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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.spe3 Caxias do Sul  2018  Epub 02-Set-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.dossie.15 

Artigos

Desacordo quanto aos critérios justos de igualdade e o papel da teoria política em um Estado Democrático de Direito: um contraste entre as posições de Dworkin, Sen e Rawls#

Disagreement on the just criteria of equality and the role of political theory in a constitutional democracy: a contrast between the positions of Dworkin, Sen and Rawls

Paulo Baptista Caruso MacDonald* 

*UFRGS.


Resumo

As questões de justiça não dizem respeito apenas à determinação dos critérios de igualdade que devem orientar as regras jurídicas, mas também afetam a própria legitimidade da escolha desses critérios. Em virtude das experiências trágicas vividas no século XX e da impossibilidade de estabelecer um mecanismo perfeito de escolha social, o debate recente sobre os critérios justos de igualdade deve ser contextualizado em uma discussão mais ampla que envolva também questões atinentes à legitimidade política e à estabilidade dos regimes democráticos apesar do forte desacordo ocasionado pelo pluralismo. O presente trabalho tem como objetivo comparar as teorias políticas de Ronald Dworkin, Amartya Sen e John Rawls quanto ao modo como se posicionam frente ao desacordo político com respeito a quais seriam os critérios justos de igualdade a serem incorporados na legislação. Ao constatar funções distintas à teoria política conferidas pela abordagem de cada autor, busca-se verificar se essas são entre si incompatíveis ou complementares.

Palvras-chave: Teoria política; Estado Democrático de Direito; Igualdade; Ideologia; Razão pública

Abstract

The issues concerning justice are not only those related to the establishment of the criteria of equality which ought to be incorporated by legal rules, but also those connected with the legitimacy of the choice of those criteria. In virtue of the tragical experiences of the 20th century and of the impossibility of conceiving a perfect mechanism of social choice, the recent debate on the just criteria of equality must be read in the context of a broader discussion which includes matters of political legitimacy and the stability of democracies in spite of the profound disagreement occasioned by pluralism. This paper intends to compare the political theories of Ronald Dworkin, Amartya Sen and John Rawls regarding their approach to political disagreement on the just criteria of equality to be incorporated into legislation. Since different functions are attributed to political theory by each author, another aim is to verify whether they are complementary or incompatible.

Keywords: Political theory; Constitutional democracy; Equality; Ideology; Public reason

As declarações de direitos humanos setecentistas proclamavam todas as pessoas como livres e iguais. Apesar do alto grau de generalidade e vagueza dessas duas propriedades, ao menos duas implicações tornaram-se uma espécie de consenso: a primeira, de que algum espaço livre de obstáculos ou coerção deveria ser concedido para que cada um fosse, em alguma medida, responsável pelas escolhas que determinariam seu próprio destino; a segunda, de que todos estariam submetidos ao mesmo ordenamento, ou seja, que a aplicação de consequências normativas a indivíduos se daria exclusivamente ao enquadramento de seu caso nas hipóteses fáticas previstas de modo geral por uma regra jurídica, sem que houvesse qualquer distinção de tratamento que não tivesse por base a limitação recíproca das liberdades, como garantia de seu convívio harmônico, ou a busca de uma finalidade comum.1

Tais implicações, todavia, não oferecem nenhuma resposta quanto ao conteúdo das liberdades de escolha a serem oferecidas aos indivíduos, nem quanto aos critérios de igualdade e distinção a serem adotados pelas normas que fundamentam a adoção desses critérios. A questão sobre como o poder efetivo de escolha se distribuirá na sociedade, a qual determina os critérios de atribuição de direitos subjetivos e seus correlatos, inclusive quanto ao uso de recursos materiais, resume-se na pergunta “igualdade de quê?”, isto é, com base em quais parâmetros se deve traduzir na prática a ideia abstrata de que todos são livres e iguais.2

Paralelamente a esse questionamento, que dominou o debate teórico sobre justiça nas últimas décadas, enfrenta-se o problema da legitimidade da implementação de certos critérios de igualdade em uma sociedade particular. Afinal, o igual respeito à liberdade de escolha dos indivíduos tem que, de algum modo, estar presente nos mecanismos através dos quais normas jurídicas que traduzem uma certa concepção de igualdade são introduzidas no sistema.

O debate teórico contemporâneo sobre justiça e democracia resulta, em grande medida, das falhas de respostas reducionistas aos dois tipos de questão expostos acima. Por um lado, a história do século XX mostrou, para além das antigas preocupações com a tirania da maioria, a fragilidade do sistema democrático liberal e o seu potencial autodestrutivo. A regra da maioria tomada isoladamente de todo um sistema de proteção a direitos mínimos e de uma cultura democrática não constitui o patamar fundamental de igualdade a partir do qual todas as questões de justiça possam ser decididas de maneira legítima. Por outro lado, a pretensão de teóricos do bem-estar social em confluir as preferências individuais em uma função de escolha social, o que contemplaria à perfeição o igual respeito à liberdade de escolha de todos na definição das normas jurídicas e da ação da coletividade, demostrou-se impossível de ser atingida pelo teorema de Arrow de 1951. (ArKrow, 1963).

Em suma, nem a tarefa de responder às questões de justiça poderia ser delegada a algum procedimento, por mais que esse obedecesse ao imperativo democrático de considerar igualmente as escolhas de todos, nem tampouco seria razoável pensar a democracia sem levar em conta uma concepção mínima de justiça que a noção de legitimidade implica. Somado a isso, parece imprescindível ocupar-se do problema da estabilidade política com vistas à manutenção do jogo democrático. Se nada com alguma relevância prática puder ser dito de maneira geral sobre essas questões de estabilidade, aparentemente se reduz o papel normativo da filosofia política ao de formular utopias que, por mais que possam ser realistas quanto ao que exigem das capacidades morais humanas e da disponibilidade de recursos naturais - a saber, não pressupõem o completo altruísmo, nem a abundância - não teriam aplicabilidade para regular uma estrutura constitucional que subsista à alternância de governos.

O presente texto tem como objetivo comparar as teorias políticas de Ronald Dworkin, Amartya Sen e John Rawls quanto ao modo como se posicionam frente ao desacordo político com respeito a quais seriam os critérios justos de igualdade a serem incorporados na legislação. O principal ponto a ser enfatizado será a perspectiva a partir da qual analisam tais desacordos, bem como o papel que reservam à sua teoria política dentro da dinâmica do jogo democrático. Por fim, será enfrentada a questão acerca da compatibilidade entre as três abordagens: ainda que Dworkin e Sen tenham expressamente apresentado suas teorias em reação a Rawls,3 pode-se sustentar que os três teóricos não se contrapõem na medida em que interpretarmos suas contribuições cumprindo funções distintas no debate político. O percurso argumentativo iniciará com uma breve análise das teorias de Dworkin e Sen, para depois contrastá-las com a concepção de liberalismo político de Rawls e concluir com a defesa do caráter complementar das três visões.

Dworkin e o ideal de cidadão responsável em um Estado Democrático de Direito

Não seria exagerado sustentar que Dworkin procede a uma juridificação da política. Isso ocorre, em primeiro lugar, pela centralidade dos direitos morais em sua teoria, funcionando como trunfos que o indivíduo possui em contraposição à promoção de metas coletivas (DWORKIN, 1984, p. 153-167). Em segundo lugar, porque ele atribui um papel de destaque ao tribunal constitucional em sua concepção de democracia. Referido pelo autor como o “fórum do princípio”, o tribunal constitucional deve funcionar como poder ao qual cabe a última palavra para resguardar os direitos individuais contra possíveis avanços das escolhas da maioria (DWORKIN, 1986, p. 33-71; 1996, p. 1-38) (e que, ironicamente, decide por maioria quando há desacordo entre seus juízes).

Como consequência de tal modelo jurídico da política, pode-se apontar a ênfase conferida à busca da verdade sobre o que se deve decidir coletivamente através da argumentação, o que parece fazer mais sentido em um modelo de processo adversarial, quando se discutem conflitos sobre direitos diante de uma autoridade judicial, e a sentença dessa autoridade tem que necessariamente se pronunciar dando ganho de causa a uma das partes com fundamento em razões. Esse ponto conduz inevitavelmente à hiperracionalização da política: todo desacordo político acaba por ser rastreável a um desacordo teórico. Quanto a isso, não deixa de ser sintomático que Dworkin apenas trata de paixões/emoções em sua obra quando refuta metaéticas expressivistas ou emotivistas (DWORKIN, 2011, p. 23-87).

Para Dworkin, elaborar teorias da justiça e da democracia consiste apenas em levar adiante o esforço que cada indivíduo deve fazer, como ser autônomo e responsável, em buscar uma interpretação coerente de todos os conceitos morais (incluídos os políticos) que seja fundada em razões e que preser ve a unidade do valor.4 A existência de problemas de incomensurabilidade entre valores e a identificação de dilemas morais apenas podem ser resultado desse processo argumentativo, nunca algo aceito como ponto de partida (DWORKIN, 2011, p. 90-96). Esse esforço é realizado em um contexto interpessoal de argumentação, em que desafios e objeções são feitas às razões que embasam essas interpretações. Faz parte da tarefa de um indivíduo responsável dar conta desses desafios e objeções, ou revisar suas crenças morais (DWORKIN, 2011, p. 99-122).

A sua posição sobre a distribuição de recursos na sociedade é pensada, por sua vez, a partir de um sofisticado modelo de leilão hipotético, em que inclusive seguros contra riscos de acidente, doença, desemprego, baixa renda etc. são leiloados entre indivíduos que dispõem de meios iguais para comprá- los (DWORKIN, 2000, p. 65-119). Embora seja apenas um modelo teórico para pensar os princípios que devem orientar as regras jurídicas e as políticas públicas a serem implementadas na prática, é digno de nota o fato de se valer do modelo de equilíbrio entre preferências individuais em um mercado ideal como artifício para conferir igual consideração à escolha de cada cidadão, evitando assim os problemas atinentes à escolha social apontados por Arrow.

Sen e a ampliação do espaço informacional para uma escolha social refletida

Em Sen, a escolha social constitui o ponto focal da teoria política. Afinal, o modo como ela se realiza é fundamental para aferir o quão democrática é cada sociedade, e é em torno dela que se constrói a dinâmica argumentativa de uma democracia, a qual é por ele caracterizada como o governo por meio da discussão (SEN, 2009, p. 324-327).

Nesse quadro, a teoria política possui dupla função: (1) aprimorar os mecanismos de decisão tendo-se em vista a demonstração de Arrow de que não há mecanismo perfeito de escolha social; e (2) ampliar ao máximo o espaço informacional para que a escolha se dê da maneira mais refletida possível.

A ampliação do espaço informacional pretendida por Sen consiste tanto na busca pela inclusão de vozes no debate público (inclusive daqueles que não participarão do processo decisório em si, como estrangeiros) (SEN, 2009, p. 124-152) quanto pelo abandono das métricas do bem-estar e dos recursos em favor de uma forma de se avaliar a distribuição de benefícios e encargos em uma sociedade que possibilite levar em consideração os efeitos que tal distribuição tem dentro das circunstâncias objetivas relevantes em que se encontra cada indivíduo.

Nesse sentido, o que realmente importa ao debate público são os conjuntos de oportunidades que as pessoas de fato possuem para a realização de funcionamentos [ functionings ] humanamente valiosos. Esses funcionamentos não se limitam a estados de coisas como estar bem nutrido ou livre de doenças, mas, sempre que relevante, dizem respeito àquilo que o indivíduo é efetivamente capaz de fazer ou escolher por conta própria. As oportunidades para funcionamentos humanamente valiosos Sen denomina capacitações [capabilities] (SEN, 2009, p. 225-290).

Como oposição ao modelo de Dworkin de se pensar a justiça, por um lado, substitui-se aquilo que os indivíduos escolheriam em um mercado hipotético pela determinação via escolha social real das capacitações relevantes e as medidas pelas quais elas devem ser promovidas; por outro lado, direitos morais não são mais concebidos como trunfos, mas como um fator a ser levado em conta na promoção das capacitações. Para incorporá-los à detecção de injustiças, adota-se a perspectiva dos resultados abrangentes [comprehensive outcomes], a qual contempla a consideração não apenas do resultado em si (aumento ou diminuição de capacitações), mas também do processo por meio do qual esse resultado foi obtido (ou seja, se direitos foram respeitados ou violados) (SEN, 2009, p. 215-217).

Rawls e a questão do funcionamento institucional de um Estado Democrático de Direito

Apesar de todos os esclarecimentos que se podem encontrar nas teorias de Dworkin e Sen, parece insatisfatório o modo como cada uma delas reconhece a autonomia relativa entre as questões de justiça e de legitimidade democráticas nas suas respostas à questão “igualdade de quê”, ao menos se tivermos em vista o terceiro problema apontado na introdução, a saber: a estabilidade das regras e instituições que constituem o Estado Democrático de Direito.

Sen apresenta um excessivo otimismo com relação à capacidade humana de se indignar com a percepção da injustiça e à discussão racional que essa indignação pode acarretar, bem como aos efeitos que isso pode ter nas escolhas coletivas. Sua preocupação com a abertura do debate público restringe o papel do teórico ao de fornecer as ferramentas adequadas para que as questões sejam discutidas de maneira não reducionista e para que se tenha consciência das limitações dos mecanismos de decisão. Ora, isso certamente tem grande valia na dinâmica diária de Estados Democráticos de Direito em período de funcionamento normal para a mobilização da sociedade civil, a elaboração de políticas públicas e a posterior avaliação dos efeitos de sua implementação. No entanto, não confere contornos claros à própria noção de Estado Democrático de Direito, tampouco explica de que modo esse se justifica como o arranjo institucional adequado para tratar todos como livres e iguais. Não parece, afinal, de pouca importância a distinção do que constitui uma injustiça em uma sociedade coberta pelo marco institucional de um Estado Democrático de Direito (tendo suas instituições o potencial de corrigi-la) e aquelas injustiças que abalam a sua própria estrutura, as quais acabam esvaziando de legitimidade as decisões públicas.

Por razões distintas, problema semelhante pode ser atribuído à teoria de Dworkin. Sua visão hiperracionalista do debate político o impede de distinguir o que constitui um desacordo razoável - ou seja, aquele que se dá entre cidadãos comprometidos com o marco institucional do Estado Democrático de Direito - de um não razoável, revelado pelo descompromisso de ao menos uma das partes com a demanda de reciprocidade da razão pública, a saber, de que sua posição possa ser fundada em argumentos que possam ser tomados como razões por qualquer cidadão, na medida em que não pressupõem crenças religiosas ou a adesão a alguma concepção abrangente de bem, mas apenas o ponto de vista comum entre indivíduos que participam de um sistema de cooperação social que os trata como livres e iguais, devendo ser vantajoso para todos que estiverem dispostos a respeitar suas regras. Não deixa de ser sintomática a opinião de Dworkin acerca de tal demanda:

Eu não vejo, todavia, o que a doutrina da reciprocidade exclui. Se eu acredito que uma posição moral particular controversa é plenamente correta, [...] então como eu poderia não acreditar que outras pessoas na minha comunidade possam razoavelmente aceitar o mesmo ponto de vista, independentemente de ser provável que elas o aceitem? (DWORKIN, 2006, p. 252-253)

Como resposta, podemos resgatar a afirmação de Rawls segundo a qual “[o] liberalismo político vê essa insistência com respeito à verdade por inteiro [whole truth] na política como incompatível com a cidadania democrática e a ideia de um direito legítimo” (RAWLS, 2005, p. 447). Em oposição a Dworkin, Rawls reconhece as limitações do juízo moral [burdens of judgement]5, as quais abrem as portas à possibilidade de se reconhecer o desacordo razoável e para que a interpretação dos conceitos políticos permaneça contestável no contexto da disputa política, ao mesmo tempo que sua ideia de razão pública oferece fundamentos sólidos para barrar uma novilíngua incompatível com a democracia. De outra parte, parece lograr mais êxito ao destacar o funcionamento institucional como o problema central da moralidade política: estando justificadas as instituições, o restante dos conflitos e desacordos entre os cidadãos pode ser processado por meio de suas regras e pelo comportamento dos agentes públicos com elas compatível, sem que isso em nenhum momento comprometa o sentido mais fundamental segundo o qual todos devem ser tratados como livres e iguais.

Nesse sentido, pode-se compreender a teoria política de Rawls, principalmente em O liberalismo político, como estabelecendo o marco jurídico e conceitual em que ideologias6 rivais disputam a adesão dos cidadãos em um Estado Democrático de Direito. Os conteúdos dos conceitos políticos - democracia, liberdade, igualdade, justiça, desenvolvimento econômico, sustentabilidade, entre outros - permanecem suficientemente abertos para que cada ideologia forneça o seu modo de tornar o que era um conjunto de conceitos essencialmente contestáveis7 - e, por conseguinte, em grande medida indeterminados - uma concepção suficientemente determinada, capaz de servir de diretriz prática para escolhas sociais.

O liberalismo político de Rawls não se apresenta, portanto, como uma determinação filosoficamente apurada do significado dos conceitos políticos que vêm substituir as ideologias em disputa, certamente forjadas sem o mesmo rigor argumentativo8. Ele cumpre a função de estabelecer fronteiras9 entre os sentidos possíveis e impossíveis dos conceitos políticos no interior de um Estado Democrático de Direito. A atribuição de um sentido determinado a esses termos será desempenhada pelas versões razoáveis das diferentes ideologias (sejam elas abrangentes quanto ao escopo de suas preocupações, como o liberalismo, o socialismo, o conservadorismo, sejam elas parciais, como o ambientalismo e o feminismo), excluindo-se do campo semântico em debate as interpretações e diretrizes não razoáveis fornecidas por ideologias como o fascismo, o supremacismo racial e os diversos fundamentalismos.

Três funções distintas para a filosofia política

Após efetuado o breve exame das teorias de Dworkin e Sen e de sua comparação com a de Rawls, cabe agora discriminar a função que cada uma delas pode exercer na prática política, mostrando que são antes complementares do que incompatíveis entre si.

O contraste entre o pensamento de Dworkin e o de Rawls (exposto na seção anterior) pode ser compreendido como a diferença entre uma teoria feita na perspectiva da primeira pessoa e outra feita em terceira pessoa. Dworkin constrói seus argumentos políticos como um participante do debate que busca uma interpretação coerente e unificada dos conceitos políticos que se justifique como superior a interpretações alternativas. Em virtude da unidade do seu pensamento, não pode prescindir daquilo que Rawls denomina uma “concepção moral abrangente”, a qual influenciará e será influenciada por sua concepção de moralidade política. Adotando-se o ponto de vista do indivíduo racional que visa integrar seu posicionamento político no exame mais amplo de sua própria vida, não há se falar em uma concepção política justificada por argumentos independentes.

Uma análise do fenômeno político a partir da perspectiva de terceira pessoa constata o fato do pluralismo de visões morais abrangentes em sociedades democráticas e da inevitável permanência do desacordo entre essas posições: ainda que todos estejam dispostos a debater racionalmente as questões de divergência, as razões nunca serão suficientemente cogentes para solucioná-las por completo. Nesse contexto, a teoria política poderia dar de ombros e limitar-se a sustentar um procedimento para que decisões coletivas tomadas por todos em pé de igualdade sejam possíveis apesar do desacordo irremediável. A mera defesa da regra da maioria consiste em uma das saídas mais usuais, que, no entanto, mostrou sua fragilidade em episódios como o fim da República de Weimar com a ascensão do nazismo pelo voto. A estabilidade das instituições democráticas, assim como a legitimidade da imposição à minoria da decisão da maioria, exigiriam fundações mais sólidas.

O liberalismo político de Rawls, que pode ser identificado como uma concepção rigorosamente justificada de Estado Democrático de Direito, vem cumprir esse papel. Apenas uma teoria que adota a perspectiva de terceira pessoa, construindo-se de maneira independente das premissas das concepções morais abrangentes em desacordo adotadas por cada um dos cidadãos em uma democracia, tem a capacidade de ser reconhecida por todos que veem a si e aos outros como livres e iguais como a base da legitimidade das ações coletivas e, por conseguinte, da estabilidade política. Desse modo, procura-se garantir as condições para que a deliberação democrática possa ocorrer e as decisões da maioria possam ser recebidas como legítimas por aqueles que delas discordam. Ao contrário da teoria de Dworkin, que argumenta em favor de uma interpretação dos conceitos políticos como a melhor (o que corresponde ao modo de proceder característico dos participantes do debate político), a de Rawls mantém-se neutra entre as concepções razoáveis e atribui ao processo democrático a função de decidir. Na prática, ambas podem recomendar a mesma deferência às instituições de um Estado Democrático de Direito (a concepção abrangente de Dworkin respeita as decisões legítimas da maioria com que esteja em desacordo); a estratégia argumentativa, porém, é distinta: Rawls procura ser bem mais econômico em suas premissas para preservar o espaço do desacordo razoável em suas conclusões, permitindo assim não somente uma aceitação mais ampla de seus princípios, mas principalmente o consenso de todos aqueles cuja aceitação importa (todos que endossam concepções morais abrangentes razoáveis). (RAWLS, 2005, p. 465, 479-480).

Distinguindo-se dos dois outros autores, a perspectiva de Sen pode ser bem compreendida a partir de sua frequente alusão ao espectador imparcial de Adam Smith: ele é concebido por quem participa do jogo político em andamento e nele se posiciona, mas, ao mesmo tempo, busca adotar uma perspectiva externa à sua visão e aos seus interesses para submetê- los ao escrutínio racional a partir de uma perspectiva mais ampla, a qual busca evitar que formule suas opiniões de maneira redutivista ou ignore os argumentos divergentes. Isso serve tanto para o debate público quanto para os processos de decisão, incluindo aí a crítica dos próprios mecanismos de aferição da vontade coletiva sob o prisma da teoria da escolha social. As escolhas políticas não são avaliadas como corretas ou incorretas a partir de uma teoria moral acessível fora do próprio processo de decisão; todavia, os defeitos desse processo tanto no que diz respeito à constituição das opiniões quanto à tomada de decisão podem vir à luz com a identificação de distorções devidas à redução arbitrária do espaço informacional ou à influência do autointeresse. A filosofia política opera, nesse contexto, como um órganon, fornecendo as ferramentas para a detecção e correção dessas distorções.

Na visão de Sen, todavia, não caberia à teoria antecipar-se às distorções e fornecer de antemão os princípios de um jogo político em que elas não ocorreriam. Não se trataria apenas da lição antifundacionalista da metáfora da embarcação que tem que ter as suas peças substituídas em alto-mar e, por isso, não pode proceder simultaneamente todas as substituições, embora essa não pareça uma imagem inadequada para ilustrar uma filosofia que pretenda ter uma função a cumprir na vida política das sociedades reais. Trata-se, sobretudo, de assumir que não há modelo de embarcação que, por sua perfeição, fará com que o conserto não seja mais necessário uma vez que todas as peças sejam ordenadas segundo ele. Enquanto que o cumprimento dos princípios de justiça de Rawls, embora se dê em maior ou menor escala nas sociedades reais, possa ser completo, há, ao menos em tese, sempre espaço para a ampliação das capacitações na abordagem de Sen. O foco da teoria consiste em fornecer critérios para a comparação entre estados de coisas sem a redução do espaço informacional, e não estabelecer um ideal de sociedade a ser realizado.

Não há nada aqui, contudo, com que a perspectiva de Rawls não possa concordar. Talvez a caracterização que o próprio autor fez de sua teoria como uma “utopia realista” (RAWLS, 2001, p. 4, 13) possa conduzir erroneamente à ideia de que em uma sociedade bem-ordenada não há espaço para o desacordo político com respeito a quais regras jurídicas e políticas públicas são preferíveis sob o ponto de vista moral. O que distingue a sociedade bem-ordenada parece ser, acima de tudo, a ausência de razão para que qualquer cidadão não aceite a sua obrigação de obedecer às decisões da coletividade com as quais não concorda, na medida em que sejam razoáveis e ainda que a sua posição derrotada também o fosse. A preocupação de Rawls com questões de justiça - e isso fica cada vez mais claro na evolução de sua obra - está diretamente conectada à sua preocupação com a legitimidade do Estado e, por conseguinte, com o fundamento da obrigação de obedecer às suas normas (RAWLS, 2005, p. 429). Pode-se inclusive arriscar dizer que sua preocupação central, no fim das contas, sempre foi a questão da legitimidade, e que essa determinou a extensão em que os temas atinentes à justiça deveriam ser tratados. Desde Uma teoria da justiça, não buscou estabelecer todas as hipóteses em que os termos “justo” e “injusto” poderiam ser empregados de maneira justificada, mas apenas os usos que concerniamà avaliação da estrutura básica da sociedade e que, de variadas maneiras, modulariam a adesão dos indivíduos às instituições que a compõem (RAWLS, 1999, p. 293-343).

Caso se adotasse a perspectiva de primeira pessoa, de uma concepção moral abrangente, essa pareceria uma visão bastante destoante de utopia, uma vez que uma sociedade poderia merecer essa qualificação apesar de suas regras e práticas não corresponderem perfeitamente ao ideal moral de nenhum de seus membros10, nem mesmo de qualquer filósofo moral. Não há o que estranhar, todavia, se estamos tratando de um ideal moral que se restrinja ao campo político, concebido para sociedades marcadas pelo pluralismo. A deliberação política é caracterizada pelo confronto entre opiniões (FREEDEN , 2004b, p. 3)11: algumas mais bem informadas, ponderadas e fundamentadas, outras menos; no entanto, é incompatível com o pluralismo democrático que alguma das opiniões adquira o status de conhecimento, pois isso, por definição, implica descartar as opiniões conflitantes como falsas e, por conseguinte, eliminar o pluralismo. Na perspectiva daquele que defende uma ideologia - e as ideologias, como se viu, são necessárias para pôr-se em prática um projeto político definido -, não há alternativa, enquanto permanecer como defensor daquela ideologia, senão tomar a sua opinião como a única verdadeira e argumentar pela falsidade de tudo aquilo que com ela for incompatível (FREEDEN, 2004b, p.6). Esse exercício argumentativo pode ser levado a cabo segundo o ideal dworkiniano de buscar a coerência entre a interpretação de todos os conceitos políticos, bem como a responsabilidade de dar conta de examinar todas as razões que se lhe forem opostas. Mas convém destacar que o cumprimento à risca desse ideal dificilmente levará ao grau necessário de determinação dos conceitos políticos que a prática normalmente exige: aí reside uma das diferenças entre filosofia política e ideologia (FREEDEN, 2004a, p. 6-7).

Entretanto, esse mesmo cidadão, na medida em que estiver comprometido com o Estado Democrático de Direito, também é capaz de tomar a perspectiva de seus adversários e observar que seus argumentos em favor de sua ideologia não são cogentes, e que as demais opiniões devem ser respeitadas, bem como acatadas as decisões obtidas por meio de procedimentos democráticos. Ainda assim, será a mesma deferência às regras do jogo político que lhe permitirá perceber que estão fora do espaço de discussão democrática as ideologias não razoáveis por não estarem comprometidas com as exigências de reciprocidade que contém a própria noção de Estado Democrático de Direito. É essa a função do tipo de teoria política empreendida por Rawls, a qual responde pelas relações entre as questões de escolha entre critérios de igualdade, de legitimidade da eleição desses critérios e de estabilidade do regime democrático em sociedades marcadas pelo pluralismo.

Referências

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1Como principal exemplo, pode-se tomar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.

2Ainda que se possam discriminar parâmetros distintos para aquilo que Michael Walzer denominou as diferentes esferas da justiça, cabe ressaltar a centralidade daquilo que Rawls denomina a estrutura básica da sociedade, à qual corresponde a distribuição social dos direitos, liberdades, oportunidades e bens necessários ao exercício da cidadania democrática e a consecução de qualquer projeto razoável de vida, bem como das fontes sociais do autorrespeito, e cujas regras não podem ser violadas em outros âmbitos da vida em sociedade (por exemplo, na família, em instituições de ensino, em associações culturais ou em comunidades religiosas), ainda que os critérios de distribuição dos bens que lhe concernem sejam distintos dos princípios válidos para a estrutura básica (WALZER, 1983, p. 3-30; RAWLS, 1999, p. 6-10; RAWLS, 2005, p. 257-288).

3Além de terem manifestado por diversas vezes desacordo um com o outro, conforme fica claro em: DWORKIN, 2000, p. 285-303; SEN, 2009, p. 264-268.

4Esse constitui o projeto de seu último grande livro, Justice for hedgehogs.

5São essas, em síntese, as razões que Rawls aponta para as limitações da razão no tocante às questões morais: (a) as evidências são conflitantes e complexas; (b) há desacordo com respeito ao peso a ser conferido a cada evidência; (c) os conceitos são vagos, havendo necessidade de interpretação para aplicá-los; (d) a nossa experiência de vida influencia a nossa perspectiva; (e) são diversos os aspectos de avaliação que podem ser levados em conta; (f ) existe a possibilidade de conflitos entre valores e de dilemas morais (RAWLS, 2005, p. 56-57).

6O termo “ideologia” emprega-se neste trabalho no sentido de conjunto de ideias e atitudes políticos suficientemente articulados para demarcar uma posição com efeitos práticos em um contexto específico, tal como utilizado por Michael Freeden em FREEDEN, 1996.

7A expressão foi tomada de Walter Bryce Gallie por Freeden, embora o último autor defenda em alguns escritos ser o contexto de disputa política que torna os conceitos contestáveis, e não o contrário (GALLIE, 1955, 1956, p. 167-198; FREEDEN, 2004b, p. 5).

8Neste ponto específico, diverge-se da interpretação da obra de Rawls oferecida por Freeden (FREEDEN, 2004b, p. 4).

9Tais fronteiras não devem ser concebidas como rígidas, não apenas porque os conceitos que as definem guardam uma grande margem para interpretação, mas também em função de Rawls trabalhar com a noção de família de concepções liberais, dentro da qual a sua justiça como equidade seria apenas aquela que ele possui mais razões para defender como a ideal (RAWLS, 2005, p. 450-454).

10Compreendendo-se “ideal moral” como o cumprimento pleno de tudo aquilo que o indivíduo crê que deva ser o caso - em outras palavras, que “é obrigatório que p” sempre implique “p”.

11Por óbvio, muitos dos fatos que podem iluminar a deliberação política podem ser fruto de conhecimento, e o conhecimento técnico não pode ser desprezado quando se trata da escolha do melhor meio para promover um fim previamente determinado. Não há, todavia, espaço para esse tipo de consideração quando os próprios fins se encontram em disputa. Sobre a irrelevância da objetividade com respeito a esse tipo de questão, ver WALDRON, 1999, p. 164-187.

# Trabalho realizado com o apoio financeiro do CNPq (Processo 459774/2014-0) e da CAPES (Processo 88881.119553/2016-01).

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