passagem do inimigo da guerra para o adversário da política, como se verá. Deveras, Miguel nega a possibilidade de determinações universais que poderiam anteder a todos, já que tudo seria absolutamente conflitivo e enviesado pela dominação. Não obstante, na democracia, não se pode matar o derrotado político. No limite, a proibição do homicídio não seria um interesse universal? O antagonismo dos dominantes e dos dominados realmente não pode ser transcendido?

Aliás, carece às críticas de Miguel, inclusive, uma melhor leitura de Habermas e de Rawls. Por exemplo, este último, ao analisar o ótimo de Pareto, que ele prefere chamar de eficiência (Rawls, 1999, p. 58), afirma: “[...] the principle of efficiency cannot serve alone as a conception of justice.” (RAWLS, 1999, p. 62). Ora, um sistema é eficiente se não puder ser modificado, para melhorar a posição de alguém, sem prejudicar a posição de um outro. Tomado em termos absolutos, o que Rawls não faz, isso implicaria, no limite, que um sistema baseado na servidão não poderia ser alterado, pois para melhorar a vida dos servos prejudicaria a dos senhores. A posição de Rawls (1999), claramente, não é essa, como se pode abduzir da citação:

The democratic conception [of equality] is not consistent with the principle of efficiency if this principle is taken to mean that only changes which improve everyone’s prospects are allowed. Justice is prior to efficiency and requires some changes that are not efficient in this sense. (1999, p. 69).

III

O terceiro modelo é aquele que põe ao centro o conflito. De acordo com Mouffe (2005, p. 16), Rawls e Habermas buscariam, como primeiro ponto, evitar o conflito referente ao pluralismo de valores. Isso é feito, no caso de Rawls, pela exclusão das doutrinas abrangentes não razoáveis, já, no caso de Habermas, isso é feito pela separação entre ética e moral, como se verá abaixo. Isso implicaria uma tensão entre a soberania popular e a perspectiva liberal de ambos os autores. Ora, tal tensão até pode ser equacionada via negociação, mas não pode ser eliminada. Por isso, o modelo de política deliberativa “[...] é incapaz de reconhecer a dimensão do antagonismo e seu caráter inerradicável, que decorre do pluralismo de valores”. (MOUFFE, 2005, p. 19). Para ela, tal perspectiva acaba por reduzir a política à justiça. Para a perspectiva de Mouffe, toda objetividade social vem marcada pela exclusão. Quando há essa convergência entre objetividade e poder, há o que ela denomina de hegemonia. Dito claramente, não há “[...] lacuna insuperável entre poder e legitimidade [...]: a) se qualquer poder é capaz de se impor, é porque foi reconhecido como legítimo em algumas partes e b) se a legitimidade não se baseia em um fundamento apriorístico, é porque se baseia em alguma forma de poder bem-sucedido.” (MOUFFE, 2005, p. 19). Esse modelo desacredita a confiança na argumentação e se foca no conceito de hegemonia como sendo central.

Desse modo, a legitimidade porta conexão com o poder, não com argumentos. A política é vista como ligada à ordem, de tal forma que a hostilidade é domesticada e o antagonismo contido. Ou seja, o outro deixa de ser um inimigo e passa a ser um adversário: “Um adversário é um inimigo, mas um inimigo legítimo, com quem temos alguma base comum, em virtude de termos uma adesão compartilhada aos princípios ético-políticos da democracia liberal: liberdade e igualdade” (MOUFFE, 2005, p. 20). Porém, esclarece ela, discorda-se em relação ao sentido e à implementação de tais princípios, sendo que tal desacordo não se resolve por deliberação: “De fato, dado o pluralismo inerradicável de valores, não há solução racional para o conflito - daí a sua dimensão antagonística.” (MOUFFE, 2005, p. 20). Então, como evitar que o antagonismo leve à guerra? Tal se dá por compromissos temporários, aos quais chegar-se-ia não por deliberação, mas por conversão:

Aceitar a visão do adversário significa passar por uma mudança radical de identidades políticas. É mais uma espécie de conversão do que um processo de persuasão racional (do mesmo modo que Thomas Kuhn argumentou que a adesão a um novo paradigma científico é uma conversão). (MOUFFE, 2005, p. 20).

O que se consegue, portanto, não é um consenso sem exclusões, mas um consenso conflitivo. (MOUFFE, 2005, p. 21). Ou seja, muito embora haja um certo consenso e certa lealdade em relação aos valores ético-políticos da liberdade e da igualdade, tais princípios teriam interpretações diferentes e conflitantes:

Idealmente, tal confrontação deveria ser observada em torno das diversas concepções de cidadania que correspondem às diferentes interpretações dos princípios ético-políticos: liberal-conservadora, social-democrata, neoliberal, radical-democrática e assim por diante. Cada uma delas propõe a sua própria interpretação do “bem comum” e tenta implementar uma forma diferente de hegemonia. (MOUFFE, 2005, p. 21).

Desse modo, a hegemonia é o que se pode pôr no lugar de uma falha, de algo que não pode ser preenchido, de uma totalidade ausente (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 8), mas que precisa vigorar: “The concept of’hegemony will emerge precisely in a context dominated by the experience of fragmentation and by the indeterminacy of the articulations between different struggles and subject positions.” (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 13).

Apesar dos arroubos ao longo do texto, Miguel, na conclusão do seu trabalho, chega aproximadamente a um mesmo resultado, aquele que põe ao centro o conflito, mas sem deixar de dar o devido peso à liberdade individual. (MIGUEL, 2013, p. 305-307).

IV

Há, ainda, o modelo radicalizado de Schmitt que desafia os anteriores, incluso a versão domesticada de Mouffe e de Miguel.

Veja-se, então, como Schmitt apresenta a democracia. Para ele, a homogeneidade do povo é a característica mais fundamental da democracia. É da homogeneidade que decorre a eliminação do diferente. (SCHMITT, 2000, p. 9). Desse modo, não só a igualdade é definida como homogeneidade, como a democracia honra a distinção amigo/inimigo. Ele sustenta que qualquer elemento pode ser relevante para estabelecer a igualdade dos que têm aquela qualidade em relação aos que não a têm. Pode ser uma qualidade física, moral, como a virtude, ou espiritual, como uma religião, ou a pertença a uma nação. (SCHMITT, 2000, p. 9).

Segundo ele, não compõem o significado primordial de democracia os sufrágios universais, com igual peso de todos os votos. Nenhuma democracia concede sufrágio somente em virtude da humanidade de alguém, isso porque direitos iguais só fazem sentido se houver homogeneidade. (SCHMITT, 2000, 10). Schmitt critica severamente a igualdade universal de todos os seres humanos. De acordo com ele, tal ideia nunca foi efetivada em democracia alguma, pois todas elas têm critérios de inclusão e de exclusão de cidadãos. E, poderíamos dizer, contém critérios de definição de seres humanos que são pessoas e de seres humanos que não são pessoas, como fetos, anencéfalos e mortos cerebrais. Ou seja, a igualdade de todos os seres humanos não é o que caracteriza a democracia em parte alguma. É, sim, o que caracteriza o liberalismo como uma teoria moral. (SCHMITT, 2000, p. 11). A seu favor, Schmitt pode alegar o caráter discriminatório de todas as democracias na concessão da maior parte dos direitos. Quiçá, uma tese que faz mais sentido hoje do que no tempo de Schmitt, vis-à-vis dos problemas da imigração e da bioética. A maior parte dos Estados, além de negar o direito político do sufrágio, nega o direito ao trabalho, à previdência e mesmo à permanência no país por mais de um determinado tempo, em geral bem curto. Uma tal igualdade não existiria em parte alguma, o que só mostraria que o liberalismo seria uma ideologia que mascararia o que acontece política e mesmo economicamente. A igualdade só tem sentido em particular, não em geral, ou seja, há que se falar da igualdade em relação a algum predicado, como a riqueza ou a cidadania. Senão, o nascimento resumiria toda a igualdade e com isso o próprio conceito de igualdade não teria mais nenhum significado político.

As desigualdades não podem ser eliminadas simplesmente afirmando que os homens são todos iguais em algum aspecto, por exemplo, são todos matáveis. Isso significa que as diferenças se tornarão relevantes em algum aspecto, ainda que não um aspecto político, como na distribuição da propriedade. Isso é inevitável, para Schmitt. Fosse evitável não haveria mais necessidade de política. (SCMITT, 2000, p. 12-13).

A filosofia política de Rousseau é um paradigma para a interpretação de Schmitt, até porque ela é o fundamento para muitas defesas da democracia. Segundo ele, a obra de Rousseau comportaria dois modelos de igualdade incoerentes entre si. Por um lado, uma fachada liberal, a apontar para o contrato; por outro lado, um núcleo de homogeneidade corporificado no conceito de vontade geral. (SCHMITT, 2000, p. 13). Ou seja, no núcleo do pensamento político de Rousseau está uma homogeneidade do povo tão forte que só haveria unanimidade, sem necessidade de partidos, religiões diferentes, nada que pudesse dividir o povo. Na interpretação que Schmitt faz de Rousseau, a unanimidade seria tão forte que a feitura das leis não geraria discussão. (SCHMITT, 2000, p. 14). Ele chega a afirmar que isso implicaria que, em um processo judicial, o acusado e o acusador deveriam querer a mesma coisa. (SCHMITT, 2000, p. 14). Por isso, a unanimidade não precisa de um contrato para construí-la. Como bem pontuou Heck, a vontade geral é um evento, não uma construção: “A volonté générale é evento e não um resultado discursivo”. (HECK, 2008, p. 15). O contratualismo pertence a um outro mundo. Um mundo liberal constituído por sujeitos individuados ao extremo, como mônadas. (SCHMITT, 2000, p. 14).

A democracia implica uma série de identificações que o liberalismo nega, como aquela entre o governo e o governado. (CRISTI, 2011, p. 360). Ora, uma democracia com base na homogeneidade é estável porque seu governo não reside no resultado aritmético da votação, sempre mutável. Por isso mesmo Rousseau pôde sustentar não haver nem a necessidade de votar. Na Teologia política, Schmitt acusou Rousseau de eliminar, mediante o conceito de vontade geral, os elementos decisionista e personalista da soberania. (SCHMITT, 1985, p. 48). Agora, como mencionado acima, a nova redescrição que ele faz da democracia permite-lhe se reconciliar com Rousseau, haja vista este último extirpar o individualismo de sua concepção de democracia. Em suma, a lei na democracia não é ratio, mas vontade: lex est quod populus jussit. (SCHMITT, 2003, p. 253). Se o povo é o soberano, povo não é o conjunto de todos os indivíduos, mas o resultado de uma (de)cisão por uma identidade. Desse modo, sua concepção de democracia continua honrando o decisionismo.

Agamben chama a atenção exatamente para o conceito cindido de povo presente no contexto da democracia. De fato, se a democracia for definida pela afirmativa de Lincoln, ou seja, como governo do povo, pelo povo e para o povo, pode-se perceber uma fratura em tal conceito, como se houvesse uma sobreposição de povos: “Um mesmo termo denomina, assim, tanto o sujeito político constitutivo quanto a classe que, de fato, se não de direito, é excluída da política” (AGAMBEN, 2002, p. 183). Ele arremata:

O “povo” carrega, assim, desde sempre, em si, a fratura biopolítica fundamental. Ele é aquilo que não pode ser incluído no todo do qual faz parte, e não pode pertencer ao conjunto no qual já está desde sempre incluído [...] é a fonte pura de toda identidade, e deve, porém, continuamente redefinir-se e purificar-se através da exclusão, da língua, do sangue, do território. (AGAMBEN, 2002, p. 184).

Redefinida de forma existencializada como uma identidade homogênea que se sustenta em relação a outras identidades, a partir da relação amigo- inimigo que é a intensidade máxima dos vínculos entre os homens, ou seja, o seu caráter propriamente político, o contraste com o liberalismo e o estado de direito devem patente e implica que “As áreas até então ‘neutras’ - religião, cultura, educação, economia - deixam então de ser ‘neutras’ no sentido de não-estatal e não-político”. (SCHMITT, 1992, p. 47). Assim, não há que se falar em nada que fique fora do político, especialmente a economia. Não há que se falar em economia liberada do Estado ou esse liberado daquela. (SCHMITT, 1992, p. 50).

De acordo com Schmitt, só haveria dois princípios político-formais: identidade e representação. O Estado, como o próprio nome sugere, é o status, a situação de um povo como unidade política. Pressupõe homogeneidade e identidade que, por não poderem nunca ser reais, sempre implicam um certo grau de representação, pois nunca é o povo todo que participa do governo. (SCHMITT, 2003, p. 205). Os burgueses lutavam contra toda espécie de absolutismo estatal, contra a democracia, a identidade extrema e contra a monarquia, a representação extrema. (SCHMITT, 2003, p. 215).

Para Schmitt, é ponto extremo de dúvida que o método estatístico de contagem de votos faz desaparecer a substância da igualdade democrática. Ainda que seja o voto que torne democrática a eleição, a escolha (SCHMITT, 2003, p. 250), não há uma correlação entre número e substância democrática. Por isso mesmo, anota Schmitt, Rousseau pôde afirmar que não é democrático que 90 corrompidos dominem sobre dez honestos, pois desaparecida a substância democrática, ou seja, a virtude, nem a unanimidade serviria para coisa alguma. (SCHMITT, 2003, p. 246).

Os princípios políticos da representação e da identidade são importantes para se compreender por que é mista a forma de governo que realiza o Estado de direito, haja vista o princípio da identidade ser imune à possibilidade de controle:

Pufendorf’s formulation should be quoted: In a democracy, where those who command and those who obey are identical, the sovereign, that is, an assembly composed of all citizens, can change laws and change constitutions at will; in a monarchy or aristocracy, “where there are some who command and some who are commanded,” a mutual contract is possible, according to Pufendorf, and thus also a limitation of state power. (SCHMITT, 2000, p. 14-15).

Há quem defenda, como Cristi, ter havido mudanças no pensamento de Schmitt em razão dos acontecimentos históricos. É assim que ele teria sido, ao início monarquista e, depois, um democrata, embora não honesto e sincero. Sem embargo, parece ser melhor ler Schmitt a partir de seu conservadorismo, o que já se mostra no seu viés decisionista. Conservadorismo que ele deve aos autores do séc. XIX com vieses teológicos, principalmente em sua reação contra a Revolução Francesa e contra o anarquismo. A sua oposição ao normativismo do positivismo de Kelsen e ao liberalismo também seguem o mesmo veio conservador, pois, na verdade, tais teorias implicam, a seu juízo, um individualismo incompatível com formulações políticas que pensam o ser humano mais ligado à comunidade. Nesse particular, o seu conservadorismo se manifesta na leitura da democracia por ele proposta. Trata-se de uma democracia incompatível com o liberalismo e com o Estado de direito. Portanto, é uma versão de democracia totalitária, na qual o indivíduo se dissolve no todo. Nesse diapasão, o texto que ele escreve sobre Hobbes mostra como o individualismo que ele imputa ao próprio Hobbes foi a mancha podre que levou ao Estado de direito liberal, no qual prepondera o indivíduo sobre a comunidade:

La reserva de fe privada concedida por Hobbes la entiende Carl Schmitt como puerta de entrada de la subjetividad de la conciencia burguesa y de la opinión privada, que progresivamente desarrollan su fuerza subversiva. Pues esta esfera privada se proyecta hacia afuera y se amplía hasta convertirse en esfera de la opinión pública burguesa; en el seno de esta última la sociedad civil se hace valer como contrapoder político. (HABERMAS, 2007, p. 71).3

Como um conservador consequente, sua democracia não pode honrar o individualismo. Na verdade, o seu tratamento da democracia é marcado por uma dupla faceta. Primeiro Schmitt a circunscreve nos limites do Estado de direito e do individualismo, que ele, na verdade, considera antidemocráticos. Ele assim os considera porque a sua concepção de democracia define-a sob o ponto de vista da homogeneidade, da identidade de todos os membros. Essa é também a sua leitura de Rousseau. Portanto, se trata de uma versão de democracia conservadora e totalitária que não honra o princípio da liberdade individual. Ou seja, a democracia não pode ser concebida como uma expressão do individualismo. O individualismo desenraíza o indivíduo, cinde-o da comunidade. (SCHMITT, 1985, p. 3). Se até o sistema de Hobbes, para ele, honraria o individualismo, então, é possível ter uma ideia do modo como ele concebe a homogeneidade exigida pela democracia como poder soberano. Em um tal sistema não haveria necessidade de um parlamento discutidor. O legislador poderia até ser contratado para fazer a lei, pois operaria a vontade geral. Ainda que ele critique a vontade geral por despotencializar o decisionismo em sua versão personalizada, a democracia assim concebida não deixa de honrar o decisionismo do soberano em uma perspectiva agora despersonalizada. No que diz respeito à teoria da constituição que honra o princípio político democrático, o conceito de poder constituinte reterá o caráter da decisão que opera no vácuo, sem normatividade anterior que a gravitacione ou, pelo menos, assim parece.

Sem embargo desse cariz, duas possibilidades interpretativas se abrem. Uma defendida por Agamben e outra por Sá. O primeiro, comenta uma afirmação de Schmitt de 1982: “I have been and I am a jurist. I will remain a jurist. I will die a jurist. And all the misfortune of being a jurist is involved therein.” (SCHMITT apud AGAMBEN, 2016, p. 458). A intepretação de Agamben é a de que, com isso, Schmitt queria mostrar que o direito é basicamente constituído pela decisão. Para ele, o estado de exceção mostraria precisamente que o direito é formalmente uma decisão a exorbitar qualquer norma. (AGAMBEN, 2016, p. 458). Por sua vez, Sá é de outra cepa. Para ele, o estado de exceção seria diferente da anarquia e do caos, a revelar uma ordem, ainda que uma ordem não jurídica, tendo na autoconservação a sua racionalidade própria. (SÁ, 2003, p. 171). Ora, considerando a própria afirmativa de Schmitt da correlação entre proteção e obediência, azada parece a posição de Sá, senão veja-se: “[...] não há [...] nenhuma legitimidade ou legalidade racional sem a conexão de proteção e obediência. O protego ergo obligo é o cogito ergo sum do Estado”. (SCHMITT, 1992, p. 78).

Dos elementos da democracia

Considerando as quatro teorias apresentadas e suas críticas, torna-se possível escrutinar alguns elementos que poderiam ser considerados fundamentais no tratamento de democracia. A seguir, apresenta-se tais elementos:

1. PODER. Toda democracia tem um elemento de poder, como seu próprio nome indica. Poder é um conceito complexo a envolver a legitimidade, a autoridade e, no limite, a violência, já que todo poder é capaz de violência. (HART, 1994, p. 201). Isso pode ser visto na ambiguidade dos termos poder e autoridade:

“Power” is an ambiguous term. It stands for potentia, on the one hand, and for potestas (or jus or dominium), on the other. It means both “physical” power and “legal” power. The ambiguity is essential: only if potential and potestas essentially belong together, can there be a guaranty of the actualization of the right social order. The state, as such, is both the greatest human force and the highest human authority. (STRAUSS, 1965, p. 194).

Segundo Schmitt (1996, p. 30, 1996, p. 45), Hobbes, justamente, teria eliminado a distinção entre auctoritas e potestas.

O modelo agonístico, com base na hegemonia, bem como a democracia homogênea são fortes nesse quesito. Poder-se-ia dizer tratar-se de um elemento político. Outrossim, esse particular é o que dá à democracia majoritária um peso peculiar. (WALDRON, 2016, Cap. 10).

Que o poder seja um elemento ineliminável mostra-se, de forma oblíqua, nas três versões liberais da teoria, a demandar limites à democracia majoritária, incluso na versão agônica de Mouffe, configurada com base na defesa do núcleo ético-político da liberdade e da igualdade.

Por certo, o poder, na medida em que se canaliza política e juridicamente, pode cumprir uma função assecuratória de princípios abstratos como a liberdade e a igualdade, bem como epistêmica no sentido da determinação dos mesmos.

2. POVO. Poderia ser formulado também no plural: povos. Esse elemento, além de estar presente na própria palavra democracia, compõe um dos pontos centrais. Conceitos como virtude, maldade, antropologia, solidariedade, amizade, republicanismo, representação,4 têm peculiar relação com o conceito de povo. Os modelos agônico e homogêneo, amiúde, chamam a atenção para esse elemento. “Povo é uma categoria política, que reúne as pessoas que estão submetidas a um governo. Desta forma, povo se opõe a exatamente a governo [...]. Um ‘governo do povo’ é, assim, uma contradição nos termos.” (MIGUEL, 2013, p. 20). De acordo com o teórico da Constituição, “O conceito central da democracia é Povo, e não Humanidade”. (SCHMITT, 2003, p. 230). Ou seja, se trata da democracia do povo, não da democracia da humanidade. Nesse particular, segundo Schmitt (2003), haveria duas formas de tratar as minorias ou imigrantes: ou eles são assimilados pela cultura dominante ou são oprimidos, expulsos, eliminados. (p. 228). O conceito de nação também tem aqui o seu lugar. (SCHMITT, 2003, p. 228).

3. DIREITO ou LIBERDADE. Poder-se-ia nominar também no plural: direitos ou liberdades. Todas as versões de democracia têm preocupação em dar uma resposta a esse ponto, seja em um sentido mais amplo, mais restrito ou mais disciplinado. As três versões liberais da teoria se centram nesse elemento. É o caso do núcleo ético-político da liberdade e da igualdade em Mouffe, dos direitos humanos em Habermas ou da igualdade da liberdade de voto em Schumpeter. Por certo, esse elemento cria diversas dissonâncias em relação à democracia. No caso da democracia homogênea, esse elemento é entendido de forma reduzida, no sentido de só haver os direitos reconhecidos pela comunidade entre os iguais, ou seja, estão informados pela igualdade democrática, a igualdade perante a lei. (SCHMITT, 2003, p. 174). Dito claramente, o seu conteúdo se determina pelas leis. Para alguns, como Nozick, a liberdade pode ser outro nome para a justiça.

4. LEI ou AUTORIDADE. Trata-se de um elemento jurídico, aquele da lei positiva. Habermas, bem como a versão schumpeteriana são fortes nesse quesito, diferentemente do modelo agônico. É praticamente ausente no modelo homogêneo, já que Schmitt teceu severas críticas ao direito, especialmente pelo seu viés positivista. No entanto, o elemento da segurança presente no direito, na medida em que se espera que repita, para casos semelhantes, as decisões pretéritas, é apenas um aspecto da lei positiva. O outro aspecto é aquele da discricionariedade defendida por muitos positivistas e que foi pouco aventada por Schmitt. De outro lado, o elemento da lei positiva se conecta fortemente com o poder. Em relação a esse ponto, vale acrescentar, o poder é um recurso escasso e disputado. O poder, sem um conteúdo mínimo (de liberdade, de igualdade, dentre outros), pode até ser viável e foi viável ao longo da história sem que tal conteúdo tivesse sido estendido a todos, contudo, em tal caso, ele é constantemente ameaçado por instabilidades. (HART, 1994, p. 201-202). Há, por certo, nesse quesito, uma conexão com o poder, como já mencionado há pouco, sendo apenas de se reforçar a ambiguidade existente entre poder e autoridade, destacada por Strauss, como visto acima. Em geral, essa instância cumpre uma função epistêmica no sentido da determinação de princípios abstratos como liberdade e igualdade, bem como assecuratória.

5. JUSTIÇA ou IGUALDADE. Há uma gama de teorias a conectar, fortemente, igualdade e democracia: “O valor normativo a ser perseguido na democracia é a igualdade entre os indivíduos.” (MIGUEL, 2013, p. 305). Rawls, por exemplo, usa o termo igualdade democrática no item 13 de sua obra máxima. De outro lado, segundo Schmitt (2003), muito embora se costume citar a liberdade e a igualdade como princípios democráticos, só a igualdade seria um princípio democrático; a liberdade, especialmente a individual, seria um princípio liberal. (p. 222). Vale destacar, como já avançado no conceito de povo, que, para ele, não se trataria de uma igualdade geral e indiferente, como dito pelos liberais. (SCHMITT, 2003, p. 223-224). Noções como equidade, imparcialidade e justiça estão conectadas com esse aspecto. Por certo, a querela econômica também tem peculiar correlação com esse elemento.

6. ECONOMIA. Considera-se um item à parte, haja vista a importância que esse elemento porta em relação à democracia, desde Aristóteles, passando por Marx até Laclau e Mouffe. Ela é a preocupação central da obra de Rawls, Dworkin, Habermas, Nozick e Fraser. Termos como fraternidade e solidariedade têm correlação com esse elemento.

Como visto, dois desses elementos, poder e povo, compõem o próprio termo democracia. Três outros elementos traduzem os ideais da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Este último ganha seu espaço privilegiado na dimensão da economia. O elemento jurídico ganha sua importância, hodiernamente, no geral, como elemento mediador.

Optou-se por separar os elementos da liberdade e da igualdade porque esses dois princípios não são facilmente conjugáveis, como pode ser visto a partir de Hobbes, Kant e Habermas. Para o primeiro, nos termos do Cap. XVI do Leviatã, o direito natural é a liberdade. Para ele, a igualdade, por um lado, é um fato natural, nos termos do Cap. XIII do referido livro: “Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte”; por outro lado, é uma determinação da lei natural que aparece na segunda lei, “contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo”, na nona lei, “que cada homem reconheça os outros com seus iguais por natureza” e na décima lei, “Que ao iniciarem-se as condições de paz ninguém pretenda reservar para si qualquer direito que não aceite seja também reservado para qualquer dos outros”. Segundo Kant (RL, AA 06: 237-238), o único direito inato que os humanos têm em razão de sua humanidade é a liberdade; a igualdade está contida na liberdade. Por fim, para Habermas,

Normas de ação que surgem em forma jurídica autorizam os atores a fazerem uso de liberdades subjetivas de ação. A simples forma dos direitos subjetivos não permite resolver o problema da legitimidade dessas leis. Entretanto, o princípio do discurso revela que todos têm um direito à maior medida possível de iguais liberdades de ação subjetivas. (HABERMAS, 1997, p. 160).

Vê-se bem, portanto, que ambos os princípios têm fontes e fundamentos diversos, particularmente se o que estiver em consideração for a liberdade jurídica e não a liberdade comunicativa.

Análise de alguns aspectos das teorias da democracia

Como visto, os vários modelos tecem severas críticas uns aos outros. Por exemplo, o modelo agregativo recebe críticas no sentido de que o modelo econômico de tomada de decisão, que está em sua base, ser problemático para o campo político. O problema do modelo de Schumpeter seria o seu caráter formal e restrito ao direito de votar. Teria um déficit epistêmico concernente à liberdade, à igualdade e à economia em face da necessidade de lhes dar um sentido mais substantivo, o que, por certo, faz com que os elementos povo e poder tenham um papel mais destacado.

A teoria agônica, por sua vez, tece severas críticas ao modelo deliberativo. Não obstante, ela mesma reconhece que nem tudo é hegemonia ou poder quando apela ao chamado núcleo ético-político da igualdade e da liberdade. Por seu turno, o problema do modelo homogêneo é o exagero na politização no sentido do conflito. Teria um déficit epistêmico no sentido de que as decisões parecem estar alicerçadas apenas em um voluntarismo aclamatório. Por outro lado, o modelo deliberativo é forçado a assumir que nem tudo é deliberação no sentido estrito do predomínio do discurso, ou seja, do melhor argumento, pois há negociações, as quais envolvem relações de poder e hegemonia.

Uma das mais duras críticas endereçada ao modelo deliberativo é que ele não seria realista e não levaria a sério os conflitos. Sem embargo dessa crítica, veja-se, a propósito, o que Rawls afirma a respeito do intolerante que, no limite, tem que ser combatido. Os cidadãos que seguem os princípios de justiça podem forçar os intolerantes a respeitar a liberdade dos outros. (RAWLS, 1999, p. 192). Habermas, por seu turno, também parece ter clara consciência dos limites da realidade, tanto que foca grandemente na coerção jurídica contra a força dos sistemas. Ademais, tem claramente presente o problema do dissenso e do conflito.

Uma das objeções de McCarthy à sua teoria é justamente que ela não distinguiria conflitos mais importantes do que aqueles categorizados por Habermas como conflitos de interesses motivados estrategicamente. Haveria pelo menos mais dois tipos. (MCCARTHY, 1991, p. 196). O primeiro diz respeito ao conflito que pode haver entre o bem comum e a economia. Ou seja, a disputa não é entre interesses particulares. Essa seria uma disputa ético-política. O segundo tipo de desentendimento é mais grave, pois concerniria ao que Habermas chama conflito moral, ou seja, a algo que deveria vincular a todos igualmente. Ele apresenta quatro exemplos: aborto, eutanásia, pornografia e direitos dos animais. A esse respeito, duas possibilidades podem se apresentar:

What one party considers to be a moral issue, another party may regard merely as a pragmatic issue or as a question of values open to choice or as a moral issue of another sort, or the opposing parties may agree on the issue but disagree as to the morally correct answer. (MCCARTHY, 1991, p. 197).

O caso do aborto é típico, para alguns, o feto é uma pessoa, portanto, tem direitos, o que implica alocar a proteção dos direitos do feto como questão de justiça, ou seja, daquilo que é devido aos outros. Para outros, o feto não é uma pessoa, portanto, não tem direitos, o que implica que a sua vida está à disposição da ética subjetiva de cada um.5 Para ele, “These types of disagreement are usually rooted in different ‘general and comprehensive moral views’” (MCCARTHU, 1991, p. 197). Por isso mesmo,

Disagreements of these sorts are likely to be a permanent feature of democratic public life. They are in general not resolvable by strategic compromise, rational consensus, or ethical self- clarification in Habermas’s senses of these terms. All that remains in his scheme are more or less subtle forms of coercion, e.g., majority rule and the threat of legal sanctions. (MCCARTHY, 1991, p. 198).

Não obstante, se os participantes forem reflexivos, bem como falibilistas, e considerarem as instituições e os procedimentos justos, eles tenderão a avaliar as decisões como sendo legítimas, ainda que discordem delas. Ou seja, consentiriam com normas que achassem injustas, talvez, na esperança de mudá-las no futuro. (MCCARTHY, 1991, p. 198).

Habermas acolhe tal consideração como conflito de valores por contraposição a conflito de interesses e começa por registrar um certo encolhimento da capacidade das pessoas, juridicamente consideradas, de privatizarem domínios da vida social, em face do crescimento da identidade dos indivíduos conectada com identidades coletivas que não podem ser privatizadas. (HABERMAS, 1995, 1996, p. 1488).6

Nesse sentido, ele analisa dois mecanismos constitucionais que seriam capazes de neutralizar diferenças ou conflitos (HABERMAS, 1995, 1996, p. 1489). O primeiro é pela distinção entre questões de justiça e questões da vida boa, ou seja, a diferença entre o justo e o bem, passível de aplicação para os casos da eutanásia e do aborto, por exemplo. Em casos assim, a questão está de tal modo ligada a visões de mundo, ideologias, religiões, que o conflito não pode ser resolvido por discurso ou negociação, restando como alternativa justamente a sua privatização sob o viés do que é eticamente disponível ao indivíduo decidir (HABERMAS, 1995, 1996, p. 1489). Porém, para tal, os sujeitos precisam tomar o ponto de vista moral: “They must, instead, take the moral point of view and examine which regulation is ‘equally good for all’ in view of the prior claim to an equal right to coexist.” (HABERMAS, 1995, 1996, p. 1490). Como ele observa, por um lado, isso não resolve propriamente o conflito, apenas abstrai dele. Por outro lado, tal mecanismo de neutralização não significa que as consequências dessa regulamentação sejam distribuídas simetricamente. Pode até ocorrer o contrário disso. Essa distribuição assimétrica das consequências acaba por ser um efeito colateral de se deixar irresoluta a controvérsia do conflito, tendo em vista a coexistência. Sabidamente, tal estratégica tende a beneficiar uma perspectiva liberal, por exemplo, em relação à eutanásia. Justamente por isso, faz-se necessária a tolerância, por exemplo, em relação ao aborto: “Instead, what is legally required of us is tolerance for practices that in ‘our’ view are ethically deviant. Tolerance is the price for living together in an egalitarian legal community.” (HABERMAS, 1995, 1996, p. 1490).

O uso de tal estratégia só pode ocorrer sob o pressuposto de que o conflito seja considerado ético. (HABERMAS, 1995, 1996, p. 1491). Em outras palavras, ele diria respeito a uma questão pessoal, não moral. Dito claramente, a questão não diria respeito a um caso de justiça no sentido daquilo que seria bom para todos. Com isso, ocorre a exigência de mais tolerância de uns em relação aos outros, o que acaba por impactar o segundo modo de neutralizar diferenças: a legitimação pelo procedimento. Mesmo num nível altamente abstrato de discussão moral da primeira estratégia, o consenso, de fato, raramente é alcançado. Em sendo assim, pergunta-se: a busca pela única resposta correta seria uma ilusão? Mesmo que empiricamente os consensos sejam bastante ilusórios, cabe perguntar, mais uma vez: por que a busca pela única resposta correta é ainda necessária? Em sendo a resposta positiva, como reconciliar tal desiderato com a evidência dos dissensos permanente?

Em consideração à primeira questão, dito cruamente, a crença na possibilidade de uma única resposta correta é necessária porque senão a alternativa seria a violência. Em outras palavras, caso não sejam possíveis esses vários tipos de entendimento entre as diferentes visões de mundo, então, a alternativa seria o conceito de política defendido por Schmitt em O conceito do político e em A crise da democracia parlamentar. (HABERMAS, 1995, 1996, p. 1493). Se os conflitos políticos forem de natureza ética e não puderem ter uma redescrição em um nível mais abstrato de justiça, então, haveria pouca alternativa à violência. Nesse caso, “Political disputes would forfeit their deliberative character and degenerate into purely strategic struggles for power […]”. (HABERMAS, 1995, 1996, p. 1493).

Desse modo, repõe-se a questão: como o procedimento pode suportar essa demanda? Precisamente nesse caso, para Habermas, a institucionalização jurídica do procedimento comunicativo pode ajudar. Com efeito, “a specific feature of law is that it can legitimately compel”. (HABERMAS, 1995, 1996, p. 1494), com isso, o discurso político e de negociação ganha algumas propriedades formais do direito. Por exemplo, sob o ponto de vista externo, limitações de tempo podem ser introduzidas como uma regra que, sob o ponto de vista interno do participante, não afeta a força legitimatória discursiva. Nesse diapasão, é pressuposta a legitimidade prima facie das decisões majoritárias, a despeito das limitações de tempo existentes para que uma decisão seja tomada, em geral por votação. Tratar-se-ia de um procedimento imperfeito porque não poderia garantir que o resultado viria marcado pela correção; por outro lado, seria um procedimento puro, pois não haveria critério de correção independente do próprio procedimento. (HABERMAS, 1995, 1996, p. 1494-1495).

Nessa perspectiva, para que a tolerância seja razoável, é necessário que haja uma base para concordar em discordar, senão, seria apenas um modus vivendi. (HABERMAS, 1995, 1996, p. 1500). No entanto, Habermas diagnostica que a tolerância vem sendo experimentada subjetivamente, de forma crescente, como não razoável. (HABERMAS, 1995, 1996, p. 1500). Por conseguinte, a tolerância é um recurso político que escasseia, o que pode ter por consequência a exacerbação do ódio e do conflito na sociedade. Habermas pensa que uma das maneiras de fazer frente a isso seria por meio de uma fundamentação normativa da tolerância. (HABERMAS, 1995, 1996, p. 1501).

Como conclusão, ele avança a tese segundo a qual, “The democratic process promises to deliver an ‘imperfect’ but ‘pure’ procedural rationality only on the premise that the participants consider it possible, in principle, to reach exactly one right answer for questions of justice”. (HABERMAS, 1995, 1996, p. 1501). Precisamente contra isso a perspectiva agônica levanta as suas suspeitas, as quais são admitidas por Habermas, na sua explicação do em princípio da citação, no sentido de “operate with the (generally valid) premise of ‘one right answer’ merely as a promissory note or bill to be paid at a later date”. (HABERMAS, 1995, 1996, p. 1502).

Conclusão

As diversificadas teorias da democracia combinam os elementos de forma diferente, dando maior ou menor importância a alguns deles. Há leituras que tomam a democracia como incompatível com direitos individuais fortes, como é a proposta homogênea. Há outras que a tornam incompatível com um tipo de economia, a capitalista, como o modelo agônico. Essas posições têm, outrossim, restrições ao modelo fortemente juridicizado de democracia. Dito em outras palavras, haveria uma incompatibilidade da democracia com o liberalismo, com a economia capitalista e com direito positivo

Há outras leituras mais compatibilistas. Essas leituras têm uma longa tradição que vem ao menos desde Hobbes, a incluir Locke, Kant, Rousseau, Rawls e Habermas. De acordo com os compatibilistas, seria possível harmonizar, equacionar, combinar os cinco elementos. Por exemplo, a proposta de Habermas (1997b, p. 10-11) defende que há um nexo constitutivo entre poder e direito. (p. 10). Nesse sentido, ela inclui o conceito de poder [Macht] e de autoridade [Autorität] normativa que advém justamente do direito legítimo. Portanto, diferentemente da proposta agônica, o conceito de poder político não é reduzido ao poder social. Justamente, segundo Habermas, as leituras empiristas, como a de Mouffe, que fala em objetividade social, não ignoram a relação entre poder e legitimidade, mas tendem a reduzir a legitimidade ao poder social como força [Kraft] capaz de impor interesses. Como visto, o conceito de hegemonia operaria uma convergência entre objetividade e poder, de tal forma a não haver lacuna insuperável entre poder e legitimidade. Para Habermas é diferente. Sob o ponto de vista do participante, as condições de aceitabilidade [Akzeptabilität] do direito e da dominação política [politischer Herrschaft] se transformam em condições de aceitação [Akzeptanzbedingungen], quando, então, as condições de legitimidade se tornam condições da estabilidade de uma crença geral na legitimidade do governo. Ou seja, não se trata do fato do poder social como quer Mouffe.

Evidentemente, isso confere um papel destacado às instituições jurídicas, especialmente à sua função judicante. Veja-se que um sentido realmente exacerbado da interpretação pode correr na direção de um sem sentido pleno dos princípios ético-políticos da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Como bem destacou o filósofo-político inglês, “Todas as leis, escritas ou não, têm necessidade de uma interpretação.” (HOBBES, 1979, Cap. XXVI). A despeito disso, a interpretação do soberano encontra um limite na disposição de obediência do súdito, na medida em que suas ordens têm que ter em vista a proteção do mesmo, como se lê no último parágrafo do Leviatã:

E assim cheguei ao fim de meu discurso sobre o governo civil e eclesiástico, ocasionado pelas desordens dos tempos presentes, sem parcialidade, sem servilismo, e sem outro objetivo senão colocar diante dos olhos dos homens a mútua relação entre proteção e obediência, de que a condição da natureza humana e as leis divinas (quer naturais, quer positivas) exigem um cumprimento inviolável.

Ora, não há proteção sem conteúdo certo, por exemplo, a proibição do homicídio. Desse modo, a proposta de um sem-conteúdo absoluto como condição da ordem política, como parece pressupor o conceito de hegemonia que se põe no lugar de uma falha, ou de uma ausência radical de conteúdo, não pode ser levada até o final, ao menos sob o pálio da democracia agônica que quer incluir a todos, não só os trabalhadores, e que, por isso mesmo, na letra do próprio texto, já não pode abdicar de duas determinações bem claras, as quais, portanto, constituem uma atmosfera por contraposição ao vácuo, ainda que rarefeita, aliás, com conteúdo oxigenado bem claro, a saber, direito à vida, direito à livre expressão de ideias, direito à tolerância:

Vislumbrada a partir da óptica do “pluralismo agonístico”, o propósito da política democrática é construir o “eles” de tal modo que não sejam percebidos como inimigos a serem destruídos, mas como adversários, ou seja, pessoas cujas ideias são combatidas, mas cujo direito de defender tais ideias não é colocado em questão. Esse é o verdadeiro sentido da tolerância liberal-democrática. (MOUFFE, 2005, p. 20).

Reale (1986) propôs uma teoria do direito, chamada por ele de tridimensional. Ele restringiu a teoria tridimensional ao domínio da ética, com alguma aplicação na estética. Pretende-se fazer duas alterações na sua teoria. A primeira é transformá-la nos termos de uma metateoria. Na verdade, não se trata de uma teoria específica, mas de uma metateoria sobre a ética, a incluir o direito, a moral e a política. Nesse sentido, os quatro modelos de teoria democrática teriam aspectos tridimensionais, já que têm aspectos filosóficos, sociológicos ou fáticos, e jurídicos. O ponto mais importante para a presente proposta é que o tridimensionalismo de Reale poderia apoiar o que se chamou de versões compatibilistas das teorias democráticas.

A teoria tridimensional, de acordo com seu autor, pressuporia uma complementaridade das pesquisas filosóficas, com finco no fundamento do valor, das pesquisas sociológicas, com viés na eficácia dos fatos, e das ciências jurídicas, com base na vigência da norma. (REALE, 1986, p. 14). Desse modo, fato, norma e valor não seriam separáveis, mas momentos inelimináveis do direito. Por seu turno, o tridimensionalismo específico de Reale “procura correlacionar dialeticamente os três elementos em uma unidade integrante”. (REALE, 1986, p. 48). Haveria uma tensão entre fato e valor, da qual resultariam as normas. (REALE, 2002, p. 392-393). Segundo Reale (1986, p. 57), a sua teoria tridimensional se distingue por ser concreta e dinâmica, ou seja, quando o sociólogo estuda o direito, as outras dimensões estão envolvidas, sendo que elas se alteram ao longo do tempo. Não se trata de uma tridimensionalidade genérica ou abstrata, na qual o sociológico, o jurista e o filósofo estudariam o fenômeno separadamente. Ela teria concreção histórica, pois seria funcional e dialética, já que da polaridade ou tensão entre fato e valor resultaria o momento normativo. Em epítome, ela seria concreta ou integrante, haja vista a norma ser uma realidade cultural, pois nela se compõem conflitos de interesses e se integram renovadas tensões fático-axiológicas, segundo razões de oportunidade e conveniência. Ou seja, a interpretação de uma lei depende de circunstâncias fáticas que se alteram, bem como da alteração do próprio valor, no caso de Reale, o valor da pessoa humana. De acordo com a teoria, a justificação do poder tem condicionamentos nos fatos, mas também no valor. (2002, p. 61).

Como se vê, portanto, o modelo tridimensional de Reale sustenta a interpretação compatibilista dos diversos elementos que deveriam compor uma boa teoria da democracia.

Por fim, sob um viés de justiça, quiçá, se poderia apontar para o caráter bem-sucedido da proposta compatibilista para realizar determinações de justiça. Para tal, toma-se com exemplar a teria de Fraser (2013, p. 193), que é, precisamente, uma teoria tridimensional da justiça. Justiça, para ela, significa paridade de participação, de tal forma que com essa formulação ela correlaciona diretamente justiça e democracia. Segundo o seu modelo, injustiças são obstáculos à participação: por um lado, no domínio da economia, tal obstáculo, ou injustiça, seria a má-distribuição; de outro lado, hierarquias sociais e culturais que ferem o igual status, também afetariam a paridade de participação. Vale anotar que essas desigualdades de status são nominadas por ela de reconhecimento falho [misrecognition]. Essas duas dimensões da justiça, a econômica e a cultural, têm relações mútuas, mas não se reduzem uma à outra. (FRASER, 2013, p. 194). Por fim, ela acrescenta uma terceira dimensão, aquela propriamente política, instância na qual as lutas referentes à má-distribuição e ao reconhecimento falho são, na verdade, decididas. Ela concerne a quem e como se decide. Tem relação, portanto, com a representação. (FRASER, 2013, p. 195). A injustiça, nessa dimensão, é a representação falha [misrepresentation]. Por certo, tem relação com as outras duas esferas, mas não pode ser reduzida a elas. (FRASER, 2013, p. 196). O viés político-democrático de sua proposta se mostra em uma certa prioridade da dimensão da representação em relação às outras duas esferas: Thus, no redistribution or recognition without representation.” (FRASER, 2013, p. 199).

Ora, é possível avaliar as democracias atuais, fortes no predomínio do elemento da lei positiva, no sentido de terem avançado nas dimensões da justiça propostas por Fraser, haja vista terem determinado e assegurado, não sem luta política, direitos de participação no poder, direitos sociais que asseguram condições mínimas de vida, bem como determinarem e assegurarem o respeito a um status igualitário mínimo no sentido do reconhecimento devido igualmente a todos, ainda que não em um sentido afetivo.7

Referências

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1Nesse sentido, as perspectivas libertárias tendem a dar um peso maior aos direitos individuais do que aos direitos políticos. Disso resulta um conceito de democracia, no máximo, instrumental, ou seja, como garantia da liberdade individual, como, aliás, já aparece no texto de Constant (1819): “La liberté individuelle, je le répète, voilà la véritable liberté moderne. La liberté politique en est la garantie.” O próprio Habermas (1997a) admite que se o Estado de direito for compreendido como aquele que protege a liberdade negativa, ele é possível sem democracia (p. 294), razão pela qual o seu intento foi o de “[...] provar a existência de um nexo conceitual ou interno entre Estado de direito e democracia, o qual não é meramente histórico ou casual”. (p. 310).

2A economia constitui um ponto central da democracia por parte de Habermas, mesmo do Habermas tardio, do que é ilustrativo o seu livro Na esteira da tecnocracia, cujo capítulo 7 vem justamente intitulado Democracia ou capitalismo?

3“Schmitt admira a Hobbes a la vez que lo critica. Celebra en Hobbes al único teórico político de rango que en el poder soberano reconoció la sustancia decisionista de la política estatal. Pero también lamenta al teórico burgués que se arredra ante las últimas consecuencias metafísicas y que, contra su voluntad, se convierte en antecesor del Estado de Derecho tal como lo entiende el positivismo jurídico.” (HABERMAS, 2007, p. 69).

4Como já mencionado, o conceito de representação é central, não só para a democracia, como para a política. Constant (1819) apontou para a necessidade da representação como o verso da medalha do que ele nominou a liberdade dos modernos. Para Schmitt (2003, p. 206), “(N)ão há Estado algum sem representação”. De acordo com Miguel (2014, p. 13), “[...] a representação política é incontornável para qualquer tentativa de construção da democracia em Estados nacionais contemporâneos”.

5Essa oposição pode, ainda, vir marcada por diferentes visões de mundo, com aquela de muitos religiosos que acreditam: “First, God created the universe. Second, God created the universe for a purpose, and with a design or plan for achieving that purpose. Third, God’s purpose for the universe is a supremely and inclusively good purpose - good in the sense that it involves the achievement of the blessedness of God’s creatures. This framework of beliefs about life and the universe is vastly different from a secular framework, which instead views life largely as a fortunate (or perhaps unfortunate) accident without any encompassing purpose or plan.” (SMITH, 2014, p. 1350). É de se anotar que já Coulanges (2009) apontava para o diagnóstico de que a crença religiosa, muito embora uma criação humana, seria mais forte do que os seus criadores, pois o homem acaba submetido ao seu pensamento: “Il est assujetti à sa pensée.” (p. 163).

6Uma tese que relembra um ponto suscitado por Sandel (1998, p. 150), quando afirma que os membros de uma sociedade “[…] conceive their identity- the subject and not just the object of their feelings and aspirations- as defined to some extent by the community of which they are a part. For them, community describes not just what they have as fellow citizens but also what they are, not a relationship they choose (as in a voluntary association) but an attachment they discover, not merely an attribute but a constituent of their identity.”

7Nesse particular, o projeto da democracia deliberativa de Habermas, com base em papel bastante expressivo do direito positivo, inclusive como compensação pelas falhas de eticidade, contrasta com a versão honnethiana de democracia em bases mais éticas que jurídicas. (VOLPATO DUTRA, 2017). Honneth parece ter operado, inclusive, uma espécie de virada afetiva na teoria crítica. Mais que isso, o reconhecimento, no sentido da afetividade, acaba galgado a fundamento da própria cognição do mundo. (HONNETH, 2008, p. 40 s). Analogamente à terminologia de Darwall (1977), opera- se um deslocamento do reconhecimento como respeito moral e jurídico para o reconhecimento como afeto [appraisal]. (p. 39). De se destacar, inclusive, o modo como Honneth parece recepcionar, por um lado, a crítica de Marx ao direito, mas sem dar, como Marx, o devido peso à economia, por outro lado, ele parece reconstruir ou atualizar a crítica de Hegel a Kant, contudo, dando um peso maior não ao Estado, mesmo que inflado eticamente, mas preenchendo com afetos de amor e de estima o vácuo deixado pelas relações jurídicas e morais inquinadas de patologia. (HONNETH, 2015, Cap. 4.3 e 5.3). Tendo em vista essa discussão, vale anotar esta frase atribuída a Martin Luther King Jr. “It may be true that the law cannot make a man love me, but it can keep him from lynching me, and I think that’s pretty important.” (Apud SCHAUER, 2015, p. 22).

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