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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.spe3 Caxias do Sul  2018  Epub 02-Set-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.dossie.18 

Artigos

Sobre tolerar e acolher

About tolerating and welcoming

André Brayner de Farias* 

*Professor do PPG de Filosofia (UCS). E.mail: abraynerfarias@yahoo.com


Resumo

O trabalho articula alguns conceitos da ética e da filosofia política para pensar a crise dos refugiados. O que significa tolerar e acolher são questões que buscamos investigar para lançar luz sobre o campo de problematização da ética e da política. Se a pluralidade é a condição fundamental da política (Hannah Arendt), o conceito de alteridade ética (Emmanuel Levinas) deverá funcionar como um dispositivo para uma interpretação consequente do atual estado de nosso engajamento ético-político. O conceito de natalidade, que em Arendt fundamenta a ação política, é apropriado para afirmar uma ética e uma política do acolhimento e para indicar os limites de uma suposta ética da tolerância.

Palavras-chave: Tolerar; Acolher; Natalidade; Alteridade

Abstract

The paper articulates some concepts of ethics and political philosophy to think about the refugee crisis. What it means to tolerate and welcome are questions that we seek to investigate in order to shed light on the field of problematization of ethics and politics. If plurality is the fundamental condition of politics (Hannah Arendt), the concept of ethical alterity (Emmanuel Levinas) should function as a device for a consequent interpretation of the current state of our ethical-political engagement. The concept of birth, which in Arendt underlies political action, is appropriate to affirm an ethics and a policy of acceptance and to indicate the limits of a supposed ethic of tolerance.

Key-words: Tolerate; To welcome; Birth; Otherness

“Não existe cultura, nem vínculo social, sem um princípio de hospitalidade. Este comanda, faz mesmo desejar uma acolhida sem reserva e sem cálculo, uma exposição sem limite àquele que chega.”

(Jacques Derrida)

A questão dos refugiados não compõe, de forma aleatória, a pauta do debate sobre a crise político-contemporânea; não é mais um entre outros pontos de pauta. Quando se discute o tema no contexto do impasse político global, a questão dos refugiados aprofunda e centraliza o debate político, muito provavelmente, porque, como nenhum outro ponto, explicita o aspecto ético da dita crise. O refugiado, que é hoje a figura mais emblemática da alteridade, é a própria concretude ética do conceito de política, a sua negatividade dialética. Tratar o tema como problema técnico pretensamente resolvível, na forma de novos acordos de tolerância e da velha estratégia policial, que inclui a criminalização da hospitalidade, como na França, ou do socorro às vítimas, como na Itália, é o mesmo que suspender a questão e recusar o debate, e, como consequência, compromete-se a própria ideia de política, se entendemos por política a abertura do espaço discursivo em prol da pluralidade humana, como pensa Hannah Arendt. E aqui não se pretende pôr em pauta as razões,1 em geral bélicas, que respondem atualmente pelo absurdo incremento no volume de pessoas forçado a se deslocar. O que se pretende é levar adiante a ideia de política como pluralidade.2 A questão dos refugiados não pode ser tratada de forma circunstancial. Se quisermos falar em crise, é preciso admitir uma crise permanente.

Se a política é o esforço coletivo em prol da pluralidade, então não é possível conceber a política sem o elemento problemático da alteridade. E, aqui, alteridade tem o sentido levinasiano de uma infinitude ética: a condição de ser outro é a de uma estranheza que se produz e se reproduz constantemente, a condição de frustrar a expectativa racionalista, de maneira tal que a sua compreensão, em estruturas intelectuais, exige um processo permanente de ruptura; é outro tudo o que escapa da síntese conceitual, tudo o que não pode ser resolvido numa equação dialética. Uma racionalidade estritamente intelectual, ou teórica, que pretendesse resolver a questão da alteridade seria pura violência. Por isso, a questão assume, em Levinas, a dimensão de uma radicalidade ética. Se a alteridade como condição da ética desafia constantemente nossas estruturas formais de entendimento, se a produção de sua diferença, ou de sua negatividade, antecede e extrapola suas categorias conceituais, a ética só pode ser pensada como condição mesma do pensamento, ou, assumindo mais ainda sua radicalidade, a incondição do pensamento. Se a política é a condição da pluralidade, então ela comportará a mesma dimensão de radicalidade da ética.

Assumindo uma expressão de Hannah Arendt, a alteridade pode ser interpretada como o influxo permanente3 de uma incondicionalidade ética que investe a política de condicionalidade em prol da pluralidade. Essa ideia leva, necessariamente, a política a se converter em campo de problematização permanente, pois a pluralidade tende a não ter limites, e a condicionalidade é justamente a imposição de limites. De maneira que, para dar conta da tendência crescente de pluralidade social, a política deverá desacomodar suas condições e expandir seus limites. Ou a política torna a revisão de suas condições uma constante, que deverá agir em prol da pluralidade, ou ela vai precarizar seu próprio significado, podendo torná-lo caricato e falso.

Se a dimensão formal-material da política passa pela pluralidade, a inteligência política, a autêntica habilidade racional da política, será o arranjo das condições, não só para não interromper, mas para dignificar o influxo permanente das alteridades. O entendimento da política não pode ser o de se sentir ameaçada pela pluralidade ética, como a dos refugiados de toda procedência, mas o de se sentir desafiada por essa inevitável e constante demanda. Se a política se sente desafiada e não ameaçada em face da pluralidade, é porque ela respeita e confirma algo fundamental de sua identidade formal-material.

Admitir que o drama dos refugiados exige mais tolerância, ou que a extensão da tolerância vai resolver o conflito é, no fundo, negar a dimensão problemática da política. Outra lógica precisa entrar em operação, pois a tolerância jamais deixará de conviver com a intolerância, de tal modo que uma política baseada no paradigma da tolerância permanecerá assombrada pela ameaça de conflito belicoso. Não se tolera senão o que, no fundo, permanece intolerável. A tolerância embrutece o conceito de política, pois o que consegue fazer é, no máximo, afrouxar sua brutalidade ou retardar um pouco mais seu efeito, porque não consegue admitir que o influxo de alteridades seja permanente, e não vai estancar nem estabilizar pelo fato de que o cinturão da tolerância aumentou. Se o rearranjo das condições políticas redunda em mais tolerância, se não há outra natureza de resposta na mobilização da racionalidade política, nenhum esforço é feito para desativar o dispositivo belicoso, a tolerância vai apenas adiar o recurso à guerra, mas para isso terá que mobilizar todo um complexo de razões que, no fim das contas, servirá para mascarar a intolerância que é a verdade mais elementar da política vista como arte de fazer a guerra. Nessa arte, a competência consistirá em tornar “moralmente digna” a pura violência e a indignidade ética. Em síntese, se a pluralidade é um estorvo e não a condição da política, a habilidade da inteligência política será a dissimulação de suas verdadeiras intenções, a criação de si mesma como pura ideologia.

E quando falamos de influxo permanente, é preciso compreender que a produção e reprodução de alteridades é, antes de mais nada, uma condição da vida, de seu aspecto biológico mesmo. A categoria mais importante do pensamento político arendtiano, a natalidade, esclarece esse fato como nenhuma outra: é porque pessoas estão nascendo constantemente que devemos nos ocupar da construção do mundo, da permanência das coisas, como quem cuida de uma casa comum, e o fato de que pessoas nascem significa a constante inscrição da imponderabilidade no mundo, em síntese, a pluralidade, a mesma que indica o sentido de nossa atividade política. O que estaria para Arendt no fundo do significado de político é o que se encontra na natalidade, a capacidade de gerar o improvável, o inesperado, pois esse é o significado de alteridade. Ocupar-se de política é mostrar a capacidade de se distinguir pela via do discurso, ou ainda, de ser capaz de produzir alteridade. De certa maneira, é como nascer, no sentido de iniciar algo novo, um tempo novo. Isso significa investir na pluralidade ou produzir algo em prol de garantir pluralidade.

Nesse sentido, a política só pode ser uma permanente tensão: de um lado, o que lhe dá significado é sua dimensão ética, a da pluralidade, a da alteridade; de outro, ela é pragmática, já que o que lhe dá significado é a criação concreta das condições. Ela é permanentemente tensa e mal resolvida porque tem que responder ao Como fazer para garantir a pluralidade? E é evidente que em sendo a própria pluralidade a condição da política, a resposta está condenada a poder variar constantemente. O mundo sempre pode ser melhor. O influxo permanente de alteridade, pela via da arena discursiva, é a condição da ação política, e a primeira consequência dessa ação é justamente incrementar a pluralidade, ou seja, tensionar e desacomodar as próprias condições. Porque, o que se pressupõe com a pluralidade política, é a produção constante de alteridade, um processo, portanto, interminável.

Para que as coisas tenham continuidade, para que o mundo permaneça, é preciso garantir natalidade, nos sentidos estrito e lato, no sentido elementar da condição biológica, ou seja, no primeiro sentido da condição orgânica da sociedade, e no sentido da possibilidade de romper as fronteiras que definem quem são os de dentro e quem são os de fora. É evidente que a natalidade deve ser controlada, que o influxo de “recém-chegados”, como diz Arendt, é uma questão que deve entrar nos cálculos de qualquer organização social. Mas é também evidente que um mundo que não espera por mais ninguém é um mundo que começa a desaparecer.

Numa velha fórmula do judaísmo, recolhida dos estudos talmúdicos de Levinas (2002), a incondição da natalidade poderia ainda ser interpretada como aquilo que não tem começo nem fim, e que, portanto, está sempre começando de novo, uma intuição da própria temporalidade, se quisermos. Na filosofia de Levinas, a ideia de infinito é o dispositivo fundamental da ética e, consequentemente, da política. O filósofo, em geral, faz referência ao pensamento cartesiano, precisamente ao esquema da III meditação em que Descartes prova a existência de Deus. Levinas se apropria formalmente, como é sabido, do argumento cartesiano para fundamentar sua ética da alteridade. O infinito, que não tem começo nem fim, ultrapassa sua ideia, portanto, não é da ordem do pensamento teorético ou do saber, mas condiciona, inclusive, a possibilidade de conhecimento: é porque o infinito transcende sua ideia que a ética é a filosofia primeira, ou seja, a condição de toda filosofia. Mas, no comentário talmúdico,4 a questão do infinito parece revelar melhor sua dimensão ético-política. Acolher a ideia de infinito não significa possuir um pensamento coerente sobre o infinito, isso seria impossível, uma vez que o conteúdo ultrapassa a ideia, mas significa renovar interminavelmente e, de certa maneira, impossivelmente, a tarefa ético-política da responsabilidade. Essa tarefa pela qual significamos nossa vida ética e politicamente é uma forma de nascer de novo e, nesse sentido exato, de incrementar a pluralidade do mundo.5

O que não tem começo nem fim é incondicional, nenhum fundamento suporta. Mas é justamente isto (oferecer fundamento) o que é cobrado primeiramente da política. Portanto, a política deve carregar o fardo de sua própria equivocidade: dar aquilo que ela não pode oferecer, ou como diria Derrida, realizar o impossível. Isso não é chamar o político de mentiroso, a não ser que se caia na ingenuidade de querer apresentar a verdade da política. O que se quer dizer com a expressão derridiana realizar o impossível (DERRIDA, 2004, p. 315) é algo que deve denotar o caráter surpreendente do gesto político, o caráter inesperado. Portanto, estamos novamente convergindo com as ideias da filosofia política de Hannah Arendt. O que se espera da ação política é da ordem do extraordinário, do milagroso.6 Parafraseando Derrida, diríamos: se algo como iniciar algo novo existe, se algo como uma iniciativa existe, isso só pode estar além do horizonte do possível, exatamente porque se for da ordem do possível, é algo previsível e, portanto, não pode merecer o caráter de uma autêntica novidade. Nem verdade, nem mentira, em política, mais do que em qualquer outra forma discursiva, é preciso admitir a ficcionalidade do próprio discurso. Isso seria uma forma de devolver à política sua dimensão criadora e produtiva.

Criar as condições de pluralidade é comprometer-se a não interromper o influxo de pluralidade, o que não significa que não se possa e não se deva controlar, calcular, negociar a produção de alteridades, a admissão, por assim dizer, dos recém-chegados, porque a ética, no sentido aqui defendido, tem uma exigência infinita, não quer dizer que, no plano dos acontecimentos, nos variados contextos históricos de nossas decisões, possamos alcançar essa demanda. E controlar, calcular, negociar não precisam significar, necessariamente, interromper, interditar, impedir, mas devem significar o horizonte da tarefa ética, da demanda ética interminável da política. A questão reproduz o mesmo dilema que configura a diferença entre Justiça e Direito, conforme Derrida apresenta em seu Força de lei (2007). Nos termos derridianos, a Justiça é essencialmente indesconstruível. Ele chega a dizer que ela é a própria desconstrução, e exatamente porque o Direito existe em função da Justiça, ele só pode ser desconstruível. Se o Direito não puder ser feito e refeito constantemente, não há como falar em Justiça através das leis. “O direito não é a justiça. O direito é o elemento do cálculo, é justo que haja um direito, mas a justiça é incalculável, ela exige que se calcule o incalculável.”7 (DERRIDA, 2007, p. 30). Segundo Derrida, o fato de o direito dever ser desconstruído não atesta nenhum fracasso ou infelicidade, justo o contrário; o que se deve reconhecer, aqui, é “a chance política de todo progresso histórico.” (DERRIDA, 2007, p. 26). Toda equivocidade atribuída à política recai no Direito, pois lhe é exigido que seja capaz de calcular o incalculável. É exigido do Direito que estabeleça as condições da Justiça, que é infinita e, portanto, incondicional, porque o mundo não é uma pluralidade estável, mas em estado crescente, no mínimo pelo fato de que continuamos nos reproduzindo, porque as novas gerações ainda continuam substituindo as velhas.

Mas é evidente que o influxo permanece independentemente de continuarem nascendo pessoas; pelo fato de que pessoas se deslocam e irrompem em lugares novos, exatamente como pessoas novas que acabam de nascer. A ideia que se quer defender é a de que estrangeiros também realizam a imponderabilidade que é a marca do nascituro. A estrangeiridade sinaliza aquilo que a natalidade, segundo Arendt, significa para a condição política. Dessa forma, o recém-chegado pode ser um estrangeiro que acaba de nascer e que, portanto, irrompe de dentro, ou um estrangeiro que acaba de chegar e que, portanto, interrompe de fora. Se a pluralidade política for assim articulada, a nacionalidade se revela uma ficção indesejável, exatamente porque engessa e enfraquece o conceito de política. O nacionalismo é uma espécie de trincheira política, e um limite muito estreito à realização efetiva da ideia de pluralidade, na verdade, ela é um obstáculo. Na melhor das hipóteses, os de dentro, os nacionais, serão acolhidos, e os de fora, os estrangeiros, serão tolerados, sendo que a tolerância só pode ser um modo de receber fechado de antemão, e assentado no pressuposto da posse, na mitologia da identidade nacional.

A tolerância diminui o próprio conceito de cultura, pois, para se contentar com a política da tolerancia, é preciso pressupor uma condição cultural a tal ponto identificada consigo mesma que a estrangeiridade só pode ser concebida como ameaça e, na melhor das hipóteses, como uma questão de tolerância, para que se possa garantir, minimamente, as condições da identidade cultural. Evidentemente, a cultura condiciona e limita. Por exemplo, o fato de que falamos uma língua que não é a do estrangeiro a quem devemos acolher, o fato de que exigimos que ele fale nossa língua significa a imposição de limites e condições. Todo lugar é um lugar cultural, e, como tal, tem suas limitações. Mas a cultura é, também (e talvez por excelência), o lugar da liberdade.8 Certamente a cultura elabora e reivindica uma identidade, mas temos todo direito de esperar que o trabalho de elaboração cultural não tenha chegado ao fim, ou seja, que há uma dinâmica essencial no conceito de cultura. A tolerância supõe um conceito fechado e estereotipado de cultura, sendo que a condição cultural é justamente a da liberdade de criar as condições do mundo. A tolerância dá por encerrada a tarefa da cultura e, dessa forma, faz decair a cultura que é justamente o aspecto dinâmico e produtivo de uma sociedade, aquilo que expressa a vitalidade mesma da condição social.

Jacques Derrida, no texto Cosmopolites de tous les pays, encore un effort! destinado ao primeiro congresso das cidades-refúgio, promovido pelo Parlamento Internacional dos Escritores, se pergunta se cultivar a ética da hospitalidade não seria uma forma tautológica de falar, uma vez que a “hospitalidade é a cultura mesma e não uma ética entre outras.” (DERRIDA, 1997, p. 42). A cultura não é o conjunto das condições dadas, mas as condições dadas em condições de se oferecer, o que significa em condições de estar já além delas mesmas, ou seja, precisamente o estado de hospitalidade. Semelhante ao modo como Levinas concebe a própria linguagem em termos de dito e dizer em seu Autrement qu’être ou au-delà de l’essence: o dito são as condições dadas da linguagem, o diz er, que é para ele a própria responsabilidade, são essas mesmas condições em estado de oferta e abertura ao outro. É a cultura o lugar móvel do acolhimento. A sentença derridiana permite ressaltar o aspecto criador da cultura, que é mais essencial que seu aspecto de coisa feita e passível de ser descrita. A cultura, como sinônimo de hospitalidade, é também uma forma de tornar visível o comércio entre o influxo permanente da alteridade, essa incondicionalidade, e as condições de acolhida, pois a tarefa da ação política de garantir a pluralidade se realiza concretamente no movimento criador e expansivo da cultura: elaborar constantemente as condições do mundo, reescrever suas leis porque de todos os lados estão chegando os recém-chegados.

É nesse mesmo sentido e contexto que Derrida ainda se pergunta: que sobra de uma cultura que concebe a hospitalidade como delito? - a questão se refere ao debate sobre as leis francesas de criminalização da hospitalidade, criadas na década de 90 do século XX. A criminalização da hospitalidade é uma espécie de apagamento da cultura de um lugar. Normalmente dizemos que os sem-teto são invisíveis, porque naturalizamos tanto a visão de pessoas morando na rua que deixamos de percebê-las. Os invisíveis proliferam-se nas ruas das cidades com seus carrinhos, tralhas e molambos, compondo a paisagem. A criminalização da hospitalidade é uma maneira de produzir, inversamente, o fenômeno da invisibilidade, porque quem desaparece é quem está protegido dentro de suas casas, protegido por lei de ter que prestar solidariedade, portanto não apenas indiferentes à vulnerabilidade do outro, porque a indiferença supõe, ainda, a franqueza da presença, mas verdadeiramente ausentes.

*

A questão dos refugiados não é uma entre outras questões de política: é a grande questão política de nosso tempo, da mesma forma como a hospitalidade não é uma entre outras éticas, mas a ética, porque refugiado não é apenas a condição oficial do expatriado, é também uma espécie de exposição da condição humana no século XXI. Por isso o tema hospitalidade importa tanto para o discurso político hoje, porque expõe seu conteúdo ético: a necessidade de acolher não decorre de uma livre-decisão do sujeito autônomo, ela é um imperativo de natureza heteronômica e, por isso, dá significado ao discurso político como ação pela pluralidade. Aquele que chega, tendo nascido ou vindo de fora, não solicita acolhimento, sua situação é incondicional e por ela opera uma ordem que instaura um estado de hospitalidade.

Evidentemente que isso não garante coisa nenhuma, porque uma lei pode fazer desaparecer todas as condições para concretizar o imperativo incondicional. Ele não deixará, no entanto, de permanecer, silencioso, imperceptível, pronto para acontecer, como um milagre que vai dar, de novo, início a algo e adiar, mais uma vez, o fim do tempo e do mundo.

Referências

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. [ Links ]

_____. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. [ Links ]

DERRIDA, Jacques. Força de lei. São Paulo: Martins Fontes, 2007. [ Links ]

_____. Cosmopolites de tous les pays, encore un effort! Paris: Galilée, 1997. [ Links ]

_____. Papel-máquina. São Paulo: Estação Liberdade, 2004. [ Links ]

FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007. [ Links ]

LEVINAS, E. L’au-delà du verset: lectures et discours talmudiques. Paris: Minuit, 2002. [ Links ]

_____. Autrement qu’être ou au-delà de l’essence. Paris: Kluwer, 2001. [ Links ]

1Razões que levam Carl Schmitt a afirmar que, em um mundo inteiramente pacificado, não haveria a necessidade de política. Razões que também levam Levinas, em sentido oposto ao de Schmitt, a afirmar que a política é a arte de fazer a guerra.

2Lemos em A condição humana: “A ação, única atividade que ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Embora todos os aspectos da condição humana tenham alguma relação com a política, essa pluralidade é especificamente a condição - não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam - de toda vida política.” (ARENDT, 2014, p. 8-9).

3A propósito da natalidade, Arendt fala que o nosso engajamento no mundo, nossa obra, justifica-se pelo influxo permanente dos recém-chegados. (2014).

4Trata-se de um estudo sobre um texto clássico da tradição judaico-talmúdica intitulado Nefesh Hahaïm, de Rabbi Haim de Volozine (1729-1821), citado por Levinas como um dos maiores responsáveis pelo estabelecimento de uma marca distintiva do judaísmo do Leste Europeu, sobretudo daquele que se concentrou na região da Lituânia. De acordo com o Nefesh Hahaïm, traduzido por Levinas como Alma da vida, há duas maneiras pela qual o Infinito (Deus) pode se revelar, de Seu lado a ele, e de nosso lado a nós. Como jamais teremos acesso à revelação de Seu lado a ele, resta-nos o trabalho de interpretar o infinito de nosso lado a nós. E é justamente esse trabalho de interpretação do infinito, da ideia de infinito em nós, o que vai mover em nós o engajamento ético-político da responsabilidade sempre renovada, exatamente porque é, como a ideia de infinito em nós, sem começo nem fim. (LEVINAS, 2002, p. 184).

5“É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano, e essa inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato simples do nosso aparecimento físico original. […]; seu impulso surge do começo que veio ao mundo quando nascemos e ao qual respondemos quando começamos algo novo por nossa própria iniciativa.” (ARENDT, 2014, p. 221).

6“Se o sentido da política é a liberdade, isso significa que, nesse espaço - e em nenhum outro - temos, de fato, o direito de esperar milagres. Não porque fôssemos crentes em milagres, mas sim porque os homens, enquanto puderem agir, estão em condições de fazer o improvável e o incalculável e, saibam eles ou não, estão sempre fazendo.” (ARENDT, 2006, p. 44).

7Um bom exemplo para figurar essa afirmação de Derrida a propósito do conceito de Justiça, a propósito dessa incondicionalidade constituinte do conceito de Justiça, é imaginar a desproporção entre uma indenização, por mais vantajosa que possa parecer, e a perda irreparável de um bem muito precioso, como uma vida perdida num acidente de carro. Como conceber que seja suficientemente justa essa forma de fazer justiça, essa forma monetária de calcular o incalculável?

8A filosofia de Vilém Flusser tem muitas formas de abordar o conceito de cultura, mas uma delas é bastante oportuna de ser lembrada aqui. Trata-se do modelo da dialética interna da cultura. Flusser afirma que a cultura é uma tensão permanente entre estorvo e liberdade. Se entendermos que a cultura é o conjunto de todos os objetos que criamos para resolver nossos problemas, e objetos podem ser coisas e ideias, esse trabalho será, inevitavelmente, um processo de aprisionamento e de libertação, pois no mesmo instante em que solucionamos um problema criando algo para resolvê-lo, e portanto nos libertando, inventamos um novo problema, na medida em que nos condicionamos à nossa própria criação, de maneira tal que o processo cultural deve querer nos levar sempre mais adiante. É a esse processo interminável e essencialmente aberto e dinâmico que Flusser chama de “dialética interna da cultura”. (FLUSSER, 2007, p. 194-198).

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