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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.spe3 Caxias do Sul  2018  Epub 02-Set-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.dossie.14 

Artigos

As variedades do interesse comum

The varieties of common interest

Marco Antonio Azevedo* 

*Unisinos.


Resumo

O artigo apresenta um estudo exploratório sobre o tema dos interesses gerais, propondo uma diferenciação entre interesses genuinamente coletivos e interesses comuns. A defesa de que há interesses genuinamente coletivos é parte essencial das teorias políticas identificadas como “republicanas”. Meu objetivo, porém, não será propriamente defender a visão republicana contra suas adversárias. Pretendo apenas explorar alguns caminhos teóricos que permitem tornar plausível a tese de que nem todos os interesses tidos como “públicos” possuem uma característica única. Defenderei que há uma diferença essencial entre os interesses que chamarei de “comuns”, que resultam da agregação de interesses individuais, e os interesses genuinamente “coletivos”. Não obstante, mesmo que existam interesses genuinamente coletivos disso não se segue que todos esses interesses devam prevalecer sobre todo e qualquer interesse privado ou comum. Há interesses individuais exigíveis (direitos individuais) sobre a comunidade, que, por definição, prevalecem sobre os interesses da coletividade. Ao final, abordarei a questão de se o princípio majoritário pode ser defendido como modalidade de decisão epistemicamente superior quando se trata de decidir qual é o conteúdo do interesse geral.

Palavras-chave: Rousseau, Hobbes; Vontade Geral; Interesse Coletivo; Teorema de Condorcet; Proceduralismo Epistêmico

Abstract

This article presents an exploratory study on the issue of general interests, proposing a differentiation between authentic collective interests and common interests. The defense of authentic collective interests is an essential part of political theories identified as “republican”. My goal, however, is not properly to defend the republican view against its opponents. I intend only to explore some theoretical paths that allow to make plausible the thesis that not all the interests considered as “public” have a unique characteristic. I will argue that there is an essential difference between the interests that I will call “common,” resulting from the aggregation of individual interests, and the authentic “collective” interests. Nevertheless, even if there are genuine or authentic collective interests, it does not follow that all of them must prevail over any and all private or common interests. There are claimable individual interests (individual claim-rights) against the community, which by definition should prevail over the interests of this collectivity. In the end, I will address the question of whether the majority principle can be defended as an epistemically superior mode of procedure in order to decide which the contents of general interest are.

Keywords: General Will; Collective Interest; Condorcet’s Theorem; Epistemic Proceduralism

Introdução

O que devemos intender por um interesse comum? Falamos dos interesses da nação, dos interesses dos grupos com os quais nos identificamos e mesmo dos grupos dos quais mantemos certa distância ou posição crítica; falamos também sobre os interesses de instituições, de empresas, ou de clubes; e falamos frequentemente nos nossos interesses e não apenas nos meus ou teus, ou nos interesses separados de cada um, nos interesses de poucos ou de muitos. Neste artigo, pretendo tratar desse tema de forma exploratória . Fora da filosofia, estudos exploratórios são estudos (frequentemente empíricos) que não pretendem mostrar que uma hipótese é verdadeira, mas investigar um tema com a intenção de aventar hipóteses. Aqui, o tema dos interesses comuns será tratado de forma exploratória em razão de tratar-se de um estudo preliminar e incompleto. Para isso, partirei do pressuposto de que há tipos diferentes de interesses comuns, e, dentre esses, postularei a existência real do que chamarei adiante de interesses coletivos genuínos, em contraste com os interesses que resultam da coincidência ou da agregação de interesses individuais independentes. O estudo inicia com uma contextualização de duas posições diferentes em filosofia política sobre o tema: a visão liberal e a visão republicana. Sigo adiante procurando explorar questões que o Professor João Carlos Brum Torres vem suscitando há quase 30 anos sobre os fundamentos da representação política e da vontade geral (no sentido que lhe deu principalmente Rousseau). A seguir, procurarei apresentar as linhas gerais da teoria que Copp (2007) desenvolveu sobre a teoria das ações coletivas e sobre o que chama de “ações secundárias”. Depois, apresentarei uma taxonomia dos interesses gerais a partir de uma proposta feita por Jerry Postema (é aqui que introduzirei a distinção entre interesses coletivos e comuns). Adiante procurarei mostrar que, mesmo que existam grupos humanos com interesses coletivos, disso não se segue que tais interesses devam sempre prevalecer sobre todo e qualquer tipo de interesse individual (pois há interesses individuais exigíveis sobre os próprios coletivos). Ao final, assumindo que há interesses coletivos genuínos, examinarei aspectos da visão conhecida como proceduralismo epistêmico e suas conexões com o famoso teorema do Júri de Condorcet, especialmente sua defesa do valor epistêmico da escolha majoritária.

Rousseau: traidor da liberdade?

Dentre as acusações polêmicas de Berlin (2002a, 2002b) encontra-se a inclusão de Rousseau na sua lista dos pensadores que considerava traidores da causa da liberdade. E, dentre as ideias perniciosas atribuídas a Rousseau, a mais perniciosa, segundo Berlin, é sua visão de que, para encontrar a verdadeira liberdade, é preciso render-se incondicionalmente à vontade geral. Trata-se de uma submissão incondicional, pois, como interpreta Berlin, Rousseau não a deriva, tal como em Hobbes, de um acordo ou de um “trade-off ” entre interesses pessoais, mas de um ato racional por meio do qual cada um se submete a ninguém mais senão a si mesmo. É assim que a famosa frase de Rousseau de que a sociedade pode legitimamente forçar cada um a ser livre faria sentido. Rousseau parte, como era costume, de uma pressuposição voluntarista: somente se é livre quando se faz aquilo que a própria vontade comanda. Ora, como a vontade geral é a única vontade objetiva de cada um, submeter-se a ela equivale a submeter-se a si mesmo, com a consequência de que toda vontade subjetiva que contrarie a vontade geral torna-se nada mais que uma “falsa” vontade. (BERLIN, 2002a, p. 46-47).

Por um bom tempo persuadi-me de que Berlin tinha razão. Hoje penso que ele estava errado. É verdade que os exageros retóricos de Rousseau dificultam interpretações precisas, porém, sua preocupação de fundo era honesta: como unir pessoas com vidas separadas, com paixões e interesses frequentemente divergentes e eventualmente opostos, em uma única sociedade, sem tiranizá-las?

Berlin foi, de todo modo, bastante preciso ao interpretar o esforço teórico de Rousseau como a tentativa de conciliar dois valores absolutos: o valor absoluto da liberdade e o valor absoluto daquilo que é correto (BERLIN, 2002a, p. 35). O resultado desse esforço foi, no entanto, paradoxal, pois não é possível afirmar absolutamente um sem negar absolutamente o outro, especialmente se assumirmos, com Berlin, que a liberdade que merece proteção é a liberdade entendida como ausência de impedimentos externos à vontade, a “liberdade negativa”. (BERLIN, 2002b). Rousseau teria sido justamente quem tornou a oposição entre liberdade e razão uma oposição paradoxal, pois, sendo valores absolutos, liberdade individual e razão são valores intransigentes. Nenhum acordo é capaz de conciliá-los. Ora, conclui Berlin, como a razão comanda seguir aquilo que promove o bem de todos, isto é, já que a razão coincide com a vontade geral, a única solução coerente é defender uma forma de associação na qual cada indivíduo continue obedecendo apenas a si mesmo, permanecendo, assim, tão livre como estava no estado de natureza, nesse estado em que cada um dependia apenas de si mesmo. (BERLIN, 2002a, p. 36). A pretensa solução vislumbrada por Rousseau é, portanto, de que, no contrato social, cada indivíduo, ao doar- se para todos (ou para a vontade de todos), não se doa a ninguém em particular, permanecendo desse modo tão livre como era e como deveria ser.

Ora, para que isso possa ocorrer, é preciso que a vontade do indivíduo coincida objetivamente com a vontade geral. Como há manifestações subjetivas da vontade individual que contrariam aquilo que uma autoridade, em nome do interesse público, poderia julgar (suponhamos, com razão) como o conteúdo objetivo da vontade geral, Berlin interpreta que, para concordar com Rousseau, é preciso negar que tais manifestações subjetivas da vontade sejam, ao mesmo tempo, manifestações autenticamente livres e racionais. Disso se segue que, nessas circunstâncias, os indivíduos não são (ou ao menos podem não ser) autoridades adequadas para definir isoladamente o que é bom para si mesmos qua membros de um corpo civil, isto é, enquanto cidadãos de uma sociedade que visa a preservar sua liberdade. O problema aqui é que, assumindo-se que, nas circunstâncias da vida civil, as autoridades estão aptas a determinar o conteúdo da vontade geral, a consequência será alguma modalidade de paternalismo político, eventualmente sob alguma forma indiscriminada, coercitiva ou mesmo despótica.

A solução oferecida por Rousseau ao conflito entre liberdade e razão é, portanto, insatisfatória. Ela simplesmente elimina conceitualmente a possibilidade de que alguém possa estar em desacordo autêntico com seu grupo. Afinal, para que a liberdade individual não seja simplesmente extinta por algum passe conceitual misterioso, ou como disse Berlin, por um “movimento místico” (BERLIN, 2002a, p. 45),1 é preciso admitir que a discordância do indivíduo com seu próprio grupo seja uma discordância genuína, assim como é preciso também admitir que a coincidência ocasional de opiniões em certo grupo, como defendeu Rousseau, possa eventualmente não coincidir com a vontade geral, sem também que as divergências eventuais entre grupos ou indivíduos sejam sempre interpretadas como sinal de oposição entre facções.

Berlin foi bastante duro com Rousseau. Em sua opinião, sua defesa da liberdade individual é suspeita e desonesta. A acusação é forte, mas a verdade é que uma consequência funesta da visão metafísica de Rousseau é transformar a liberdade individual em refém da vontade geral. O problema é que, ao recusarmos a metafísica de Rousseau, restauramos o paradoxo. Poderiam os indivíduos, enquanto membros de um grupo, e agindo de forma racional, seguir compartilhando uma mesma vontade coletiva enquanto individualmente divergem dela? Ora, por que não? Mas, nesse caso, o paradoxo é inevitável. Afinal, se assumirmos com Rousseau que toda adesão à vontade geral é necessariamente uma adesão livre, como poderia haver um interesse particular genuíno que seja, ao mesmo tempo, livre e divergente da vontade geral?

Amartya Sen, penso, expôs uma defesa convincente da intransponibilidade do paradoxo quando argumentou contra a possibilidade de um liberal Paretiano. (SEN, 1970). O argumento de Sen, embora seja objeto de muita discussão e controvérsia (ALDRICH, 1977; BERNHOLZ, 1974; GAERTNER ; KRUGER , 1981, 1983; NG, 1971), parece-me correto e convincente. Assumindo-se, tal como estipulado por Arrow (1963), a condição inicial de um domínio não arbitrariamente restrito de alternativas para a escolha social racional (o que, para o propósito deste artigo equivale ao que acima identifiquei como a vontade geral), ou seja, assumindo-se que: a) qualquer alternativa de ordenamento das preferências individuais pode ser objeto de escolha social, e aceitando-se, além disso, duas outras condições adicionais, uma delas, b) a condição Paretiana, a saber, de que se todos os indivíduos preferirem uma alternativa x a outra alternativa y, então a sociedade deverá preferir igualmente x a y, e a outra c) o requisito liberal (que preserva as preferências de cada indivíduo com respeito a aspectos que envolvem seu próprio bem-estar), isto é, de que, em havendo para cada indivíduo i ao menos um par de alternativas, digamos (x, y), tal que se este indivíduo preferir x a y, então a sociedade deveria preferir x a y, e se esse indivíduo preferir y a x, então, a sociedade deveria preferir y a x, a consequência, como prova Sen, é de que é impossível encontrar uma única função de escolha social capaz de satisfazer essas três condições. Isto é, não há uma única escolha social que seja capaz de satisfazer em uma só tacada um único interesse coletivo e, ao mesmo tempo, as múltiplas variações das preferências individuais protegidas pelo princípio liberal.

A prova da impossibilidade de um liberal Paretiano por Sen é uma prova sofisticada da tese mais simples de que o interesse geral pode não equivaler efetivamente a nenhum dos conjuntos possíveis de interesses e preferências individuais agregadas, o que confirma, diga-se de passagem, a tese do próprio Rousseau (com a consequência adicional de que a promoção do bem-estar comum é incapaz de satisfazer de modo absoluto o princípio liberal que exige respeito às escolhas e preferências individuais - justamente a consequência paradoxal que Rousseau pretendia eliminar com sua doutrina de que somente a vontade geral é racional). Disso se segue que a possibilidade de que algo possa eventualmente representar um interesse comum sem corresponder a nenhuma das somas particulares dos interesses individuais dos cidadãos (ou até mesmo de sua ocasional e coincidente unanimidade) é uma possibilidade ineliminável. Nesse caso, é preciso reconhecer que há uma diferença ontologicamente irredutível entre o interesse privado, particular e individual, e o interesse geral ou coletivo, porém, não agregado, ficando ainda em aberta tanto a questão epistêmica de como é possível conhecer esse interesse geral não agregado (dado que, ao que parece óbvio, somente temos acesso a juízos privados - grupos, afinal, não portam estados psicológicos), bem como a questão moral (alguns prefeririam chamá-la de “ética”) do valor da realização do interesse público do ponto-de-vista subjetivo desses indivíduos que perseguem sua própria felicidade pessoal, ainda que vivam sob condições de dependência mútua.

Uma vantagem em aceitar a realidade do paradoxo é que, com isso, a tensão existente entre a tentativa de satisfazer o interesse geral e as tentativas de promover e proteger a liberdade individual torna-se menos misteriosa. Trata-se da inelutabilidade do pluralismo axiológico, algo sobre o qual Berlin tanto insistiu em sua crítica ao iluminismo. (BERLIN, 1999). Talvez essa tensão seja, como também defendeu Sen, natural e irredutível, muito embora ela seja politicamente problemática (afinal, conflitos entre a vontade privada e a vontade geral não são infrequentes).

Um problema agora para uma teoria política que dê importância à realização do bem comum sem recusar importância à proteção à liberdade é como dar espaço próprio à vontade do todo sem redundar na eliminação da liberdade privada (RUNCIMAN; SEN, 1965). O desafio é justamente escapar à crítica de Berlin, mantendo, porém, a visão de que é possível promover interesses sociais ou coletivos genuínos sem cair no paternalismo e no autoritarismo. Um desafio ainda maior é mostrar que a defesa de um modelo político que respeite a liberdade individual (a liberdade, nesse caso, de divergir do interesse comum) pode ser algo do próprio interesse geral.

A liberdade republicana e o problema de Brum Torres

Suponho que já tenha se tornado suficientemente conhecida a distinção proposta principalmente por Phillipp Pettit (1997) e Quentin Skinner (1998) entre duas teorias rivais sobre a liberdade civil: a teoria liberal e a teoria republicana. Segundo Pettit, filósofos liberais compreendem a liberdade civil apenas de modo “negativo”, isto é, apenas como ausência de interferência.2 Filósofos e pensadores republicanos, por sua vez, entendem a liberdade política como ausência de dominação, ou talvez melhor, como a condição de imunidade legal ao controle arbitrário (PETTIT, 1997, p. 10).

Não pretendo demorar-me nessas distinções. Talvez Pettit tenha razão em sua crítica a Berlin, mas meu foco não é o conceito de “liberdade”. Meu tema é a variedade dos interesses comuns e a sensatez da ideia de que existe um interesse coletivo genuíno. Ainda penso, aliás, que o temor de Berlin contra visões “positivas” é sensato. Por outro lado, penso também que o esclarecimento da distinção entre interesses genuinamente coletivos e outros interesses comuns agregados poderá iluminar uma saída para as preocupações que levaram Berlin a suspeitar das doutrinas que tradicionalmente assimilaram toda forma de liberdade política a uma única modalidade de liberdade “positiva”.

Vejamos, então, como as duas visões identificadas por Pettit e Skinner descrevem o interesse coletivo ou “público”. Segundo a visão liberal, todo interesse geral não pode senão corresponder ao interesse agregado dos indivíduos que compõem certa coletividade. Para essa visão, o critério democrático (o princípio que prioriza a vontade agregada da maioria sobre a vontade agregada da minoria) é um critério de decisão política cuja justificativa fundamental é tratar, procedimentalmente, cada indivíduo de forma absolutamente igual (ESTLUND, 2008, p. 6).3 Haveria, portanto, uma conexão não acidental entre igualdade civil e princípio democrático. Por outro lado, segundo essa visão, as preferências e escolhas de qualquer autoridade são sempre escolhas de um indivíduo concreto. A concepção é essencialmente voluntarista. Para Hobbes, por exemplo, o interesse comum dos súditos em viver sua vida com segurança e justiça (entendida como igualdade de tratamento) é o que justifica a transferência da autoridade que cada um tem originalmente sobre si mesmo para uma autoridade, que passa, assim, a legislar em nome de todos os cidadãos.4 Segundo a visão republicana, contudo, há em qualquer comunidade política, além dos interesses individuais agregados de seus componentes, interesses genuinamente públicos (ou como chamarei adiante, interesses genuinamente coletivos), que não se reduzem a qualquer modalidade agregada dos interesses privados dos indivíduos que compõem esse coletivo. Dentre esses interesses, inclui-se o interesse republicano de garantir que ninguém sofra domínio ou controle arbitrário.

Republicanos assumem que há, além dos indivíduos, um corpo político constituído pelo conjunto dos cidadãos da nação, embora esse corpo não equivalha ontologicamente à coleção cuja extensão é a totalidade dos cidadãos atuais dessa mesma nação. Ora, em havendo dois corpos ontologicamente distintos, não é necessário que os interesses da nação coincidam ou sejam congruentes com qualquer agregação possível dos interesses particulares de seus membros. Chamemos a essa tese de Tese da Não Equivalência (TNE). Assim, mesmo que por uma feliz coincidência todos os membros de um coletivo convirjam em afirmar um mesmo e único interesse, segue-se da TNE que esse interesse comum, ainda assim, não equivale ao interesse genuíno da coletividade. Os interesses agregados dos membros de um grupo e o interesse do grupo são essencialmente distintos. Por outro lado, com isso não se pretende afirmar que a nação seja apenas um constructo simbólico ou ideológico; nada disso implica que tanto a nação como seus cidadãos não sejam, em algum sentido, entes reais.5 Por outro lado, sendo um ente coletivo, a existência da nação não pode estar dissociada da existência e do comportamento de seus membros (TUOMELA, 1989). Afinal, são as ações dos cidadãos (ou de ao menos de alguns deles) a base para atribuir comportamento à nação. Por exemplo, são as ações de um chefe de Estado a base para atribuir a uma nação a decisão de entrar em guerra. (COPP, 1979). Entes coletivos, como as nações, agem; mas coletivos sempre agem por meio de seus representantes.

Copp chama a esse fenômeno de “ação secundária”. Estamos diante de uma ação secundária quando a ação de um agente é atribuída a ele com base na ação ou no comportamento de outros agentes. Tomemos o exemplo de Copp. Em 63 a. C., o cônsul Cícero prendeu os líderes da conspiração Catilinária que permaneceram em Roma após a fuga de Catilina. O Senado debateu o destino deles e autorizou sua execução. Sob essa autorização, Cícero ordenou as execuções. Copp destaca que, ao descrevermos esses eventos, atribuímos ações ao Senado com base em ações realizadas por seus membros. Da mesma forma, ao dizer que Cícero executou os rebeldes, atribuímos uma ação a Cícero com base em ações realizadas por pessoas que ele autorizou a atuar como verdugos. (COPP, 1980, p. 580). Uma ação é secundária se o agente ao qual atribuímos a ação realizou-a por meio de uma ação ou conduta de outra pessoa. Coletividades (voltarei a isso mais adiante), ao contrário de pessoas naturais, somente agem por meio de outras pessoas; isto é, coletividades somente são capazes de empreender ações secundárias.6

O problema é que ações secundárias, especialmente nos domínios da política, podem ocorrer eventualmente sobre um terreno “instável”. É inicialmente plausível supor que a associação existente entre a ação da pessoa natural que representa o agente e o agente respectivamente representado esteja amparada em convenções sociais. Na política presume-se que essas convenções sejam jurídicas, isto é, que estejam amparadas em regras que Herbert Hart identificou como regras secundárias (HART, 1961). Todavia, como explicar nesse caso as rupturas institucionais que de modos bem- sucedidos fundam novas ordens políticas? Afinal, nesses casos, há uma disputa política sobre quais ações efetivamente representam os interesses coletivos.

Em Figuras do Estado Moderno (TORRES, 1988), uma das obras seminais da filosofia brasileira, o professor João Carlos Brum Torres explorou esse problema indicando alguns rumos para a pesquisa sobre a natureza e as justificativas da representação política. Um desses rumos consiste em explorar algumas vantagens das teorias contemporâneas da linguagem ordinária com o fim de explicar conceitualmente esse aspecto aparentemente instável da fundação de novas ordens políticas. Voltemos, assim, ao contraste entre a ação de pessoas ordinárias e a ação de coletivos humanos. Sujeitos racionais (pessoas naturais, no sentido de Hobbes7) podem dar expressão direta ou primária a seus interesses individuais por meio de locuções. Pessoas naturais podem igualmente dar expressão linguística a seus interesses por meio de locuções proferidas por outras pessoas naturais. Entes coletivos, por sua vez, somente podem dar expressão a seus interesses, como já foi dito acima, por meio de representantes. Uma nação, como também enfatiza Torres, nunca se expressa ela mesma, mas sempre por meio de outrem. Ocorre que, especialmente em circunstâncias turbulentas ou de crise, é frequente que haja uma disputa sobre quais emissões linguísticas devem, ou não, ser tomadas como tendo autoridade para representar a coletividade ou a nação.

Torres, numa linha inspirada em Austin (1962), identifica nessas locuções linguísticas, emitidas com pretensões representacionais, ações de fala performativas dotadas, porém, de condições instáveis de sucesso. Isso porque, segundo Austin (1962, p. 14), uma condição geral para o sucesso de um ato performativo de fala é de que exista “algum procedimento convencional aceito com certo efeito convencional”, algo que não ocorre no caso das emissões linguísticas com pretensões ilocutórias nesses domínios “fundacionais” da política. Em situações de crise institucional, como, por exemplo, numa revolução, um líder pode, por meio de certos atos linguísticos, avocar autoridade para representar uma coletividade ou uma nação, sem que seus proferimentos performativos já estejam amparados em alguma convenção ou lei amplamente aceitas. Em contrapartida, nas mesmas circunstâncias, uma autoridade, cujas locuções obtinham o sucesso de suas pretensões ilocutórias garantido por certas leis ou convenções previamente aceitas ou efetivamente seguidas (isto é, por regras secundárias no sentido de Hart), pode vir a experimentar o fracasso representativo antes que novas leis ou convenções amparem a desconstituição de suas próprias pretensões. Torres (1990) entende que há, assim, um risco performativo em tais atos que ele chama de “atos de fundação política”, um risco que seria, por sua vez, inerente à natureza dos procedimentos linguísticos com pretensões representacionais nos domínios da política.

Há certa dose de ceticismo nessa posição. Não seria, assim, o caso de que o sucesso das pretensões ilocutórias de representar uma coletividade dependeria de circunstâncias algo aleatórias? O problema fundamental é a identidade entre a ilocução com pretensões representacionais e a entidade representada. Afinal, se o terreno que ampara a identidade entre entes coletivos e representantes for um terreno instável e movediço, há uma diferença substancial (formal, se seguirmos Torres) entre a união das ações primárias e secundárias e seus agentes naturais e a união que supostamente há (ou deveria haver) entre as ações secundárias e seus alegados agentes coletivos. Isso porque, no segundo caso, essa união (ou identidade) parece depender de circunstâncias puramente pragmáticas (sem, digamos, uma base ontológica real). Alguém poderia alegar que essa associação, no caso dos entes coletivos, é resultado de um efeito puramente retórico. No que tange às alegações de Torres, isso resultaria dizer que o sucesso dos atos ilocutórios no domínio da política depende fundamentalmente de seu sucesso perlocucionário. Isso não é de todo implausível, mas é algo misterioso, pois para que exista um efeito perlocutório é preciso que tenha ocorrido um efeito ilocucionário. De todo modo, aceitar isso resultaria em retirar da ação de representação política seu alegado fundamento objetivo. Se nos contextos de fundação política, o sucesso desses de atos de fala com pretensão ilocucionária depender exclusivamente de seu sucesso perlocucionário, então toda efetividade política se resumiria a um efeito retórico. As consequências ontológicas que resultam dessa conclusão para as alegações sobre a realidade dos entes coletivos seriam profundamente antirrealistas: entes coletivos não passariam de meros constructos ideológicos. Sua “existência” social seria, enfim, ontologicamente irreal.

O problema é que, para o sucesso da tese republicana, a nação não pode, tal como afirma Torres, ser “um mero constructo ideológico, como se ela não tivesse outra realidade como a de um momento retórico”. O problema é dramático, já que não há no mundo empírico outra base concreta, natural, para a realidade da nação senão que o conjunto formado por seus cidadãos. “Comunidades humanas não são organismos” (1988, p. 435). Sua ontologia é essencialmente representacional. Mas como seguir, então, sustentando, com Rousseau, que a nação não pode ser “identificada à universalidade desmultiplicada e indefinida de todos os cidadãos” (TORRES, 1988, p. 433)?

Torres, porém, conclui que a nação, não podendo ser um constructo puramente ideológico, não pode ser senão outra coisa que uma “representação social objetiva” (TORRES, 1988, p. 434, grifo meu), cuja objetividade depende, porém, do sucesso dessas “pretensões representativas” (veiculadas por meio de atos ilocucionários de fala, emitidos por pessoas concretas em circunstâncias ocasionalmente de risco). Ora, como “no mundo da política não há garantia formal a assegurar em termos absolutos o sucesso [dessas] pretensões representativas” (TORRES, 1988, p. 436), há um elemento inerente de “sorte política” em toda ação de fala com pretensão de dar objetividade à ação de representar o interesse público.

Penso que há uma tensão interna no pensamento de Torres. Trata-se dessa tensão entre a pretensão à objetividade de toda representação política e sua inerente instabilidade pragmática. Como Torres não chega a dar solução a esse problema, proponho chamá-lo de o PROBLEMA DE BRUM TORRES. O Problema de Brum Torres parte do reconhecimento de que, de um lado, os interesses de entes coletivos como a nação somente encontram objetividade no sucesso pragmático das pretensões ilocutórias veiculadas pelo discurso de atores políticos e, de outro, que esses entes coletivos não podem, mesmo assim, ser tomados como meros constructos ideológicos, sendo, com efeito, “representações sociais objetivas ”. Temos aqui, primeiramente, um problema de ordem ontológica, já que o único referente empírico de uma nação parece ser nada mais que o universo constituído pela extensão indefinida de todos os seus cidadãos. Entretanto, como vimos acima, não é isso o que a teoria republicana sustenta, pois a objetividade da nação não pode ser reduzida ao conjunto formado por seus cidadãos. Outro problema vinculado (de natureza epistêmica) é que a objetividade daquilo que constitui o interesse da nação depende do sucesso de pretensões representativas (uma modalidade de ações secundárias nos termos de Copp); todavia, como Torres enfatiza, não há qualquer garantia formal no mundo da política de que tais pretensões representativas sejam bem-sucedidas em termos absolutos. Saber o que interessa à nação resulta em algo inevitavelmente sujeito a elementos pragmáticos de indeterminação (quando não de pura “sorte”).

O problema ontológico é um problema de uma ordem geral, pois diz respeito ao problema da objetividade dos coletivos humanos. Grupos, comunidades e sociedades são entidades com existência real ou tratam-se apenas de entidades cuja existência é meramente simbólica? O segundo problema diz respeito a um tema de ordem epistêmica, e diz respeito às consequências práticas do limite epistemológico de não podermos garantir de forma absoluta que as decisões das autoridades representem com segurança apodítica a vontade dos coletivos que buscam representar, o que parece conduzir à conclusão de que as decisões das autoridades são, em última instância, como parece às vezes sugerir Torres, apenas apostas, tentativas, cujo sucesso depende de circunstâncias políticas ocasionalmente aleatórias.

Não creio que tenhamos no presente momento alguma teoria consistente e completa capaz de dar solução a tais problemas teóricos. De minha parte, proponho-me enfrentá-los de modo apenas preliminar e exploratório. No que segue, procurarei fazer isso na seguinte ordem: primeiro, discutirei se há entes coletivos e que tipos de interesses esses entes poderiam possuir. Segundo, assumindo que a nação é um exemplo paradigmático de ente coletivo, procurarei explorar respostas à questão sobre que tipo de interesse coletivo associamos a ela, e qual a diferença entre essa modalidade de interesse “geral” para com as demais modalidades de interesses comuns. Terceiro, tratarei da questão de se é possível que a existência do bem comum ou coletivo possa entrar em conflito com a promoção do interesse individual de seus cidadãos, e se isso representa um problema para um modelo republicano de democracia comprometida com o respeito aos direitos individuais. Quarto, se o conhecimento do conteúdo daquilo em que consiste o bem comum guarda alguma conexão com os fundamentos da democracia (especialmente, do princípio democrático representado na regra da maioria).

Entes coletivos não são meras coleções de indivíduos

Apesar de não termos ainda uma teoria completa, muito já se avançou no estudo da ontologia dos entes coletivos. Os estudos de David Copp (1979, 1980, 2007) e Raimo Tuomela (1989, 2007) são bons exemplos. Esses estudos buscam responder de forma coerente e consistente questões tais como: o que são entes coletivos? Qual a diferença fundamental entre tais entes e os entes individuais? Entes coletivos agem? Entes coletivos possuem interesses? Ter interesses ou objetivos que possam ser alcançados por ações empreendidas coletiva ou individualmente por seus membros parece ser uma característica essencial para que um coletivo humano seja corretamente compreendido como um ente coletivo. Por exemplo, multidões, quadrilhas, grupos sociais, equipes, organizações e instituições sociais são exemplos usuais de coletivos humanos unidos por interesses e objetivos comuns e capazes igualmente de empreender ações em conjunto ou individualmente com o fim de alcançar tais interesses e objetivos. Todavia, nem todo agrupamento ou coleção de indivíduos constitui um exemplo de ente coletivo. Por exemplo, coletividades como o conjunto formado pela totalidade das mulheres ruivas ou o conjunto formado pelos passageiros eventuais de certo veículo de transporte coletivo não são exemplos de entes coletivos. (TUOMELA, 1989, p. 477). É preciso, com efeito, que certo objetivo, propósito ou interesse possa ser atribuído a um coletivo humano e de modo tal que seja sensato concluir que esse coletivo é capaz de arranjar ou empreender ações capazes de alcançá-los.

Há certas vantagens explanatórias em reconhecer a existência real de coletivos humanos. Por exemplo, o fato de podermos atribuir ações a um ente coletivo oferece-nos uma explicação diferente de porque o chamado “problema do caroneiro” é um problema (POSTEMA, 1987, p. 425). Imagine que, Bill, o motorista de uma Kombi, que se encontra com problemas de bateria, ofereça carona a um grupo de três garotos, Tom, Dick e Harry, em troca da ação de empurrar o veículo. Dick, no entanto, decide apenas fazer de conta que empurrou a van. Nesse caso, quem, afinal, empurrou a Kombi? O grupo formado por Tom, Dick e Harry ou apenas o grupo formado por Tom e Harry? Suponhamos que o grupo de amigos se autointitule “Os Águias Negras”. Quem, nesse caso, empurrou a Kombi? Os Águias Negras ou apenas Tom e Harry? Se a resposta for apenas esses dois, por que eles guardariam algum ressentimento caso viessem a descobrir que Dick os tapeou fazendo de conta que cooperava? Teria Dick agido como caroneiro (como free-rider) porque se beneficiou da ação de outros simpliciter ou porque se beneficiou da ação do grupo do qual faz parte sem cooperar como se assume que deveria? A diferença é sutil. Afinal, muitas pessoas, com capacidade de cooperar, podem ocasionalmente se beneficiar direta ou indiretamente da ação de outros sem que sejam considerados apenas por isso criticáveis por terem recebido tais benefícios “de carona”. Imagine que um grupo de vizinhos assuma voluntariamente a tarefa de jardinagem de uma praça e que isso acabe beneficiando, além deles, também um grupo indefinido de pedestres que por ali transitam. Seriam esses pedestres ocasionais caroneiros do trabalho cooperativo dos vizinhos? Segundo certa visão, alguém somente pode se beneficiar da divisão dos bens produzidos em cooperação por outros, caso também tenha contribuído de forma equitativa ou justa. E, nesse caso, não são somente os benefícios que devem ser distribuídos individualmente, mas também as dívidas e seus respectivos beneficiários. Segundo essa visão, Dick teria o dever de contribuir com sua parte na ação, mas seu dever de cooperar não se derivaria de qualquer compromisso implícita ou explicitamente assumido para com o grupo do qual faz parte; seu dever de cooperar seria reflexo de um compromisso tácita ou explicitamente assumido separadamente para com cada um de seus amigos. Nesse caso, a trapaça de Dick teria resultado em dois erros separados e independentes. Dick teria nesse caso o dever de cooperar na ação conjunta de empurrar a van tanto para com Tom como para com Harry (e, aliás, a mais ninguém). O dever de Dick de cooperar seria, na verdade, o agregado de dois deveres atomicamente separados.8 A reação moral (a atitude reativa) de cada um deles diante da conduta do caroneiro poderia ser caracterizada como uma reação de ressentimento (STRAWSON, 2008). Strawson, como sabemos, caracterizou o ressentimento como uma reação emocional que podemos ter diante da qualidade ou má vontade de alguém, expressa por seu comportamento, com respeito a nós (STRAWSON, 2008, p. 15). Podemos, porém, expressar reações emocionais vicárias, isto é, reações diante da má vontade expressa na conduta de alguém com respeito a outras pessoas. A indignação seria um exemplo de atitude moral vicária. Considere-se, agora, o comportamento de Dick. Se a dívida de Dick não fosse uma dívida para com seu grupo, mas apenas para com Tom e Harry separadamente, então ambos poderiam sentir-se ressentidos com Dick apenas em razão de sua conduta lesiva aos interesses exigíveis de cada um deles. Isto é, o ressentimento de Tom estaria justificado como uma atitude reativa ao comportamento de Dick pelo fato dele ter infringido um dever ou compromisso para com ele, Tom. Por outro lado, Tom poderia sentir-se ao mesmo tempo legitimamente indignado por Dick ter falhado em seu compromisso para com Harry. Mas não faria sentido dizer de Tom que ele poderia sentir-se indignado com a infração do dever que Dick tinha para consigo. E o mesmo poderia se dizer de Harry. Nenhum deles poderia dizer com sentido quem se sentem ressentidos por Dick ter falhado com ambos. Observadores poderiam sentir-se vicariamente, e duplamente, indignados com Dick pelo fato dele ter falhado com cada um de seus amigos, mas de forma completamente independente. Suponhamos, no entanto, que Tom tenha desculpado Dick por alguma razão qualquer. Estariam, agora, os observadores justificadamente indignados por ele ter falhado apenas com Harry? Não seria, entretanto, mais plausível dizer que nossos sentimentos de indignação representam uma atitude de crítica à conduta de Dick independentemente do fato dele vir, ou não, a ser desculpado por aqueles a quem causou um dano direto? Igualmente, não seria mais plausível dizer que ambos, Tom e Harry, poderiam sentir-se igualmente ressentidos e também indignados com o amigo? Nesse caso, deveria haver alguma atitude reativa vicária envolvida. De fato, se aceitarmos que grupos existem e que os indivíduos também podem assumir compromissos com eles, seus membros poderiam individualmente sentir- se igualmente ressentidos e, ao mesmo tempo, indignados quando alguém falhar com eles e ao mesmo tempo com seu grupo.9

Tomemos {Tom, Dick, Harry} como o conjunto formado pelos indivíduos Tom, Dick e Harry. Seria esse conjunto equivalente a “Os Águias Negras” (Massey, 1976)? Porém, se o ente coletivo “Os Águias Negras” puder ser reduzido ontologicamente ao conjunto {Tom, Dick, Harry}, como poderíamos ainda afirmar que “Os Águas Negras” empurraram a Kombi, já que foram apenas Tom e Harry que a empurraram de fato? Poderia o conjunto {Tom, Dick, Harry} realizar alguma ação por meio de qualquer uma das combinações possíveis das contribuições separadas de seus membros? Contudo, nem todas as ações realizadas pelos componentes do grupo podem ser caracterizadas como ações do grupo. Por exemplo, muito embora a ação de empurrar a Kombi possa ser atribuída a “Os Águias Negras”, as ações de Tom de conversar com seus amigos, de correr e pular para o interior da Kombi depois dela ter dado a partida (talvez em virtude da ação do grupo) não são ações atribuíveis a “Os Águias Negras” (ao grupo ou à totalidade de seus membros), mas apenas a Tom.

Contudo, dentre as várias ações empreendidas por indivíduos ou pessoas, há aquelas por meio das quais outros agentes atuam. Suponhamos que Jim tenha sido contratado por Bill para dirigir a Kombi. Imaginemos que Bill tenha prometido a outra pessoa, Walter, levar a Kombi até o mercado público a fim de transportar verduras. Nesse caso, muito embora Jim tenha dirigido a Kombi, foi Bill quem cumpriu a promessa feita a Walter. Há sentido, portanto, em dizer-se que Bill realizou a ação de cumprir a promessa que fez a Walter por meio de uma ação realizada, na verdade, por Jim. Trata-se do que Copp (1980) chama de uma ação secundária (ver nota acima). O ato de Bill de cumprir sua promessa a Walter por meio de uma ação de Jim é um exemplo de ação secundária.

Segundo Copp, uma teoria influente sobre esse fenômeno das ações secundárias pode ser encontrada nos clássicos de Thomas Hobbes (especialmente no De Cive e no Leviatã). Contudo, muito embora a abordagem de Hobbes tenha méritos, sua teoria teria falhas. Uma falha, sustenta Copp, é de que a teoria é incompleta. Para manter-se consistente com suas premissas individualistas sobre a ação humana, Hobbes teria sustentado que somente coletivos com representantes são capazes de agir. Hobbes chamou a esses coletivos de “pessoas civis”, em contraste com meras “multidões de homens” (1980, p. 595). Para Hobbes, multidões sem representantes são incapazes de empreender ações.10 Parece claro, entretanto, que multidões também agem, podendo, inclusive, ser eventualmente responsabilizadas. Uma torcida de futebol pode vaiar um atleta, uma massa de manifestantes pode parar o trânsito, um grupo de presos pode espontaneamente incendiar um alojamento.11 Nessa mesma linha, Tuomela (1989) distingue dois grupos distintos de entes coletivos. Um tipo é aquele formado por agrupamentos sociais formados espontaneamente e pouco organizados. Trata-se de grupos com pouca ou nenhuma estrutura (sem nenhuma divisão de tarefas ou atividades). Nesses coletivos, os membros mudam ou intercambiam funções mantendo-se sempre simetricamente relacionados aos objetivos e interesses do grupo. Multidões são o exemplo paradigmático. Outro é representado por coletivos dotados de alguma estrutura, formal (por exemplo, legal) ou informal (com base em relações de poder tacitamente assumidas ou fortalecidas). É esse segundo tipo, diz Tuomela, que realiza ações basicamente por meio daquelas ações que Copp chama de secundárias.

Para Hobbes, entretanto, como multidões não são exemplos de seres dotados de vontade, nenhuma ação lhes pode ser atribuída. Na interpretação de Copp, para Hobbes:

[a] escolha de um coletivo deve ser entendida como determinada pelas escolhas de algumas pessoas relevantes ou pessoas de acordo com alguma regra para derivar escolhas coletivas a partir das escolhas dessas pessoas. Mas é possível que regras diferentes permitam escolhas coletivas diferentes de um mesmo conjunto de escolhas feitas por todas as pessoas. Portanto, se um grupo não possui uma regra institucionalizada, não se pode falar de maneira significativa da escolha do grupo e, portanto, não pode falar de uma ação do grupo como tal. Este problema só pode ser resolvido se os membros do grupo concordarem unanimemente em instituir uma regra ou procedimento de decisão ou se alguém com autoridade se impuser (1980, p. 604).

Copp, no entanto, destaca que “mesmo que um grupo não disponha de uma regra de decisão institucionalizada, podemos atribuir-lhe uma escolha se seus membros forem unânimes em fazer essa escolha para o grupo” (COPP, 1980, p. 604). Seu exemplo é o de um grupo de passageiros que decide forçar o motorista de um ônibus a parar o veículo. Parece-me que este também é o caso de nosso grupo autodenominado “Os Águias Negras”. Na falta de regras institucionalizadas, a coleção formada por Tom, Dick e Harry pode ainda agir como um coletivo sempre que os três agirem segundo escolhas unânimes. Contudo, essas escolhas unânimes precisam expressar não apenas ou meramente uma escolha casualmente semelhante ou coincidente, mas uma genuína escolha coletiva. Compare, por exemplo, o mesmo grupo formado pelo conjunto [Tom, Dick, Harry] descendo da Kombi e se dirigindo para um ponto de encontro (suponhamos um estádio de futebol) e o mesmo grupo agindo em conjunto com o propósito de empurrar a van e fazer o motor funcionar. Segundo Copp, “devemos distinguir entre as situações em que há algo que cada membro do grupo escolhe para si mesmo, tal como quando todos escolhem descer de um ônibus, e as situações em que há algo que cada membro do grupo escolhe como um propósito para o grupo, tal como quando todos no ônibus escolhem cooperar para forçar o motorista a parar o veículo” (COPP, 1980, p. 604). Uma multidão de pessoas descendo de um ônibus é um coletivo diferente de uma multidão de pessoas empreendendo ações (verbais ou físicas) com o fim comum de forçar o motorista a parar. Porém, a diferença não está no fato de que somente no segundo caso há um congruência ou convergência ocasional de propósitos (pois as pessoas que estão descendo do ônibus também realizam essa ação visando a um mesmo objetivo: “sair do veículo”); a diferença fundamental está em que é somente no segundo caso que a ação comum e o propósito encontram-se constitutivamente vinculadas.

A tese aqui é de que o conjunto [Tom, Dick, Harry] somente se comporta como grupo quando seus membros agem visando certo objetivo genuinamente comum, isto é, não apenas e tão somente quando seus membros agem visando objetivos semelhantes ou coincidentes. É somente nas circunstâncias em que o conjunto [Tom, Dick, Harry], ou ao menos uma parte suficientemente representativa desse conjunto, age visando a um objetivo que possa ser caracterizado como um objetivo do grupo formado por Tom, Dick e Harry que podemos dizer que o coletivo autointitulado “Os Águas Negras” agiu como um grupo.

Nessa interpretação, coletivos agem por meio de seus integrantes (ver o conceito de “ações secundárias” de Copp), eventualmente por todos, ocasionalmente por alguns. O que importa é que a ação de todos ou de alguns possa ser corretamente atribuída ao grupo dada uma identidade reconhecida de propósitos. Segundo Torres, porém, essa identificação das ações empreendidas em comum pelos integrantes de um grupo qua ações do grupo (e não meramente de seus integrantes ou “pessoas naturais”) é um produto eminentemente simbólico (TORRES, 1988). Mas o que Brum Torres pretende dizer com isso?

Penso que, ao defender que a ação coletiva é eminentemente simbólica, Torres está defendendo uma visão sobre a ação coletiva em termos muito próximos dos de Hobbes. Coletivos somente podem agir por meio de representantes. Porém, para que um ou mais agentes cumpram essa função é preciso que certo conjunto de regras ou práticas convencionais nos permitam interpretar seus comportamentos como ações do grupo. Na visão de Copp, entretanto, essa não é uma condição necessária. Torres, não obstante, embora restrinja o fenômeno da ação coletiva ao fenômeno social e político da ação por representação, admite um elemento pragmático não vislumbrado na teoria de Hobbes. Segundo Torres, é a dinâmica social da política o que determina o sucesso das pretensões representativas. Há, assim, um elemento pragmático que envolve certa condição “performativa de risco” nos atos decisórios feitos em nome de uma coletividade (TORRES, 1988, p. 371). Torres pensa especialmente nos casos do que chama de “atos discursivos não ligados institucionalmente” (TORRES, 1990). Mas o fenômeno também se aplica aos atos decisórios convencional ou institucionalmente bem amparados, ainda que de forma mais sutil. Isso porque, mesmo para atos decisórios garantidos institucionalmente, não basta a existência prévia de regras, notadamente nas regras que H.L.A. Hart (1961) chamou de “regras secundárias”, ou convenções implícitas, já que a autoridade dessas regras e convenções precisa ser também continua e dinamicamente renovada pela aceitação ou pelo reconhecimento tácito e público dos indivíduos que compõem um grupo. Há, assim, um elemento de “sorte política” em todo fenômeno representativo (um tema que, aliás, mereceria análise em outro momento).

As variedades do que é “comum”

Admitindo-se a existência de entes coletivos genuínos, segue-se que nem tudo o que é “comum” é efetivamente comum. De fato, há modalidades diferentes daquilo que podemos entender como “comum”.

Gerald Postema (1987) oferece-nos uma abordagem promissora sobre o assunto. Sua sugestão é, primeiramente, tornar mais clara a distinção entre interesses que são essencialmente privados, interesses que podemos tomar como comuns ou públicos, e interesses que podemos reconhecer como genuinamente coletivos. Um interesse privado, diz Postema, é fácil de caracterizar: trata-se de interesses de pessoas específicas e antecedentemente identificáveis (1987, p. 421). Algo é de interesse12 privado se alguém continuaria a interessar-se por isso mesmo que todos os demais (em uma comunidade da qual o indivíduo é membro) deixassem de manter qualquer interesse (1987, p. 420). Tais interesses privados podem, contudo, representar interesses públicos ou comuns, isto é, interesses que são congruentes ou convergentes entre vários indivíduos ou pessoas. Um interesse é congruente entre dois ou mais indivíduos se esse mesmo interesse (ou tipo de interesse) puder pertencer a qualquer um sem especificação (unassignable individuals). Assim, uma coleção de interesses privados específicos de um mesmo tipo pode ser, eventualmente (e, em certo sentido, acidentalmente), possuída por um número (ocasionalmente) grande e indefinido de indivíduos. Um exemplo seria o interesse comum em transitar na cidade sem impedimentos arbitrários. Trata-se de um interesse congruente, isto é, cada um tem (ou pode ter) um interesse igual em “ir e vir” sem sofrer impedimentos injustificados.13 Um interesse, por sua vez, é publicamente convergente quando um grupo de indivíduos (determinados ou indeterminados) convergem para um mesmo objeto ou estado de coisas. Os indivíduos podem convergir em direção a um único interesse ou objeto, mas por circunstâncias diversas. Um tipo de interesse convergente diz respeito a estados de coisas desejáveis por si mesmas por um conjunto largo e indefinido de pessoas (como penso que é o caso do interesse em não sofrer preconceitos de qualquer natureza e do interesse no acesso a cuidados profissionais em saúde, por exemplo). Outro tipo diz respeito a interesses instrumentais semelhantes, ainda que sejam instrumentais para interesses diversos (como o interesse no acesso ao emprego ou a uma remuneração justa). Um terceiro tipo de interesse convergente diz respeito, porém, a interesses que apenas podem ser alcançados pelo esforço cooperativo, mas cuja satisfação para uns acarreta necessariamente sua satisfação a todos os demais (como o interesse em ações públicas de vigilância epidemiológica e no controle público de epidemias, ou o interesse em reduzir ou mesmo eliminar a poluição ambiental - aqui, em nosso país, os juristas costumam chamar a esse tipo de interesse público de “interesse difuso”).

Todos esses tipos de interesses comuns são, entretanto, interesses originalmente (ou primariamente) privados. São interesses que, por circunstâncias diversas, podem ser públicos quando são atribuídos a um conjunto de pessoas não identificáveis, ao contrário dos interesses genuinamente privados que são interesses de pessoas identificáveis (Bentham, lembra Postema, dizia que se trata aqui de interesses de assignable persons). Ainda assim, trata-se de interesses originalmente ou primariamente privados, que também podem se tornar interesses de um conjunto de indivíduos ou de pessoas previamente não identificáveis (unassaignable).14 A ambição de Postema é distinguir tais interesses comuns dos interesses coletivos genuínos. Para Postema, com efeito, apesar de públicos ou comuns, tais modalidades de interesses não representam ainda interesses genuinamente coletivos. Um interesse só é genuinamente coletivo se for um interesse atribuível primariamente (e não secundariamente) a uma coletividade.

Interesses genuinamente coletivos não são, portanto, interesses ou bens difusamente congruentes ou convergentes a certo grupo, categoria ou classe de pessoas. Seguindo Postema, os interesses que deveríamos classificar como coletivos em sentido próprio são: a) “comuns e interdependentes” (isto é, tais interesses possuem uma interrelação não acidental); b) dizem respeito a questões de valor e são relativos a um modo de vida que não é “meu ou teu”, mas “nosso”; c) não são construídos de, ou instrumentalmente a partir de, bens ou interesses privados (como no caso dos interesses que ele prefere chamar de “públicos”), senão que estes interesses, os privados, é que dependem ou pressupõem aqueles; d) somente são interesses de alguém (meus ou teus) na medida em que esse alguém se considere membro de um grupo; e) não expressam somente aquilo que desejamos coletivamente, mas (também) “expressam uma visão sobre quem e o que somos”. (POSTEMA, 1987, p. 425-426).

Penso que a classificação de Postema pode ser apresentada da seguinte maneira. Há interesses individuais (interesses atribuíveis a indivíduos identificáveis ou não identificáveis) de dois grandes tipos, os privados (interesses de indivíduos identificáveis que poderiam continuar defendendo- os como seus, mesmo que ninguém mais continue a defendê-los) e os comuns15 (interesses congruentes ou convergentes entre indivíduos não identificáveis).16 E há interesses não-individuais, os coletivos por excelência.17 A diferença é a seguinte e é simples: interesses individuais são interesses de indivíduos, ao passo que interesses coletivos sã o interesses de coletividades.18 Interesses individuais podem ser comuns por serem de indivíduos que mantêm certa relação comum de interesse; interesses coletivos podem ser individuais, mas o são justamente por serem interesses da coletividade da qual tais indivíduos fazem parte (pois posso ter o interesse individual de promover o interesse de minha coletividade).19

Vejamos um exemplo simples. Imagine uma sala de estudos compartilhada por um grupo de estudantes. Suponhamos que nela esteja uma parte do grupo e que as luzes da sala estejam desligadas. Um dos integrantes do grupo, então, chega e decide acender as luzes da sala. Ao acender a luz, ele satisfaz um interesse seu e, ao mesmo tempo, o interesse (possível) de todos os que se encontram na sala. O interesse de que a sala esteja iluminada é um interesse comum (e como é um interesse instrumental, trata-se de um interesse convergente). Claro, eventualmente alguém pode não preferir que a sala esteja iluminada (por razões individuais quaisquer), mas, ainda assim, é possível dizer-se dele que poderia interessar-se nisso. Qualquer interesse pode ser comum e individual ao mesmo tempo; de fato, todo interesse comum é potencialmente individual, de modo que se um interesse é comum ele também é individual (ao menos no sentido de que alguém poderia interessar-se por isso). Suponhamos, porém, que todas as demais pessoas na sala sejam cegas. Ora, nesse caso, é irrelevante para elas que a sala esteja iluminada. Talvez, alguém pudesse ter algum interesse individual na iluminação, no caso de interessar-se instrumentalmente na presença do indivíduo que recém entrou. Mas se todas as demais pessoas forem cegas, o interesse do recém-chegado torna-se, agora, um interesse privado, pois se trata de algo pelo qual ele poderia continuar mantendo interesse mesmo que mais ninguém de certo coletivo venha a se interessar efetivamente por isso.

Sob quais circunstâncias, porém, o interesse na iluminação da sala seria ou se tornaria um interesse genuinamente coletivo? Suponhamos agora que a atividade que ocorra na sala seja uma atividade científica cooperativa, de um grupo com identidade como grupo de pesquisa e que atue com frequência de forma coletiva. Pode-se agora dizer que todos os membros do grupo, cegos ou não, têm o interesse na iluminação da sala, ao menos a partir do momento em que a ela adentra o recém-chegado. Não sendo cego, sua atividade como cientista depende disso. Assim, muito embora a iluminação não afete a atividade individual de cada um dos demais membros do grupo, ela afeta o desempenho do coletivo. De forma simples, pode-se dizer que, nesse caso peculiar, há ou ao menos pode haver um interesse coletivo em que a sala esteja iluminada, mesmo que a maioria dos que lá se encontrem sejam cegos. Isso porque o interesse na iluminação da sala é primariamente um interesse daquela coletividade, e não um interesse difuso meramente convergente de uma coleção de indivíduos interessados em seu sucesso individual (embora secundariamente também o seja).20

O interesse comum e os direitos individuais

Talvez fosse prudente, como uma medida de simplificação ontológica, passar uma navalha de Ockham em nossa ontologia e eliminar os entes genuinamente coletivos. Isso seria possível e até mesmo recomendável, caso a estipulação desses entes não agregue nada em termos explanatórios. Não vou tratar disso nesse momento. Limitei-me apenas a fornecer razões que sustentem, ao menos exploratoriamente, a tese de que há entes genuinamente coletivos. Vou, assim, adiante simplesmente assumir que tais entes existem.

Contudo, o fato de existirem interesses genuinamente coletivos em diferença aos interesses exclusivamente privados e muito especialmente aos interesses comuns não implica, porém, que em havendo conflitos entre tais interesses, que o interesse coletivo deva ter prioridade, ou, numa certa versão ampliada dessa tese, que interesses não-individuais devam prevalecer sobre os individuais e que, dentre esses, os comuns devam prevalecer sobre os privados. Chamemos essa tese de Tese da Preeminência Transitiva dos Interesses de Muitos sobre o Interesse de Poucos, ou Tese de Prevalência do Maior Número (PMN).

Muitas pessoas, entretanto, consideram intuitiva a tese de que interesses de muitos são preeminentes e preemptivos diante de interesses de poucos. O que faz dos interesses privados (IP) interesses menos potentes diante dos interesses comuns (IC) e interesses genuinamente coletivos (IGC). Admitindo-se a distinção entre IC e IGC, a PMN deveria sustentar, na verdade, três teses diferentes:

  • (IGC>IP) - Interesses genuinamente coletivos são preeminentes e preemptivos sobre os interesses privados.

  • (IC>IP) - Interesses comuns são preeminentes e preemptivos sobre os interesses privados.

  • (IGC >IC) - Interesses genuinamente coletivos são preeminentes e preemptivos sobre os interesses comuns.

As três teses podem parecer inicialmente intuitivas, mas sua apresentação é excessivamente vaga e requer justificativa. Afinal, de que ponto de vista tais juízos de preeminência ou preemptividade são avocados? Faria sentido dizer que todo agente privado deveria (racionalmente) concordar com a tese de que seus interesses privados devam sempre ser preteridos em favor de interesses comuns ou em favor dos interesses autênticos de sua (ou mesmo de alguma outra) coletividade? Afinal, do ponto de vista do agente privado, seus interesses certamente têm prioridade ou anterioridade prima facie sobre quaisquer interesses alheios (sejam eles privados, ou comuns ou mesmo coletivos - especialmente se o indivíduo não integra a coletividade em questão). Alguns filósofos poderiam argumentar que a plausibilidade das três teses e mesmo da PMN deriva-se do que muitos chamam de um ponto de vista impessoal (SCANLON, 1988, p. 218-223; NAGEL, 1986). Contudo, mesmo de um ponto de vista impessoal, não é evidente porque alguém deveria concordar que um indivíduo deveria sempre preferir abdicar de seus interesses privados em favor dos interesses comuns ou coletivos de outrem, apenas e tão somente porque se tratam do interesse de “um maior número” (conforme sustenta a PMN).

A objeção torna-se evidente quando se trata do conflito entre interesses comuns ou mesmo coletivos e os direitos dos indivíduos. Há interesses privados que representam direitos das pessoas. Hume tentou enfrentar esse problema, sem, contudo, abdicar de alguma versão da PMN (que ele entendia por “utilidade”). Se a utilidade deve moralmente prevalecer, então por que se deveria garantir ao mesquinho o seu direito à herança mesmo sabendo-se que seria muito mais útil distribuir essa fortuna a muitos e não a poucos (ou a apenas um)?

To make this more evident, consider, that tho’ the rules of justice are establish’d merely by interest, their connexion with interest is somewhat singular, and is different from what may be observ’d on other occasions. A single act of justice is frequently contrary to public interest; and were it to stand alone, without being follow’d by other acts, may, in itself, be very prejudicial to society. When a man of merit, of a beneficent disposition, restores a great fortune to a miser, or a seditious bigot, he has acted justly and laudably, but the public is a real sufferer. […] But however single acts of justice may be contrary, either to public or private interest, ’tis certain, that the whole plan or scheme is highly conducive, or indeed absolutely requisite, both to the support of society, and the well-being of every individual (HUME, 1896, p. 497).21

A resposta de Hume é, como sabemos, uma versão do que viria a ser chamado de Utilitarismo de Regras. Hume procurou, à semelhança do que também faria John Stuart Mill, justificar do ponto de vista do agente por que é mais sensato em termos morais preferir respeitar uma lei mesmo sob a consequência imediata da promoção de uma utilidade menor, contrariando, no caso, o que se apresenta imediatamente sendo de interesse “público”. O argumento é de que o plano ou esquema geral é não apenas altamente convergente para com o interesse “comum”, mas é também “um requisito absoluto” para a sustentação da sociedade e, com efeito, para o “bem-estar de cada indivíduo”. Penso que Hume está aqui defendendo a mesma tese de Postema: as razões para preferir respeitar a lei derivam-se de um interesse genuinamente coletivo, que não se expressa apenas de modo presente, mas também “a largo prazo”; é da satisfação desse interesse que dependem o bem-estar e os interesses privados contingentes de cada indivíduo.22

Desse modo, um interesse comum torna-se prevalente quando coincide com um interesse genuinamente coletivo. Mas disso não se segue, porém, que todo interesse comum e mesmo que interesses genuinamente coletivos sempre ou invariavelmente prevalecem sobre todo e qualquer interesse privado - isto é, que IC>IP ou mesmo que IGC>IP. Afinal, alguns interesses privados podem ser exigíveis sobre a coletividade. No exemplo de Hume, o interesse privado do mesquinho prevalece sobre a utilidade a curto prazo (o “interesse público”, nos termos empregados por Hume), justamente por ser um interesse exigível, isto é, um direito. Há, todavia, um interesse genuinamente coletivo na proteção do sistema de direitos. Nesse caso, porém, não se trata de meras razões derivados da agregação simples dos interesses individuais dos indivíduos que compõem a coletividade. A tese é de que os indivíduos identificados com a coletividade mantêm nesse caso (ao menos de modo dominante) um interesse qua membros da coletividade em promover e proteger um sistema global de direitos.

Num contexto semelhante, trata-se do que Ronald Dworkin (1977) defendeu com sua tese de que direitos individuais são trunfos. Ao contrastar objetivos de política (que visam promover interesses tanto comuns como coletivos) com a defesa dos direitos individuais, Dworkin sustentou, embora com outras palavras, que as teses (IGC>IP) e (IC>IP) não valem nas circunstâncias especiais em que os IP são exigíveis como direitos (notadamente quando tais interesses são exigíveis sobre os entes coletivos, como é o caso dos direitos dos cidadãos a liberdades). Robert Nozick também destacou algo semelhante ao justificar que direitos são side constraints dirigidos frequentemente in rem, isto é, contra todos (NOZICK, 1974; PETTIT, 1987, p. 12).

Seriam, todavia, direitos individuais sempre preeminentes sobre interesses comuns e interesses genuinamente coletivos? Talvez. Há certamente circunstâncias em que é do interesse coletivo a largo prazo (no sentido de Hume) que um interesse individual seja exigível (como direito individual) sobre a coletividade. Nessas circunstâncias, a defesa desse interesse individual passa a ser também objeto de um interesse coletivo por excelência (como parte essencial do sistema global de direitos e de justiça). Mas há casos controversos.

Veja-se, por exemplo, a rumorosa controvérsia em torno do Jogo de Arremesso de Anão (Dwarf Tossing).23 Em decisão datada de 15 de julho de 2002, o Comitê de Direitos Humanos da ONU decidiu contra a apelação feita por Manuel Wackenheim contra o governo da França, que alegava ter sido discriminado por ser anão e por ter seu direito a trabalhar impedido por uma decisão do Conselho de Estado, que, em 27 de outubro de 1995, proibiu a realização da atividade de Arremesso de Anão em estabelecimentos públicos ou comerciais, sob a alegação de que a atividade infringia a Declaração dos Direitos Humanos, mais especificamente o art. 3º da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, que trata da proibição da tortura e de tratamento ou punições degradantes e desumanas. Esse é um exemplo de uma disputa entre um interesse individual exigível, e justificado como também de interesse coletivo, e de um interesse coletivo igualmente exigível. Trata-se de um conflito de obrigações, pois ou a coletividade francesa tinha o dever de garantir a Wackenheim a liberdade de poder trabalhar do modo como julgasse melhor, ou, ao contrário, os cidadãos e empresários (no caso a Empresa Société Fun- Productions, empregadora de Wackenheim) é que tinham a obrigação ante a coletividade de não oferecer esse tipo de emprego (em garantia ou em proteção à dignidade das pessoas anãs, igualmente uma coleção de indivíduos portadores do interesse comum em que sua condição compartilhada em comum não seja sujeita ao estigma e à discriminação). Essas duas obrigações não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, já que implicam decisões contraditórias (ou a Société Fun-Productions tinha a liberdade ou privilégio de empregar Wackenheim, ou não tinha - o que equivale, por sua vez, à proibição de empregar Wackenheim, isto é, à obrigação de não empregá-lo - uma particularização, por sua vez, do direito da coletividade sobre a Société Fun-Productions a que não seja oferecido esse tipo de emprego in rem).24 O caso é controverso, pois o problema consiste em saber quais valores a coletividade toma como preeminentes. Há casos que poderíamos alegar que são similares. Por exemplo, poderia a coletividade exigir das pessoas que não se engajem em empreendimentos que promovam a pornografia em razão de a comunidade considerar a pornografia uma atividade moralmente degradante? Compare o caso de Wackenheim contra o Estado Francês e a disputa de Larry Flynt contra a proibição da circulação da revista Hustler sob o argumento de que violava a liberdade de imprensa. No caso de Flynt, também foram erguidos argumentos de que a atividade pornográfica feria a dignidade das mulheres. Mas, ao contrário de Wackenheim, Flynt venceu a disputa.25

Ora, um juízo coletivo capaz de adjudicar discordâncias sobre quais grupos têm sua dignidade infringida também deveria levar em conta o que pensam os indivíduos que compõem esses grupos. Mas, nesse caso, trata-se de saber o que pensa outra coletividade (como a comunidade geral, ou a nação inteira) ou trata-se apenas de conhecer quais são as opiniões majoritárias ou predominantes entre as pessoas que compõem esses grupos? Além do mais, por que as opiniões de pessoas que compartilham certas características relevantes e que poderiam sentir-se afetadas com a permissão de alguma prática (que, de todo modo, não seria obrigatória) deveria fazer diferença? Parece, outrossim, plausível que, no caso do Arremesso de Anões, se houvesse uma manifestação “coletiva” de pessoas com a mesma condição de Wackenheim em sua defesa, talvez a decisão da Corte não tivesse sido a de banir a atividade.26

Mas, afinal, quem tem autoridade para decidir qual é o conteúdo do interesse comum? E quanto ao interesse coletivo? Pode bem ser verdade que aquilo que constitui o interesse comum ou público seja melhor estabelecido por alguém com conhecimento suficiente para isso. Uma visão atribuída a Platão é a de que a política deveria ser entregue aos sábios, cabendo, assim, a indivíduos em maior condição e capacidade epistêmica a tarefa de estabelecer o conteúdo do bem público. Destinar aos experts a tarefa de estabelecer o conteúdo do que promove bem-estar, tanto o individual como o coletivo, é o que parece justificar-se como razoável nos contextos em que o conteúdo da decisão é suficientemente complexo e onde a decisão depende do domínio de um conhecimento esotérico sobre a matéria (Torres avaliou esse tema no artigo publicado neste volume desta mesma Revista). Eliot Freidson (2001) argumenta que há razões plausíveis para que os leigos transfiram a decisão sobre temas de seu interesse para experts e profissionais sempre que o conhecimento sobre o assunto for suficientemente complexo e esotérico para o leigo. Em oposição ao populismo generalista (que advoga a tese de que qualquer pessoa é capaz de decidir com autoridade sobre qualquer tema por mais complexo que seja), o profissionalismo, defende Freidson, oferece ao leigo conhecimentos baseados numa cultura e em conceitos científicos que, na melhor das hipóteses, são apenas abordados de forma muito geral pela educação pública, sendo, portanto, conhecimentos muito esotéricos e complexos para serem entendidos ou aprendidos espontaneamente por uma pessoa comum. Seria, por exemplo, imprudente deixar nas mãos de um leigo decisões sobre o emprego apropriado de conhecimentos e tecnologias capazes de curar, tratar ou recuperar alguém dos danos causados pelo adoecimento. É isso o que justificaria a proteção ao monopólio do exercício da ocupação da arte de tratar e curar aos médicos (leigos tornam-se com isso proibidos de exercer essa ocupação e somente médicos podem recomendar tratamentos a leigos). O mesmo se aplicaria a decisões de justiça e a quaisquer decisões de interesse significativo que envolvam o domínio de conhecimentos que estendem as capacidades das pessoas comuns (com a diferença que decisões judiciais são imperativas e não apenas recomendações).27

Ocorre que, muito embora a decisão de transferir julgamentos sobre temas complexos a indivíduos confiáveis e com expertise (notadamente, a profissionais) possa ser sensata, como defende Freidson, a autoridade epistêmica sobre qualquer assunto não justifica isoladamente poder normativo ou autoridade normativa. Como relata Darwall, a partir de um comentário que lhe foi feito por Nomy Arpaly, o fato de uma pessoa saber mais do que eu não a torna imediatamente minha chefe (DARWALL, 2006, p. 15).

Não obstante, alguém poderia argumentar em favor do respeito à liberdade individual de decidir sobre assuntos privados e, ao mesmo tempo, defender um modelo epistocrático para decisões coletivas. Esse alguém poderia argumentar que os indivíduos não têm sua autonomia afetada, notadamente sua capacidade jurídica e moral de alterar os privilégios e direitos de outrem com respeito a si mesmo, num arranjo político em que as decisões coletivas sejam tomadas apenas pelos mais sábios (escolhidos por um sistema puramente meritocrático). Afinal, desde que se disponha de um sistema político que separe as decisões tomadas pelos indivíduos com respeito àquilo que diz respeito somente a eles das decisões que dizem respeito ao coletivo, um sistema epistocrático seria compatível com o respeito à liberdade individual. Por que, então, preferir um sistema que além de garantir liberdade às decisões sobre interesses individuais privados (e mesmo comuns, que de todo modo pressupõem interesses individuais) também privilegie a regra da maioria para decisões (ou ao menos para certas decisões) que digam respeito aos assuntos de interesse coletivo?

O teorema de Condorcet: por que confiar na maioria?

Uma boa defesa das virtudes não apenas deônticas, mas também epistêmicas do modelo democrático, é a defesa feita por Estlund (2008). Segundo Estlund, uma boa teoria da democracia precisa mostrar porque preferimos esse sistema político não apenas por razões deônticas, mas também por razões instrumentais fundamentalmente epistêmicas. Uma boa teoria republicana deveria ser capaz de mostrar porque o respeito à vontade da maioria é não somente mais equânime (fair), mas sobretudo mais prudente e sensato (wise).

A base da argumentação em favor das virtudes epistêmicas do princípio democrático encontra-se no conhecido Teorema do Júri de Condorcet. Por razões de espaço, serei sumário na apresentação.28 Resumidamente, Condorcet teria mostrado que, no que tange a decisões sobre o que é melhor para um grupo qualquer, há duas circunstâncias gerais que determinam a escolha de um método de decisão: ou os indivíduos isoladamente são competentes para fazer escolhas corretas em nome do grupo, ou, ao contrário, não o são. No caso de serem competentes, assume- se que a probabilidade que cada indivíduo faça escolhas corretas sobre o que é bom para o grupo é maior do que 0,5 (50%). Se forem incompetentes, essa probabilidade é menor do que esse limite. A partir desses pressupostos, Condorcet provou matematicamente que:

  1. Se a probabilidade de cada componente de um grupo fazer escolhas corretas for maior do que 0.5, quanto maior for o grupo maior será a probabilidade de que seja correta a escolha segundo o princípio majoritário.

  2. Se a probabilidade de cada componente de um grupo fazer escolhas corretas for menor do que 0.5, quanto maior for o grupo menor será a probabilidade de que seja alcançada uma escolha correta segundo o princípio majoritário.

Há situações em que os indivíduos se sentem usualmente incompetentes para tomar decisões sobre o que é bom para eles ou para um grupo qualquer. Por exemplo, a maioria das pessoas não se considera competente o suficiente para tomar uma decisão médica correta. Parece sensato, portanto, que nesse tipo de assunto é melhor para cada um que a decisão seja tomada por experts e não por leigos. Ora, é exatamente isso o que se segue do Teorema do Júri de Condorcet. Já que a probabilidade de que um leigo tome uma decisão errada é maior que 0.5, transferir a decisão para um coletivo de leigos apenas pioraria a situação (a probabilidade de que uma decisão errada seja tomada segundo o princípio da maioria é, nesses casos, maior do que o contrário). Assim, para que o princípio da maioria promova uma decisão acertada é preciso que, nessas circunstâncias, os indivíduos sintam-se autorizados a decidir com segurança sobre o que é melhor para cada um ou para o coletivo, ou seja, é preciso que a probabilidade de que alguém decida corretamente sobre o assunto em questão seja maior do que 0.5.

Mas como saber isso? Ora, se acreditamos que temos mais chance de tomar uma decisão correta partindo de nossas próprias opiniões ou preferências (em contrapartida, a transferir essa decisão para outra pessoa ou expert), e se não temos nenhuma razão para acreditar que isso não ocorra igualmente com os demais, então dispomos de uma razão satisfatória para confiar que o princípio da maioria proporcionará uma decisão melhor para o grupo do que outro princípio qualquer (como o princípio epistocrático de que é melhor transferir a decisão para uma única autoridade epistêmica ou para algum grupo de sábios). Em termos bayesianos, isso consiste em acreditar que a probabilidade de que uma decisão correta seja tomada dado que a tomamos (C|E) é maior do que a probabilidade de que uma decisão correta seja tomada dado que outros a tomaram (C|O); trata-se do contrário do que ocorre quando preferimos transferir a decisão a um expert - isto é, quando a probabilidade de que uma decisão certa seja tomada dado que outro a tomou é maior do que a probabilidade de que a decisão seja correta dado que nós mesmos decidimos (como ocorreria no caso de decisões sobre assuntos complexos acerca dos quais nos julgamos pouco aptos para decidir).

Prob (C|E) >> Prob (C|O) Prob (C|O) >> Prob (C|E)

Isso talvez explique a conexão (que a princípio parece algo misteriosa) entre o procedimento de escolha segundo o princípio democrático e o interesse coletivo. A pergunta fundamental é: no que tange a decisões sobre o conteúdo do interesse coletivo, por que deveríamos preferir escolhas democráticas a escolhas epistocráticas? Por que o interesse coletivo precisaria derivar-se formalmente do interesse particular? Pois, afinal, é bastante plausível que o interesse comum se derive formalmente do interesse particular, já que interesses comuns, como acima defini, são interesses congruentes ou convergentes a uma coleção difusa de indivíduos particulares. Todavia, isso não é de todo evidente no caso dos interesses genuinamente coletivos. Que razões, afinal, teríamos para descartar a opinião de que um sábio está em melhores condições de conhecer o interesse coletivo que o leigo? Essa dúvida segue incólume mesmo sendo plausível assumir que há uma conexão não incidental entre os interesses coletivos e os interesses dos indivíduos que compõem a coletividade, já que, como vimos acima, o interesse genuinamente coletivo não se reduz ao interesse comum agregado. Por que o respeito ao princípio democrático também valeria para questões concernentes ao bem desse ente, a coletividade? Parece fazer sentido exigir que a opinião de cada um seja respeitada no tocante ao estabelecimento do que é comum; mas por que isso também valeria para o estabelecimento do que é bom para o coletivo? Segundo a teoria do proceduralismo epistêmico (ESTLUND, 2008), o valor do princípio democrático é um valor eminentemente epistêmico. Trata-se do melhor recurso procedimental para se alcançar decisões mais próximas do que é bom e correto quando se trata de decidir sobre bens coletivos em circunstâncias nas quais os indivíduos consideram-se individual e universalmente em condições favoráveis para tomar uma decisão, isto é, quando cada um acredita que está mais apto a tomar uma decisão certa do que uma decisão errada sobre o assunto. O princípio que exige respeito à opinião da maioria, nesses casos, amplia a probabilidade de que a decisão tomada será correta, ao contrário das circunstâncias em que os agentes têm boas razões para crer que não estão aptos a decidir corretamente (nesses casos, ao contrário, decidir por maioria piora a qualidade da decisão - o melhor, com efeito, nessas circunstâncias, é transferir a decisão a um sábio).29

Ainda assim, para que o princípio democrático se justifique como regra de decisão em um coletivo, seguindo o princípio de Condorcet, é preciso que cada integrante do grupo (ou ao menos sua maioria) acredite que é individualmente capaz de julgar adequadamente sobre o que preenche o interesse comum e que a substituição de sua opinião pela opinião alheia (ou de uma autoridade) não incrementa a probabilidade de que seja tomada uma decisão correta sobre o assunto. Decisões segundo a regra da maioria aumentam sua probabilidade de correção quanto maior for o número de indivíduos com opiniões congruentes. Do que se segue que, ao compararmos dois grupos de opiniões, a que contar com um número maior de adesões tem a maior probabilidade de estar certa, desde que se trate, é claro, de um assunto de interesse coletivo. A maioria, nesse caso, importa fundamentalmente em razão de sua força epistêmica.

AGRADECIMENTOS:

Este artigo foi desenhado inicialmente com o objetivo de contribuir para o Colóquio Ética e Democracia, realizado nos dias 10 e 11 de agosto de 2017 no auditório Professor Jayme Paviani da Universidade de Caxias do Sul e organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UCS. Agradeço aos questionamentos que me foram dirigidos no encontro. Após o evento, tive a oportunidade de ler a versão inicial do artigo doProfessor João Carlos Brum Torres, intitulado “República e Imparcialidade”, que deverá ser publicado nesse mesmo número da revista Conjectura. O artigo me suscitou novas questões que ampliaram o escopo de minhas preocupações. Para minha satisfação, tive ainda a oportunidade de receber do professor João Carlos vários comentários, críticas e apontamentos. Sinto-me imensamente honrado por isso.

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1“Há um movimento místico por meio do qual Rousseau misteriosamente passa da noção de um grupo de indivíduos que se relacionam entre si de forma livre e voluntária, cada um perseguindo seu próprio bem, à noção da submissão a algo que é, além de si mesmo, maior ainda - o todo, a comunidade”. (BERLIN, 2002a, p. 45).

2Observe-se que acima usei “liberal” em sentido menos rigoroso, muito embora nosso problema seja melhor compreendido como a dificuldade de conciliar em uma única escolha social o valor político da liberdade em sentido “negativo” com o valor político do bem comum.

3Um problema, no entanto, para a visão liberal (e também para Rousseau) é como justificar forçar indivíduos com opiniões divergentes a aceitar sua submissão à visão majoritária em razão de terem sido procedimentalmente tratados de forma igual (agradeço ao Professor João Carlos por esta observação). Seria essa razão suficiente para que alguém acate uma posição discordante (isto é, para que se reconheça uma opinião discordante e diferente como detentora de autoridade (authoritative))?

4Essa é, claro, uma versão bastante simplificada da visão de Hobbes. Para uma avaliação crítica da teoria de Hobbes sobre os fundamentos da autoridade, veja-se Pitkin (1967) e Copp (1980).

5Afirmar que a nação seja um ente real submete, por certo, o defensor dessa visão a uma exigência metafísica, algo difícil de se desembaraçar, uma exigência semelhante à que tinham os medievais em explicar o estatuto ontológico do Rei (KANTOROWICZ, 1997). Novamente, devo ao Professor João Carlos essa observação. Todavia, o fracasso dos medievais em dar conta de forma convincente do suposto duplo estatuto metafísico do corpo do rei não implica (como o próprio Kantorowicz reconhece no prefácio de seu livro) que toda tese realista sobre a “personificação” de entes coletivos seja, como teria defendido Maitland, apenas e tão somente “a man-made irreality” (KANTOROWICZ, 1997, p. 5 - meu itálico), isto é, que seja apenas fruto de um (quiçá perigoso) “disparate metafísico”.

6Copp define “ação secundária” do seguinte modo: “An action performed by an agent is a secondary action if, and only if, it is correctly attributed to this agent on the basis of either an action of some other agent, or actions of some other agents. Actions of collectives are secondary actions, but not all secondary actions are actions of collectives” (1980, p. 581). Fica claro que a ação do agente representado é que é a ação secundária; isto é, a ação atribuída de modo “primário” ao agente representante é, nesses casos, uma ação secundária do agente representado.

7“A person”, diz Hobbes (De Homine XV), “is he to whom the words and actions of men are attributed, either his own or another’s: if his own, the person is natural; if another’s, it is artificial” (HOBBES, 1991, p. 83).

8Dick teria um dever para com Harry de cooperar na ação de empurrar a van e de não trapacear ao mesmo tempo que também teria um dever para com Tom com o mesmo conteúdo. Poderíamos descrever esses dois deveres separados e independentes de Dick do seguinte modo. Considere “D” como símbolo do operador deôntico “Dever”. Temos então o seguinte: DDick, Harry (Cooperar na ação de empurrar a van & Não-trapacear) e DDick, Tom (Cooperar na ação de empurrar a van & Não-trapacear).

9 Darwall (2006) estudou a fenomenologia das atitudes reativas descritas por Peter Strawson em Freedom and resentment de 1962 (2008) em seu estudo sobre o ponto de vista da segunda pessoa (the second personal standpoint). Segundo Darwall, atitudes reativas como ressentimento, culpa e indignação diferem de outras reações emotivas (como aversão, desprezo e vergonha) por serem reações desencadeadas ao assumirmos empaticamente um ponto-de-vista alheio (o ponto-de-vista, por exemplo, de uma vítima). Darwall, diferentemente de Strawson, considera o ressentimento como uma atitude reativa a injustiças cometidas para conosco, mas também para com aqueles com quem nos identificamos (DARWALL, 2006, p. 68). A diferença entre o ressentimento e a indignação é que a segunda reação é impessoal, ao passo que a primeira é pessoal. Atitudes reativas pessoais, diz Darwall, são sentidas por alguém próximo àquele que foi lesado, e as atitudes reativas impessoais são sentidas do ponto de vista imaginário de um membro qualquer da comunidade moral. Tom e Harry poderiam sentir-se ressentidos com Dick por ele ter falhado com ambos, já que ambos mantêm uma identidade íntima. Poderiam também sentir-se indignados; esse sentimento de indignação seria, por sua vez, despertado ao assumirem o ponto de vista imparcial de um membro qualquer desse grupo. Pessoas fora do grupo, porém, poderiam sentir-se vicariamente indignadas, mas não poderiam sentir- se propriamente ressentidas com Dick.

10Diz Hobbes (De Cive, Cap XII) que “constitui um grande perigo para o governo civil [...] que não se faça suficiente distinção entre o que é um povo e o que é uma multidão. O povo é uno, tendo uma só vontade, e a ele pode atribuir-se uma ação; mas nada disso se pode dizer de uma multidão” (HOBBES, 1991, p. 250).

11Note-se que essa modalidade de ação coletiva pode ser também atribuída a animais não-humanos. Uma manada de búfalos pode afastar um leão das proximidades de seus filhotes. Atribuições de responsabilidade, porém, parecem exigir mais do que relações de causa e efeito. Não pretendo, entretanto, ater-me aqui à distinção entre atribuir uma ação a um agente individual ou a um agente coletivo (isto é, quando um efeito pode ser atribuído ao comportamento de um indivíduo ou a grupo de indivíduos) e entre atribuir-lhes igualmente responsabilidade. Afinal, é plausível que atribuições de responsabilidade exijam critérios que não se aplicam a certos tipos de indivíduos ou coletivos. Assim, um coletivo de animais pode realizar ações, mas seria suspeito atribuir-lhe “responsabilidade” em sentido estrito (causalidade e responsabilidade não são noções semanticamente equivalentes). A propósito, vale destacar que “responsabilidade” é, como disse Feinberg, um termo legaliforme (a legal-like term) e podemos estar cometendo um equívoco ao empregá-lo fora dos contextos originalmente jurídicos que lhes conferem sentido ordinário (FEINBERG, 1964; AZEVEDO, 2018).

12Interesses e valores não são conceitos equivalentes. Postema inicia tratando de “valores” privados; mas parece-me prima facie correto assumir que o que vale para valores valha igualmente para interesses.

13Congruência é a propriedade de ser igual, de corresponder a outra coisa em certas características ou propriedades relevantes. Em geometria, duas figuras são “congruentes” se possuem a mesma forma (se são similares) e, além disso, são isométricas (isto é, têm as mesmas medidas). Dois interesses são, assim entendo, congruentes, se são similares e se dizem respeito às mesmas circunstâncias.

14A legislação brasileira sobre os Direitos do Consumidor, como é amplamente sabido pelos profissionais da área jurídica, em sua classificação dos diferentes tipos de interesses, traça uma diferença entre interesses individuais, coletivos e difusos. O objetivo é caracterizar sob que circunstâncias pode haver uma defesa coletiva de um interesse, ou, nos termos em que apresentei a linguagem dos direitos (AZEVEDO, 2010), uma exigência (claim) coletiva. Interesses reivindicáveis ou exigíveis são difusos se forem defendidos em favor de pessoas indeterminadas ligadas por circunstâncias de fato. Quando, porém, os interesses ligam um grupo de pessoas, categoria ou classe “com uma parte contrária” (o alegado portador do dever correlato) “por uma relação jurídica de base”, os interesses são chamados na legislação de coletivos. Há ainda interesses individuais que podem ser defendidos coletivamente, já que decorrem de uma “origem comum”, sendo chamados na legislação de interesses individuais homogêneos (Lei 8.079, de 11 de setembro de 1990). Essa classificação não é, todavia, imediatamente transparente, tendo gerado diferentes interpretações. A distinção essencial entre os dois primeiros e o terceiro tipo de interesse coletivo parece ser de que, nesse último, o interesse é de assaignable persons, para usar aqui a expressão que Postema retira de Bentham. No caso de interesses individuais homogêneos, a satisfação do interesse de um não resulta indiretamente na satisfação do interesse dos demais (daí porque alguns chamam tais interesses de “acidentalmente coletivos”). Nos outros dois casos, a parte demandada, ao satisfazer o interesse de um acaba também eo ipso satisfazendo o interesse dos demais. Trata-se, pois, de interesses de unassaignable persons. Todos esses interesses são, porém, interesses de indivíduos. Está claro, portanto, que neste artigo uso os termos “comum” e “coletivo” em um sentido diferente e peculiar. No sentido de “coletivo” que emprego aqui, o interesse coletivo é o interesse da coletividade em proteger juridicamente os interesses individuais, coletivos e difusos dos cidadãos entendidos como “consumidores”.

15Chamar ei adiante apenas de “comuns” aos interesses que Postema chama indistintamente de comuns ou públicos.

16Com efeito, os interesses individuais homogêneos da legislação brasileira são interesses privados (de pessoas identificáveis) que, dadas certas circunstâncias acidentais, são congruentes a certo grupo de pessoas.

17Não estou plenamente convencido se as escolhas terminológicas que faço neste artigo são as mais apropriadas. Talvez fosse melhor chamar os interesses genuinamente coletivos de Postema simplesmente de interesses “gerais”. Na verdade, excetuando-se os interesses privados por excelência, poderíamos usar as palavras “comum”, “geral” e “coletivo” para qualquer um desses outros tipos de interesses.

18Brum Torres, em comentário feito a uma versão preliminar deste artigo, defendeu a distinção adicional de que interesses comuns podem ser prévios ou podem depender de algum acordo, explícito ou implícito. Poderíamos, penso, distinguir esses dois grupos como interesses comuns “objetivos” e “subjetivos”, isto é, entre interesses que podem ser atribuídos a uma coleção de indivíduos independentemente de seu assentimento, e, ao contrário, interesses que dependem para serem atribuídos ao grupo de que exista algum assentimento implícito ou explícito prévio. Neste segundo caso, destaca Brum Torres, a adesão é instável, sujeita, com efeito, ao “risco” de esvair-se ou de desaparecer com o tempo. O interesse comum d’Os Águias Negras” seria desse segundo tipo. Não seria, porém, esse interesse comum “prévio”, “objetivo” relativamente às preferências e opiniões dos indivíduos que fazem parte do grupo, um interesse genuinamente coletivo?

19É plausível que alguém possa ter um interesse individual privado em promover o bem de sua comunidade, o que implica a possibilidade (algo curiosa, mas ainda assim possível) de que esse alguém possa interessar-se em promover o bem da sua comunidade mesmo que todos os demais individuais atuais deixem de ter esse interesse.

20Brum Torres sobre isso comentou-me que o interesse supostamente genuinamente coletivo atribuível aos pesquisadores seria igualmente um interesse instável, sujeito à manutenção da disposição comum de colaborar ou permanecer no grupo (algo que poderia desaparecer por motivações puramente privadas). Do modo como apresentei o exemplo, o interesse genuinamente coletivo do grupo de pesquisadores depende certamente da persistência da atividade coletiva (essencialmente cooperativa) por um número minimamente significativo de indivíduos. É preciso, portanto, para que exista um interesse genuinamente coletivo que haja uma interação cooperativa persistente entre um grupo de indivíduos (os quais podem inclusive variar), cujo número depende da natureza da atividade. Uma equipe amadora de futebol, por exemplo, pode simplesmente deixar de existir se o total de integrantes do grupo reduzir-se a um número menor do que 11. Uma confraria que se reúne com periodicidade pode deixar de existir se a desistência aos encontros passar a impossibilitar sua recorrência.

21A treatise of human nature, Livro III, Parte II, Seção II, parágrafo 22.

22É provável, porém, que Hume não tenha pretendido defender essa tese, mas, sim, de que há um interesse individual comum convergente em promover o sistema de justiça. Todavia, penso que minha interpretação torna a hipótese de Hume mais plausível.

23Ver: Manuel Wackenheim vs. France, Communication N° 854/1999, U.N. Doc. CCPR/C/75/D/854/1999 (2002). A propósito de uma excelente abordagem sobre a controvérsia em torno do uso do termo “dignidade”, e também sobre o caso de Wackenheim, veja-se Rosen (2012).

24Descrevi os direitos em questão seguindo a semântica de Wesley Newcomb Hohfeld. Acerca disso, ver Azevedo (2010). Para uma apresentação resumida da semântica hohfeldiana, veja-se Edmundson (2004) (há tradução disponível para o português pela Martins Fontes).

25O tema da pornografia foi classicamente debatido por H.L.A. Hart (1963), na sua clássica disputa com Lord Devlin sobre o assunto. Sobre o tema, ver também Feinberg (1986).

26Um problema correlato diz respeito ao valor que a coletividade atribui à liberdade individual, especialmente ao respeito às opiniões e preferências dos indivíduos naquilo que diz respeito apenas a eles e que não causa danos a outros e não interfere, ao menos não de modo “significativo”, com o bem-estar público ou com a promoção dos valores da coletividade. Trata-se do tema acerca do valor que atribuímos coletivamente ao princípio formulado por John Stuart Mill e que Joel Feinberg denominou de “Princípio do Dano” (FEINBERG, 1986, p. ix).

27Por que somos obrigados a obedecer a uma autoridade pública, mas temos a permissão de não seguir as recomendações de profissionais (aos quais concedemos autoridade epistêmica)? A distinção ontológica entre indivíduos e coletividades, penso, tem a vantagem de explicar isso. Autoridades públicas não decidem sobre o que é bom para indivíduos privados, mas para o bem da coletividade. Um médico pode “decidir” sobre o que é bom para um indivíduo, mas sua decisão só pode ter o teor normativo de uma recomendação, já que o médico não tem (ou não deve ter) poder sobre os indivíduos. Uma autoridade, como um juiz, por exemplo, decide em nome da vontade geral, isto é, de uma vontade genuinamente coletiva. Ele não decide em nome de indivíduos privados, mas em nome de um ente coletivo. Ora, há circunstâncias em que a vontade do coletivo deve se impor sobre as vontades individuais. Trata-se das circunstâncias em que os cidadãos se encontram submetidos ao dever de obedecer à autoridade. Todavia, como sustentei acima, isso não vale para toda e qualquer circunstância. Há situações em que os cidadãos não estão submetidos ao dever de obediência, tendo, ao contrário, direitos a não serem coagidos ou forçados a agir de certo modo. E há eventualmente situações em que a desobediência civil pode estar moralmente justificada.

28Para uma discussão mais detalhada, ver Grofman; Owen e Feld (1983); Grofman e Feld (1988), Estlund et al. (1989).

29Todavia, é plausível que a decisão de transferir a decisão a um sábio, e mesmo a escolha do sábio em questão, sejam assuntos sobre os quais os indivíduos sintam-se em condições de decidir. Isso justifica decisões por maioria acerca de quais assuntos caberão aos experts, bem como a escolha ou, ao menos, os princípios de escolha desses experts.

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